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Educação

Print version ISSN 0101-465XOn-line version ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.41 no.3 Porto Alegre Sept./Dec 2018  Epub July 05, 2019

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.3.29404 

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A escola (a)pesar: a educação em tempos de leveza hipermoderna

The school weighs: education in times of lightness and hypermodernity

La escuela (a)pesar: la educación en tiempos de la levedad hipermoderna

Isis Stadulne Aquino1 
http://orcid.org/0000-0002-7241-4582

Renata Plácido Dipp2 
http://orcid.org/0000-0002-5079-406X

1Professora; Especialista em Gramática e Ensino da Língua Portuguesa pela UFRGS; Mestre em Estudos Multidisciplinares pela State University of New York College at Buffalo e aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS. Curso de Especialização em Gestão da Educação; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: <isisaquino79@gmail.com>

2Psicóloga; Especialista em Gestão Empresarial pela FGV/RS; Mestre em Psicologia pela PUCRS; Professora do Curso de Especialização em Gestão da Educação do PPGEDU da PUCRS e Professora da Escola de Ciências da Saúde - Curso de Psicologia; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: <renata.placido@pucrs.br>


Resumo

A sociedade hipermoderna é uma sociedade excitada que demanda da escola a personalização do ensino e a customização e espetacularização da experiência escolar. Este texto tem como objetivo levantar interseções e questionamentos acerca do caráter hiperconsumista da expansão capitalista, das características peculiares da sociedade hipermoderna e do lugar da escola e da educação diante desses novos paradigmas. Para tal, aproximou-se a perspectiva psicanalítica das teorias filosóficas de pensadores como Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetsky a fim de lançar luz aos impactos importantes à fragilização do laço social oriundos da nova ordem socioeconômica. Nesse sentido, é possível pensar que, para além do peso das novas demandas econômicas, culturais e tecnológicas, cabe à escola ocupar uma posição de ação estruturante e edificadora e colocar-se como instância social que guarda o interesse da formação do sujeito ético, reflexivo, crítico e sensível às urgências de um país, cujos altos índices de desigualdade asseguram um monopólio de privilégios.

Palavras-chave: Escola; Sociedade; Hipermodernidade; Leveza; Consumo

Abstract

The hypermodern society is an excited society that demands personalized, tailored, and customized learning experience from the school. This text aims to raise questions and point out intersections on the expansion of capitalism, the specificities of the hypermodern society and the place of education and the school. To that purpose, the text is based on concepts of psychoanalysis and the philosophical theories of authors such as Gilles Lipovetsky and Zygmunt Bauman to delineate the impacts of this new socioeconomic order on the social ties. Hence, it is possible to reflect upon how crucial it is that the school plays a socially edifying role in face of this new economic, cultural and technological scenario. The school is the social agent that guarantees individuals are formed with ethical, reflective, critical views; sensitive to the urgent matters concerning a country which high levels of inequality support a disproportionate set of privileges.

Keywords: School; Society; Hypermodernity; Lightness; Consumerism

Resumen

La sociedad hipermoderna es una sociedad excitada que demanda de la escuela la personalización de la enseñanza, la customización y la espectacularidad de la experiencia escolar. Este texto tiene por objetivo levantar intersecciones y cuestionamientos acerca del carácter hiperconsumista de la expansión capitalista, de las características particulares de la sociedad hipermoderna y del lugar de la escuela y de la educación ante estos nuevos paradigmas. Para ello, se aproximó el abordaje psicoanalítico de las teorías filosóficas de pensadores como Zygmunt Bauman y Gilles Lipovetsky a fin de arrojar luz a los impactos importantes en la fragilización del lazo social oriundos del nuevo orden socioeconómico. En este aspecto, es posible pensar que, además del peso de las nuevas demandas económicas, culturales y tecnológicas, cabe a la escuela ocupar una posición estructurante y edificadora, colocarse como instancia social que guarda el interés de la formación del sujeto ético, reflexivo, crítico y sensible a las urgencias de un país, cuyos altos índices de desigualdad aseguran un monopolio de privilegios.

Palabras clave: Escuela; Sociedad; Hipermodernidad; Levedad; Consumo

Introdução

Em tempos de leveza, a escola pesa.

Pesa sobre a escola a lógica hipermoderna de existência. Pesa de tal forma que o projeto de educação proposto se torna demasiadamente leve, descomprometido com o laço social e valores éticos capazes de amenizar os efeitos de uma sociedade viciada em si mesma. Tal cenário tem sido objeto de reflexão constante de áreas afins da Psicologia e da Educação.

A sociedade hipermoderna é uma sociedade excitada (TÜRCKE, 2010) que demanda da escola a personalização do ensino, a customização e espetacularização da experiência escolar. A globalização dos mercados, acompanhada da ampliação dos meios de comunicação, deslocou os indivíduos para dentro dos ciberespaços de si próprios, dependentes de sensações, fissurados por imagens, consumidores do porvir. A educação, nesse sistema socioeconômico, precisa constantemente inovar, vincular o sujeito pelo divertimento, estabelecendo-se de modo que possa ser consumida.

O modelo de educação brasileiro incorpora demandas do sistema econômico e reproduz os valores do capital financeiro, o novo regulador da vida cotidiana. Sob diversos ângulos, constata-se a rendição da escola perante os ditames da união entre capitalismo de consumo e cultura individualista. Assim como os cidadãos-consumidores, os currículos escolares estão despolitizados e descomprometidos com os valores éticos e democráticos. A régua do mercado dita as regras e afere valor: a qualidade do ensino é medida por números e rankings; a escola pratica uma pedagogia baseada em metas de aprendizagem, organizando sua metodologia e currículo com o propósito de preparar os alunos para bem performar em provas, exames e testes. Ao mesmo tempo, exige-se que os professores avaliem sem frustrar aqueles que, agora, além de alunos, são também seus clientes. A equação da leveza é igualmente pesada para a administração escolar: o mercado hiperconsumidor impõe uma lógica empresarial à gestão das instituições, subvertendo os projetos político-pedagógicos que, em sua maioria, preconizam emancipação, criticidade e formação ética por uma doutrina baseada em mérito pessoal, competitividade e competência.

Sobre a escola pesam, principalmente, expectativas e demandas de famílias desorientadas por um complexo sistema de valores em que a cultura não se separa mais do sistema mercantil. Famílias cujos progenitores estão cada vez mais ausentes e inseguros delegam funções parentais a terceiros e demonstram muita dificuldade em assumir posições de autoridade. Famílias desamparadas por um Estado enfraquecido que também delega responsabilidades, colocando no indivíduo toda a incumbência de obter, no mercado, o que antes eram seus direitos.

Dessa forma, ainda que a educação seja um valor estimado pela sociedade civil – apontada por diferentes setores como a solução para a crise moral, ambiental, ética e política do Brasil –, não se configura como instância social capaz de rivalizar e transgredir a indiferença que leva a que se conviva inerte e sem constrangimentos com a profunda desigualdade social, racial e de gênero que permeia a vida pública no Brasil. Pelo contrário, a escola está subjugada aos interesses do capital financeiro e, portanto, desvinculada de um projeto político-pedagógico que forme uma massa de cidadãos críticos, atuantes e sensíveis à condição do outro.

Este artigo foi concebido como etapa conclusiva da 8ᵃ edição do curso de pós-graduação em Gestão em Educação da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Para orientar a argumentação que aponta algumas formas de entender a interlocução entre educação e sociedade, conceitos da psicanálise são aproximados ao pensamento filosófico de Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetsky. O objetivo do texto é refletir sobre o lugar da educação no Brasil e sobre os novos desafios da escola e de seus gestores adiante da expansão do capitalismo e da leveza da sociedade hipermoderna.

Hipermodernidade: a escola e o peso da leveza

Orientada por um novo princípio de realidade, a sociedade contemporânea hipermoderna é como a civilização da leveza (LIPOVETSKY, 2016). Não uma leveza metafísica, mas uma leveza trans-histórica de características técnicas, culturais e sociais que a materializam em uma sociedade amparada pela apoteose consumista e instituinte do direito à liberdade individual como valor maior. Segundo Lipovetsky (2016), a leveza hipermoderna se articula sob um consumo da própria existência, apoiada nos ideais hedonistas e no que se pode chamar de ética da satisfação imediata. Cultura frívola de existência, imediatista, um estilo de vida agorista, acelerado e agitado, facilmente manipulado pela sedução das pequenas satisfações cotidianas.

Marcada por uma dinâmica volátil e de constante mudança, a ideologia da leveza se instaura na hipermodernidade desligada do controle pesado das instituições centrais, como Igreja, Família e Estado. Além do enfraquecimento da potência reguladora que essas instituições possuíam, a centralização do seu papel de transmitir cultura e conhecimento também se dissipou. Embora ainda sejam referências relevantes, o conhecimento agora está acessível e é disseminado por instituições midiáticas de caráter mais fluido, como televisão, rádio, cinema, internet. Com a revolução da leveza (LIPOVETSKY, 2016), a aquisição do saber tende a se livrar do peso dos enquadramentos coletivos pesados e das mediações destinadas a essa finalidade.

A hipermodernidade estabeleceu um novo paradigma não só para a educação, mas para o saber em si. Sem guardiões absolutos do saber, a informação propagada em alta velocidade e disponível em múltiplas telas ganha status de conhecimento. Paira nas nuvens digitais a sensação de poder apropriar-se dos mais diversos saberes. Uma ilusão criada pela superabundância do saber consultável que deflagra um quadro de empobrecimento do intelecto, enfraquecido pelo desprestígio da reflexão aprofundada e pela falta de investigação cuidadosa de fontes primárias.

Pressionados pela lógica mercantil da sociedade hipermoderna, os ensinamentos da escola têm como fim a inserção no mercado. Na escola, aprender só tem sentido se viabilizar uma troca rentável, como qualquer outro produto do qual se extraia prazer ou se retire, em curto ou médio prazo, uma compensação financeira. Lipovetsky & Serroy (2011) afirmam que a hipermodernidade constrói uma nova cultura da inteligência, na qual o aprendizado formal se encontra sem um propósito definido diante de tal estado de volatilidade e flexibilização dos mercados e de seus meios de produção. As constantes mudanças e transformações do trabalho não indicam que uma formação meramente profissionalizante assegurará inserção dos sujeitos nos mercados, tampouco parece seguro apostar na formação tradicional, teórica para carreiras engessadas que desabilitará os indivíduos a rapidamente adaptar-se às novas tecnologias e linguagens do mercado globalizado.

Tanto para a escola quanto para as universidades chega o momento de analisar a profundidade da crise que se impõe a seus projetos em virtude dessa posição de subserviência às demandas de um mercado caprichoso e excludente. A escola reproduz e reforça as estruturas que sustentam a desigualdade social dos sistemas hipercapitalistas, como denota a reflexão abaixo sobre a situação do sistema escolar francês, num aspecto bastante similar ao brasileiro:

A questão que se impõe de maneira particularmente aguda na França, onde o sistema de grandes escolas discrimina, de modo mais expressivo que em outros lugares, a elite, beneficiada por um tipo de ensino altamente seletivo, da massa, recrutada para universidades onde sempre cabe mais um e onde, sobretudo, não se fala em “seleção”. A uns caberão os postos seguros, os empregos importantes, os altos salários, o reconhecimento social; a outros, o subalterno, o sem-triagem, a mediocridade apagada de vidinhas sem horizontes (LIPOVETSKY, 2014, p. 92).

Pergunta-se, então: não seria a escola a instância questionadora dos danos colaterais (BAUMAN, 2013) decorrentes do crescimento vertiginoso da desigualdade social e da hipertrofia da subjetividade da sociedade hiperconsumista? Poderia a escola responsabilizar-se pela formação de indivíduos éticos, conscientes dos impactos de seus estilos de vida sob a segregação contínua de grande parte da população? Poderia o currículo escolar se ocupar de questionamentos contundentes acerca das pressões do sistema político e econômico orientado para o lucro de tal maneira que as futuras gerações fossem capazes de transgredir a indiferença e a alienação da sociedade hipermoderna?

A moral capital no interior da escola

As alterações socioeconômicas decorrentes da expansão do capitalismo têm impactos importantes no projeto de educação de qualquer nação, mas em especial em países que, como o Brasil, desenvolveram-se politicamente a partir de uma lógica de exploração e subserviência. Um projeto de educação perpassa todos os limites e possibilidades que as configurações sociais, políticas, culturais e econômicas estabelecem. A escola e seus currículos não são neutros, eles respondem às ideologias e doutrinas da sociedade de forma dialética. As divisões de classe e conflitos de interesse estão engendradas nos projetos pedagógicos, na gestão dos processos, nas metodologias e nas formas de avaliação (BAUMAN, 2009). A escola é um agente constitutivo e constituinte do constructo social e, nesse cenário, encontra-se esvaziada de valor ético e moral em decorrência da monetarização do ensino. Desloca-se na política e na economia, seja no setor privado como um commodity, servindo aos interesses do empresariado; seja no setor público, quando é objeto dos programas de governo.

Ao projetar a educação como uma mercadoria, o capital neoliberal interfere nas práticas pedagógicas, imputando à escola sua mentalidade produtivista e tecnicista. Como a prioridade é garantir empregabilidade, uma formação superficial, de caráter utilitarista, basta. O prejuízo cíclico é por demais comprometedor: os professores são formados sob essa lógica e formam seus alunos sob o mesmo parâmetro. Para Almeida (2009), assim se estabelece a reprodução dos mecanismos ideológicos do mercado capital e a perpetuação de uma orientação social que não questiona as imposições do sistema, pois está seduzida pela falácia da recompensa imediata.

A nova ordem técnico-econômica, regida pela racionalidade funcional da nova etapa do capitalismo, também permeia a administração da escola. Eficiência, meritocracia, produtividade são componentes fundamentais dos processos administrativos. A concorrência praticada no mercado transpõe-se nas novas formas de avaliação docente, discente e institucional; qualidade e competência são expressas em números. Estabelecem-se metas de novas matrículas, controle de evasão, aprovação de alunos em testes padronizados e até mesmo a satisfação dos clientes (pais e alunos) torna-se um objetivo detalhado em densos planos estratégicos, sob o mantra do orçamento zero. A escola-empresa se organiza no varejo da cognição, contaminada pela ideologia conservadora da otimização do tempo, dos espaços, dos recursos e também das pessoas. Os processos e seus fins precisam agregar valor ao sistema, seja pela compensação econômica, seja pela validação dos discursos de conformidade.

Competição e concorrência se institucionalizam na organização dos currículos de forma ostensiva, desumanizada e sucateada.

Podemos observar que o atual momento estimula a formação de técnicos e formação por meio da chamada Educação à Distância – EAD, o que permite uma formação rápida e que corresponde às exigências do mercado e à lógica neoliberal: mais pessoas formadas, mais concorrência pelas vagas e, portanto, possibilidade de formação do chamado “exército de reserva” que colabora para a desvalorização salarial; a educação à distância é menos onerosa e considerada mais eficiente (GENTILI, 1998, p. 33).

Distanciado da responsabilidade de promover um pacto de bem-estar social, o projeto de educação atual desenvolvido no Brasil tem como premissa garantir o acesso de poucos a um status intelectual que garanta status profissional e acesso aos bens de consumo. O objetivo final do ensino básico, ainda que desproporcionalmente amparado em recursos distintos nas redes pública e privada, é a adaptação dos sujeitos às métricas de sucesso capitalista, que condicionam todos a modos de produção lucrativos para o mercado.

Transpondo essa lógica para o currículo escolar, é possível observar como as escolas se colocam atentas ao que pede o mercado inconstante. Respondem como se delas fosse a obrigação de preparar uma massa de trabalho que gerará lucro e se adaptará rapidamente às infinitas flutuações. Para Lipovetsky (2007), sucesso e status social estão diretamente ligados à colocação no mercado, tudo logicamente orientado para a capacidade de comprar o que representa os ideais de vida leve.

Um novo mal-estar chega à escola: a cultura hiper

Na obra A cultura-mundo, Lipovetsky (2011) delineia com clareza o terreno sob o qual a leveza da hipermodernidade se constituiu e ganhou peso. Sob a ruína dos fundamentos metafísicos do saber, da lei do poder, da desarticulação dos pontos de referências sociais tradicionais, a globalização liberal afrouxou os vínculos e desorientou o sujeito. À mercê de si mesmos, os indivíduos agora são sua própria referência, o mundo hipermoderno é uma ilha de espelhos.

O mundo hipermoderno, tal como se apresenta hoje, organiza-se em torno de quatro polos estruturantes que desenham a fisionomia dos novos tempos. Essas axiomáticas são: o hipercapitalismo, força motriz da globalização financeira; a hipertecnicização, grau superlativo da universalidade técnica moderna; o hiperindividualismo, concretizando a espiral do átomo individual daí em diante desprendido das coerções comunitárias à antiga; o hiperconsumo, forma hipertrofiada e exponencial do hedonismo mercantil […]. A hipertécnica e a hipereconomia não produzem apenas um mundo racional-material; elas criam, propriamente falando, uma cultura, um mundo de símbolos, de significações e de imaginário social que tem como particularidade ter se tornado planetário (LIPOVETSKY, SERROY, 2011, p. 43).

No mundo ocidentalizado e globalizado, o consumo se reorganiza por meio de uma estrutura subjetiva a qual Lipovetsky (2004) chamou de homo consumericus: um indivíduo afoito, sedento de novas experiências, hiperflexível, imprevisível nos seus gostos e nas suas compras e voraz pelas sensações de bem-estar. O homo consumericus acredita que goza de ampla liberdade em face das imposições e dos ritos coletivos; entretanto, sua autonomia pessoal está submetida a um cardápio de novas formas de servidão, de novas tecnologias de controle e manipulação.

Esse novo axioma é um sistema organizador do mundo de símbolos, uma nova cultura: a cultura-mundo hipermoderna. Alicerçado na desregulamentação e desinstitucionalização da vida social, cultural e individual, o cidadão viu-se impotente e desprotegido da expansão do capital para dentro de suas redomas familiares, para dentro do seu desejo. Ao mesmo tempo, o mercado descarregou sobre o indivíduo o peso total de sua subsistência, de sua própria situação social e profissional. A chave para um futuro ‘de sucesso’ passou a depender da subjetividade individual, da capacidade de auto-organização, polivalência, proatividade e constante readaptação de cada cidadão (LIPOVETSKY, 2004).

A mão pesada do mercado da hipermodernidade provoca um sentimento generalizado de culpa e angústia, uma nova classe ansiosa, desamparada pela instabilidade macrofinanceira e pelo desequilíbrio moral (RECH, 2003). A insegurança e a sensação de estar à deriva faz terra arrasada no saber sobre si e sobre o outro.

No sistema econômico de curto prazo, em que os trabalhadores são descartáveis, um número grande de pessoas, inclusive da classe média, vive uma experiência cruel de fracasso pessoal, no isolamento e na vergonha de si mesmo, que dão origem à amargura, ao desencorajamento, à depressão (LIPOVETSKY, 2016, p. 45).

Logo, quando se une a perversão do mercado ao hedonismo consumista, o quadro de desilusão e abandono se agrava. A busca incessante pelo novo, pelo mais moderno, pelo menor e mais potente, pela sensação mais intensa, pelo alívio imediato, desencadeia no sujeito uma angústia proporcional à excitação da promessa. E a decepção de nunca encontrar o santo graal da satisfação causa na sociedade da leveza a epidemia da depressão e da apatia.

Por outro lado, a civilização do leve significa tudo, menos viver de forma leve. Pois ainda que as normas sociais vejam seu peso diminuir, a vida parece mais pesada. Desemprego, precariedade, casamentos instáveis, agenda sobrecarregada, riscos sanitários – e podemos nos perguntar o que, atualmente, não alimenta o sentimento de peso da vida. Por todo lado se multiplicam os sinais de desamparo, das novas faces do mal-estar na civilização (LIPOVETSKY, 2016, p. 25).

O escopo do consumismo invadiu a esfera doméstica de todas as classes sociais e estabeleceu uma dinâmica insólita na forma como o indivíduo relaciona-se consigo mesmo e com o outro, para o bem e para o mal, diz Lipovetsky (2016). À mercê dos desejos infindáveis dos indivíduos e de um contexto social saturado de projeções personalistas, Caniato (2013) explica que a esfera privada absorve a doutrina ideológica consumista, onde reina soberano o desejo (id) e o ego é mantido em condições regressivas.

Cada “pessoa” se reflete num espelho vazio que torna o Eu estranho a seu próprio portador (dessubstancialização do eu). Na des-socialização dos indivíduos e no personalismo narcísico, o individualismo atinge o seu nível superior de eficiência na manipulação das “pessoas” (controle social). Deslocado para os próprios “indivíduos”, difundido entre todos na guerra de um-contra-os-outros, a fim de atender o afã insaciável de um lugar ao sol – à priori permitido a todos –, a mentalidade “24000 watts” desvela seu véu disruptivo: a educação permissiva, a socialização crescente das funções parentais – que tornam difícil a interiorização da autoridade familiar –, não destroem, contudo, o superego: transformam o seu conteúdo num sentido cada vez mais “ditatorial” e mais feroz (CANIATO, 2013, p. 28).

Indaga-se, sob essa perspectiva, se o esvaziamento da instância de autoridade da escola não estaria relacionado à invasão de uma agenda externa, trazida pelos especialistas ou pelos representantes da família, que destituem a escola da sua função de agente regulador do ambiente coletivo. O hiperindividualismo impede que o sujeito aceite qualquer regra que lhe cause desconforto, frustração ou postergue a sensação de prazer (CANIATO, 2013).

O hipercapitalismo atinge simultaneamente o imaginário coletivo e individual. Os reflexos nos modos de pensar e estar no mundo, os objetivos profissionais, a valorização da cultura histórica, a confiança nos processos políticos, no valor da democracia e, principalmente, no lugar da educação. Todos os conceitos e paradigmas são relativizados e redimensionados na cultura hipermoderna.

Um golpe pesado para os ideais de emancipação, posicionamento crítico, cidadania solidária que norteavam a escola. Ter sucesso é vencer no jogo desleal e excludente proposto no mercado de trabalho, cujo modelo já foi internalizado e opera nos indivíduos como mantra. O sistema hipercapitalista não tem mais inimigos, agentes sociais antagonistas ou contrapontos morais. Pela primeira vez, não há alternativa de peso que se oponha ao sistema vigente. Nenhuma instituição ou teoria geral impõe resistência à livre expansão do mercado. Nem o Estado democrático trava os domínios do capital.

Deveria, então, a escola erguer-se ao menos como interrogação perante todos os “danos colaterais” (BAUMAN, 2008) da hipermodernidade hiperindividualista e hiperconsumista? Parece que há um lugar de propriedade nos currículos e práticas escolares capaz de iniciar um questionamento amplo e profundo acerca das ofensivas do sistema, de seus prolongamentos ideológicos deturpadores dos valores democráticos e manipuladores do espírito humano.

Escola e a leveza do laço social

Sob a análise de Bauman (2008), o padrão consumista se desloca para o campo relacional instantaneamente. Os vínculos não são sólidos, são endemicamente instáveis e duvidosos; as relações são negociadas por meio de trocas, num jogo de benefícios e ganhos. Não há reciprocidade. O autor afirma que, em larga escala, observa-se a substituição dos conceitos de comunidade pelo de redes “ao contrário das comunidades, as redes são construídas de forma unilateral, um indivíduo é capaz de desfazê-la ou remodelá-la desconsiderando o outro como sujeito. Redes não se estabelecem por alteridade, mas por funcionalidade” (BAUMAN, 2008, p. 179).

O mal-estar do hiperconsumo é um mal-estar cultural e ético. Num universo governado pelo mercado, nasce uma sociedade fechada em seu próprio gozo, incapaz de mobilizar-se pelos valores morais e éticos que valorizam a dignidade humana e preservam um constructo social de respeito ao coletivo acima do bem-estar individual.

Um individualismo que se transforma em egoísmo cobiçoso, um fechar-se em si que se opõe à solidariedade e à fraternidade, uma violência que se manifesta tanto nas explosões do terrorismo quanto na banalização da delinquência e da criminalidade, uma democracia sem fervor dos cidadãos, um mercado que governa tudo, direitos humanos achincalhados: o mal-estar cultural e ético cresce também, hipertrofiado na medida de um mundo hiper, no qual o homem, à medida que tem mais e, mesmo demais, chega a se perguntar se tem melhor (BAUMAN, 2008, p. 157).

Um desdobramento relevante do apagamento da função reguladora das instituições coletivas foi o fortalecimento da autonomia do indivíduo diante das estruturas que, na pós-modernidade, de certa forma, asfixiavam e enclausuravam subjetividades. Da ampliação dos mercados globalizados e da democratização do gosto, surge a versão forma de individualização hipermoderna, hedonista e narcísica, onde o sujeito se entende livre para afiliar-se a novos estilos de vida, instituições culturais e novas utopias.

Lipovetsky (2016) pontua que, neste mundo flexível e mutante, o homem vive sem utopias coletivas unificadoras; as grandes bandeiras ideológicas que pretendiam mudar o mundo como totalidade cederam lugar às pequenas utopias realistas, comumente amparadas numa sensação de medo. Pode-se aqui tomar como exemplo a bandeira da defesa do meio ambiente, que agrupa uma massa considerável de pessoas receosas do futuro catastrófico da relação usurpadora entre humanos e natureza. Mais do que uma tomada de consciência acerca dos modos hipertrofiados de consumo, baseados em substituição e descarte, é o medo que congrega a coletividade em prol de uma causa. Característica nítida dessa nova forma de existir no mundo, hiperindividualista, que busca repetidamente a obtenção do prazer e recusa-se a experimentar a dor e o sacrifício em prol do bem-estar social.

A espetacularização da vida também pesa sobre a escola: espera-se agora que suas metodologias de ensino absorvam a lógica do entretenimento. As aulas precisam ser divertidas, dinâmicas, leves. O aluno tem de ser encantado, surpreendido por uma atuação performática dos professores. A rapidez do clique e o poder da linguagem imagética exigem que a escola incorpore a seus currículos igual velocidade e poder de adaptação: os assuntos e conteúdos devem ser apresentados de tal forma que se assemelhem à mobilidade e interatividade da internet. Em direta oposição aos métodos tradicionais de ensino, a cultura da leveza menospreza as atividades que exigem disciplina, repetição, previsibilidade, lentidão, espera, processos analógicos e lineares. Nessa era, o aprender deve estar livre de grandes esforços ou sacrifícios, ainda que precise estar atrelado a resultados consistentes. Eis o peso da leveza numa economia capitalista pautada pelo consumo.

Uma revolução dos estilos de vida ligada à expansão do capitalismo permitiu a amplificação dos direitos e desejos do indivíduo (desenvolvimento do Eu) que escapa de toda normatização e administração impositiva da sociedade disciplinar. Esse imaginário de rigor desaparece ao mesmo tempo em que imerge um processo de personalização, uma maneira “sob medida” de colocar-se no mundo. Inevitavelmente, a dispersão da uniformidade social produz efeitos substanciais na escola.

A comunidade parental demanda constantes modificações na estrutura organizacional da escola. Exige disponibilidade integral em tempo e inovação da proposta: às famílias, mais horas e, aos alunos, abordagens que divirtam. Traz para os corredores da escola a pluralidade dos discursos, faz exigências a partir de sua experiência íntima, quer ser ouvida e atendida em sua singularidade. Ainda que defensora de ampla igualdade de participação e transparência na comunicação, essa comunidade, formada por indivíduos atentos a si mesmos, deposita na escola expectativas de sucesso profissional e projeção social de forma despolitizada, descomprometida de um ideal coletivo.

O peso da escola: quais perguntas apontariam possíveis caminhos?

Cabe questionar qual o peso da educação e da escola dentro de uma cultura de apologia à leveza que, como descreve Lipovetsky (2016), é consubstanciação de um modo de vida consumista de supérfluos. Ao submeter-se às regras do jogo mercantilista, a escola incorpora valores que hierarquizam os saberes e monetarizam o desenvolvimento intelectual dos jovens.

O ambiente escolar não parece priorizar experiências educativas regidas por princípios éticos fundantes; ao contrário, o panorama de empobrecimento da vida social passa, principalmente, pelo descomprometimento das instituições de ensino com a formação moral, humana e sensível dos indivíduos. Seguindo a cartilha do clientelismo e recorrendo a subterfúgios apaziguadores para evitar conflitos de toda ordem, a escola acaba sendo mais um agente do sistema capitalista que mascara frustrações com entretenimento e fruição. Não estaria a escola acompanhando as demandas por excitação e se afastando do lugar de instância edificadora e estruturante?

Elementos essenciais da escola, como o currículo e a proposta pedagógica, estão asfixiados por essa dinâmica social de entorpecimento e alienação. Reféns das exigências do mercado de trabalho, os currículos estão submetidos a uma fórmula mecânica que encaixa o conhecimento em respostas certas de avaliações padronizadas. O conhecimento veiculado pelos currículos não está organizado de modo a promover questionamentos sobre como a mídia influencia as vidas privada e pública, criando pseudonecessidades que estimulam o consumo indiscriminado, o endividamento e promovem estilos de vida que poluem o meio ambiente de maneira irreversível. Sem espaço para vivências de sensibilização, experimentações artísticas e atividades acadêmicas contextualizadas e profundas, como poderiam os projetos político-pedagógicos orientar os alunos para a ação reflexiva contínua, propositiva e solidária?

Os questionamentos deste texto apontam para a impossibilidade de se esperar que a escola, de forma isolada, liberte-se dos tentáculos do sistema hipercapitalista e adote uma posição antagônica. Somente quando a moral e a ética da coletividade se desvincularem da compulsão consumista e se restabelecerem laços sociais primordiais, será possível pensar um projeto de educação capaz de formar sujeitos éticos, mobilizados a subverter a ordem político-econômica que condiciona tantos à segregação, à invisibilidade, à exclusão e à pobreza neste país.

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Recebido: 08 de Dezembro de 2017; Aceito: 26 de Setembro de 2018

Endereço para correspondência: Isis Stadulne Aquino, Rua Dario Pederneiras, 245 apto 1402 – Petrópolis, 90630-090 Porto Alegre, RS, Brasil

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