SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.43 issue2Theoretical approaches to Physical School Education: limits to the proposition of a comprehensive (omnilateral) educationEspinosa, body and conditions: music as a formation problem (Bildung) author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Educação

Print version ISSN 0101-465XOn-line version ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.43 no.2 Porto Alegre May/Aug 2020  Epub Feb 01, 2021

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2020.2.36221 

Dossiê: Formação em Movimento

Educação e democracia no contexto do capitalismo neoliberal contemporâneo

Education and democracy in the current scenario of neoliberal capitalismo

Educación y democracia en el capitalismo neoliberal contemporáneo

Pedro Laudinor Goergen1 

Doutor Honoris Causa pela Universidad del Centro de la Província de Buenos Aires, na Argentina. Doutor em Filosofia pelo Ludwig Maximilians Universität München, na Alemanha. Pós-doutor pela na Universidade de Bochum e no Instituto Max Planck, na Alemanha. Professor titular da Universidade de Sorocaba e professor titular (colaborador) da Universidade Estadual de Campinas, SP, Brasil.


http://orcid.org/0000-0001-9539-9752

1Universidade de Sorocaba (UNISO)


Resumo:

O presente texto é o resultado de um estudo bibliográfico sobre a educação contemporânea e sua conexão com a racionalidade econômica como seu novo princípio gerencial. Destaca-se a relação entre o projeto educacional embasado na ideia do desempenho frente à formação humanista. O objetivo é argumentar, com base em bibliografia especializada, a favor de um projeto educacional embasado em uma dinâmica de dupla face envolvendo, de um lado, o ideal formativo humanista e, de outro, a educação profissionalizante dos jovens para o mercado de trabalho. Trata-se, portanto, de colocar em questão a transferência da racionalidade econômica e da valorização de resultados para o campo da educação, em prejuízo da cultura e dos valores subjetivos e antropológicos, essenciais à formação integral da pessoa. O conceito básico deste projeto formativo não se fundamenta nas clássicas transcendências religiosas ou filosóficas, mas na ideia do comum dialogicamente formulado com vistas à dignidade, à solidariedade e à diversidade.

Palavras-chave: formação humana; educação empresarial; educação solidária; paradigma comum

Abstract:

This text is the result of a bibliographical study on contemporary education and its connection with economic rationality as its new managerial principle. We highlight the relationship between the educational project based on the idea of performance as a humanist formation. The objective is to argue, based on specialized literature, in favor of an educational project based on a double-sided dynamic involving, on the one hand, the humanistic formative ideal and, on the other, the vocational education of young people for the labor market. Therefore, it is a question of placing the transfer of economic rationality and the valorization of results into the field of education to the detriment of culture and subjective and anthropological values, essential to the integral formation of the human person. The basic concept of this formative project is not based on the classic religious or philosophical transcendences, but on the idea of the dialogically formulated common with a view to dignity, solidarity and diversity.

Keywords: human formation; business education; solidary education; common paradigm

Resumen:

Este texto es el resultado de un estudio bibliográfico sobre la educación contemporánea y su conexión con la racionalidad económica como su nuevo principio de gestión. Destacamos la relación entre el proyecto educativo basado en la idea del desempeño como formación humanista. El objetivo es argumentar, con base en literatura especializada, a favor de un proyecto educativo basado en una dinámica de doble cara que implique, por un lado, el ideal formativo humanista y, por otro, la educación vocacional de los jóvenes para el mercado laboral. Por lo tanto, se trata de colocar la transferencia de la racionalidad económica y la valorización de los resultados en el campo de la educación en detrimento de la cultura y los valores subjetivos y antropológicos, esenciales para la formación integral de la persona humana. El concepto básico de este proyecto formativo no se basa en las trascendencias clásicas, religiosas o filosóficas, sino en la idea de lo común formulado dialógicamente con miras a la dignidad, la solidaridad y la diversidad.

Descriptores: formación humana; educación empresarial; educación solidaria; paradigma común

A educação de modo geral e, especialmente, a educação escolar, enfrenta hoje o enorme desafio de encontrar respostas adequadas para a pergunta a respeito do modelo, dos sentidos e dos objetivos da educação das novas gerações no cenário político, econômico e cultural contemporâneo. Encontramo-nos em meio a turbulências entre cenários múltiplos e desencontrados de mudanças rápidas e imprevisíveis, gerando desorientação e incertezas em relação ao futuro. Tanto a economia, a sociedade e a ciência quanto também as posturas subjetivas e sociais estão em permanente fluxo, gerando um ambiente de insegurança e de desorientação política e ética. Neste contexto, a vida humana perde sua ancoragem intrínseca, engrenando-se às orientações e expectativas do mercado, cada vez mais determinantes dos anseios e posturas individuais e coletivas. Com isso, a educação, tanto familiar quanto escolar, se vê imersa em um mundo de incertezas, sem critérios comuns de excelência com relação à formação das crianças e dos jovens em termos de personalidade, eticidade e socialidade, cedendo lugar ao novo ideal pedagógico de adaptação e de submissão do processo formativo às expectativas e desígnios do sistema econômico.

Esta realidade, cada vez mais normal, remete a outra preocupação, anterior e mais profunda, relativa ao próprio ideal de ser humano, subjacente ao processo educacional. Vivemos um momento de profunda ambivalência entre o pragmatismo cujo objetivo é preparar as pessoas para o mercado e o idealismo pedagógico, distanciado dos condicionantes político-econômicos. Na medida em que esse idealismo antropológico perde terreno, impõe-se a submissão do ser humano às expectativas pragmáticas do sistema econômico, consideradas condição incontornável de vida melhor. Ainda não sabemos se haverá, no futuro, um reequilíbrio entre as dimensões perdidas do humano e a sofreguidão materialista e economicista, hoje dominante. Certo é que a orientação exclusiva das pessoas para o mercado interfere profundamente no sentido da educação, constituindo-se em um dos principais desafios da filosofia da educação na contemporaneidade.

À luz dessa realidade, o objetivo da presente reflexão é argumentar no sentido de que o desafio do processo formativo implica necessariamente uma dinâmica crítica de dupla face, envolvendo, de um lado, o ideal formativo embasado em pressupostos humanistas e, de outro, a preeminência da preparação profissional dos jovens para a atuação no contexto laboral dado. Neste sentido, educar significa, de um lado, preparar de forma adequada e realista os jovens para a atuação no mercado de trabalho, mas, de outro, pressupõe também o enfrentamento da urgente tarefa de desvelar e de fundamentar, desde a perspectiva humanista, os sentidos antropológicos subjacentes às práticas pedagógicas, visando formar cidadãos subjetivamente conscientes e socialmente responsáveis. Para tanto, pretende-se argumentar que a educação carece hoje de um novo sujeito histórico, uma nova ideia básica e fundante, uma nova transcendência histórica que sirva de fio condutor para o debate, a discussão e a construção da convivência humana, digna e justa para todos. A tese aqui defendida se adensa em torno da ideia do Comum como um novo sujeito histórico agregador do debate educacional.

O sistema econômico como horizonte humano

A chamada revolução industrial produziu, ao longo de sua história, um ambiente no qual as convicções e valores humanos se associam, cada vez mais, aos interesses econômicos. A autonomia do avanço tecnológico, enquanto estratégia de sustentação do modelo econômico, tanto gera enorme entusiasmo em função de seus inegáveis benefícios, quanto produz suspeita e descrença, devido aos efeitos colaterais para os seres humanos e mesmo à natureza. O acelerado avanço tecnológico, orgulho dos nossos tempos, engendra uma mecânica de constante renovação e obsoletização que, associada à substituição do trabalho humano pela máquina, deixa milhões de pessoas desempregadas e um meio ambiente ameaçado de colapso geral. Neste cenário, o capitalismo contemporâneo enfrenta o difícil dilema social entre, de um lado, sustentar um sistema econômico cujo sentido é, em princípio, garantir o bem-estar de todos, mas que, de outro, é intrinsecamente excludente na medida em que, com o auxílio da ciência/tecnologia, elimina empregos e exclui pessoas. Na verdade, não se trata de um fenômeno tão recente, pois, já no séc. XIX, Marx (2013) escrevia que:

[…] a maquinaria não atua apenas como concorrente poderoso, sempre pronto a tornar ‘supérfluo’ o trabalhador assalariado. O capital, de maneira aberta e tendencial, proclama e maneja a maquinaria como potência hostil ao trabalhador. Ela se converte na arma mais poderosa para a repressão das periódicas revoltas operárias, greves etc. contra a autocracia do capital. (p. 508)

Oitenta anos mais tarde, Adorno e Horkheimer (1985, p. 37) alertavam que “o pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo”. Desse tempo para cá, o ritmo das mudanças vem se acelerando de forma contínua, até alcançar o panorama assustador de uma realidade cindida entre o extraordinário desenvolvimento científico/tecnológico e a profunda desqualificação humana.2 Se antes o desemprego se ligava à incompetência, à ignorância, à falta de vontade de trabalhar e manchava de vergonha as pessoas afetadas, hoje o desemprego, de certo modo, se naturaliza ou institucionaliza, porquanto se trata de consequência normal e intrínseca ao próprio sistema produtivo, tecnologizado e capitalista, que substitui o trabalhador pela máquina. A própria palavra emprego, no sentido clássico, se torna obsoleta, visto que os empregados se tornam colaboradores temporários, com o status de pessoas jurídicas, sem seguro, sem aposentadoria, sem estabilidade. O mercado se parece a uma roda gigante com poucos lugares, ao pé da qual uma imensa multidão espera uma chance que, para muitos, nunca virá.

No mundo globalizado, a tecnologia se desenvolve em ritmo cada vez mais acelerado, a imprevisibilidade e as incertezas se difundem de modo tal que lhes resta como única explicação possível a teoria do caos. Até mesmo a esperança deixa de ser consolo, pois, na opinião dos especialistas, o desemprego é tendência calculada e irreversível do sistema tecnologizado com desfecho absolutamente imprevisível. As empresas criam células para projetos específicos; os contratos se tornam pro tempore; o trabalho resulta solitário, feito em casa, no computador. O trabalhador, isolado, sozinho, sem garantias nem direitos assegurados pelo poder de barganha do coletivo, resulta fraco, vulnerável e dependente. Diante disso, é paradoxal que o mercado seja o grande centro de aspirações e desejos das pessoas.

O que domina e perpassa todo o sistema são as métricas financeiras que funcionam, por assim dizer, no modo automático, eliminando qualquer sensibilidade humana e ética. Esse cenário impacta diretamente a educação, esvaziando-a da ideia do formativo, da integração social, do viés comunitário ou, para dizê-lo em dois conceitos fortes, do sentido antropológico e político. Em um cenário em que tudo muda celeremente, a educação profissional deve encontrar sempre novas formas de ajuste sistêmico, de modo a acompanhar os novos tempos e ritmos, marcados pela robótica e a inteligência artificial, com a alucinante celeridade da geração do novo e sua correspondente obsoletização. Instala-se uma nova dinâmica que, de um lado, substitui o homem pela máquina e, de outro, transforma o homem em máquina, da qual se espera apenas bom funcionamento para a produção de bens de interesse econômico, por sua vez, sustentado por desejos e necessidades, em grande medida, artificialmente produzidos para garantir o giro da máquina. Nada mais óbvio que, feito isso, o trabalhador/máquina, supérfluo, possa a ser substituído e descartado como qualquer outro objeto sem serventia. Tudo, os saberes, as habilidades, as próprias pessoas são submetidos ao único critério reconhecido e aceito: a utilidade sistêmica, ou seja, a geração de lucros para o capital. São marcantes as palavras de Adorno e Horkheimer (1985), escritas já em 1947:

Agora que uma parte mínima do tempo de trabalho à disposição dos donos da sociedade é suficiente para assegurar a subsistência daqueles que ainda se fazem necessários para o manejo das máquinas o resto é supérfluo, a massa imensa da população, é adestrada como uma guarda suplementar do sistema, a serviço dos seus planos grandiosos para o presente e para o futuro. (p. 49)

Este cenário tem efeito devastador sobre a relação entre o sistema educacional e o mundo econômico, primeiro, porque os países em desenvolvimento, com economia fraca, apenas conseguem empregar parcela reduzida da população; segundo, porque a nova economia automatizada necessita cada vez menos mão de obra, o que traz, como consequência funesta, a desmotivação generalizada para a educação entre os jovens que, de antemão, têm consciência do cenário sombrio de luta inglória, de desemprego e de descarte, que os espera; e, last but not least, a economia, em permanente e rápido ritmo de inovação, exige um processo permanente atualização do sistema educacional que os países em desenvolvimento não conseguem oferecer. A culpa dessa situação é jogada, de um lado, sobre os ombros do sistema educacional, acusado de ultrapassado e obsoleto, preso a um humanismo demodé, alienado das expectativas e dinâmicas do presente; de outro, sobre os professores malformados ou supostamente relapsos que preferem o proselitismo político/ideológico ao trabalho pedagógico de preparação profissional. E, finalmente, sobre os próprios jovens que, desinteressados, perdem seu tempo com a internet, a diversão, baladas e drogas.

Conforme destaca Gumbrecht (2015), trata-se de um desafiador cenário de cisão social. Já não aprendemos a ler as origens e sentidos da violência e, por isso, não alcançamos formas de superá-la. Um caminho para avançar é a reflexão e a interpretação da violência nas suas manifestações inerentes ao vazio existencial ao qual a sociedade e o sistema econômico neoliberal contemporâneo relega partes significativas da sociedade. A violência, um dos mais preocupantes aspectos da realidade atual, emerge do vazio de sentidos, vazio este que nem os indivíduos nem os grupos conseguem superar sem o empenho da sociedade como um todo. O futuro já não permite sonhar com um horizonte promissor de possibilidades e avanços, progressos e tempos melhores para nós, nossos filhos e as gerações futuras; ao contrário, na expressão de Gumbrecht (2015, p. 104), “em vez de nos transportar para um largo horizonte de possibilidades, hoje o futuro aparece em muitos níveis como algo intimidante”. Os jovens sofrem nostalgia de orientação que nós (a política, a economia, a cultura, a religião e a educação) não mais conseguimos lhes oferecer. De resto, as tentativas feitas nascem desacreditadas, visto que o contexto prático, marcado pela diferença, pela exclusão e pela violência, não proporciona expectativas e sustentação.

Insistimos em reduzir a violência ao espaço do individual como se a violência fosse apenas tópica, individual ou de certos grupos. As elites favorecidas se protegem em seus redutos murados e vigiados, defendem um sistema policialesco de repressão, constroem e enchem presídios cada vez maiores e numerosos, sem admitir que a questão tem raízes na decalagem sistêmica entre níveis e classes sociais. A consciência dessa polaridade entre os atos de violência concreta, destruidora e lesiva, e o cenário mais amplo do contexto sócio-histórico de um sistema injusto, excludente e violento permite entender (ainda que não justificar) que os fatos isolados como elementos de uma realidade maior só encontram explicação e solução no horizonte de mudanças sociais mais amplas e profundas do próprio sistema socioeconômico. Neste sentido, é fulcral encontrar caminhos de superação deste movimento pendular entre o agir individual e o coletivo, mediante uma visão de simultaneidade e integralidade.

A solução hoje sugerida pelos experts responsáveis pela projeção e implementação de políticas educacionais para dar conta das questões mencionadas é aparelhar o sistema educacional ao sistema econômico. A estratégia usada, como é próprio de nossa cultura política, é mudar as leis que regem o sistema educacional, sem fazer o debate de fundo a respeito das questões sociais, culturais, antropológicas, históricas, políticas e, sobretudo, econômicas, das quais se origina a situação em que nos encontramos. De ouvidos moucos para qualquer enfrentamento ideológico, os legisladores não se cansam de formalizar políticas adaptativas, visando a sempre colocar a educação a serviço do régio e intocável sistema econômico capitalista/neoliberal, implementado desde meados da década de 1980. Em síntese, do ponto de vista sistêmico, o desemprego e a exclusão existem porque as escolas fazem proselitismo, os professores não ensinam e os alunos não estudam o que seria essencial desde o ponto de vista do mercado. Em nenhum momento, o olhar sistêmico se volta sobre si mesmo porque as estratégias do sistema político/econômico neoliberal são consideradas intocáveis.

Embora não seja este o momento de entrar nessa polêmica, é preciso perguntar se as práticas educacionais, hoje em curso, ainda atendem às necessidades e exigências do mundo novo, virtual e digital em que vivemos. Efetivamente, muitos estudos tratam de encontrar respostas para a questão se as formas tradicionais de ensinar e estudar ainda são adequadas ao mundo atual. Em primeiro lugar, parece seguro que avanços não serão alcançados ao som da cantiga legalista dos rouxinóis brasilienses que entoam hinos de louvor ao sistema capitalista neoliberal. De outra parte, também não parece produtivo insistir no saudosismo teórico-filosófico do século XIX, cujos princípios críticos necessitam ser refundados.

Essa polêmica divide o discurso pedagógico em duas frentes, das quais uma privilegia a dimensão humanista e formativa e a outra insiste no sentido prático profissionalizante da educação escolar. O dilema radical hoje posto é se o papel da escola continua sendo a educação subjetiva das crianças e jovens em uma perspectiva integral, humanista, ética, social e política ou se, ao contrário, a educação deve limitar-se ao preparo de makers competentes para a atuação no mercado de trabalho. A tese aqui defendida considera a possibilidade de uma nova dinâmica pedagógica que contemple tanto a formação humanista quanto o preparo para a atuação no mercado de trabalho.

A meu juízo, a habilitação para o mercado e a formação humanista são dimensões do processo formativo que deveriam se complementar e não se contrapor. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a preparação para o trabalho é função relevante do processo educacional, até mesmo porque o trabalho representa uma dimensão constitutiva do ser humano. Se é verdade que trabalhamos para ganhar o sustento, também é verdade que do trabalho resulta a cultura humana, vale dizer, a própria constituição do ser humano, conforme já destacava Marx no início da industrialização no séc. XIX. A relação entre essas duas dimensões do trabalho, como sustento e a realização subjetiva da pessoa, está hoje envolta em uma profunda crise. A noção de trabalho desenvolvida por Marx como labor que não apenas produz objetos, mas o próprio ser humano enquanto sujeito, está sofrendo profunda e radical cisão. Nos termos críticos de Arendt (1981):

a sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício dos quais valeria a pena conquistar esta liberdade. (…) O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior. (p. 12-13)

A leitura de Arendt nos coloca frente ao desafio de encontrar novos caminhos para a educação do futuro: o que fazer da educação para o trabalho em uma sociedade em que já não são as pessoas, mas as máquinas que trabalham? Não é exagerado afirmar que o estreitamento e o entendimento da educação apenas como preparação para o trabalho (no sentido capitalista) é uma grande falácia que segue na contramão da história recente de profundas mudanças em termos de remodelagem da prática tradicional de trabalho. Hoje importa saber como e qual será o papel da educação escolar em um contexto em que simplesmente não há trabalho para todos. A formação humana do futuro deve enfrentar esse enorme desafio de encontrar uma nova identidade na economia tecnológica que progressivamente dispensa a presença e a intervenção do ser humano. Anunciam-se mudanças culturais profundas não só sistêmicas, mas sócio/antropológicas que acarretam uma disrupção radical, a curto ou médio prazo, no interior de um sistema econômico progressivamente desvinculado do tradicional modo de fabricação de produtos pelo trabalho humano. Um sinal muito claro dessa mudança é o incremento enorme do setor de prestação de serviços. Em recente artigo (Goergen, 2019) resume essa realidade nos seguintes termos:

A educação em geral e a educação escolar em particular enfrentam hoje enormes desafios relacionados aos objetivos e sentidos da prática pedagógica. Trata-se de encontrar respostas adequadas para a pergunta a respeito da natureza e dos objetivos da educação no contexto do atual sistema político/econômico capitalista neoliberal, focado prioritariamente na eficácia econômica. Em outras palavras, trata-se do ideal, modelo ou imagem do ser humano que serve de paradigma para a orientação do processo educacional. A formação para o mercado e a formação humanista, são duas perspectivas que denotam desafiadora ambivalência pedagógica entre o que o sistema político/econômico impõe às pessoas como condição de sobrevivência material e o que se espera do ser humano enquanto sujeito livre e ético. Nas atuais condições sócio econômicas, a educação se vê desafiada por dois ideais distintos: a formação como sujeito e a educação como con-formação à realidade sócio-econômica. (p. 278)

Neste mesmo sentido, Negri e Guatari (2017), referem-se à necessidade de uma nova subjetividade ancorada em novas formas coletivas de sociedade, visto que a separação estratégica entre os procedimentos científico/tecnológicos e o curso da vida social impedem a contestação como forma de política e administração do real. Estamos vivendo um momento histórico sem a possibilidade de grandes revoluções ideológicas de classe, como as que ocorreram no passado, mas de micro tensões e inovações nos campos da exclusão, da sexualidade, da migração, do gênero, da cultura, da religião e, sobretudo, da educação. Segundo os mesmos autores (2017, p. 91),

Os projetos globais de sociedade que repousam sobre corpos ideológicos fechados perdem aqui toda a pertinência, todo o caráter operatório. Não se trata mais de apoiar-se em sínteses abstratas, mas em processos abertos de análise, de crítica, de verificação, de atuação concreta e singular.

Estas revoluções tópicas dependem intrinsecamente de processos transformadores da subjetividade, somente possíveis pela educação em seus diferentes níveis e espaços. Essa é uma das razões porque governos conservadores ou reacionários fazem da privatização da educação pública uma de suas mais importantes estratégias políticas. O fulcro desse novo procedimento ético/político de transformação social é o favorecimento dos interesses sistêmicos e econômicos em oposição ao social, ao político e ao comum.

O neosujeito entre a individualidade e a comunidade

No contexto do novo modelo de estrutura social embasado na proeminência dos interesses do sistema econômico, a recuperação da subjetividade e da democracia precisa ser refundada sobre novos pressupostos antropológicos que ofereçam esteio ao político e ao comum, como ancoragem das individualidades e singularidades. Neste sentido, Hardt e Negri (2016, p. 377) desenvolvem interessante leitura do modelo insurrecional no qual “o potencial de decisão democrática no processo revolucionário […] explora os múltiplos eixos de subordinação que se cruzam em determinados sujeitos sociais, […] estabelecendo oportunidades e limitações para a política identitária”. Segundo estes autores, a política moderna de representação entra em crise ao tornar-se refém da burocracia político partidária cuja pretensão de representatividade é ilusória, visto que o controle se concentra nas mãos da elite econômica. Sendo assim, os mecanismos e as instituições de representação revelam-se impotentes e inoperantes, em prejuízo de expectativas sociais mais amplas e permanentes, sem as quais os regimes democráticos necessitam recorrer ao controle abstrato e flexível de governança, facilmente exposto às ingerências do capital.

Disso resulta um cenário de permanentes conflitos entre as condições quotidianas e os movimentos revolucionários, atualmente carentes de consistências históricas fortes e duradouras. Coloca-se, então, o desafio de alcançar convergência entre os distintos interesses, presentes no interior do comum, na luta por emancipação. As convulsões, hoje geradas pelas diferentes tecnologias, especialmente aquelas relacionadas à comunicação, agregam outras tantas dificuldades silenciosas ao processo decisório. O próprio sujeito convencional enfrenta problemas identitários marcados de alienação e externalidade porque, segundo Hardt e Negri (2016, p. 391), “(…) esses padrões de comportamento criados, de forma alguma são uniformes em toda a sociedade, definindo, em vez disso, formações identitárias, ao compelir as pessoas a se conformar a atributos de raça, gênero e classe como se fossem naturais e necessárias”. E, em contraste com os princípios sociológicos tradicionais, ainda segundo os mesmos autores,

nossa concepção da instituição não começa com os indivíduos, não termina com as identidades, nem funciona pela conformidade. As singularidades, em revolta contra o poder dominante e não raro em conflito umas com as outras, entram para o processo institucional. Por definição, (…) as singularidades são sempre múltiplas e estão constantemente engajadas num processo de autotransformação. (p. 391)

Dessa forma, influenciados pelos mundos econômico, social e ideológico, os indivíduos e as instituições se encontram em permanente fluxo, sem rumo definido a não ser o bom funcionamento do sistema econômico, no qual tudo se integra num processo institucional conduzido pela postura mutante dos participantes. A educação envolvida nesse processo passa a orientar-se pela métrica da competitividade e do rendimento dos futuros profissionais no mundo do trabalho. Assim sendo, o processo formativo, tanto individual quanto institucional, é avaliado a partir de indicadores relacionados às expectativas disponibilidade, flexibilidade e de produtividade e, portanto, de rendimento profissional para o sistema. Em decorrência, a educação é sistemicamente instada a concentrar seu empenho no preparo de crianças e de jovens para se ajustarem às exigências do sistema econômico, em detrimento de outros objetivos formativos, subjetivos, humanistas e éticos, seguramente não menos importantes, embora estranhos às exigências da mensuração sistêmico/mercadológica/produtivista, cujo foco recai sobre o desempenho imediato, condicionado aos interesses do sistema econômico.

O grande desafio educacional/formativo surge quando as pessoas, especialmente as mais jovens, passam a ser avaliadas apenas segundo critérios produtivistas, baseados na métrica econômica, individualista, competitivista, produtivista, visando sempre a superação do outro, em prejuízo do senso de compartilhamento e relacionamento social. Desde os primeiros anos de vida, ainda no contexto familiar, e logo depois na escola, as novas gerações são condicionadas pelas expectativas de sucesso segundo as condições impostas pelo mundo econômico. Em sentido oposto, os promotores do debate, da dúvida, da crítica ao paradigma economicista, ou seja, os que destacam as contradições subjacentes e desapercebidas, os elementos heterogêneos e contrários das imposições sistêmicas e destacam o sentido formativo e humanista da educação são considerados geradores de ruídos, perturbadores e prejudiciais ao bom funcionamento do sistema. Nisso se enquadram, como bem mostra o momento político atual, a literatura, a arte, a filosofia e as ciências humanas em geral, por natureza, dissonantes da univocidade sistêmica economicista.

Cada período histórico tem seus métodos de sufocamento dessas vozes dissonantes, como a inquisição, os campos de concentração, o exílio, os calabouços, os paredões, os exílios. O perigo dos literatos, poetas, filósofos, romancistas, artistas e mesmo dos grandes juristas deve-se à natureza política/econômica de suas inquietações, de suas críticas às posturas imperativas e autoritárias, justificadas em nome do bom funcionamento do sistema dominante, hoje estrita e estreitamente economicista. É o potencial de perturbação, de rebeldia, de subjetividade e de emancipação que torna a literatura, a poesia, a arte, a filosofia e a sociologia perigosas.s3 Sócrates foi condenado à morte pelos próprios concidadãos, mesmo contra a consciência de todos, em função do desconforto gerado por suas perguntas. Por essa razão, os defensores do sistema usam a estratégia singular e muito eficiente da condenação e da exclusão das vozes e das manifestações dissonantes da arte, da literatura, da filosofia e da teoria educacional consideradas inúteis, improdutivas e desencontradas em relação ao que verdadeiramente importa: interesse econômico. Na expressão de Dany-Robert Dufour (2005):

Hoje, os homens são solicitados a se livrar de todas as sobrecargas simbólicas que garantiram suas trocas. O valor simbólico é assim desmantelado, em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de tal forma que nada mais, nenhuma outra consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental (…) possa entravar sua livre circulação. Daí resulta uma dessimbolização do mundo. Os homens não devem mais entrar em acordo com os valores simbólicos transcendentes, simplesmente devem se dobrar ao jogo da circulação infinita e expandida da mercadoria. (p. 13)

A força da nova ideologia econômica não visa o homem por meio de reeducação ou de coerção, mas, ao contrário, segundo Dufour (2005, p. 14), “ela se contenta em introduzir um novo estatuto de objeto, definido como simples mercadoria, aguardando que a consequência aconteça: que os homens se transformem por ocasião de sua adaptação à mercadoria, promovida desde então como único real”.

Nestes termos, o homem de hoje se transforma sob a pressão do realismo sistêmico, reduzindo tudo a um único real, regido pelo exclusivo princípio da troca mercadológica. Quem resiste ou tenta se esquivar é excluído e abandonado às margens do caminho por onde segue o curso da grande maquinaria sistêmica. Assim surge um neosujeito destituído de suas disposições transcendentes e imerso no fluxo das mudanças emocionais, culturais e econômicas, sem saber bem quem é, nem para onde está sendo levado. O novo sujeito, destituído dessa permanência, sobrevive imerso no fluxo das sensações, dos sentimentos e das emoções, esquecendo-se das quatro perguntas do racionalismo crítico, formuladas por Kant nos primórdios do iluminismo: o que posso saber?; o que devo fazer?; o que posso esperar?; e o que é o ser humano? Essas indagações que deveriam presidir a formação do sujeito moderno são ignoradas, ao preço de uma vida regida pela prerrogativa imediatista da mercadoria, do consumo e da competitividade. Desta maneira, o ser humano perde a regência de sua trajetória entregando-a ao fluxo sistêmico cujo papel faz às vezes de uma nova ontologia baseada na supremacia do econômico em prejuízo do subjetivo. Sobretudo a última das quatro perguntas formuladas por Kant fica hoje sem resposta: o que é o ser humano? Mesmo que não se possa mais recorrer a fixidez metafísica do Séc. XVIII, esta pergunta continua sendo essencial. Nas palavras de Dufour (2005):

as diferentes narrativas com efeito prescrevem a feição que convém dar ao grande sujeito para que dois interlocutores possam se dedicar, quase pacificamente, à sua inesgotável vocação, falar, que modela todas as outras atividades. […] A política remete, portanto, ao ser comum dos homens. Os conjuntos humanos não existem sem um princípio de unidade: a comunidade, a polis, o Estado. […] A polis grega é, decerto, atravessada por forças múltiplas, mas se apresenta como unidade. Na cidade cristã, o Estado é um microcosmo pensável segundo um macrocosmo organizado e causado por um Deus único. No Estado moderno, Deus não funda mais a ordem política. ‘A ordem do Estado e o Estado como ordem’ procedem de uma causa não mais divina, mas humana (posta à luz por Shakespeare em Ricardo II e por Maquiavel no Príncipe), que, entretanto, não modifica a estrutura ontológica sempre ordenada pelo Um. (p. 30-31)

Embora o Um não exista, sua projeção pode ter a função de coligar o heterogêneo ao abrigo de uma ontologia política e histórica. Tomando o Estado como exemplo, podemos entender que, mesmo não representando uma resposta definitiva e fixa para a organização dos seres humanos, é possível, tê-lo como referência para a formulação de políticas públicas comunitárias, ainda que essas sejam sempre provisórias e históricas como, ademais, é próprio da condição humana. Se cada sujeito fosse pleno, se não se constituísse por definição na dialogia com o outro, essas reflexões seriam supérfluas. Efetivamente, somos sujeitos uns dos outros e, por isso, também sujeitos uns aos outros; não na medida em que nos opomos ou nos integramos, mas na medida em que nos complementamos, constitutivamente, uns dos e com os outros. No seu livro ‘Sobre o político’, Chantal Mouffe (2015) observa que:

Para agir politicamente, as pessoas precisam ser capazes de se identificar com uma identidade coletiva que ofereça uma ideia de si próprias que elas possam valorizar. O discurso político não tem para oferecer somente programas políticos, mas também identidades que possam ajudar as pessoas a compreender o que estão vivenciando e lhes dê esperança para o futuro. […] A especificidade da democracia moderna repousa no reconhecimento e na legitimação do conflito e na recusa de suprimi-lo por meio da imposição de uma ordem autoritária. (p. 24, 48)

Neste mesmo sentido, Dufour (2005, p. 33) argumenta que:

o sujeito é, em última instância, o que resiste, aparece imediatamente então que há um erro a não cometer quando de toda a visada de autonomia do dito sujeito: ninguém pode sair da submissão ao Outro sem antes ter nela entrado. Com efeito, como resistir ao Outro sem nele estar previamente alienado? Se infringirmos essa lei, se, em suma, sairmos antes de ter nela entrado, talvez nos encontremos livres, mas em parte alguma, num espaço caótico sem referência, um fora do tempo e fora do lugar.

Nós somos sujeitos uns dos outros, tanto na medida em que nos opomos quanto na medida em que nos complementamos uns dos e com os outros. Assim, “o sujeito é tanto a sujeição quanto o que resiste à sujeição. Em outras palavras, o sujeito é sujeito do outro e é o que resiste ao outro” (Dufour, 2005, p. 33). O Outro suporta para os indivíduos o que os indivíduos isolados não conseguem suportar. Na verdade, o Outro é o que nos funda e nos dá con-sistência. É o Outro que permite aos indivíduos pertencerem a uma e a mesma comunidade.

A nova narrativa entre a razão instrumental e a razão comunicativa

Nesses termos, o que parece central à educação contemporânea, pelo menos do ponto de vista da filosofia da educação, é a figura de Outro que assumimos na construção de nossa identidade subjetiva. Essa é, na verdade, a pergunta central da filosofia e da prática educacionais na atualidade. Se projetarmos estas considerações no cenário histórico parece ficar mais claro o que se pretende dizer: No antigo mundo grego o assujeitamento foi construído a partir do Outro, herói mítico; no período grego clássico, com base em uma paideia ideal; no monoteísmo medieval, a partir da vontade de Deus e do Rei; nos primórdios da modernidade, na submissão ao objetivismo racional; ao povo na República; ao proletariado no socialismo; à raça no nacional/socialismo. Existem também os períodos históricos de sujeitos múltiplos, sobretudo a partir do declínio do controle da Igreja e do início da racionalidade científica moderna, o grande sujeito cartesiano, depois contrariado por John Locke e mediado por Emmanuel Kant. A educação sempre foi instituída e institucionalizada com base “na submissão a ser induzida para produzir os sujeitos” com fundamento no ideal do Outro ou dos Outros que atravessam as relações sociais. Hannah Arendt (1981) lembra que:

Embora todos comecem a vida inserindo-se no mundo humano através do discurso e da ação, ninguém é autor e criador da história de sua própria vida. Em outras palavras, as histórias, resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas esse agente não é nem autor nem produtor. Alguém a iniciou e dela é sujeito, na dupla acepção da palavra, mas ninguém é seu autor. (p. 197)

O que, então, parece central à educação contemporânea, pelo menos do ponto de vista da filosofia da educação, é a imagem, a ideia, a figura do Outro que assumimos para a nossa constituição subjetiva, do nosso eu individual. Essa é a pergunta central da filosofia e da prática educacionais, pois, a figura do Outro representa a correlação central na qual nos construímos e espelhamos todo o nosso ser, nossos valores, nossos ideais e, por óbvio, nossas formas de agir e de ser. Em outras palavras, é o outro idealizado que ampara nossa trajetória como sujeitos, seja de forma direta ou indireta. É, portanto, tarefa da filosofia, da antropologia, da sociologia, da ética e da estética trabalhar os contornos da outridade capaz de fornecer parâmetros orientadores de construção da individualidade e socialidade para a realização pessoal e social.

Neste cenário, a pós-modernidade representa o declínio do grande sujeito. A pergunta crucial a ser feita agora é qual ou quais são o/os novo/s sujeito/s ou qual a figura do Outro que se impõe ou se propõe para as novas gerações? Parece que os antigos ideais gregos, medievais e modernos são todos diagnosticados como superados e decadentes. Todas as figuras do Herói, do Deus, do Estado, da Razão e mesmo do Pai ou da Pátria, pelo menos do ponto vista pedagógico, se relativizaram, ainda que tenham sido indutores e constitutivos em seus respectivos momentos históricos e, de alguma forma, sempre sobrevivam, visto que não há presente sem passado. Ademais, a pós-modernidade nos defronta de forma incontornável com a plurivocidade e a mutiversidade, vale dizer, com a superação de modelos ideais, universais e impositivos.

A ideia de pós-modernidade corresponde, na perspectiva desta exposição, à ausência de grandes Sujeitos. Do ponto de vista da identidade humana, a pergunta profundamente intrigante é se o mercado que hoje vem se impondo a todos como referência do pensar e do agir é ou estaria se constituindo, volens nolens, como o novo grande Sujeito histórico, referência do pensar e do agir sobretudo em termos educacionais. De fato, estamos vivendo em meio a uma narrativa que glorifica a mercadoria, a posse e o consumo como desejo e ideal de vida. A narrativa do mercado parece não ter fronteiras geográficas, culturais ou subjetivas, pois se difunde em todos os espaços e ambientes desde os mais íntimos, religiosos, educacionais, artísticos, medicinais, sexuais, culturais e geográficos. Já não são os desejos ou as necessidades que geram a mercadoria, mas são as mercadorias que, difundidas pela mídia, geram as necessidades e os desejos.

Nesse contexto, a pergunta que hoje não deve calar no campo da educação diz respeito ao sentido do Outro, do Sujeito em nome do qual a família, a mídia e a escola engrenam suas demandas, formulam suas dúvidas, projetam sua identidade, oferecem resistências e elaboram o sentido de vida das novas e futuras gerações. Em tempos de dispersão e volatilidade das permanências, como os que vivemos, diluiu-se o eixo agregador da religião, da filosofia, da ética e, em consequência, também de qualquer referência vinculante e estruturante da vida. O esvanecimento das narrativas religiosa, política, laboral, e mesmo ambiental, e a priorização da visão mercantilista, vazia de qualquer transcendência antropológica e moral, impacta diretamente a educação. Efetivamente, a educação enfrenta o dilema histórico da diluição do sentido ontológico das práticas pedagógicas, pois, na ausência de um núcleo humanista agregador em torno do sentido de pessoa humana e da sociedade tudo se torna fluido (Bauman, 2001) e vulnerável aos apelos e interesses do sistema econômico cuja dinâmica se provê da geração de necessidades e a correspondente comercialização de satisfações. Nas palavras de Dufour (2016):

a economia deve poder funcionar no quadro da economia pulsional. Essa conexão das duas economias (de mercado e pulsional) é, afinal, o que explica a força e o domínio atual da narrativa da mercadoria […]. Na narrativa da mercadoria, cada desejo deve encontrar seu objeto. Com efeito, tudo deve encontrar solução na mercadoria. A narrativa da mercadoria apresenta os objetos como garantia de nossa felicidade e, ademais, de uma felicidade realizada aqui e agora. […] O mercado arrasta tudo a ponto de, em todos os lugares, os grandes Sujeitos terem reconhecido seus erros e terem dito que valia mais fazer aliança com ele que se atravessar no seu caminho. (p. 76-77)

O mercado se transforma no novo deus e, por isso, é hora de perguntar se o mercado não estaria se transformando no novo grande Sujeito, na verdadeira e última racionalidade, cujo paradigma se transforma em necessidade ética. A força da nova ideologia nos impede de ver a fundamental e essencial carência no mercado: “deixa o sujeito diante de si mesmo quanto ao essencial: sua própria fundação” (Dufour, 2016, p. 84). vale dizer que, embora funcione bem, carece de um Além de sentido, ou seja, não responde às questões essenciais do ser humano e o impedem de ser plenamente Sujeito. No dizer de Laval et al., (2012)

A finalidade, a organização, o funcionamento das instituições de ensino e de pesquisa são, doravante, mais e mais submetidas a uma lógica do mercado que, institucionalmente, impõe ao conhecimento a forma abstrata de um valor econômico pelo qual seremos doravante constrangidos a considerá-lo, avaliá-lo e estimá-lo. […] O valor econômico se tonou o critério último da validação institucional e social das atividades de ensino e de pesquisa. Ele se tornou a norma social que, mais e mais, ordena do interior as práticas de ensino e pesquisa. (p. 13-14)

Os novos conhecimentos só são considerados e valorizados na medida em que são eficazes na competição e valorizam as empresas no mercado nacional e, sobretudo, internacional. Neste sentido Laval et al. (2012),

competência e inovação são os dois aspectos complementares da nova forma geral do conhecimento. Elas são as duas categorias a partir e com o apoio das quais os poderes públicos recompõem o campo da educação. Competência e inovação operam uma redução por abstração da formação humana e da atividade intelectual ao seu valor econômico: valor de troca no mercado de trabalho da formação escolar e universitária; valor de troca no mercado das patentes e outros títulos de propriedade intelectual da atividade de pesquisa. (p. 10)

No entanto, por mais forte que seja essa tendência na atualidade, não se trata de uma fatalidade. Resta-nos a resistência e o empenho pela autonomia intelectual e pela ética, inscritas sempre no horizonte da divergência e da resistência. Essas, por sua vez, requerem o argumento, ou seja, o diálogo embasado na abertura ao outro, ao diferente. A di-vergência não visa, pois, vencer o outro; não busca domínio ou imposição, mas con-vergência em relação a algo novo, a um ponto de encontro comum, a uma transcendência histórica que dê suporte ao discurso, à ação comunicativa e dialógica, como formulou Jürgen Habermas (1981). Tais consensos histórico/dialógicos, mesmo não sendo de natureza metafísico/ontológica, no sentido clássico, podem dar sentido, orientação, conectividade, progressividade e personalidade em defesa de causas comuns ou convergências de fundo em relação, por exemplo, ao respeito à vida humana, à natureza, aos direitos básicos das pessoas com suas similitudes e diferenças que conferem sentido e orientação ao diálogo, na perspectiva da criação de novas congruências sociais e operativas.

Este agir comunicativo (Habermas, 1981) implica divergência, rigor e mesmo debate frontal entre argumentos em busca de consensos que, embora provisórios, ofereçam referências comuns à convivência humana. A convivência humana, conforme observa com muita propriedade Axel Honneth (2003) ao analisar o conceito de reconhecimento em Hegel, destaca o sentido constitutivo do conflito na eticidade humana como

um processo tanto de crescimento e socialização do ser humano, dos vínculos de comunidade quanto de aumento da liberdade individual; pois só quando o curso histórico-universal do ‘vir-a-ser da eticidade’ é concebido como um entrelaçamento de socialização e individuação pode-se aceitar que seu resultado seria também uma forma de sociedade que encontraria sua coesão orgânica no reconhecimento intersubjetivo da particularidade de todos os indivíduos. (p. 45)

Neste sentido, o agir comunicativo pode se dar entre indivíduos, grupos, partidos, escolas de pensamento; pode também ser momentâneo, de curto ou longo prazo, ou mesmo, se estender por amplos períodos históricos; pode ser cultural, religioso, científico, político ou filosófico. Também não se restringe às pessoas ou grupos diretamente envolvidos, visto que atinge a todos os ouvintes, leitores, estudiosos no entrecruzamento dos espaços e tempos, das culturas e identidades. Nos termos de Habermas, (1997):

O método científico, que levava sempre a uma dominação cada vez mais eficaz da natureza, proporcionou depois também os conceitos puros e os instrumentos para uma dominação cada vez mais eficiente do homem sobre os homens, através da dominação da natureza. […] Hoje, a dominação eterniza-se e amplia-se não só mediante a tecnologia, mas como tecnologia; e esta proporciona a grande legitimação ao poder político expansivo, que assume em si todas as esferas da cultura. Nesse universo, a tecnologia proporciona igualmente a grande racionalização da falta de liberdade do homem e demonstra a impossibilidade ‘técnica’ de ser autônomo, de determinar pessoalmente a sua vida. (p. 49)

Em consequência disso, predomina a razão instrumental orientada por regras técnicas, e sobreposta à ação comunicativa baseada em normas que, reconhecidas, regulam as relações com fundamento no entendimento mútuo. A razão instrumental exerce permanente pressão adaptativa, submetendo o ser humano da juventude à velhice. Com a institucionalização e a aceitação da lógica subjacente ao progresso científico tecnológico, gera-se um novo referencial ético cujo eixo vinculante é o sistema econômico e não o ser humano. Em termos habermasianos (Habermas, 1997, p. 75), se trata de uma ideologia política “dirigida à resolução de tarefas técnicas que põe entre parênteses as questões práticas”. A internalização da consciência tecnológica se dissemina, especialmente, pela educação destituída de interesses humanistas, hoje em franco processo de universalização. A ideia de formação humana perde seu sentido e força na medida em que as pessoas menosprezam sua subjetividade ético-humanista e se integram como partes operacionais ao sistema econômico.

Do ponto de vista estratégico, a defesa, a participação e o debate de um modelo democrático de organização social são elementos centrais, por se tratar da construção coletiva de objetivos comuns, cujo horizonte é sempre o acesso a todos os bens materiais e culturais produzidos pela humanidade. Nessa perspectiva, os debates, confrontos e críticas, nunca são definitivos, por se tratar de avaliações, análises e interpretações históricas, ora convergentes ora divergentes, baseadas em leituras do sentido humano, com base em sempre novos contextos e horizontes sujeitos a novos argumentos, pensamentos, posturas e decisões. Por isso, as polêmicas e os debates são parte intrínseca do fluxo temporal de múltiplas faces e incidências integrado ao processo histórico/crítico constituído de análises, avaliações e interpretações fundadas em convencimentos, ora racionais/idealistas, ora fideístas/ideológicos ou, ainda, econômico/utilitaristas. A crítica e o debate representam, neste sentido, a construção histórica e coletiva na busca de avanços em direção a bases comuns de convivência humana. Parece incontornável o destino humano que a utopia de conciliação e paz, como versa o poeta uruguaio Eduardo Galeano, jamais será plena, a não ser na morte ou no fim da história. A postura crítico-dialógica pressupõe sempre a relação dialético/dialógica entre o dizer e o escutar, no horizonte do reconhecimento e da elaboração das semelhanças e das diferenças constituintes da convivência livre de doutrinação, autoritarismo e violência sistêmicos.

Talvez seja esse um caminho sem volta, muito embora acalentemos sempre o sonho da verdade única ao final das tortuosas e conflitantes convulsões, dúvidas e crises que a sociedade e o ser humano enfrentaram no passado e seguem enfrentando até hoje. A grande diferença entre o passado e o presente certamente é que as benesses do desenvolvimento científico/tecnológico vêm acompanhadas de riscos imprevisíveis: o futuro da humanidade e até mesmo sua sobrevivência dependem das decisões que forem tomadas. Abranches (2017) escreve que:

A grande transição marca uma era de incerteza e mudança vertiginosa e sem rumo estabelecido. Pode-se, no máximo, captar tendências virtuais, incipientes, que vão ou não se concretizar no futuro. Dependerá de escolhas coletivas a serem feitas e das consequências inesperadas de escolhas que já fizemos. (p. 29)

De fato, vivemos uma crise de paradigma e precisamos de marcos referenciais com força orientadora, subjetiva e coletiva para comportamentos, escolhas e decisões para o encadeamento entre o passado, o presente e o futuro sem riscos para a humanidade e a natureza. O conflito contemporâneo traz a marca da crise do racionalismo moderno entre as conquistas científico-tecnológicas, de um lado, e as incertezas e ameaças geradas para o sujeito, a sociedade e a natureza, de outro. Estas rupturas paradigmáticas geram perplexidades frente a um futuro imprevisível em que os avanços tecnológicos nos envolvem em um cenário de perplexidades nas quais se entrecruzam e alternam otimismo e pessimismo frente a um futuro imprevisível. Temos certeza de que mudanças ocorrem no presente e ocorrerão no futuro, mas estamos inseguros quanto ao significado e a dimensão dessas mudanças para o mundo humano e não humano. Vivemos, como já assinalou Russel Jacoby (2001, p. 72) uma era do fim da utopia em que “nenhum grupo é capaz de enfrentar as poderosas forças homogeneizadoras da poderosa sociedade industrial avançada e poucos estarão inclinados a fazê-lo”. Para não andarmos a esmo e sem rumo ao sabor de poderes cujos interesses e possibilidades pouco conhecemos e muito menos dominamos, necessitamos uma nova utopia, uma nova ontologia, que nos indique alguma ancoragem e sentido de vida subjetivo e social.

Atualmente, encontra-se em elaboração um novo conceito de Comum que, nos termos de Dardot e Laval, (2017):

tornou-se princípio efetivo dos combates e movimentos que há duas décadas resistem à dinâmica do capital e conduzem a formas originais de ação e discurso. Longe de ser pura invenção conceitual, é a fórmula de movimentos e correntes de pensamento que pretendem opor-se à tendência dominante de nossa época: a da ampliação da apropriação privada a todas as esferas da sociedade, da cultura e da vida. (p. 16-17)

Embora ainda não seja uma solução, a ideia do comum pode tornar-se a pedra de toque, o ponto de referência para a luta contra os efeitos invasivos e destrutivos da política neoliberal (concorrência, lucro, exploração, privatização, mercantilização) que vêm se desenvolvendo desde a década de 1980 e afetam hoje os diferentes campos das ciências humanas e, em particular, a educação. Segundo Dardot e Laval (2017, p. 101) “a palavra comum, como adjetivo ou substantivo, no singular ou no plural, começou a funcionar como bandeira de mobilização, palavra de ordem da resistência, fio condutor da alternativa”. Nesse contexto, o termo comum passa a fazer parte do léxico político e pedagógico colocando limites ao capitalismo neoliberal, predador do humano e das estruturas sociais. Trata-se da reação ao cerceamento político-econômico que coloca a educação a serviço do capital na medida em que se espera dela o preparo do ser humano para a lógica mercantil e sua apropriação político-econômica.

O capitalismo cognitivo, ou seja, a monetarização do conhecimento em geral e da educação, em especial, representam o privilégio dado à produção de conhecimentos e de habilidades economicamente rentáveis. Tais elementos se tornam os critérios centrais dos processos de avaliação e de prestígio do que se considera uma boa educação, tanto em termos institucionais quanto pessoais. Deste modo, a crescente mercantilização da vida social e cultural se insere no plano geral da urgência neoliberal do capital e da cultura. No campo do conhecimento, vivemos hoje a tragédia do anticomum não em termos de difusão, mas de orientação e favorecimento economicista da produção de conhecimento, ou seja, do conhecimento que se correlaciona de alguma maneira com os interesses econômicos. Como reação, segundo Dardot e Laval (2017, p. 159), “há na sociedade formas coletivas de entrar em acordo e criar regras de cooperação que não são redutíveis ao mercado e ao comando estatal”. Na medida em que o capitalismo, sobretudo o neoliberal, deixa de ser industrial para focar-se mais profundamente no conhecimento, se estabelece uma relação direta com a educação que se assume como forma de capitalismo cognitivo. Se antes era consensual a tese de que a educação é o caminho de conquista da autonomia social do sujeito na tessitura do comum, de sua consciência solidária, hoje se torna sempre mais claro que o sistema educacional e a educação como um todo se atrelam de forma cada vez mais estreita ao mercado capitalista neoliberal.

Nestes termos, a história da filosofia da educação é a história dos movimentos intelectuais e práticos (praxis) que trabalham, de forma sempre inovadora, as concepções e as práticas relativas à educação do ser humano, à luz das circunstâncias históricas em permanente fluxo. O êxito de uma ideia não se deve apenas à coerência intelectual de um ou vários pensadores, mas da interlocução crítica com outros pensadores na busca de novas leituras, percepções e explicações da realidade humana. Assim, a transcendência que hoje se faz necessária é a autocontemplação do homem à luz da pergunta do que ele é, do que ele virá a ser e do que ele deveria ser enquanto ser humano, habitante do planta Terra. Trata-se de uma postura que vem ganhando força desde a década de 1990 em oposição à economia neoliberal responsável pela exclusão de grande parte da população em um Estado cooptado pelos poderes econômicos. Nas palavras de Dardot e Laval (2017), o Estado que deveria garantir o comum:

muda de forma e função, à medida que se acentua a competição capitalista mundial, e seu objetivo é menos administrar a população para melhorar seu bem-estar do que lhe impor a dura lei da globalização […] Termo central da alternativa ao neoliberalismo, o comum tornou-se princípio efetivo dos combates e movimentos que há duas décadas resistem à dinâmica do capital e conduzem a formas originais de ação e discurso. (p. 15-16)

Este termo, assumido como a síntese conceitual disso que costumamos designar como bem-estar-comum parece produtivo em termos da criação de um horizonte ontológico para a práxis pedagógica que, contrário à lógica privatista hoje dominante, deve ter como norte e centro de sua atividade a orientação básica para o bem comum e a solidariedade que podem tornar-se o fio condutor de uma nova Bildung, de um novo conceito de formação.

Para concluir e talvez abrir um novo veio deste debate, gostaria do finalizar esta reflexão com uma referência extraída do recente livro Capital e ideologia de Thomas Piketty (2019), que nos permite correlacionar a ideia do comum, originária das ciências humanas, com preocupação similar que parece também ganhar espaço no campo da economia.

Se há uma lição a reter da história mundial dos três últimos séculos, é que o progresso humano não é linear e que estaríamos muito errados ao levantar a hipótese que tudo irá sempre para melhor e que a livre competição dos poderes estatais e dos atores econômicos seria suficiente para nos conduzir como por milagre à harmonia social e universal. O progresso humano existe, mas ele é uma luta e ele deve antes de tudo se apoiar numa análise racional das evoluções históricas passadas, com aquilo que elas comportam de positivo e de negativo. (p. 35-36, trad. do autor)

E, neste sentido, um dos mais cruciais gargalos a serem superados é o atrelamento da educação aos interesses econômicos em prejuízo da formação integral do ser humano. É preciso reagir contra a nova política educacional que visa preparar as pessoas apenas para as funções econômicas que o capitalismo neoliberal disponibiliza. Não podemos entregar a formação das novas gerações a quem se interessa apenas pela preparação da força de trabalho útil aos interesses sistêmicos. Temos que reagir contra a transferência da racionalidade econômica para o campo da cultura e da educação.

Conclusão

Os argumentos apresentados neste texto permitem concluir que o ser humano tende a ser inserido e dominado pelo sistema tecno/científico/econômico, cujo objetivo maior é a produção de capital. O homem se adapta e se subordina, cada vez mais, ao processo de produção de mercadorias, transformando a posse e o consumo em finalidades últimas tanto da vida subjetiva quanto sistêmica. O sistema produtivo, inicialmente voltado à satisfação das necessidades naturais do ser humano, reforça seu poder na medida em que passa a produzir, artificialmente, necessidades que ampliam a dependência e incrementam o consumo, fazendo girar um mecanismo que submete os humanos ao seu movimento.

Com isso, o pensamento se torna servo da ação e intervenção técnica no mundo, postulando o mercado como curso natural de realização do ser humano. Esta realidade econômica integra e absorve o ser humano como parte de sua lógica. Quanto mais alienados de si e integrados à maquinaria do produtivismo e consumismo sistêmicos, mais bem-sucedidos e realizados se julgam os humanos. Esta é a brutal inversão de prioridades entre a sociedade como espaço de convivência de sujeitos livres e autônomos e o sistema econômico que os integra e anula como parte de sua mecânica.

A educação, por sua vez, ao aceitar essa integração e redução economicista, assume uma função subserviente cujo sentido se esgota no aparelhamento, em termos de conhecimentos e de habilidades do ser humano ao mercado. A emergência do sujeito humano da comunhão e integração sociocultural, iniciada antes mesmo do seu nascimento e efetivada na linguagem, portadora dos conceitos constituintes do tecido das relações sociais, transforma-se, inclusive pela educação, em integração e subsunção nas teias do sistema econômico. Por ironia, quanto mais exitosa essa subserviência, mais bem-conceituado será o modelo pedagógico. Nesses termos, o mercado se transforma no novo grande sujeito e modelo ideal para as aspirações e posturas humanas.

A partir dessa realidade, a educação escolar e universitária é, tendencialmente, posta a serviço de objetivos quantitativistas, utilitaristas e produtivistas não relacionados à formação humana, subjetiva e cidadã, mas à instrução de indivíduos úteis e adequados às expectativas do mercado. No contexto dessa nova lógica, tanto a educação quanto o trabalho científico vêm se acomodando às exigências de resultados operacionais, úteis e rentáveis, em termos de produção e consumo. A educação deixa de formar pessoas para produzir capital humano, portador de conhecimentos e competências de interesse econômico. Com isso, reduz-se o sentido tradicional da educação como formação humana e incrementa-se a habilitação técnica de conteúdo e de sentido, interessantes para o mercado. Impõe-se à educação os critérios de utilidade e de produtividade próprios do sistema econômico, desvinculando-os dos princípios da formação humana subjetiva e cidadã. Produzir profissionais que atendam aos interesses da economia do conhecimento e da produção é a marca da transformação neoliberal da escola. Tal modelo de gestão performática da educação se embasa na competitividade e na rivalidade que se contrapõem ao sentido formativo social, ético, solidário e de reconhecimento do outro. Não se trata aqui de defender um idealismo pedagógico simplório, desconsiderando a realidade dura do sistema capitalista neoliberal e seu funcionamento. Por isso, não basta içar velas porque os ventos não são favoráveis. Se, de um lado, a boa escola é condição para o bom funcionamento da economia, de outro, a economia inclusiva e justa é condição para excelência da escola para a realização do ser humano.

O argumento aqui apresentado ao leitor, defende o ponto de vista de que o movimento em curso que eleva o mercado ao patamar de novo Sujeito do processo formativo conduz ao aparelhamento do ser humano ao modelo capitalista neoliberal. Tal ideologia economicista representa a ruptura do ideal humanista de autonomia e de independência, alcançada com base na interlocução fundada no discurso e no entendimento da educação como produção coletiva do comum. Desse chão comum deve nascer um novo conceito de autonomia, cujo sentido não se embasa no indivíduo, como se fora ele o exclusivo autor de si mesmo e de suas próprias leis, mas sim num conceito de autonomia, tributário da cultura construída na práxis histórico/dialógica humana. As ciências humanas não explicam a realidade como ela é e como funciona para alcançar conhecimentos úteis e aplicáveis no campo da ciência e tecnologia, mas buscam construir, na convergência e no conflito, a base de novos entendimentos, relacionados ao sentido do mundo, do homem, da sociedade e da vida, através do exercício constante de tentativas de formulação e reformulação críticas. A força de uma ideia pedagógica não se encontra, portanto, na fixação da verdade empírica e utilitarista, mas na capacidade histórico/crítica de renovação permanente do processo de leitura, de interpretação da realidade e de vivência humanas.

2No Brasil, por exemplo, metade da população vive com menos de um salário mínimo por mês, sendo que, para figurar entre os que mais ganham, basta receber três salários mínimos ao mês. Não bastasse, os 5% mais ricos detêm 95% da renda nacional, sendo que os super salários de oitenta mil reais ou mais por mês conseguem isenções fiscais de até 70%. (Pesquisa Oxfam Brasil/Datafolha, 2019).

3É nesse contexto que atual governo está propondo a redução de horário das disciplinas de filosofia, história e sociologia no Segundo Grau.

Referências

Abranches, S. (2017). A era do imprevisto: A grande transição do Séc. XXI. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]

Adorno, T., & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [ Links ]

Arendt, H.(1981). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-universitária. [ Links ]

Aristoteles. (1966). Polityk. München: Rowohlt Verlag. [ Links ]

Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar Editor. [ Links ]

Dardot, P., & Laval, C. (2017). Comum: Ensaio sobre a revolução no Século XXI. São Paulo: Editorial Boitempo. [ Links ]

Dufour D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de janeiro: Companhia de Freud. [ Links ]

Goergen, P. (2019, Enero/Diciembre). Entre o conhecimento e a verdade: o desafiador dilema da educação contemporânea. Revista Espacios en Blanco, Tandil (Argentina), 1-2 (29), 277-292. [ Links ]

Gumbrecht, H. U. (2015). Nosso amplo presente: O tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Editora UNESP. [ Links ]

Habermas, J. (1981). Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt, Suhrkamp. [ Links ]

Habermas, J. (2000). O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]

Habermas, J. (1997). Ciência e técnica como ideologia. Lisboa: Edições 70. [ Links ]

Hardt, M., & Negri, A. (2016). Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Editora Record. [ Links ]

Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34. [ Links ]

Horkheimer, M. (1977). Autorität und Familie. In: Kritische Studienausgabe. Frankfurt am Main: Fischer Verlag. [ Links ]

Jacoby, R. (2001). O fim da utopia: Política e cultura na era da apatia. Rio de Janeiro: Editora Record. [ Links ]

Laval, C. (2017). Comum: Ensaio sobre a revolução no século 21. São Paulo: Boitempo. [ Links ]

Laval, C., Vergne, F., Clément, P., & Dreux, G. (2012). La nouvelle école capitaliste. Paris: La Découverte. [ Links ]

Mead, G. H. (1999). Espíritu, persona y sociedade. Barcelona: Paidós. [ Links ]

Marx, K. (2013). O capital: Crítica da economia política. São Paulo: Boitempo. [ Links ]

Mouffe, C. (2015). Sobre o político. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]

NegrI, A., & Guatari, F. (2017). As verdades nômades: por novos espaços de liberdade. São Paulo: Editora Politéia. [ Links ]

Platão. (1987). A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. [ Links ]

Weber, Max. (1992). Metodologia das ciências humanas. São Paulo: Cortez Editora. [ Links ]

Recebido: 30 de Outubro de 2019; Aceito: 25 de Fevereiro de 2020; Publicado: 02 de Dezembro de 2020

Endereço para correspondência Pedro Laudinor Goergen, Universidade de Sorocaba, Cidade Universitária Professor Aldo Vannucchi, Programa de Pós-Graduação em Educação, Rod. Raposo Tavares, km 92,5, 1º Piso da Biblioteca “Aluísio de Almeida”, 18023-000, Sorocaba, SP, Brasil. pedro.goergen@hotmail.com

Creative Commons License This is an article published in open access under a Creative Commons license