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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.43 no.2 Porto Alegre maio/ago 2020  Epub 01-Fev-2021

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2020.2.31718 

Outros Temas

O espiritografista contemporâneo: um fazer poético tradutório na educação

The contemporary spiritographist: a translative poetic action in education

El espiritugrafista contemporáneo: un hacer poético y traductorio en la educación

Maria Idalina Krause de Campos1 

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil; professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Porto Alegre, RS, Brasil. Pesquisadora na Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação UFRGS.


http://orcid.org/0000-0002-0016-7455

Luiz Daniel Rodrigues Dinarte1 

Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil; Tradutor e Intérprete de Libras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil.


http://orcid.org/0000-0003-2715-1629

Sandra Mara Corazza1 

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-1237-198X

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.


Resumo:

O texto dá a ver um fazer poético tradutório espiritográfico possível na educação contemporânea. Defende que o espiritografista ocupa três lugares funcionais e de autoformação constante – do estudante, do escritor e do educador (EEE) – em laboratório próprio e singular que age através da variação de si. Toma o método espiritográfico como agente capaz de movimentar corpo-espírito-mundo, para realizar processos tradutórios didáticos no espaço da aula. Utiliza-se dos variados procedimentos de escrita do pensador e poeta Paul Valéry e os transforma em processos experimentais e literários que ativam o eu-empírico de um espírito aventureiro que lê e escreve. Mostra e conclui que o professor-pesquisador, ao valer-se dos procedimentos de tal método, dissemina aventuras didáticas do desejo de educar, transcriando por esta via a realidade curricular.

Palavras-chave educação; tradução; poética

Abstract:

This text points out a possible spiritographic translative poetic action in contemporary education. It defends that the spiritographists occupy three functional, constant self-education places – student, writer and educator (SWE) – in their own singular laboratory that acts through the variation of the self. It regards the spiritographic method as an agent able to move the body-spirit-world in order to perform didactical translative processes in the class setting. It uses several of the writing procedures of the writer and poet Paul Valéry and turns them into experimental and literary processes that activate the empirical-self of an adventurous spirit that reads and writes. It both shows and concludes that the researcher-teacher, by using the procedures of such a method, disseminates didactical adventures of the desire to educate, thus transcreating the curriculum reality in this way.

Keywords education; translation; poetics

Resumen:

Este texto deja ver un hacer poético traductorio espiritugráfico posible en la educación contemporánea. Defiende que el espiritugrafista ocupa tres lugares funcionales y de auto formación constante – el del estudiante, del escritor y del educador (EEE) – en laboratorio propio y singular, que actúa a través de la variación de sí. Toma el método espiritugrafico como agente capaz de mover cuerpo-espíritu-mundo para realizar procesos traductores didácticos en el espacio del aula. Utiliza variados procedimientos de escritura del pensador y poeta Paul Valéry y los transforma en procesos experimentales y literarios que activan el yo-empírico de un espíritu aventurero que lee y escribe. Muestra y concluye que el profesor-investigador, al valerse de los procedimientos de tal método, disemina aventuras didácticas del deseo de educar, trascendiendo la realidad curricular a través de esa vía.

Palabras clave educacíon; traduccíon; poética

A poética valéryana

Paul Valéry é um operador de escrita, um Homo faber que escolhe os ingredientes para fabricar, com inteligência, as suas arquiteturas de linguagem. Junto de sua assinatura, podemos verificar um fazer múltiplo e variado de escrita tradutória, que se utiliza de um método do informe — não dogmático —, que busca experimentar e movimentar pensamentos intensos, expressos em atos de composição textual. Escrito por contágio, o fazer poético de Valéry impulsiona a linguagem para além de os seus limites.

Por esse motivo, é importante examinar a sua vida, bem como os seus escritos de maneiras variadas — diálogo, prosa, poesia, ensaio, carta, discurso, aula – que contemplam áreas, tais como filosofia, matemática, música, poesia, teatro, além de análises críticas culturais e da sociedade. É possível verificar e contemplar, efetivamente, uma multiplicidade de temas, que guardam como pano de fundo o funcionamento do espírito humano. É nesse sentido que a educação pode ser pensada paralelamente ao seu pensamento, como meio que mobiliza textos diversos em função de sua traduzibilidade na pesquisa-docência.

Tal pesquisa privilegia o fazer como exercício que potencializa o espírito, tornando-o capaz de capturar as forças textuais produzidas pelo autor, que são traduzidas na malha intelectiva com o objetivo de criar um novo texto, que serve como aporte sustentável para uma prática de ensino. Trata-se, portanto, de escrever uma pesquisa em educação sobre Valéry com Valéry, via um movimento espiritográfico que transita entre a vida e a obra e que traduz, no campo da educação, maneiras múltiplas de ler e escrever.

Esse movimento espiritográfico é oriundo de um Método Espiritográfico, utilizado como processo experimental para falar, ler e escrever sobre a educação com Valéry. Tal método é posto em funcionamento por meio de uma self-variance do espírito, ao colocar-se em movimento funcional, prático e construcionista, em que se autoeduca no entre-lugar variante de EEE.

Isso é possível por intermédio da escrita pela leitura e da leitura pela escrita (escrileitura) de textos que mesclam linguagem e conhecimento. Linguagem e conhecimento são elementos de uma composição do espírito, formando um campo aberto à formação de si e ao fazer docente. Nesse processo de escrita variante, o ambiente humano é de suma importância, pois a vida é uma fonte poética, repleta de potenciais vicissitudes. Trata-se da matéria vivível, que serve como disparadora para uma produção de escrita errante, um texto-manifesto, exposto por via da linguagem e das suas convenções. Dessa maneira, os procedimentos de escrita de Valéry são transformados em processos experimentais literários — com nova roupagem imagética — que ativam o eu-empírico de um espírito que lê e escreve e se serve da literatura para assim criar ou recriar textos.

O fazer poético tradutório é o que possibilita coabitarmos com Valéry em um campo potencial e procedimental em educação, criando e ocupando um espaço que se inventa no movimento de escrileituras. Tal movimento põe em jogo um novo fazer educacional, traçado e rabiscado menos como história e mais como geografia nas práticas educacionais e na pesquisa-docência.

Nessas condições, nos arriscamos em uma Dracomédia humana como figura tradutória, como espaço que dá a ver traçados de uma escrita possível. Misto de drama (Deleuze, 2006) e comédia (Valéry, 2009), a Dracomédia opera uma função tradutória eivada pelo pathos (paixão), que nos arremessa novamente para um fora de nós mesmos, para que uma nova empiria poética possa surgir e, com ela, novos personagens que emitem vozes. A Dracomédia busca diferir um espírito, na pesquisa e na docência, inventando maneiras de ver, dizer e escrever na educação, pois escapa da servidão intelectual banalizada ao criar e não mais reproduzir conhecimentos. E, como afirma Valéry:

Escrever o que quer que seja, desde o momento em que o ato de escrever exige reflexão, e não é uma inscrição maquinal e sem detenças de uma palavra interior toda espontânea, é um trabalho de tradução exatamente comparável àquele que opera a transmutação de um texto de uma língua em outra. (Valéry citado por Campos, 2013, pp.61-62)

Tal poética de cunho valéryano captura forças que aproximam percepção e criação. Uma aventura que é possível via uma self-variance escrileitora, que produz nova escrita, traduzindo, das matérias originais da arte, da ciência e da filosofia, pontos relevantes para uma cena dramática que, em uma aula como processo, seja afeita aos vigores vitais da comédia. Trata-se de fazer (poïein) uma poética em que se analisa a ação do escritor para que a escrita seja feita, o que esse ato exige e como esse mecanismo ou obra do espírito pode servir para nosso próprio uso, na medida em que esse fazer literário interroga e propõe levantar problemas. Pois de acordo com Valéry, “tudo se compõe, se combina, se substitui, se compensa, se mistura e se desmistura, e isso é o Espírito” (Valéry, 2016, p. 32).

Assim, dividiremos nosso texto em partes intercambiáveis: a) Ofis-Sofia: transbordamentos poéticos; b) Método espiritográfico; c) Poética tradutora: transpoetização; d) Aula-espiritográfica: didactique da novidade, com as considerações finais.

Ofis-Sofia: transbordamentos poéticos

Encontra-se, nos escritos de Valéry, toda uma simbologia que merece atenção. Criado à beira do Mediterrâneo e curioso sobre a pesca do atum, que muitas vezes presenciou, ele traz esse símbolo muito vivo em suas criações. Fato irônico quando olhamos a realidade atual, com a quase extinção dos atuns nos mares e nos oceanos. Valéry ainda presenciou um início de século XX que se pretendia mais justo e pacífico, o que era também seu desejo, mas que foi um século, como sabemos, pouco afeito à preservação da natureza, particularmente no que tange à pesca de atum. Se vivo estivesse, veria também um século XXI com um grau de injustiça social ainda maior, mas sorriria, por certo, ao ver que há espíritos que lutam bravamente pela reversão desse quadro brutal de pesca predatória, sangrenta e nada ética na qual o mundo se encontra submetido.

Mas tratemos do atum por um viés mais alegre, que poeticamente pode trazer encantos que façam pensar, que servirão para que do Atum se fale, com ele se escreva e assim se preserve, de certa forma — senão no mundo dos oceanos, ao menos na memória que o atualiza. Na simbologia, o Atum representa, segundo Chevalier (1998, p. 818), “o mais antigo deus criador do mundo mediterrâneo, a serpente Atum é pai de Enéade de Heliópolis”. Atum cuspiu a criação quando emergiu solitário das águas primordiais, impondo sua permanência no mundo como a Grande Serpente Original. A partir dela, tudo passou a existir.

No esforço genético da evolução humana, o homem estaria situado ao final desse longo percurso, e a serpente estaria na outra ponta, no início desse mesmo esforço. Então, há algo de homem na serpente e algo de serpente no homem, uma linha viva, encarnada e em conexão. E, nesse “entre” coengendrado, há uma série de arquétipos em que a serpente não cessa de desenroscar-se, desaparecer e renascer.

A serpente é criação de um círculo contínuo e dinâmico, sempre em integração, como o “Uróboro (ou Ouroboros), símbolo da manifestação e da reabsorção cíclica” (Chevalier, 1998, p. 816). A serpente é autofecundadora: morde-se em transmutação perpétua de morte-vida. É um espírito cosmográfico e geográfico, gravado como divindade nas imagens primeiras do mundo.

O termo Ofis, ou Draco, é também utilizado para representar a sinuosidade do espírito de todas as águas que correm debaixo da terra ou das chuvas, que vêm de cima. Aparece em Virgílio como o “Tibre-cornu, imagem em que a serpente assume a força do touro”, como terimorfos de função terrestre e celeste. Já no “mito de Laocoonte, as serpentes saem do mar para punir o sacerdote culpado de sacrilégio” (Chevalier, 1998, p. 816) e enroscam-se aos pés de Atena, que, mesmo tendo origem celeste, tem a serpente como atributo.

Apolo e Dionísio, divindades que prezam a poesia, a medicina e a adivinhação, trazem a serpente como fonte de inspiração. Apolo, o mais solar dos olimpianos, liberta o oráculo de Delfos da hipertrofia causada pela serpente Píton. Há alma e inteligência na natureza. É preciso libertá-la, como faz Apolo e, assim, fecundar o espírito, assegurando a ordem que quer estabelecer. Nesse caso, Apolo aproxima-se de Dionísio, e Dionísio está apenas em um polo contrário do ser. Os dois se complementam, já que são “indispensáveis à realização da harmonia, que é a meta suprema” (Chevalier, 1998, p. 819).

A liberdade dada por Dionísio (êxtases coletivos, transes, possessões do ser serpente, da natureza) aparece no momento em que a escrita de perfeição se instaura na cidade como triunfo do logos helênico. A Lei instaura-se como filha só da razão, tentando oprimir e reprimindo a natureza humana do excesso proposto por Dionísio. O excesso dá lugar ao equilíbrio, à modernidade dos modos de ação, em que há o domínio da sociedade sobre o homem.

A serpente também simboliza os valores da noite, do noturno, quando ela desliza e participa do “limo do espírito” (Chevalier, 1998, p. 825). Foi pelo Romantismo, com a literatura no século XIX, que a serpente novamente se impôs por meio de artistas e poetas. Os ditos poetas malditos deixavam vir à luz, em seus escritos, o que viam durante a noite, quando a serpente se apresentava. A serpente participa da revolução do pensamento, abrindo brechas no século XX para a manifestação do Surrealismo.

Há uma infinidade de possíveis na simbologia da serpente, mas é, sem dúvida, um arquétipo fundamental ligado à vida e à imaginação, conservando, no decorrer da história da humanidade, suas valências simbólicas do mistério, do psiquismo obscuro, do raro, do ainda não compreendido. Em nossas pesquisas, vemos em Valéry uma serpente que desliza pela existência e que a cultiva também como símbolo de suas ações: Ofis-Sofia de escrita. A grande maioria dos pesquisadores de Valéry considera-o Apolíneo. Mas não podemos nos esquecer que o Valéry-escritor-serpente se aproxima de Dionísio, uma vez que os dois (Apolo e Dionísio) se complementam.

Sendo assim, uma educação espiritual pressupõe movimentos antropofágicos de um serpensamento, como o Ouroboros, a serpente simbólica que devora a própria cauda. Sua ação é de um pensar em círculo vicioso, em movimentos circulares, contínuos espirituais autofecundantes, um eterno retorno, nunca ao mesmo estado. Serpente que Valéry venera, como no poema Ébauch d'u Serpent (Campos, 1984, p. 25), em que traz a ideia de gradualidade. Trata-se de interações entre os componentes da matéria, que emite e absorve as partículas virtuais — átomos —, em que cada partícula subatômica executa uma dança de energia e com ela cria.

Nietzsche (1996, pp. 76-77), em sua obra Crepúsculo dos Ídolos, enfatiza que “para pensar se requer uma técnica, um plano de estudos, uma vontade de maestria — que o pensar deve ser aprendido, como deve ser aprendido o pensamento-dança, como uma espécie de dança”. Nietzsche nos alerta aqui sobre a necessidade de aprender a pensar, pois escolas e universidades não priorizam mais o dançar — segundo ele —, que dá a possibilidade de perceber novas nuances desse vivível bailado.

Que possamos dançar com os pés e também com os conceitos, com as palavras e, sobretudo, com a pena, ou seja, “há que aprender a escrever” (Nietzsche, 1996, pp. 76-77). Não de maneira tosca (como o agarrar de mão inteira de Kant, tipicamente alemão), que leva ao torpor do gesto espiritual, ignorando a sutileza do toque dos dedos. De maneira enigmática, percebe — ao unir a teoria-prática, como ofício de escrileituras — uma espécie de dança.

O espírito-serpente é uma psykhé anômala que dança. Vive de peripécias, corpo, espírito e mundo em êxtase de ave e réptil: “persegue inflexivelmente a sua presa, envolvendo-a numa rede de sons aliciatórios, a quem não falta o próprio espelhamento do nome de Eva” (Campos, 1984, pp. 19-20). Sua riqueza humana diversa não segue um modelo constantemente verificado no cotidiano. Imprevisível, contradiz o provável, surpreendendo seus convivas em diálogos instigantes sobre a vida. A serpente espiritual é uma operadora caprichosa que, entre leituras e escrita — sua habilidade maior —, cria com furor suas transmutações do espírito. Sedutora, utiliza-se dos artifícios da palavra, usa-as com refinamento.

Cria-se ao redor da serpente uma atmosfera “que configura presença ou onipresença”, serpente como “o aroma de um pensamento” (Campos, 1984, p. 20). Sua escrita é um reservatório de todas as latências, coloca-as em cena, plena de sinuosidades. É temida por seus venenos e presas afiadas. Causa pânico e desconforto, mas é extremamente sensual. Quando desliza, nada mais é que a manifestação renovada da vida do espírito de todas as águas. É seu próprio Alfa e Ômega.

No poema “Ébauche d'u serpente”, Valéry observa com rigor as exigências métricas do poema (Campos, 1984). Obsessivamente, escreve e reescreve, dando vazão ao seu próprio percurso de pensamento, uma forma de pensar circuloviciosa, o próprio serpensamento. Cada movimento do exercício escrileitor também prima pelo rigor de um serpensamento. É um mapear das forças de criação, observando o seu operar espiritual como uma prática educativa. Essa prática pedagógica não é dada ao rigor histórico; um pouco de história basta, um pouco de uma figura, de um fato histórico. À medida que adentramos e passamos a analisar essa vida e obra, a própria consciência mutável do espírito que investiga passa a criar novos pensamentos. Passamos a grafar, escrever, rabiscar, produzindo outras maneiras, junto ao que foi lido, escutado, percebido.

Há um entrelaçamento nutriente no qual “o espírito retira da matéria as percepções que serão seu alimento, e as devolve a ela na forma de movimento, em que imprimiu sua liberdade” (Bergson, 1999, p. 291). Uma consciência voraz, pensante, que aspira à criação autônoma, livre, matéria, memória, construindo novas imagens e movimentos. Um vão é necessário — que seja potente — para instigar o pensamento a fim de que a ameba espiritual se alimente, se nutra, colocando em variação aquilo mesmo que lhe dá corpo e matéria para criação. Essas imagens repletas de forças que lá estão promovem afecções e temores, pois se experimentam novas sensações no corpo que vê. E essas forças não são estanques, mas movimentos potenciais intensos.

Como fazê-las passar para a escrita espiritográfica? Via escrileituras vivíveis aos modos de Zaratustra de Nietzsche (1979, p. 62) em A criança no espelho, seguindo novos caminhos que possam encontrar uma nova linguagem, pois que, “à semelhança de todos os criadores, cansei-me das línguas antigas. O meu espírito já não quer correr com solas gastas”. Criando conceitos junto com elas — imagens —, e não falando sobre elas, na tentativa de significar o que traz o texto, fato que gera alterações de voz: mais suave, indignada, persuasiva, delicada, irônica.

Essa Ofis-Sofia é um desafio ao intelecto. Como afirma Deleuze (1996, p. 118) em Conversações ao referir-se à obra interrompida de Michel Foucault: “não há grandes pensadores que não passem por crises, elas marcam as horas de seu pensamento”. Justamente porque esse desafio do pensar o novo não possui uma lógica tradicional, ou seja, equilibrada por um sistema racional, mas antes, como nos diz o próprio Deleuze (1996, p. 118), “a lógica do pensamento é como um vento que nos impele, uma série de rajadas e abalos”, como em Leibniz, em que se pensava “estar no porto, e de novo se é lançado ao alto mar”.

Método espiritográfico

Visto a partir da perspectiva valéryana, o espírito, por meio dos movimentos de escrileitura — com o artifício da literatura —, movimenta sua malha intelectiva, possibilitando, assim, a construção de espiritografias. Para a sua elaboração, necessariamente, vamos ao mundo de um espírito e, com ele, escrevemos a partir de um estudo de vida e de obra ou de uma Vidarbo. Trata-se do interesse “por Vida (Biografia) e por Obra (Bibliografia). Só que, em vez de Vida e Obra tomadas em separado, ou uma derivada e mesmo causa da outra, trata de Vidarbo” (Corazza, 2010, p. 86), tomada conjuntamente.

Essas operações das faculdades intelectivas, repletas de afecções, permitem e compõem um método espiritográfico, um mecanismo que exige construção, em que o inesperado é condição do processo. É por esta via que se entende o método do informe, que leva em conta a self-variance (autovariação) espiritual para falar e escrever sobre educação com Valéry. Pesquisam-se, então, os procedimentos operativos de escrileituras de um espírito em ação funcional, aberto ao esforço da criação, à variação intelectiva, por meio de um fazer escrileitor que encontra um manancial fértil para a produção de espiritografias via um método espiritográfico, em que o espírito age por si enquanto se move entre leituras e escritas, colocando em ação um composto que é corpo, espírito e mundo.

Uma poética existencial possível se faz presente desde as primeiras leituras da infância, na medida em que se começa a ler e transformar matérias. A partir de arquivos diversos, seja da arte, da ciência e da filosofia, entra-se em contato com movimentos criadores de outros tempos e espaços e que se afirmam e sustentam como legado de outras formas de ler e escrever. A poética mais pura se dá na superfície textual, pois é nessa superfície que se torna possível o contato entre poéticas possíveis. Tal contato é o movimento que está para além do textual, pois aí a leitura se faz corporal, carnal, aberta às vicissitudes e riscos do mundo empírico.

Dispõem-se, dessa forma, elementos corporais, espirituais e mundanos em um plano escrileitor, “pois tudo passa-se entre o que denominamos o Mundo externo, o que denominamos Nosso Corpo e o que denominamos Nosso Espírito” (Valéry, 2011, p. 215). Sendo essas três grandes forças em uma ação funcional de ação geométrica, porém mutante, estabelece-se uma passagem contagiosa, uma abertura cujos efeitos autoeducativos estimulam a invenção.

Tal invenção é atravessada por linhas ondulantes de escrita, capazes de elaborar estratégias significativas de pensar e viver e de dar vida a uma nova práxis de ensino, como uma geometria única que mede o mundo por meio “do conjunto de nossa sensibilidade” (Valéry, 2011, p. 216). Tem-se aqui o habitar de um tipo de escrita educacional que prima pela variação, traçando linhas existenciais de itinerários singulares do que atravessa o corpo e os sentidos, sendo que a casa-corpo, como enfatiza Valéry (1996, p. 8), “dá as verdadeiras referências do prazer e guia o espírito”.

Por isso, ressalta Valéry, a importância de o espírito dedicar-se a observar e analisar a gênese e os processos das obras humanas, acompanhando a par e passos os espíritos que criam, utilizando-se da imaginação, mesmo que de modo conjetural, na construção de uma Comédia do Espírito ou do Intelecto. Na medida em que se interpretam ou mesmo se criticam obras alheias, cria-se por essa via um modo de também meditar e pensar sobre si mesmo, ou seja, interpretar é também interpretar-se.

Nesse percurso de vida nosso espírito, visto como consciência de si ocupa três lugares funcionais em seu laboratório próprio (EEE): o de Estudante (espírito que desde a infância percorre um curso tradutório de escrita e leitura); o de Escritor (espírito autor, tradutor e transcriador); e o de Educador (espírito em exercício de tradução na prática do magistério). Nesse atravessamento entre lugares, movimentam-se Currículo e Didática, ou seja, um currículo e uma didática que, mediante a tradução, são reimaginados.

Poética tradutora: transpoetização

Campos (2013) retoma um prefácio de Valéry à tradução de Bucólicas, de Virgílio, em que ele rompe com a dualidade “escritura” e “tradução”, e o faz ao afirmar que o poeta lida com uma matéria móvel, indisciplinada, essencialmente diversa da prosa por não lançar mão do esperado. Dando preferência ao que não é conforme ao sentido cívico da comunicação, a poesia inventa línguas outras, tem um sentido de renascimento e assume uma realidade própria que não é apaziguada pela compreensão da mensagem. A afirmação de Valéry é da tradução como operação dotada de função poética.

Na realidade Campos (2013) aponta alguns aspectos do texto de Valéry, que podem ser resumidas como: (i) a literatura não exige originalidade, mas consiste em uma intertextualidade generalizada; (ii) se há alguma fidelidade envolvida no ato tradutório, esta não diz respeito nem à mensagem, nem ao ato cognitivo. Como Ícone de relações, a tradução somente responde à ideia do desejo do tradutor. Paralelamente à ideia de traço, de Derrida (1999), o tradutor retraça uma raiz comum à fala e à escritura. Nesse sentido, fidelidade seria um sinônimo de sensibilidade; (iii) o resultado da operação formal da tradução é um texto estranho, que faz com que língua fonte e língua alvo estranhem-se mutuamente; e, (iv) a linguagem não é um intermediário entre o pensamento e o texto.

Tais ponderações fazem com que o pensamento de Valéry seja contrastado com o de Walter Benjamin, uma vez que ambos os autores exaltam o estranhamento da língua em relação às suas próprias constantes. Benjamin (2008), todavia, mantém, em seu ensaio intitulado A tarefa do Tradutor, uma topologia que afasta ainda uma entidade dita original (Dichtung) de um processo de transpoetização (Umdichtung) (Campos, 2013).

Em Benjamin (2008), tal dualidade, mesmo que atenuada pela força criativa da tarefa tradutória (transcriadora), ainda persiste no sentido ontológico. Em uma língua adâmica (a voz original nomeadora) haveria a possibilidade de uma língua da verdade, algo a ser buscado em um movimento ascendente da tradução. O que diferenciaria Valéry e Benjamin, nesse sentido, seria o lugar da tradução no processo de derrubada do dogma do sentido original e soberano presentificado no ato tradutório. Enquanto Benjamin pensa em uma forma transparente e fundamentalmente diversa da arte, Valéry tem na tradução um duplo que habita o texto.

Não haveria um original do texto, pelo menos não sem que este seja tocado pela emoção, e, por isso mesmo, consista em sensibilidade e borramento dos lugares adâmicos do nome e do sentido. Da mesma maneira, a deliberada manipulação é apontada por Aslanov (2015), no sentido de uma compulsão mitômana, de enganação do leitor que não acessa o original formal e seu modo de significar.

O sentido é que deve ser afeito às formas, caras ao leitor e ao escritor, e não o contrário. A fidelidade é, por esse motivo, relativa à forma e ao desejo e não ao conteúdo. A poesia pura é aquela que está liberta do sentido original, que consegue liberar o modo de existência poética da linguagem por lidar com formas já significantes (Campos, 2013). Nisso, só se poderia pensar na impossibilidade de traduzir e no intraduzível como uma impossibilidade de escrever.

E, para finalizar, segundo Valéry, há na tradução, por vezes, um mérito artístico muito maior ao tornar dizível uma ideia, principalmente quando o tempo e o espaço do tradutor desferem contra ele todas as adversidades possíveis. Ao contrário do poeta (aquele que escreve, supostamente, a partir de um original possível da escritura) que dispõe de todos os meios para fazê-lo, o tradutor deve inventar tanto a forma como o próprio meio que a torna possível.

Nessas condições, enfatiza Corazza (2013, p. 219), ocorre a tradução de determinada obra-arquivo, que cria novos arquivos, “para além do literalismo rudimentar e da banalidade explicativa”. Dá nova vida ao educador-artista (ou professor-artista), que, valendo-se das traduções didáticas, recria arquivos renovados, os quais “poderão, por vezes, tornar-se mais importantes que os originais” (Corazza, 2013, p. 219), pois a tradução se configura como uma “estratégia de renovação dos sistemas educacionais e culturais contemporâneos” (Corazza, 2013, p. 219).

Desse movimento, decorre a necessidade de um sucessivo e disciplinado exercício que deve estar contaminado pela atenção e pelo impulso da vontade. Conta-se com um provimento em maior grau da consciência à medida que são executadas essas ações, sejam elas as transformadoras da própria filosofia, ciência e arte, ou mesmo as mais íntimas. O que se deseja com esse processo é controlar a si próprio, isto é, uma eterna vigília do espírito para controlar o mecanismo dos processos mentais, suprimindo-se dele o despovoado, bem como suas vacilações.

“O pensador é um agonizante”, diz Valéry (1997, p. 130), na árdua tarefa de rabiscar o instante, na proeza de pensar pensamentos, com um heroísmo espiritual inconcluso, porém repleto de prazeres e sentimentos violentos. Além do muro que já se mira, onde tudo me parece conhecido e previsível, levanta-se a cabeça ao enigma, ao desconhecido. E o demônio, com seu riso sarcástico, atento ao rosto desperto com olhos curiosos além-muro, lhe diz: “mostra que ainda és aquele que pensaste que eras” (Valéry, 1997, p. 126). O leitor de espíritos também é um artesão da palavra, do texto, e não possui uma fórmula pronta e um procedimento universal para uma composição. Cada caso difere; não há facilidade nesse acompanhamento, mas muitos desafios e surpresas, em que o “leitor nos oferece os méritos transcendentes das forças e das graças que se desenvolvem nele” (Valéry, 2011, p. 214).

Diz-nos também Gaston Bachelard (1994, p. 52), em sua obra O Direito de Sonhar, que é preciso o escritor ter em germe a “glória do operário”, a relação Matéria e Mão. Esse é possuidor de todas as multiplicidades do mundo hostil, do mundo a dominar. “O verdadeiro gravador começa sua obra num devaneio da vontade. É um trabalhador. Um artesão” (Valéry, 1997, p. 11).

Para quem escreve o escritor? — questiona Barthes em sua obra O prazer do texto. “Não é a ‘pessoa’ do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja jogo” (Barthes, 2006, p. 9). Um espírito escrileitor vai tornando-se aos poucos um escutador de olhos e ouvidos atentos, que vigia seus desertos, suas ilhas imaginárias, seu além-muro, para raspar com garras ferozes seus itinerários, seus procedimentos.

Considerações finais

Nesta parte final do artigo, acreditamos ter dado a ver que o fazer poético tradutório espiritográfico é possível diante da cena da educação contemporânea. Utilizamos variados procedimentos de escrita do pensador e poeta Paul Valéry como processos experimentais e literários, ativando um espírito aventureiro que lê e escreve; neste inter-lugar de autoformação de EEE, o que se configura como uma aula-espiritográfica, eivada pela didactique da novidade.

Mostramos, por fim, que o professor-pesquisador, ao valer-se dos procedimentos de tal método, dissemina aventuras didáticas do desejo de educar, transcriando por esta via a realidade curricular, através do método espiritográfico. Pois, como afirma Valéry — e tomamos a citação como válida para a prática do magistério — “Só existe uma coisa a fazer: refazer-se. Não é simples” (Valéry, 2016, p.194).

Sendo assim, a Vidarbo de Valéry gera, na didática e no currículo, uma vontade de expressão, unida às sensações, experimentadas no vivível, em novos traçados compositivos de escrita. Trata-se de afirmar um processo de pesquisa-docência com Paul Valéry para criar tipos de espiritografias, como uma prática que promove novos movimentos que tomam as unidades analíticas de EIS do currículo (Espaços, Imagens e Signos) e AICE da didática (Autor, Infantil, Currículo, Educador). E nesse processo combinatório e correlacional, operacionalizar escrileituras tradutórias que provocam o pensamento e se articulem com as práxis da educação do ensinar, escrever, orientar, pesquisar; em suma contribuir e colocar estes verbos em discussão por um método espiritográfico.

Tal procedimento exploratório-experimental de pesquisa tem como intuito criar meios para a produção de ações de pensamento que se vinculem por meio da pesquisa em educação. Nos experimentos de escrita espiritográfica, procedimentos são inventados e podem ser utilizados no espaço-aula como uma maneira de oficinar pensamentos.

A escrita faz emergir nesse lugar — espaço-aula— o que diverge, pois, tal encenação, composta por conteúdos curriculares, também passa a servir de meio para novas invenções, recriando culturas e discursos por interventivos exercícios de perseverança do pensamento que transitam tanto pelo cômico quanto pelo dramático. Vitalmente, os signos linguísticos são transcriados numa Ofis-Sofia de elaboração de textos, como um jogo que se joga no exercício do magistério, um operar mutante para atravessar a ortodoxia dos textos (Corazza, 2014) e, com eles, passar a criar de modo próprio uma escrita indomesticada, crítica e vivificadora.

Logo, pode-se sugerir aos alunos um tipo de espiritografia nomeada como Mise em scène. O procedimento que é demonstrado a seguir consiste em um exercício de escrita espiritográfica desenvolvido pelos autores e que visa colocar em funcionamento o corpo conceitual apresentado ao longo do texto, de maneira a tornar a escrita um plano habitável de conexões entre vidas, sejam autores, personagens, tradutores e o próprio docente-pesquisador.

Espiritografia Mise en scène

A produção de uma cena bioespiritográfica tem como foco o texto A dama do mar, uma adaptação de Susan Sontag (2013) baseada na peça Lady from the sea, de Henrik Ibsen. Foram observados os monólogos contidos na peça, que são transmutados para a criação de um monólogo de Paul Valéry. Agrega-se assim, um texto literário que se compartilha no espaço-aula e que serve como trampolim para uma criação de escrita imagética.

Esse ensaio-menor de um retrato imaginário, embora feito de observações verificáveis, tão precisas quanto possível, foi influenciado por uma vida, por certo um Valéry imaginado, um personagem que se coloca em cena. Trata-se, portanto, apenas de uma espécie de monólogo curto, um cenário para um personagem, uma criatura de pensamento que se escuta, medita, murmura sobre sua Vidarbo, abrindo espaços que se criam ao figurar suas possibilidades — enquanto espaços — como questão aberta, abrigo e habitáculo.

Na medida em que este movimento de escrita se efetiva, há também uma ação de pensamento tradutório em trajetórias autoconsciente do espírito que se aventura e que age sobre o texto. Trama-se uma empiria poética espiritográfica de múltiplas ações em que “é o espírito que age diretamente, por si mesmo” (Corazza, 2012, p. 123) em uma tradução de si. Cria-se, desse modo, uma didactique da novidade.

Cabe salientar que o termo Mise en scène se refere à combinação de elementos que compõem a imagem e a representação teatral, ou seja, dramaturgia, cenário ou paisagem, iluminação, figurinos e caracterização, interpretação e som. Então finalizamos nosso ensaio com o seguinte monólogo experimental, que se configura em um tipo de espiritografia criada por meio dos procedimentos expostos no texto e intitulada de Espiritografia Mise en scène:

Personagem

Paul Valéry, “o Poeta-Pensador”, aos 74 anos.

Local/Época

Casa de Paul Valéry em Paris e um pequeno jardim de heras.

É noite, e chove na cidade. Gotículas escorrem pela vidraça de uma janela ainda aberta nos arredores de Paris. A cena acontece na biblioteca da casa, onde a luz está acesa. Da parte interna da biblioteca, pela janela, é possível observar um jardim. Há no jardim uma fonte e um caminho estreito que leva à rua. Nas ramagens de hera molhada, observa-se a sombra de um espírito que vaga tendo nas mãos uma cabeça. Paris, julho de 1945.

Lista de Cenas

I - Monólogo de Valéry (cena única)

Valéry (de robe preto, sentado, fumando, meditando no palco-biblioteca)

— É 1945! Quem diria! Eis meu tempo! A nau da morte chegará, pensa o homem ali sentado. Agora sou marinheiro, mas batizar minha nau de Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry para navegar o Mediterrâneo seria um erro. Le Serpent seria perfeito!

Sentado à mesa, Valéry desenha, rabisca, escreve. Há sobre a mesa, na biblioteca, uma folha solta, onde é possível ver grifada a seguinte frase: “tal como o anel de fumo, todo sistema de energias interiores visa, maravilhosamente, uma independência e uma indivisibilidade perfeitas” (Valéry, 2009, p. 148). Não há tempo perdido, apenas ações para serem realizadas. Presente é o tempo, e ele foge!

— “Límpido” é este instante-madrugada em que medito e o pensamento vaga. Sempre busquei a educação de meu espírito por meio do que pensaram outros espíritos. O que pensaram enquanto pensavam? Segui suas trajetórias de pensamento, sentindo na pele as tensões e prazeres dos espíritos variantes. Vejo agora que não tenho nome, pois não reconheço em mim todos os estados de existência pura, sou um homem, um espírito sem nome. Naufrago em mim, um espírito inacabado, informe.

Valéry levanta, observa fotos amareladas na parede da biblioteca. Ajeita os óculos, esboçando um sorriso… Recorda… Murmura… Sète! Retira a foto da parede e a aproxima de seus olhos; por um instante, entre seus olhos, o vidro e a foto na moldura, algo parece tomar vida… Valéry estremece e diz: Narcisse… Mon Faust!! Valéry volta a sentar…

— O que diriam meus colegas e professores do colégio de Sète ou os do Lycée de Montpellier ao me dizer náufrago? Montpellier, que lástima, não lamento, afirmo! Recordações nada agradáveis, professores afeitos ao terrorismo, estúpidos, insensíveis, medíocres de alma. Lembrar causa-me arrepios! Sem falar na ausência total de imaginação, mesmo com os melhores da classe, como eu, tentativa de ceifar espíritos. A educação naquele “molde” lamentavelmente não tinha nada de agradável, tornando trágica minha adolescência em ebulição. Era preciso desenhar, pintar, escrever versos, navegar por outras plagas, para assim tentar salvar a alma daqueles domingos enfadonhos e exercitar a imaginação.

Minha sorte ou perdição foi que nessa época, ainda em Montpellier, travei amizade com Pièrre Louys, que me apresentou a André Gide. Gide e seus frutos saborosos… Onde estão suas cartas? Gide, um passo definitivo para começar a descobrir tantos outros novos escritores e poetas: Hugo, Gautier, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, Poe e Marcel Schwob. Que espíritos potentes! Permiti-me pensar seus pensares, alinhavar um método para compor trajetórias espirituais únicas. Sim, poderia assim chamar essa busca autoeducativa labiríntica de uma educação em potência, formas fascinantes de espiritografias…

Na escrivaninha, Valéry toma o lápis, desenha labirintos de serpentes (Descartes, Goethe, Mr. Teste) considerando suas mãos… Ao lado dos labirintos, há um par de sapatos no canto esquerdo da folha, com uma seta interrogativa: será que Borges mandara sapatos novos para o meu funeral? Exclama e reflete… Considerei tanto minhas mãos em vida e, enquanto ela se esvai, considero agora meus pés tentaculares, que não sei se caberão nos sapatos que Borges há de mandar… Um par de sapatos novos seria bom para navegar! Valéry respira e segue a escrever em um caderno o que lhe vem ao pensamento, na superfície de seu espírito… Retoma em uma das mãos a foto de Sète.

— Espumas dos acontecimentos, há coisas que não se podem mudar. Ir para Paris e escrever, eis uma decisão acertada. Escrever cadernos que tratam sobre o funcionamento do espírito humano, eis minha missão! O funcionamento do espírito humano que ainda hoje é meu sopro de vida, minha obsessão, meu mar. Escreverei até que embarque na “Le Serpent” e navegue entre anéis de fumo pelo Mediterrâneo. Eis minha sina, meu devaneio. O mar interessa-me, nele navego.

Valéry levanta-se, apaga a luz e sai da biblioteca. Na escuridão do jardim, não é mais possível vislumbrar o caminho estreito que leva à rua, apenas heras molhadas. Valéry quebrou seu protocolo de escrita compositiva diária de 50 anos neste dia, escrevendo à noite, entre 18 e 21 horas, seus Cahiers. Durante a noite, foi possível ouvir vozes vindas da biblioteca, vozes não de um diário biográfico, mas de instantes de vida de um espírito que se examina lentamente, emitindo sons, como a chuva que caía lá fora.

Paul Valéry, como que em um sonho, vislumbra um cais não tão distante, onde Le Serpent se encontra atracada, disponível à navegação. É noite de lua cheia, confirma, olhando o céu e o brilho dela em seus sapatos. Encontra-se na extremidade do mundo. O mar à sua frente como o infinito dos espelhos… “Joga aqui a rede. Eis o lugar do mar em que me encontrarás. Adeus” (Val, 1997, p. 91). Silenciosas tornam-se as palavras, porém um último pensamento acompanha seu espírito…

— “Sou de vidro”!

Agradecimentos

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

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Recebido: 18 de Agosto de 2018; Aceito: 16 de Junho de 2020; Publicado: 02 de Dezembro de 2020

Endereço para correspondência Sandra Mara Corazza, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Paulo da Gama 110, Faculdade de Educação, sala 812 Farroupilha, 90040060 Porto Alegre, RS, Brasil. idalinakrause@yahoo.com.br dionisio.z@gmail.com sandracorazza@terra.com.br

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