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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.43 no.2 Porto Alegre maio/ago 2020  Epub 01-Fev-2021

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2020.2.31281 

Outros Temas

Ensino de Filosofia na Amazônia: a insurgência de filosofias-outras

Teaching of Philosophy in the amazon: the insurgence of other philosophies

Enseñanza de Filosofía en la Amazonia: la insurgencia de filosofias-otras

Sulivan Ferreira de Souza1 

Doutorando em Educação Latino-Americana da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil). Bolsista de Doutorado (CNPq) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte, MG, Brasil.


http://orcid.org/0000-0003-3391-0265

Ivanilde Apoluceno de Oliveira2 

Doutora em Educação pela PUC-SP/ UNAM/UAM-México. Professora da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Belém do Pará, PA, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-3458-584X

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.

2Universidade do Estado do Pará (UEPA), Belém, PA, Brasil.


Resumo:

Neste artigo apresenta-se o recorte de uma pesquisa realizada em cursos de Filosofia de duas universidades públicas na cidade de Belém, estado do Pará, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O objetivo deste artigo é debater insurgências decoloniais no ensino de filosofia. A abordagem teórica é da rede conceitual do coletivo Decolonial. É um estudo qualitativo, constituído por pesquisa de campo, levantamento bibliográfico e documental. Foram entrevistados 4 (quatro) estudantes. Inferiu-se que a primeira postura para decolonizar o ensino de filosofia é a reflexão crítica de quem vivencia a filosofia, assim como problematizar a história da filosofia, os cânones da tradição filosófica, bem como desconstruir as concepções engessadas e dogmáticas de filosofia, isto é, realizar uma antropofagia epistemológica/filosófica.

Palavras-chave educação; ensino de filosofia; colonialidade; decolonialidade; epistemologia educacional

Abstract:

This article presents an excerpt from a research carried out in the philosophy course at two public universities in the city of Belém, State of Pará, financed by the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq). The purpose of this article is to discuss decolonial insurgencies in the teaching of philosophy. The theoretical approach is from the conceptual network of the Decolonial collective. It is a qualitative study, consisting of field research, bibliographic and documentary survey. Four (4) students were interviewed. It was inferred that the first posture to decolonize the teaching of philosophy is the critical reflection of those who experience philosophy, as well as problematizing the history of philosophy, the canons of the philosophical tradition, deconstructing the plastered and dogmatic conceptions of philosophy, that is, carrying out an epistemological / philosophical anthropophagy.

Keywords: education; teaching philosophy; coloniality; decoloniality; educational epistemology

Resumen:

Este artículo presenta un extracto de una investigación realizada en el curso de filosofía en dos universidades públicas de la ciudad de Belém, Estado de Pará, financiado por el Consejo Nacional para el Desarrollo Científico y Tecnológico (CNPq). El propósito de este artículo es discutir las insurgencias descoloniales en la enseñanza de la filosofía. El enfoque teórico proviene de la red conceptual del colectivo descolonial. Es un estudio cualitativo, que consiste en investigación de campo, encuesta bibliográfica y documental. Cuatro (4) estudiantes fueron entrevistados. Se infirió que la primera postura para descolonizar la enseñanza de la filosofía es el reflejo crítico de quienes experimentan la filosofía, así como problematizar la historia de la filosofía, los cánones de la tradición filosófica, deconstruir las concepciones enyesadas y dogmáticas de la filosofía, es decir, llevar a cabo Una antropofagia epistemológica / filosófica.

Palabras clave educación; enseñanza de filosofia; colonialidad; decolonialidad; epistemología educacional

Introdução

O presente trabalho traz discussões a partir da pesquisa realizada nos cursos de filosofia de duas universidades públicas na cidade de Belém, estado do Pará, Amazônia brasileira. A investigação contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O objetivo deste artigo é debater insurgências decoloniais no ensino de Filosofia na educação superior. Inicialmente apresentamos a problemática de investigação, a metodologia, o referencial teórico e, por fim, as insurgências decoloniais nas graduações em filosofia dos cursos pesquisados, tendo como foco as disciplinas emancipadoras (ou brechas epistêmicas decoloniais), e algumas reflexões sobre a construção de uma filosofia Decolonial/Intercultural.

A problemática de investigação parte dos estudos sobre a filosofia de Enrique Dussel (1996). Em suas produções ele chama atenção para a visão helenocêntrica presente na história da Filosofia, visão essa que restringe o pensar filosófico a determinados povos, que seriam os europeus e, posteriormente, os estadunidenses. Essa perspectiva afirma que o pensamento filosófico só é possível a partir do lócus de produção de conhecimento que se intitula universal, verdadeiro e único, tendo por base a tradição do pensamento ocidental, ou seja, todo o conhecimento produzido na Europa e Estados Unidos. Esse lócus de conhecimento é nomeado como tradição filosófica ocidental Grega.

Essa retórica eurocêntrica alega que o filosofar é grego e ocidental, isto é, o ato de filosofar é europeu, logo, como inferência lógica, não há filosofia latino-americana ou qualquer outro tipo; não existem filósofos fora dessa “ordem do pensar universal”, o que existe, fora desse eixo, são variações que partem do modelo central, e se essas outras formas do filosofar não se adequarem ao modelo, são excluídas, ridicularizadas e invisibilizadas (Dussel, 1996; Oliveira & Albuquerque, 2010).

Dussel (2015), então, problematiza o eurocentrismo presente no campo da filosofia, por negar a existência de filosofias plurais, provenientes de outras culturas e espaços geopolíticos e apresentar no discurso filosófico moderno uma suposta pretensão de universalidade, sendo na realidade uma filosofia particular, isto é, europeia ocidental cristã. Esse eurocentrismo está presente no campo da educação, na medida em que essa se fundamenta em raízes filosóficas.

O lastro do pensamento hegemonicamente difundido incorporou a lógica dicotômica da filosofia greco-romana, em detrimento de outros modos de pensar desde matrizes cosmológicas dos povos nativos de nossa América. As filosofias – sobretudo nas universidades e academias, mas também nos currículos do ensino médio – seguem exclusivamente o paradigma ocidental apoiado em princípios lógicos e hermenêuticos da ilustração europeia, com forte tendência a exclusão de todo tipo de pensamento “heterodoxo” (Estermann, 2007). “Que outras concepções originalmente identificadas com os povos nativos de nossos países podem estar indicando outro caminho”. (Streck, 2010, p. 24)

A assertiva de Streck chama atenção ao fato de que as práticas pedagógicas contêm arquiteturas epistemológicas de base eurocêntrica, mantendo construções epistêmicas hierarquizadas e negando as circularidades de saberes bem como os diferentes modos de pensar de outras culturas, estabelecendo determinados padrões de poder/saber.

Maldonado-Torres (2007) destaca dois padrões de poder: o colonialismo e a colonialidade:

O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo reside no poder de outro povo ou nação e que constitui tal noção num império. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, ainda que o colonialismo tenha precedido à colonialidade, esta sobrevive após o fim do colonialismo. (p. 131)

Assim, há necessidade de se problematizar os cursos de graduação, entre os quais os de Filosofia, pois, historicamente, os currículos são marcados por aspectos eurocêntricos, elitistas e segregadores. Nas escolas e nas universidades, o que se vem observando é que a história do Brasil é estudada a partir de uma tradição unicamente europeia, pensa-se a linguagem, a filosofia, a geografia, a história e, durante muitas décadas, a educação brasileira foi (e ainda é) pensada de acordo com os moldes eurocêntricos. Os projetos pedagógicos, a disposição curricular e os ementários estão mergulhados na colonialidade do saber, isto é, os saberes são subalternizados por critérios etnocêntricos.

Neste contexto emerge a seguinte indagação: é possível encontrar experiências decolonizadoras nos cursos de Filosofia ou o currículo está plenamente estruturado no paradigma eurocêntrico moderno/colonial?

O objetivo deste artigo é debater insurgências decoloniais pesquisadas no ensino de Filosofia em duas universidades públicas da Amazônia Paraense. Essas foram escolhidas por terem o curso de licenciatura em filosofia, estarem vinculadas a universidades públicas e terem origens historicamente diferenciadas, uma criada nos anos 1970 e outra nos anos 1990, na cidade de Belém do Pará.

Metodologicamente o estudo é caracterizado como uma pesquisa qualitativa e de campo, pois “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes (…) corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos” (Minayo, 1994, p. 22).

Assim, a relação com os atores da pesquisa aconteceu no lócus dos estudantes do curso de Filosofia, ou seja, duas universidades públicas, que neste artigo serão mencionadas como Universidade A (UA) e Universidade B (UB). A primeira é uma universidade federal e a segunda estadual. Os encontros ocorreram entre os compromissos acadêmicos, entre as aulas, no dia a dia dos sujeitos pesquisados.

Entre os procedimentos realizados consta o levantamento documental referente aos dois cursos pesquisados. Para Gonçalves (2005, p. 60) o documento “significa todo material escrito ou não, que serve de prova, constituído no momento que o fato ou fenômeno ocorre, ou depois (…)”. Os documentos analisados, especificamente, foram os desenhos curriculares e os ementários retirados dos projetos pedagógicos. O primeiro, do Curso de Licenciatura Plena em Filosofia (2008/UB) e, o segundo, do Curso de Licenciatura em Filosofia e de Bacharelado em Filosofia (2010/UA).

Entrevistas do tipo semiestruturada foram realizadas com o objetivo de obter dos sujeitos as suas concepções de filosofia, os saberes filosóficos e as questões referentes às práticas de ensino de filosofia e o seu diálogo com os saberes latino-americanos. No total foram entrevistados 4 (quatro) discentes, sendo dois de cada instituição, que serão nomeados ficticiamente por Ucayali (UB); Amazonas (UB); Purus (UA) e Paraguai (UA).

Gil (2008, p. 108) define a entrevista como a técnica que “o investigador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o objetivo de obtenção dos dados que interessam à investigação”. As entrevistas com os docentes e os discentes das universidades forneceu elementos para a análise desde a teoria decolonial, possibilitando, assim, a problematização do ensino de filosofia nas graduações na cidade de Belém-Pará.

A partir das falas dos entrevistados foi estruturada a unidade temática de problematização: insurgências no ensino de filosofia a partir da decolonialidade.

No segundo momento foram realizadas análises dos desenhos curriculares e das práticas pedagógicas e discutidos os arranjos epistemológicos e as percepções dos estudantes sobre a composição curricular e a importância das disciplinas abordadas nesse texto.

Neste estudo, inicialmente apresentamos as bases conceituais do pensamento decolonial e, posteriormente, as insurgências decoloniais nas graduações em filosofia dos cursos pesquisados, tendo como foco as disciplinas consideradas emancipadoras (ou brechas epistêmicas decoloniais), assim como algumas reflexões sobre a construção de uma filosofia Decolonial/Intercultural.

O pensamento decolonial

A abordagem teórica do estudo é a rede Modernidade/Colonialidade que considera ter a organização do Sistema-Mundo Moderno/Colonial/Capitalista raízes históricas que são marcadas pela exploração do trabalho, espoliação de recursos naturais, subalternização humana, acumulação de capital, negação da alteridade e socialização de miséria (Dussel, 2005; Castro-Gómez, 2005; Grosfoguel, 2010; Galeano, 2013; Mignolo, 2009).

Assim, para interpretar a realidade e os fenômenos sociais, históricos e filosóficos, e não a aceitar como única narrativa, uma perspectiva pautada em uma lógica etnocêntrica e uma universalidade assimétrica a rede Modernidade/Colonialidade propõe uma perspectiva Decolonial para compreender, interpretar e reinterpretar as realidades latino-americanas e caribenhas.

Conforme Grosfoguel (2010, pp. 456-457), uma perspectiva epistêmica decolonial implica em:

1) (…) um cânone de pensamento mais amplo do que o cânone ocidental (incluído o cânone de esquerda); 2) uma perspectiva decolonial verdadeiramente universal não pode basear-se num abstrato universal (…) antes teria de ser o resultado de um diálogo crítico entre diversos projetos críticos políticos/éticos/epistêmicos, apontando um mundo pluriversal e não um mundo universal; 3) a descolonização do conhecimento exigiria levar a sério a perspectiva/cosmologia/visões de pensadores críticos do sul global, que pensam com e a partir do corpos e lugares étnicos-raciais/sexuais subalternizados.

Para se compreender, com mais clareza, essa matriz de subalternização, é imprescindível que se faça o movimento de retorno ao momento constitutivo da hierarquia de submissão forjada na história do povo latino, isto é, no ano da invasão Ibérica, em 1492, quando se instaura o pensamento ocidental moderno colonial.

Conforme Quijano (2007):

La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación racial/étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder, y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala social. Se origina y mundializa a partir de América. (p. 93)

A colonialidade é essa matriz de poder/saber/ser que invade as relações de caráter tanto macrossociais quanto microssociais, atua no cotidiano, no imaginário social como, por exemplo, a ausência dos saberes latino-americanos nas escolas, universidades e nos cursos de graduação, lacunas que expressam um processo de subalternização dos saberes, da história e de diferentes formas do ser e do viver dos povos latinos.

Quijano (2005) estabelece o conceito de “colonialidade do poder”, que consiste no processo de ocidentalização do outro, do colonizado, pelo colonizador, por meio da repressão de sua cultura simbólica, subalternizando-o, invisibilizando-o como ser cultural e impondo seus valores e visão de mundo. A “colonialidade do saber” consiste na repressão das formas de saberes e da produção de conhecimento de outros povos não europeus, como os africanos, os indígenas, os latino-americanos, entre outros. E a “colonialidade do ser” como a inferiorização dos seres não europeus, se caracterizando como um processo de desumanização.

Insurgências decoloniais: um olhar para as disciplinas emancipadoras ou brechas epistêmicas

Apesar do domínio da colonialidade do saber nas esferas de produção de conhecimento, nos dois currículos analisados foi possível encontrar práticas e concepções decoloniais nas graduações em filosofia, em duas disciplinas, uma de cada curso analisado: Filosofia Latino-americana (UB) e Tópicos de Filosofia Brasileira (UA). Disciplinas que visam combater a subalternização dos saberes filosóficos-outros reconhecidos pela rede modernidade/colonialidade.

Assim, apesar de toda violência da colonialidade do saber, surgem nas brechas das duas disciplinas a possibilidade do pensamento decolonial por meio de epistemologias de enfrentamento, como se observa nas narrativas dos estudantes.

Identificamos nas entrevistas com os discentes que esses compreendem o saber filosófico como um saber mais aberto, como um conhecimento que é situado e que está “molhado” pela cultura, história e política daqueles que a praticam. Assim, a afirmação da identidade da filosofia na América Latina está ligada ao compromisso ético-político com o Outro negado pela totalidade excludente da modernidade/colonialidade (Dussel, 2007; Souza, 2017).

É notório que as identidades regionais são construtos da colonialidade. A Europa, enquanto gestora do Sistema-Mundo, classificou geopoliticamente as regiões do globo. Porém, se afirmar desde a ameríndia, não significa aceitar a imposição ontológica, na verdade significa reconstruir, pois se pretende redesenhar os imaginários geográficos e cognitivos, mudanças que surgem das feridas abertas com significados-outros para afirmar sujeitos-outros (Grosfoguel, 2010; Mignolo, 2003; Dussel, 1994).

Respeitar as distintas vivências filosóficas é partir da perspectiva filosófica do Outro, do lugar mais além, são filosofias desde a exterioridade do sistema-mundo moderno/colonial. Isso implica de acordo com Orlando Fals Borda (1970, pp. 80-81):

Declarar la independencia intelectual, para estimular nuestros talentos y nuestra propia dignidad, combatiendo el colonialismo. Obviamente, esto no significa rechazar lo que hacen otros grupos de diferentes latitudes, sólo por ser de naciones extrañas; tal cosa sería un miope etnocentrismo, un síntoma real de inferioridad.

Os modos-Outros de produzir filosofias surgidas das alteridades subalternizadas significam, além de posturas de resistência do nosso pensar latino-americano e caribenho, são lutas pela autonomia intelectual, são combates travados pela independência epistemológica, pedagógica e filosófica.

É importante destacar que a criação de apenas uma disciplina ou um curso com ênfase na América Latina não garante de fato que uma determinada graduação seja capaz de compreender a realidade a partir das nossas raízes, pois, para que exista uma educação ou ensino de filosofia descolonizado, é imprescindível reconstruir as relações, superar as hierarquias cognitivas e ontológicas cristalizadas na intersubjetividade ameríndia.

Porém, são importantes as iniciativas que visam combater a colonialidade, pois esse é o primeiro passo a ser dado, mesmo que pareça uma ação pontual. Pode ser, na verdade, um ponto de inflexão, por isso, são destacadas as disciplinas de Filosofia Latino-Americana (UB) e Filosofia Brasileira (UA), como expressões alternativas à colonialidade do saber. As ementas dessas disciplinas indicam para uma literatura latino-americana, como veremos nos Quadro 1 e 2.

Quadro 1 Ementa - Filosofia Latino-americana 

Filosofia Latino-Americana / UB
A Filosofia na América Latina, no Brasil e na Amazônia. O problema da identidade do pensamento latino-americano. A filosofia da libertação.
Bibliografia
Dussel, Enrique. (2006). 20 tesis de política. México: SIGLO XXI; CREFAL.
Dussel, Enrique (1999). Teologia da Libertação: um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis-RJ: Vozes.
Dussel, Enrique. (1994). El encubrimiento del Índio. 1492: hacia el origen del mito de la modernidad. México: Cambio XXI; Colégio Nacional de Ciencias Políticas y Administración Pública.
Dussel, Enrique (1982). Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola.
Dussel, Enrique. (1982) Para uma filosofia da libertação latino-americana. vol. 1. São Paulo: Loyola.
REVISTA de Filosofia. (1993) Libertação Liberación. Ano III. N.1. Campo Grande-MS: CEFIL.

Fonte: Pará. Projeto Pedagógico Curso de Filosofia - UB, 2008.

Quadro 2 Ementa - Tópicos do Pensamento Filosófico Brasileiro 

Tópicos do Pensamento Filosófico Brasileiro/ UA
Estudo das principais concepções do pensamento filosófico brasileiro.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
Paim, Antônio. (1974) História das Ideias Filosóficas no Brasil, S.P., EDUSP.
Paim, Antônio (1966)A Escola do Recife. R.J., Saga.
Paim, Antônio (1986) Estudo do Pensamento Filosófico Brasileiro, S.P., Convívio.
Castagnola, Luís (1961) “O Pensamento Filosófico no Brasil” in Humberto Padovani - História da Filosofia, S.P., Melhoramentos.
Cruz Costa, João (1960) Panorama da História da Filosofia no Brasil, S.P., Cultrix.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR:
Pinheiro Machado, Geraldo (1968) “A Filosofia no Brasil” in Johannes Hirschberger - História da Filosofia Contemporânea, S.P., Herder.
Vários – (1978) As Ideias Filosóficas no Brasil, S.P., Convívio.
Arantes, P. (1997) Um Departamento de Filosofia no Ultra-Mar. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Nobre, Marcos e Rego, José Márcio (Org.). (2000) Conversas com filósofos brasileiros, São Paulo, Editora 34.

Fonte: Pará. Projeto Pedagógico Curso de Filosofia UA, 2010.

A disciplina traz, na referência bibliográfica básica, obras do filósofo Enrique Dussel, que problematizam toda a tradição histórica e filosófica eurocêntrica, cujo papel é desconstruir a base Moderna/Colonial enraizada na produção de conhecimento.

A disciplina também tem como tema a formação do pensamento latino-americano e os problemas na constituição da identidade filosófica latina, além de trazer as reflexões para contextos mais específicos, como o Brasil e a Amazônia. Esses aspectos deixam evidente que, no Sul global, existem questões filosóficas a serem criadas e respondidas, pois o Brasil e a América Latina têm núcleos problemáticos assim como qualquer outra cultura no mundo.

Todos los pueblos tienen “núcleos problemáticos”, que son universales y consisten en aquel conjunto de preguntas fundamentales (es decir, ontológicas) que el homo sapiens debió hacerse llegado a su madurez específica. Dado su desarrollo cerebral, con capacidad de conciencia, autoconciencia, desarrollo lingüístico, ético (de responsabilidad sobre sus actos) y social, el ser humano enfrentó la totalidad de lo real para poder manejarla a fin de reproducir y desarrollar la vida humana comunitaria. (Dussel, Mendieta, & Bohórquez, 2009, p. 15)

Esses argumentos reforçam que as especificidades filosóficas das culturas latino-americanas e caribenhas são autênticas e podem se comunicar com outras problemáticas do Sul global e do Norte global, em uma perspectiva pluriversal descolonizada.

O estudante Ucayali (UB) narra a sua experiência na disciplina em questão, como ela foi abordada pelo professor em sala de aula e o que mais ficou marcado das discussões feitas.

A primeira problemática pra sensibilizar os alunos foi justamente o processo de colonização, que não foi só de corpos, mas de mentes, justamente pra se adequar a uma cultura que está sendo subjugada à Europa. Então essa foi a partida do professor, do processo de colonização que foi brutal, foi muito violento simbolicamente e fisicamente, e foi essa e quais eram os autores que estavam sendo trabalhados, eu lembro de dois que me marcaram muito, o Raúl Fornet-Betancourt e o Enrique Dussel, esses eu quero sempre ter por perto, eles pensaram as problemáticas da filosofia latino-americana a partir da própria filosofia latino-americana, todo filósofo fez isso, Descartes pensou o método a partir das necessidades dele na França, e porque se pensa filosofia e já se pensa na Europa, naquele tempo era útil pra ele, agora continua sendo com certeza, agora a gente tem que pensar do nosso contexto, foi essa a grande lição de Dussel, o processo de colonização, e ele sempre priorizou as grandes revoltas, Zapatismo, bolivarianismo, ele pensou a partir das problemáticas da decolonização que os grandes pensadores, ou grandes revolucionários da América Latina tentaram investir, entendeu? E foi a partir desses movimentos sociais e históricos ele nos levou a perceber que é necessário uma filosofia latino-americana porque a gente só vai ter condições de pensar e não adestrar quando a gente pensar a partir da nossa realidade. (Discente Ucayali UB, comunicação pessoal, Jun. 2016)

O estudante Ucayali (UB) ao cursar a disciplina Filosofia Latino-americana, reconheceu a importância de perceber que os conhecimentos estão geopoliticamente localizados, possuem lócus territorial e epistêmico. Com essa experiência, ele passou a entender a importância dos elementos contextuais ao estudar filosofia, bem como perceber os vários discursos, presentes na universidade, que encobrem outros saberes.

Observamos, então, que a disciplina é importante por fomentar a construção da crítica à razão moderna/colonial, enfrentando e desconstruindo a racionalidade que subalterniza o Outro, pois é uma crítica que:

se hace en nombre de una racionalidad diferencial (la razón ejercida por los movimientos feministas, ecologistas, culturales, étnicos, de la clase obrera, de las naciones periféricas, etc.) y universal (como la razón práctico-material, discursiva, estratégica, instrumental, crítica, etc.). La afirmación y emancipación de la Diferencia va construyendo una universalidad novedosa y futura. La cuestión no es Diferencia o Universalidad, sino Universalidad en la Diferencia, y Diferencia en la Universalidad. (Dussel, 2001, p. 450)

O discente tem a oportunidade de perceber que existem outros modos de ser e saber, como ensinam os zapatistas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o movimento feminista, os movimentos indígenas e o movimento negro, constatando que há diferenças na universalidade do pensar.

Para o estudante Amazonas (UB), a disciplina no início representou muita preocupação, ele se sentiu muito confuso pelo fato do debate ser bem distinto de muitas discussões feitas no decorrer do curso, e porque apresentava uma problemática nova.

A filosofia latino-americana teve um professor muito bom (…) uma filosofia que parte da nossa própria realidade latino-americana, que tem a sua famosa filosofia da libertação que na verdade parte do local, da nossa realidade, mas que também ela não dispensa conceitos de uma filosofia europeia ou outra filosofia, por exemplo, mas é claro que ela parte do mundo real, da nossa realidade, uma filosofia que liberte os povos, os sofridos, os dominados, vamos dizer assim, e que tenta ser autêntica, a partir disso faz crítica a uma filosofia não latino-americana, mas também precisa dela de algumas forma, mas não descarta ela pra ajudar, pra pensar em toda essa questão. (Discente Amazonas UB, comunicação pessoal, Jun. 2016)

Esse estudante salienta que, apesar do estranhamento, compreendeu a importância de uma postura filosófica que tenha compromisso com a história do continente, uma postura que dialoga com a realidade, sem sectarismo, crítica e descolonizadora.

Esses temas são coerentes e importantes para a formação, porque a filosofia não é um corpo celeste, que emana do espaço sideral para “seres iluminados”, como anuncia Gomes (1994):

Ao inverso do comumente suposto, não é a desvinculação do lugar e do tempo que confere profundidade a um pensamento, como, por exemplo, o de Platão. Seu grande mérito é ser a expressão realizada do espírito grego num dado momento - pois este homem foi, sem dúvida, um grego. Compreendemos mal o que disse se quisermos conservar de sua obra aquilo que não se “mistura” impuramente com as atribulações de sua época. A consciência aguda, altamente diferenciada da Razão grega naquele momento, eis a raiz de sua profundidade e a natureza de sua lição. Seu pensamento torna-se incompreensível se não levarmos em conta a íntima conexão que aí existe entre Política e Filosofia, sendo esta esclarecida por aquela, na medida em que reflete a seu respeito. (p. 19)

Antes das discussões clássicas e dos sistemas teóricos se universalizarem, primeiramente, eles estavam fincados em uma realidade. É evidente que foi necessário a sensibilidade e a perspicácia de alguns homens e mulheres, que se espantaram com os problemas a sua volta, com questões que incomodavam ou chamavam atenção.

A disciplina, então, possibilita aos alunos discutirem questões centrais da formação da filosofia latino-americana e caribenha, bem como as várias correntes filosóficas que surgiram ao longo da história na América, o problema da autonomia e da identidade, os dilemas do universalismo, entre outras indagações-chave oferecidas por este estudo.

Nas palavras de Beorlegui (2010), a filosofia latino-americana tem sido objeto de estudo de muitos países, universidades e pensadores, a partir de vários pontos de vista, correntes teóricas, com larga produção bibliográfica, como livros, teses e artigos, abordando múltiplos temas e inúmeras épocas históricas.

Evidente que os modos de abordar ou de trabalhar com a filosofia latino-americana apresentam diversas contradições, limitações e desafios. Eclodem, nesse debate, múltiplas posturas, como a universalista, a nacionalista e a perspectivista. Carlos Beorlegui (2010) conceitua cada uma dessas posturas filosóficas latino-americanas:

a) La postura universalista defiende que no hay más que una filosofía para todas las culturas, negando rotundamente la existencia de las filosofías «nacionales». Para esta postura, es tan absurdo hablar de filosofía latinoamericana o española como defender la existencia de matemáticas, o física, alemanas o chinas. La filosofía, como cualquier otro saber, no tiene patria y debe entenderse y ejercitarse de la misma forma en cualquier región del planeta.

b) La postura nacionalista, en cambio, considera legítimo y válido hablar de «filosofías nacionales», basándose en la supuesta existencia de caracteres o «espíritus nacionales» (el Volksgeist de los románticos alemanes), que se expresan en filosofías y cosmovisiones específicas.

c) La postura intermedia o perspectivística/circunstancialista entiende que, aunque los problemas filosóficos responden a preguntas y respuestas universales, también es cierto que tales planteamientos interrogativos, con sus correspondientes soluciones, poseen una apoyatura circunstanciada y epocal. Pero se distingue de la segunda respuesta en negar el carácter esencialista e inamovible de los diferentes puntos de vista perspectivísticos. (Beorlegui, 2010, pp. 34-35)

Cada postura corresponde a projetos epistemológicos de poder, como a universalista que desconsidera a diversidade filosófica como um discurso que encobre os interesses eurocêntricos do saber dominante. A nacionalista, por sua vez, valoriza a cultura das populações ameríndias, porém há o risco de se cair no ufanismo, perigo esse que é uma resposta fundamentalista à modernidade/colonialidade. A terceira postura busca ser uma compreensão mais dialética, em virtude de procurar estabelecer o diálogo entre o local e o universal, sem cair na percepção dualista do mundo.

Para Beorlegui (2010), a filosofia, como modo de ver e se situar na realidade, não pode desperdiçar a sua personalidade, uma vez que seus autores e autoras estão demarcados por questões étnicas, são marcados pelas circunstâncias históricas e políticas.

A disciplina apresenta aos discentes tarefas históricas do pensamento filosófico latino-americano e caribenho, tarefas que desafiam os autores e as autoras a construir o diálogo entre as perspectivas socioculturais e o entorno filosófico universal.

1) La delimitación de qué entendemos por filosofía y por filosofía latinoamericana. Es decir, nos debemos enfrentar con la pregunta sobre el ser de la filosofía, en general, y sobre la autenticidad de la filosofía latinoamericana.

2) El problema de la metodología más adecuada a la investigación sobre el pensamiento filosófico latinoamericano.

3) Y, como un aspecto y concreción de la problemática anterior, ser consciente y esclarecer la cuestión sobre el sesgo interesado e ideológico que toda reflexión teórica, y por tanto también la historia, lleva consigo. (Beorlegui, 2010, pp. 36-37)

Esses núcleos problemáticos, elencados por Beorlegui (2010), confirmam a autenticidade filosófica latino-americana. Ser autônomo é deixar de prestar contas às normas dominantes, é construir pontes epistêmicas com filosofias abertas, com filosofias não dogmáticas, subverter a ordem moderna/colonial; essa é a pauta principal para a filosofia latino-americana.

Destaca-se, nesse sentido, o surgimento de um grupo de filósofos que expressa essa filosofia socioculturalmente situada, descolonizadora e dialógica, cujos membros são partidários da filosofia da libertação, tendo como precursores:

los escritos de Augusto Salazar Bondy, ¿Existe una filosofía de nuestra América?, y de Leopoldo Zea, Filosofía americana como filosofía sin más. Pero los momentos y circunstancias en que se gesta este movimiento filosófico son los diversos Congresos de Filosofía, entre otros los de la Facultad de S. Miguel (Universidad del Salvador, Argentina). Un grupo de filósofos jóvenes argentinos, entre los que hay que destacar a E. Dussel, J.C. Scannone, O. Ardiles, H. Cerutti y otros, se planteó la necesidad de filosofar no desde los parámetros tradicionales de Europa, sino desde el propio ser y circunstancias de Latinoamérica. Ello implicaba de nuevo plantearse el problema de la identidad de LA. (Beorlegui, 2010, p. 46)

O coletivo de filósofos que nascia tinha, e ainda tem como bandeira principal de luta, a emancipação filosófica dos latino-americanos contra toda forma de opressão eurocêntrica, resgatando suas origens, suas fontes e suas características, arquitetando desde a exterioridade a autonomia filosófica ameríndia.

Como indicação básica, a disciplina procura trazer temas como a história das ideais filosóficas no Brasil e autores como Antônio Paim, pesquisador do pensamento filosófico luso-brasileiro, João Costa Cruz, Geraldo Machado Pinheiro, Luís Castagnola, dentre outros. Essa disciplina é ofertada somente como eletiva e para o curso de bacharelado.

Para Severino (1997), a filosofia, no Brasil, durante anos, esteve limitada às imitações de modelos eurocêntricos, a reproduzir esquemas estranhos à realidade brasileira, mas, ao longo dos anos, isso vem mudando, pois segundo ele “a filosofia entre nós já não se limita aos escolásticos ambientes ecléticos. Expandiu-se em todas as instituições de ensino públicas e privadas, nos vários graus, em cursos específicos ou integrados” (Severino, 1997, p. 14).

A estudante Purus (UA), ao falar da sua experiência, explica que os estudos sobre a filosofia brasileira estão focados mais nos autores contemporâneos, como Benedito Nunes, Marilena Chauí, Clóvis Barros Filho, cujos textos estão centralizados mais nas questões políticas e éticas, além de investigarem um pouco sobre as revoltas sociais na história brasileira.

Essa disciplina é inovadora, não teríamos esse tópico dois anos atrás (…) as produções filosóficas geralmente são eurocentristas, ou seja, Karl Marx, Engels, Kant, ou seja, todos os autores filosóficos eles produziram visando os problemas da Europa, então quando a gente vê um tópico da disciplina filosófica, trazendo pra nossa realidade e a gente consegue perceber que são conflitos nossos mesmos (…) tem problemas atuais da nossa região mesmo! a gente consegue ver que é real e que a filosofia estar viva (…) que se faz filosofia aqui e se faz bem e consegue propor teorias e soluções. (Discente Purus UA, comunicação pessoal, Jun. 2016)

Essa disciplina, segundo Purus (UA), contribui para se fugir do Eurocentrismo que é muito comum na faculdade de Filosofia. Com essa disciplina, pode-se perceber problemas atuais da região usando os olhares dos filósofos brasileiros. Assim, como a estudante destaca que o olhar crítico para o contexto local possibilitou estabelecer outro sentido à própria filosofia.

Segundo Oliveira e Albuquerque (2010, p. 5), essa demarcação histórica, que compreende a filosofia como explicação racional, unívoca e universal, a partir de colunas cognitivas da cultura europeia ocidental, obriga o curso de formação em filosofia seguir a direção monolítica, pois “os filósofos buscam explicar no mundo a pluralidade dos seres a partir de um princípio único, tendo como fundamento ontológico a substancialidade de tudo que existe”.

Essa concepção estreita da filosofia impossibilita pensar a complexidade simbólica, lógica e epistemológica da filosofia latino-americana e brasileira. Esse entendimento do saber filosófico reforça o mito da modernidade, que legitima o discurso eurocêntrico.

O estudo de tópicos de filosofia brasileira é um componente importante de enfrentamento Decolonial, pois ajuda a desconstruir as perspectivas etnocêntricas inseridas no ensino de filosofia. Desenvolver o encontro de culturas e seus respectivos saberes é edificar a pluriversidade cognitiva e pedagógica, é combater as barreiras que cristalizam a filosofia.

O estudante Paraguai (UA) esclarece que a iniciativa é pioneira, pois busca alçar novas perspectivas no curso de filosofia situado na região amazônica, na medida em que vai além dos referenciais filosóficos etnocêntricas.

No curso essa é a primeira vez que eu vejo uma iniciativa desse tipo de trabalhar uma disciplina… Relacionar a filosofia brasileira (…) Estou achando excelente espero que isso continue (…) a gente estudou questão da formação social brasileira que foi a partir da “descoberta” e todo o processo de formação que se deu por diferentes povos aqui, junto com os nativos que já existiam aqui antes, então fora a questão dessa problemática a gente estudou a crise, ou a certa inexistência de identidade pra que se possa dar o fundamento pra dizer o que seria essa filosofia brasileira. (Discente Paraguai UA, comunicação pessoal, Jun. 2016)

Estudar a formação social do Brasil ajuda a melhor compreender a formação do pensamento filosófico brasileiro (e latino-americano) e como as crises da formação socioeconômica da nação influenciaram na construção da identidade filosófica brasileira.

De acordo com Severino (1997), ainda há uma série de contradições, e limites na filosofia brasileira, porém essa vem alçando novos patamares. Ele considera que são equivocadas as afirmações de que, no Brasil, a filosofia ainda é mecânica, uma vez que, a filosofia vem buscando independência dos “modelos e guias” eurocêntricos e “estadunidocêntricos”.

O estudante Paraguai (UA) argumenta que a identidade da filosofia brasileira está carregada de contradições, de sequelas da história social do Brasil. É uma identidade em construção, uma construção conflitante e caótica, mas ele entende como necessária para melhor dialogar com as problemáticas da sociedade brasileira.

(…) de fato é uma questão em aberto… É inegável que durante todos esses séculos foi formado uma identidade e há, mas eu acredito que seja uma identidade em processo de formação, no momento histórico que a gente vive e político. Há muitas contradições, eu acho que isso é reflexo dessa crise de identidade (…) a discussão teria situado numa outra dimensão como eu falei antes a respeito de familiarizarmos mesmo com a ideia que já existe uma filosofia e todos os estudos (…) e intelectuais que estão o tempo todo discutindo, escrevendo, publicando, todo esse corpo acadêmico, (…) já produz uma filosofia (…) acho que falta essa questão da autonomia da gente dizer “nós também fazemos filosofia!” não a necessidade de criar uma filosofia. (Discente Paraguai UA, comunicação pessoal, Jun. 2016)

Ainda, afirma que já se pode presenciar toda uma produção filosófica no País, porque já se tem um corpo acadêmico formado, bem fortalecido, o que talvez ainda falte autonomia; os professores, alunos, escritores e pesquisadores vivem na sombra do discurso “oficial” e é preciso quebrar as correntes dessa dependência intelectual.

A disciplina contribui também para superar com a visão colonizada da filosofia brasileira. Gomes (1994) elucida que:

Essa dependência conduziu ao aparecimento, ao nível da reflexão, de uma atrofia escandalosa. Passou-se a discursar sobre uma realidade querida, a europeia, sobre problemas europeus, utilizando termos e linguagem adequados àqueles problemas que estranham inteiramente nossa circunstância. A realidade querida é coisa diversa daquela na qual nos encontramos. Coisas problemáticas para um europeu podem ser, para nós, falsos problemas que somente à custa de verdadeira violência mental e grande alienação conseguimos revestir de “importância”. Se outra é a realidade, outros são os problemas virtualmente existentes, outros devendo ser os termos e métodos. No entanto, nada disso foi providenciado. Nossa realidade desde sempre foi suprimida. O intelectual brasileiro refugia-se numa constelação de conceitos esvaziados e de sonoras palavras que visam exorcizar isto de que tem tanto pavor e que julga de tão pouca classe: nossa brasilidade. (p. 77)

Para se consolidar a autonomia da filosofia brasileira é preciso se desprender das constelações conceituais eurocêntricas, da permanência dessas referências moderno-coloniais que mantêm o colonialismo intelectual.

O estudante Paraguai (UA) informou que as disciplinas foram organizadas a partir de temáticas e foram abordadas a partir de estudiosos brasileiros da época, entre os quais Tobias Barreto, Benedito Nunes, Antônio Paim e Bento Prado Júnior. Essa seleção de autores indica que “a única maneira de crescer a partir de sua própria tradição é fazer uma crítica a partir dos pressupostos da própria cultura. É necessário encontrar nela os momentos originários de uma autocrítica” (Dussel, 2016, p. 65).

Como atividade, o professor deixava aberto para que os alunos escolhessem o autor, tema ou conceito que gostariam de apresentar e discutir em sala de aula. O graduando ressalta o caráter interdisciplinar presente nos estudos, bem como os aspectos antropológicos, políticos, históricos, econômicos e até biológicos que foram debatidos.

As duas disciplinas são importantes indicando caminhos de reflexão sobre o pensamento decolonial, porém não tiveram forças para reverter o discurso eurocêntrico predominantemente presente na estrutura curricular dos cursos pesquisados.

Antropofagia 2 epistemológica: para uma filosofia decolonial/intercultural

Antropofagia epistemológica é o ato conceitual/ético/cognitivo de subsumir, reinventar e recriar a partir das fraturas ontológicas produzidas pela colonialidade no sistema-mundo moderno, isto é, buscar nas fronteiras da colonialidade do ser, do saber e do poder as alteridades encobertas e as intersubjetividades redesenhadas por esse emaranhado histórico, assimétrico e complexo de colonização e descolonização. Buscando fugir da dualidade essencialista ou obliteradora engendrada pela Modernidade/Colonialidade, ou seja, viabilizar e recriar outras posturas, narrativas e leituras em diferentes vivências filosóficas, políticas e pedagógicas.

Na presente pesquisa as narrativas discentes apresentadas e as ementas das disciplinas estudadas evidenciaram a predominância da visão eurocêntrica tanto na estrutura curricular quanto na prática pedagógica, sendo importante, porém ainda tímida, a presença de um debate decolonial representado pelas duas disciplinas que tratam da filosofia latinoamericana e brasileira, porque decolonizar perpassa tanto pela reformulação curricular, como é imprescindível problematizar e combater às assimetrias de poder presentes no campo epistemológico e na prática educativa. Porém, elas constituem o início de um debate e o anúncio de possibilidades de mudanças.

As universidades, as graduações e os processos de ensino-aprendizagem estão sob a égide das matrizes de poder da modernidade/colonialidade. Há uma saída? A opção Decolonial, da rede Modernidade/Colonialidade traz algumas proposições, uma delas é arquitetar epistemologias-outras (Mignolo, 2003; Maldonado-Torres, 2007; Souza, 2017).

Nas palavras de Mignolo (2003):

“Un paradigma otro” designa el espacio desodernado y potente donde se completará el proyecto inconcluso de la modernidad, pero no ya desde la modernidad sino desde la colonialidad como processo permanente de descolonización. “Un paradigma otro” nos lleva también a “una otra ideología”, la del “cosmopolitismo crítico”. (p. 58)

A colonialidade é ferozmente violenta, fere ontologias e saberes. Contudo, a decolonialidade cria e recria espaços geoepistêmicos de reexistência, lócus esses que não são puros ou carregam a essência das populações subalternas, pois a rede modernidade/colonialidade não é um projeto fundamentalista.

Em concordância com Grosfoguel (2016), as universidades na América Latina e no Caribe têm operado com estruturas que definem os saberes latinos e caribenhos como inferiores. Para o autor, decolonizar a universidade ocidental requer, entre outros elementos:

1. Reconhecimento do provincialismo e do racismo/sexismo epistêmico que constituem a estrutura fundamental resultante de um genocídio/epistemicídio implementado pelo projeto colonial e patriarcal do século XVI.

2. Rompimento com o universalismo onde um (“uni”) decide pelos outros, a saber, a epistemologia ocidental.

3. Encaminhamento da diversidade epistêmica para o cânone do pensamento, criando o pluralismo de sentidos e conceitos, onde a conversação interepistêmica, entre muitas tradições epistemológicas, produz novas redefinições para velhos conceitos e cria novos conceitos plurais com “muitos decidindo por muitos” (pluri-verso), em lugar de “um definir pelos outros” (uni-verso). (Grosfoguel, 2016, p. 46)

Assumir esses desafios aponta para horizontes insurgentes, ou seja, tomar posição a partir da decolonialidade, significa se engajar na edificação de uma universidade descolonizada e intercultural que arquitete posturas epistêmicas antirracistas, antipatriarcais, anticapitalistas entre outras problematizações acerca da opressão cognitivo/política moderna colonial.

A composição de epistemologias-outras necessita subsumir conceitos modernos/coloniais e os ressignificar, assim como incorporar conceitos e visões de mundo dos povos latinos e caribenhos que resistem historicamente à colonialidade (Souza, 2017).

Desconstruir a colonialidade do saber, enraizada nas graduações em filosofia e no ensino de filosofia, exige uma resposta epistemológica e pedagógica não subalterna, um pensamento crítico de fronteira.

O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistêmica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada. (Grosfoguel, 2010, pp. 480-481)

Não se deve compreender a presença da filosofia latino-americana ou da filosofia brasileira nos desenhos curriculares ou nas práticas pedagógicas como um favor, como uma concessão da colonialidade, ao contrário, essas disciplinas, mesmo considerando as suas contradições e limitações em sala de aula, não se pode negar, que elas são resultados de resistências decoloniais.

Outro campo de luta importante é o pedagógico, em razão de que as disciplinas e ementas que se limitam apenas aos períodos históricos hegemônicos, as teorias canônicas e autores europeus e estadunidenses fortalecem a soberania intelectual moderna/colonial.

A colonialidade do saber é também pedagógica, além de ser monocultural. Por isso, uma prática pedagógica Decolonial é também intercultural crítica.

Interculturalidade crítica e a decolonialidade, nesse sentido, são projetos, processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamente, alentando forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular e construir. Essa força, iniciativa, agência e suas práticas dão base para o que chamo de continuação da pedagogia Decolonial. (Walsh, 2009, p. 25)

Uma graduação que concebe apenas a cultura greco-romana como origem da filosofia, ou que afirma não existir no Brasil e na América Latina filósofos e filósofas, acaba por legitimar a visão monocultural da filosofia.

O curso que legitima a colonialidade do saber produz uma concepção e uma prática monocultural do saber e do ser como alerta Shiva (2003):

a principal ameaça à vida em meio à diversidade deriva do hábito de pensar em termos de monocultura, o que chamei de “monoculturas da mente” as monoculturas da mente fazem a diversidade desaparecer da percepção e, consequentemente do mundo. O desaparecimento da diversidade corresponde ao desaparecimento de alternativas. (p. 9)

Tomando de empréstimo o conceito da autora em diálogo com a colonialidade do saber, a subalternização da diversidade epistemológica elimina a percepção da própria filosofia na América Latina.

A Interculturalidade crítica problematiza essa rede nefasta que encobre as alternativas epistemológicas e pedagógicas críticas que eclodiram na ameríndia. Desta forma, “assumir essa tarefa implica em um trabalho de orientação Decolonial, dirigido a romper as correntes que ainda estão nas mentes (…) desaprender o aprendido para voltar a aprender (…)” (Walsh, 2009, p. 4).

Segundo Raúl Fornet-Betancourt (2009), a filosofia ainda é encarada somente como uma disciplina acadêmica, não que ela também não seja, contudo, isso reduz a filosofia a uma tradição acadêmica, muitas vezes, com caráter etnocêntrico e ocidental, desconsiderando aspectos importantes, como o ato de reflexão do contexto e da história dos povos, para ele a:

Filosofía se da siempre, por eso, en una pluralidad de formas de pensar y de hacer. No hay, por tanto, razón alguna para absolutizar una de esas formas y propagarla como la única válida. Quien esto hace, cae en una posición etnocêntrica que convierte en centro del mundo lo que en realidad no es más que uma región del mismo. En lugar, pues, de absolutizar una forma local de la filosofía, preferimos liberar el quehacer (filosófico) de toda definición definitiva a partir de uno solo de sus Orígenes culturales, y proponer comprenderlo como una actividad que nace en muchos lugares y que puede tener por consiguiente muchas “nacionalidades”. (Fornet-Betancourt, 2009, p. 639)

De acordo com Raúl Fornet-Betancourt (2009), o saber e o fazer filosófico, entendidos a partir da decolonialidade, ultrapassam esses esquemas catedráticos, vão além de somente aprender sistemas de pensamento ou dominar uma rede de conceitos autenticada pelos grandes cânones da filosofia moderna ocidental, como os pensadores alemães, franceses e britânicos.

A filosofia, em uma perspectiva intercultural, dedica a sua atenção a todo um saber da realidade e a todo um saber e um fazer a realidade, que não fora criado hoje, que tem raízes antigas e renova-se com elementos atuais.

Para uma melhor expressão intercultural da filosofia, é preciso emergir uma filosofia que valorize a diversidade cultural e, para se atingir esse aspecto, será preciso “desfilosofar a filosofia”, em razão de que:

Si la consecución efectiva de una mejor calidad en nuestras respectivas culturas y con ello también de una mejor calidad humana en nuestra existencia personal y comunitaria depende de que podamos o no cultivar nuestras culturas como terrenos fecundos para el diálogo intercultural, entonces puede decirse análogamente que la elaboración de una filosofía de mejor calidad en América Latina depende hoy de la transformación de la filosofía que hacemos desde las exigencias que nos plantea el diálogo intercultural. Por eso interpretamos la necesidad de la interculturalidad como una necesidad que afecta también a la filosofía y que ésta debe asumir concretamente en el sentido preciso de una exigencia de transformación. La transformación de la filosofía en América Latina desde el imperativo de la interculturalidad supone, sin embargo, una compleja tarea de autocrítica radical que, por implicar la casi disolución de la figura hegemonicamente transmitida de la filosofía, proponemos designarla con el nombre de desfilosofar la filosofía. ¿Qué entendemos por esta tarea? ¿Qué proponemos, en concreto, con ello? (Fornet-Betancourt, 2009, p. 643).

Pensar a formação docente e o ensino de filosofia como diálogo intercultural crítico requer reconstruir as relações culturais na educação, descolonizando o saber e as práticas monoculturais, combater narrativas e pedagogias racistas e sexistas, contestar classificações excludentes e comportamentos desumanizantes. Eleger um conteúdo, indicar determinados livros e artigos, optar por uma didática impositiva e avaliações engessadas dentre outros inúmeros exemplos antidialógicos presentes no cotidiano pedagógico dos cursos universitários apenas fomentam silenciamentos de filosofias-outras.

Considerações finais

A primeira postura para decolonizar o ensino de filosofia é a reflexão crítica de quem vivencia a filosofia, problematizar a história da filosofia, os cânones da tradição filosófica, descontruir as concepções engessadas e dogmáticas de filosofia, isto é, realizar uma antropofagia epistemológica/filosófica.

Assim, as disciplinas “Filosofia latino-americana” e “Tópicos de Filosofia Brasileira” são importantes para a crítica ao eurocentrismo filosófico, porém, há necessidade de se mudar as raízes epistemológicas das graduações (as pós-graduações também), isto é, de se pensar o filosofar a partir da América Latina e do Caribe como um insurgir da alteridade filosófica subalternizada, da ancestralidade ameríndia, da memória coletiva de homens, mulheres, idosos e crianças, dos saberes coletivos historicamente construídos.

Construir disciplinas que abordem as expressões filosóficas indígenas, filosofias africanas, os saberes das comunidades tradicionais e dos movimentos sociais. Fortalecer projetos de ensino, pesquisa e extensão que busquem construir diálogos com diversos “lugares filosóficos” do sistema-mundo, articular com vivências filosóficas do Norte ao Sul global. Iniciativas que tragam saberes de diferentes culturas, que tragam “os filósofos e filósofas” que não estão ou nunca estiveram presentes na universidade.

Vivências filosóficas que são vividas por pessoas que estão circunscritas em latitudes distintas, possuem linguagens próprias, carregam memórias, cultivam ancestralidades, pessoas que são atravessadas por marcadores raciais de gênero e geração.

As duas disciplinas analisadas, apesar de poucas, representam o início da problematização do pensamento eurocêntrico moderno e de uma trajetória de mudanças de atitudes e de paradigmas no campo da filosofia que depende majoritariamente do protagonismo daqueles que fazem filosofia no cotidiano.

2A antropofagia é o ato de se alimentar de carne humana. Ritual que era praticado por alguns povos indígenas (como os Tupinambás da costa brasileira no século XV). São rituais de guerra e honra aonde as virtudes e habilidades do adversário derrotado (e capturado) em guerra de maneira honrosa e corajosa são transmitidos ao vencedor. Tomando como inspiração esse ritual um grupo de artistas fundaram o movimento antropofágico (manifestação artística brasileira da década de 1920), fundada e teorizada pelo poeta paulista Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral. Compreendemos nesse conceito a ideia de subsunção. Ou seja, subsumir o pensamento ocidental e reinventar modos outros de inteligibilidade.

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Recebido: 01 de Julho de 2018; Aceito: 16 de Março de 2020; Publicado: 02 de Dezembro de 2020

Endereço para correspondência Sulivan Ferreira de Souza, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 Pampulha, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. sulivantris@gmail.com

Ivanilde Apoluceno de Oliveira, Universidade do Estado do Pará, Rua do Una, 156 Telégrafo, 66050540 Belém, PA, Brasil. nildeapoluceno@uol.com.br

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