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Educação

versión impresa ISSN 0101-465Xversión On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.43 no.2 Porto Alegre mayo/agosto 2020  Epub 01-Feb-2021

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2020.2.39104 

Dossiê: Formação em Movimento

Apresentação

Nadja Hermann1 

Professora Titular de Filosofia da Educação aposentada/UFRGS.


http://orcid.org/0000-0003-3823-7057

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil


Formação é um conceito genuinamente histórico.

Hans-Georg Gadamer

O título deste Dossiê “Formação em movimento” já dispõe o tema e anuncia que a formação humana, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, desloca-se e impulsiona-se em outras direções. Diante da consciência histórica a respeito da situação presente, um movimento de mudança conceitual não chega a ser surpreendente. Está associado ao declínio dos fundamentos da formação e de um amplo processo de transformação nas condições culturais, sociais e políticas.

Numa contextualização breve, destaca-se que a ideia filosófico-educacional de formação tem raízes antigas, se origina no mundo grego, quando se estabelece a autoconsciência de que para educar é preciso problematizar a condição humana, conhecer suas imperfeições para melhorá-la na busca do bem, do belo e do verdadeiro. Os gregos denominaram Paideia a formação humana orientada para a virtude espiritual, a mais difícil de ser adquirida, conforme reflexão dos sofistas, de Sócrates, de Platão e de Aristóteles. Esse movimento cultural projeta um ideal ético de moderação e bom senso, vinculado ao bem comum.

Os latinos reinterpretaram essa herança, insistindo numa ética comunitária, na urbanidade, no dever de solidariedade entre os homens. Contudo, é na modernidade que o núcleo central da Bildung alemã, voltado para a subjetividade autônoma e o desenvolvimento máximo das capacidades humanas se integra a uma expectativa de mudança espiritual, envolvendo as ciências humanas, para propor a educação como autodeterminação e criação de si, uma visão antropomórfica, de inspiração iluminista, que aposta na condição da razão para promover o humano. Para isso, tem como base os textos publicados nos séculos XVIII e XIX por Rousseau, Kant, Herder, Schiller, Goethe, Hegel, Humboldt.

Formulações dessa natureza constituíram um impulso teórico propagador de ações educativas estruturantes da subjetividade reflexiva, da busca da verdade, da relação ética com os outros e com mundo e influenciaram várias propostas pedagógicas. Entretanto, há sempre uma tensão entre os referenciais estabelecidos em um determinado tempo histórico e a emergência de novos questionamentos sobre o homem, a cultura e o conhecimento que desestabilizam as crenças e o universo simbólico vigentes, impulsionando o movimento de mudança conceitual.

Um primeiro estágio desse movimento é provocado pela tensão entre as aspirações excessivamente idealistas e ambiciosas contidas no conceito de formação e a fragilização de seus pressupostos. Para essa fragilização contribuíram fatores como a suspeita da autossuficiência da razão e da soberania do sujeito que tornariam inalcançável a autodeterminação; e o incremento dos processos de racionalização social, das formas de controle e regulação da vida, que resultam em expropriação do sujeito e em fracasso da autorrealização individual, forçando a uma revisão do significado da educação.

Entre as muitas críticas à razão e à soberania do sujeito, assumem destaque a crítica de Nietzsche, que, já no século XIX, antecipa a ideia do sujeito movido por forças pulsionais; a de Freud, que questiona a base racional da autodeterminação e aponta a “destruição narcisista do amor próprio” da humanidade. E, ainda, a de Wittgenstein, que questiona a tradição racionalista da filosofia da consciência ou da representação, ao conceder a primazia do significado ao sujeito.

Já em relação àquelas que são a respeito processo de racionalização social encontram-se, sobretudo, os trabalhos de Foucault e Adorno. A crítica de Foucault analisa o poder nas relações sociais, nas quais o sujeito permanece preso numa rede discursiva e não tem controle de si mesmo pela consciência. Estabelece-se um governo da vida, que a modela e a direciona. Adorno, por sua vez, denuncia a razão instrumental e a lógica da identidade, que conduzem a uma crescente racionalização, em que as ações humanas se revestem em violência e manipulação, como se verifica na submissão das forças internas do sujeito para dominar o mundo externo e a violar a natureza.

Tais críticas provocam uma considerável desestabilização das expectativas emancipatórias, mas, sobretudo, apontam para a improbabilidade de uma certeza quanto aos fins da educação. Nesse contexto se acrescentará um segundo impacto causado precisamente pela contemporânea mudança ocorrida nas condições sociais e a dinâmica introduzida pelo desenvolvimento das tecnologias eletrônicas e digitais, pelos novos hábitos sociais e pelas demandas do sistema econômico, que modificam pela base as condições do processo formativo.

Sobretudo, as medias e as redes virtuais imprimem um ritmo acelerado à dinâmica social, alteram a relação com o tempo e imprimem uma superestimulação em diversos âmbitos da vida, provocando transformações na subjetividade. Ou seja, surge o questionamento se nossa experiência formativa não estaria alienada, trazendo bloqueios à autodeterminação e anestesia da sensibilidade, pela impossibilidade de produzir sentido, num mundo efêmero e acelerado.

Tensões dessa ordem desestabilizam o processo educativo, pois o que sabíamos perde validade e não há ainda um saber consolidado que atenda às atuais configurações sociais e da subjetividade transformada. Certamente se estabelecem incertezas e desorientação, especialmente porque o ritmo imposto pelo uso de tecnologias da informação e pelo consumismo desenfreado frauda as ancoragens que sustentavam a ações básicas da educação. E, isso inclui, desde as questões relativas à vida psíquica como a constituição da própria interioridade, a formação de vínculos sociais mais duradouros, passando pela relação com a verdade, diante das fake news.

Essas condições sociais tornam nosso tempo opaco, uma “nova instransparência”, como Habermas já havia diagnosticado na década de 1980. É nesse contexto que se abre o espaço para o debate de novas formas de compreensão da condição humana, que exigem inovação conceitual, projetando outros modos de educar. Cabe à filosofia um olhar crítico e reflexivo da situação vigente, na perspectiva de propor aquilo que é seu proprium, ou seja, recriar interpretações e conceitos.

O Grupo Racionalidade e Formação (CNPq), que reúne pesquisadores da filosofia da educação, dedica-se, sistematicamente, à atividade investigativa sobre o tema da formação, diante dos instigantes desafios contemporâneos e ensaia argumentos que possam elucidar alguns desses desafios. Não apenas para retomar o tema da formação numa perspectiva reconstrutiva, mas, sobretudo para pensar os desafios teóricos e práticos da educação. Eles são decorrentes da crise cultural e epistemológica com as exigências de novas elaborações conceituais e interpretativas que explicitem não só a relação com a normatividade e a própria condição humana, como também a dimensão antropológica e a vinculação com o sistema.

O presente Dossiê se vincula a essa perspectiva, reunindo artigos dos integrantes do Grupo que põem em constelação os diferentes enfoques teóricos. Se por um lado, emergem de uma mesma e ampla problematização; por outro, produzem diversidade de respostas decorrentes da especificidade dos projetos investigativos de cada pesquisador.

O Dossiê abre com o artigo que problematiza o papel da leitura como experiência formativa. Em El problema de la formación en la sociedad aceleredada y la expropiación de la atención, Antonio Gómez Ramos analisa os impactos das mudanças tecnológicas e de hábitos sociais prevalentes na orientação neoliberal da sociedade contemporânea sobre a ideia clássica de Bildung, que se embasava em atividades culturais, especialmente a leitura, “que pressupunham um alto grau de concentração, silêncio e solidão, a partir dos quais se esperava produzir uma subjetividade reflexiva, autônoma y formada”. As mudanças ocorridas introduzem um modo de vida acelerado e imediato, interpretado como alienação (Harmut Rosa, Jonathan Crary, Byung Chul Han). Ramos conclui que a perda da capacidade de atenção e concentração, relacionada ao uso das novas tecnologias são um desafio para a Bildung e exigem sua reformulação.

No artigo Capital humano e panorama educacional: atualidade da Crítica de Heydorn, Dirk Stederoth expõe o fio condutor que permeia as reformas educativas na Alemanha, tendo como referência a crítica de Heinz-Joachim Heydorn, para apontar que elas tem em comum a negligência da dimensão humanista para atender às demandas do sistema produtivo. O texto mostra a “continuidade da orientação pedagógica”, que inclui “desde o conceito do capital humano até os critérios de competência e adaptação às demandas da economia e tecnologia em permanente transformação”. Contra um tal reducionismo, o autor faz uma defesa “da formação universal, convencido ser essa a melhor condição para se enfrentar os desafios da dinâmica inscrita ao mundo moderno”.

As complexas relações entre formação e democracia no contexto atual são analisadas por Pedro Goergen, no artigo Educação e democracia no contexto do capitalismo neoliberal contemporâneo. O autor argumenta que a educação tem uma “dinâmica de dupla face envolvendo, de um lado, o ideal formativo humanista e, de outro, a educação profissionalizante dos jovens para o mercado de trabalho”. Assim a racionalidade econômica se afirma, colonizando a educação em detrimento “da cultura e dos valores subjetivos e antropológicos, essenciais à formação integral da pessoa humana.” O autor defende uma formação fundamentada na “ideia do comum dialogicamente formulado com vistas à dignidade, solidariedade e diversidade”.

Hans-Georg Flickinger, no artigo Pedagogia formal e pedagogia social em mútua dependência, parte de suas experiências educativas no campo da pedagogia social, contrapondo as diferenças entre essa pedagogia e a escolar de modo a resgatar a relevância do processo educativo enquanto uma “experiência essencialmente social”. Defende a tese que as políticas públicas desprezam essa dimensão social da experiência educativa, o que favorece o deslocamento dessa demanda para o espaço fora das instituições escolares.

No artigo O desafio da educação como conversação no tempo do esquecimento da verdade, Altair Fávero e Luiz Carlos Bombassaro problematizam a experiência formativa a partir do esquecimento da verdade, diante da emergência das fake news, da pós-verdade e do pós-fático. Enfrentam esse desafio tendo como referência a proposta conversação filosófica de Richard Rorty, que pode ser articulada com a educação, em especial pelas possibilidades contidas na noção de “redescrição”, como uma forma alargada de compreender a verdade e enfrentar o vazio epistemológico deixado pela ideia de pós-verdade.

A relação entre formação e condição humana é analisada em dois artigos: Conservadorismo moral, indeterminação da condição humana e ética democrática, de Cláudio Dalbosco, Ângelo Cencci e Miguel Rosseto e Condição humana, mundo comum e educação, José Pedro Boufleuer e Jenerton Arlan Schütz.

No primeiro deles, é analisada essa complexa relação sob o enfoque do conservadorismo moral e do estreitamento de mundo e de ser humano como “essência pronta e numa ontologia antropológica hierarquizada”. Com apoio na interpretação do pragmatismo falibilista de Richard Bernstein os autores apontam os perigos desse tipo de conservadorismo que conduz ao fechamento do espaço público, do qual depende a força da democracia. É pela abertura e pela crítica do pensar que se viabiliza a compreensão da condição de indeterminação do ser humano, capaz de limitar o desjo de onipotência. O artigo conclui, defendendo “o nexo entre mundo aberto e fragilidade humana, no marco de uma ética democrática, que cria as condições propícias para experiências éticas e formativas”.

José Pedro Boufleuer e Jenerton Arlan Schütz tomam, como ponto de partida para pensar formação, a dramaticidade da condição humana, que nos encaminha para escolhas de “modelos de convivência sempre provisórios, passíveis de modificação e aperfeiçoamento” e que constituem nosso mundo comum. Para explicitar essa condição os autores se apoiam em Hannah Arendt, especialmente na obra A Condição Humana, de forma a indicar o que educação escolar e a docência podem contribuir para a construção de um mundo humano comum, na perspectiva de educar as novas gerações para alimentar o desejo que este mundo continue.

Amarildo Trevisan, no artigo Educação e violência: a educação contra o fascismo, interpreta o fenômeno de incremento de uma linguagem de ódio que circula nas redes virtuais, e suas possíveis repercussões para a formação, propondo uma hermenêutica desse tipo de linguagem que se aproxima do “fascismo”. Investiga “o desprezo aos direitos humanos e um apreço pelo uso da violência, as práticas de racismo, discriminação contra grupos minoritários realizadas nas redes sociais e suas repercussões nos currículos e na formação de professores”.

Uma abordagem de como expressões artísticas e culturais constitui a formação é apresentada nos artigos A Literatura enquanto práxis educativa emancipatória, de Fausto dos Santos Amaral Filho e Neiva Afonso Oliveira, e Música como problema de formação (Bildung): Espinosa, corpo e afecções, de Raimundo Rajobac e Fernando Garcia. Fausto e Neiva retomam o significado do romance de formação (Bildungsroman) e da arte, como nos foi legado pela Bildung alemã, na perspectiva de formação do eu, justamente para atender aquela dimensão humana que não é acessível ao meramente racional. O texto conclui pela “ênfase nos processos formativos que promovam os interesses integrais da multiplicidade das possibilidades humanas, entre eles, a emancipação dos sujeitos”. A música como problema de formação é abordada por Rajobac e Garcia, na perspectiva monista de Espinosa, que articula o sensível e o inteligível. A partir da reconstrução interpretativa da Ética de Espinosa, os autores concluem que a música na formação se realiza, antes que uma mero preparo técnico, enquanto experiência afetiva.

A especificidade do campo da educação física escolar na formação é analisada por Zuleyka da Silva Duarte e Avelino Oliveira no artigo Educação física escolar: limites de uma formação omnilateral. Sob inspiração da filosofia social marxiana, os autores discutem a possibilidade de uma educação omnilateral, defendendo a tese, segundo a qual a abordagem crítico-superadora é a que melhor atende à essa perspectiva no campo teórico da educação física. Alertam, contudo, que esse mesmo enfoque necessita de uma ressignificação, a fim de efetivamente atingir o alcance omnilateral.

Por fim, esperamos que os artigos que integram este Dossiê se constituam numa oportunidade de diálogo com o leitor. Desejamos a todos uma boa leitura!

Recebido: 25 de Março de 2020; Aceito: 10 de Julho de 2020; Publicado: 02 de Dezembro de 2020

Endereço para correspondência Nadja Hermann, Rua Teixeira de Carvalho, 219 90880-300 Porto Alegre, RS, Brasil nadjamhermann@gmail.com

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