A importância da produção do “estado da arte” no estudo da infância e sua educação
A consolidação dos Estudos da Infância no campo das Ciências Sociais tem vindo a constituir-se numa crescente delimitação de uma área específica de estudos que se dedicam, entre outros, à infância e sua educação nos mais diversos contextos, assim como à Educação da Infância, que ocorre em instituições socioeducativas a ela destinadas como creches, jardins de infância e escolas do 1.° ciclo do Ensino Básico. Qualquer uma dessas áreas específicas reclama agora a necessidade e a pertinência de um diálogo disciplinar para apreender e compreender a complexidade dos processos de socialização, nomeadamente os educativos, que envolvem e em que participam as crianças pequenas (Ferreira & Rocha, 2012; 2015; 2016; Rocha, 1999; Rocha et al., 2016).
A visibilidade científica dos estudos da Educação da Infância, que eclode na transição do século XX para o século XXI, compreende-se, para o contexto mundial, numa configuração socio-histórica e política paradoxal. Por um lado, intensificam-se os processos de institucionalização educativa da infância nas sociedades ocidentais contemporâneas, incluindo a pequena infância, assim como o seu carácter compensatório (Rocha, 1999; Rocha et al., 2016; Garnier, 2016; Ferreira & Tomás, 2017, 2018), mas é afirmado o reconhecimento da criança como sujeito de direitos próprios, acentuando-se esta visão nas políticas e nas recomendações internacionais a seu respeito (UNICEF, 2018; CEU - Eurochild, 2019). Por outro lado, a pobreza das crianças e os riscos associados ao seu desenvolvimento não deixam de ser manifestos, e são agravados com práticas culturais e contextos, como os de guerra, que impedem a própria noção de criança “tal como ela deveria ser” (Becchi & Julia, 1998, p. 7) – crianças noivas, crianças soldado, crianças refugiadas, crianças de rua, mortalidade infantil, trabalho forçado infantil, abuso sexual infantil etc. –, a que se juntam outras condições infantis que parecem convergir para “o desaparecimento da infância” (Postman, 1994), como a erotização e a pedofilização das crianças (Felipe & Prestes, 2012). A esta pluralidade dos modos sociais de ser criança, acresce ainda a visibilidade que sobre ela é produzida pelas agências internacionais como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Organização Mundial de Saúde (OMS), pelas Organizações Não Governamentais (ONG), pelos observatórios governamentais e pelos estudos produzidos, nomeadamente, no âmbito académico, entre outros.
A abundância destes trabalhos, e a rapidez dos processos de difusão do conhecimento, conduziram, nos últimos 15 anos, a pesquisas que têm por objetivo o estabelecimento do “estado da arte” ou “estado do conhecimento” (Ferreira, 2002; Rocha; 1999, 2002). Referimo-nos a pesquisas de carater documental, entendendo que esses documentos, podem ser de natureza diversa – arquivos; registos estatísticos, registos de procedimentos oficiais e, ainda, imagens (Silverman, 1993) –, constituindo produtos sociais partilhados e usados de modos socialmente organizados e muito variados, e entendendo que aquelas pesquisas têm em comum os objetivos de: i) fazer a identificação e o levantamento de fontes primárias e secundárias, diversas, como sejam documentos académicos (teses de doutoramento, dissertações de mestrado) e publicações em periódicos, comunicações publicadas em atas de congressos e de seminários; ii) proceder à sua organização, considerando áreas de conhecimento, períodos cronológicos, espaços, formas e condições de produção (Ferreira, 2002; Romanowski & Ens, 2006); iii) analisar e discutir o conhecimento; que perspetivas teóricas foram ou estão a ser mobilizadas ou desafiadas; que dimensões têm vindo a ser privilegiadas em diferentes épocas e lugares, de que formas e em que condições têm sido produzidas certas designações, neste caso das crianças, da infância e da sua educação; e de iv) proceder à sua difusão e divulgação científica e social. Em suma, poder-se-ia dizer que os estudos do “estado da arte”, enquanto modalidade da pesquisa documental, permitem, num arco temporal definido, sistematizar as diversas e as dispersas contribuições de um determinado campo de conhecimento, “indicando possibilidades de integração de diferentes perspectivas, aparentemente autônomas, a identificação de duplicações ou contradições” ” (Soares 1982 citado em Ferreira, 2002, p. 259), reconhecer os principais resultados da investigação, identificar as temáticas e abordagens dominantes e emergentes, bem como as lacunas e os campos inexplorados abertos à pesquisa futura (Ferreira, 2002; Romanowski & Ens, 2006; Ferreira & Rocha, 2012; 2015; Rocha & Ferreira, 2008). O trabalho de fazer pesquisa documental é, então, muito mais do que simplesmente coletar dados e, uma vez que “os documentos não se sustentam” (Atkinson & Coffey, 1997, p. 55) por si sós, importa que sejam estudados como produtos socialmente situados, em função de determinadas finalidades e, portanto, construindo determinadas versões da realidade. Do mesmo modo, porque, frequentemente, muitas das fontes documentais usadas na pesquisa documental, na sua génese e existência, visaram outros fins que não necessariamente os do(a) pesquisador(a) atual, importa que os documentos sejam teoricamente contextualizados num dado quadro de referência para que os seus conteúdos e significados possam ser compreendidos e tornados produtivos.
Ora, o trabalho de construir, em rewind, um olhar panorâmico do “estado do conhecimento” acerca da infância é, também, um trabalho que contribui para “memória futura” pois possibilita reconstruir uma memória da educação, da infância e da educação da infância. Um tal trabalho afigura-se central para o campo da educação pois sendo pluridisciplinar na sua natureza carece de, nas palavras de Charlot (2006)
uma memória suficiente, [sendo que isso] freia o progresso da pesquisa em educação [dado que] refazemos continuamente as mesmas teses, as mesmas dissertações, sem sabermos o que foi produzido anteriormente (…) esquecemos dos debates que aconteceram em décadas anteriores, em proveito dos autores “da moda” [tornando-se] urgente constituir um arquivo coletivo da pesquisa em educação e definir uma ou várias frentes da pesquisa. (pp. 17-18)
Neste sentido, as reflexões suscitadas em torno dos temas problematizados, das dimensões observadas e descritas e suas classificações e designações, na sua presença, ausência ou continuidades ao longo do tempo, são igualmente contributos relevantes para observar a produção de um léxico particular na conceituação da infância e sua educação.
Reportadas a essas considerações acerca da importância das pesquisas documentais em fontes escritas, com vista a identificar o “estado da arte” e a suscitar reflexões que as integram num quadro socio-histórico mais amplo acerca do conhecimento produzido acerca da infância e sua educação, as autoras regressam, neste texto, a trabalhos já realizados por elas e que comungavam dessas mesmas preocupações. Propõem-se então a: i) num primeiro momento, apresentar as fontes observadas e a debater as potencialidades heurísticas, impasses e limitações nessa modalidade de pesquisa; ii) num segundo momento, interrogar o critério de busca – idade; e iii) explorar o repertório de designações encontradas para classificar e ordenar a diversidade das crianças e suas condições biossociais na infância, contribuindo assim para a reconstrução social da infância e da educação das crianças.
As fontes documentais escritas no estudo da infância e sua educação
Embora o uso de fontes documentais possa não ser a opção mais habitual no campo dos Estudos da Infância, a pesquisa documental não é nova. Tal como para outras categorias sociais minoritárias, as fontes documentais escritas (e as não escritas) são um recurso valioso no estudo sobre as crianças e a infância, desde logo porque as crianças, nomeadamente nas mais tenras idades, apesar da sua expressiva multivocalidade, foram e são, inevitavelmente, descritas e ditas pelos adultos investigadores que produzem conhecimentos acerca delas.
Nas sociedades reiteradamente assentes em processos de escrituração e de leitura (Goody, 1987; Chartier, 1990), a escrita e a leitura vêm progressivamente a ocupar a transmissão oral e a formalizar e a descontextualizar a comunicação humana. Associada ao chamado pensamento letrado, aumentado na sua produção e na difusão pela disseminação da aprendizagem dos processos de escrituração e pela invenção da imprensa, a escrita foi e é um dos suportes materiais mais importantes na emergência, formalização, difusão e consolidação de um pensamento específico acerca das crianças. Primeiramente de carácter moral, nomeadamente acerca da sua educação, sob a forma de tratados, por exemplo, e, posteriormente, de carácter científico (medicina, psicologia) e jurídico, os processos de observação e de descrição da realidade infantil e a sua inscrição em textos escritos, perenes, são constituintes da sua construção como categoria geracional específica e conducentes a determinadas conceções de criança tendencialmente universais (Burman, 1994; Turmel, 2008). Ariès (1960) encontra nos escritos dos pais (adultos letrados), acerca da morte das suas crianças, registos escritos associados ao sofrimento da perda, um indicador de que o sentimento da infância estava a mudar, e que a indiferença emocional em relação à morte estaria a ceder à emergência de um sofrimento e inconformismo, denotativos da expressão do afeto pela criança e do processo de individuação desta, em curso. Karl Marx (1818-1883) também fez uso extensivo de fontes documentais e outros relatórios oficiais – Relatórios de Sua Majestade Inspetores de Fábricas feitos entre 1841 e 1867, do Medical Officer do Privy Council, ou relatórios sobre o emprego de crianças em fábricas (Ahmed, 2010) –; todos eles cruciais para denunciar as brutais condições de trabalho em que se realizava a exploração intensiva do trabalho infantil das famílias operárias e para suscitar uma consciência social cujas reivindicações em prol da proteção e da educação das crianças informaram as conceções da criança trabalhadora do século XIX e da criança-aluno no início do século XX (Hendrick, 1997). Mais recentemente, também as pesquisas de André Turmel (2008) em torno de uma História Sociológica da Infância se socorrem de fontes escritas e visuais – inquéritos, relatórios, gráficos, quadros e tabelas – decorrentes da investigação científica sistemática das crianças iniciada por físicos e higienistas do final do século XIX na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, e a que se seguiram as dos pediatras, psicólogos e pedagogos. A análise daquelas diversas fontes permite mostrar como, com as suas classificações, regularidades numérias e tabulações, aqueles profissionais contribuíram para produzir um desenvolvimento sequencial que, a par do raciocínio estatístico, informaram a noção de “normal” e conduziram à reconfiguração da infância moderna. Sendo um dos seus maiores efeitos a construção social da “criança normal”, Turmel (2008) procura mostrar como daí resulta uma forma de padronização pela qual observamos, monitoramos, controlamos e avaliamos as crianças na família e na escola, por exemplo, e, também, uma cultura centrada na criança que se tornou apanágio das sociedades ocidentais.
Como se depreende, as fontes escritas acerca da infância são importantes, e podem ser de diversas e de diversa natureza como já se mencionou. Essa sua diversidade está contemplada neste texto. Há fontes oficiais, como as estatísticas, pois são emitidas por um aparelho administrativo de uma autoridade pública, nesse caso, o Estado. Os documentos que se inserem nessa categoria são instituintes por natureza, “refletindo o olhar que em determinado contexto socialmente definido, a sociedade tem sobre si própria” e constituindo “uma das fontes de observação utilizadas pelos cientistas sociais” (Bacelar, 1996, p. 1-2).2
Nas fontes escritas não oficiais inclui-se a imprensa. Aqui se incluem também as revistas e as publicações periódicas, e essas podem ser de ordem geral ou especializadas. Neste texto, constituem-se fontes documentais, revistas especializadas e jornais, designados, no geral, por imprensa educativa. São fontes que
Devido à sua periodicidade mais lenta, a revista (ou publicação periódica) permite a difusão de textos mais elaborados que podem alcançar um certo distanciamento em relação aos acontecimentos e que podem proporcionar uma reflexão mais fundamental. Por outro lado, (…) graças a regularidade da sua publicação, a revista também se insere na própria corrente das novas ideias, das tendências recentes, das últimas descobertas, e é muito frequente os pontos de vista, tanto políticos e sociais como científicos, surgirem nela antes de serem expostos em livro. (Albarelo, L. et al, 1997, p. 24)
Neste sentido, o pensamento educativo acerca da criança e o seu debate pelos especialistas da infância e da educação, ou seja, a cientifização da educação, nas palavras de Correia (1998), é constitutiva da própria institucionalização da infância moderna. O saber pedagógico, nas suas articulações várias com outros atores e saberes periciais oriundos da medicina e psicologia, fundamentalmente, torna-se mais complexo, e participa, também, da afirmação social e política dos profissionais da infância por excelência: as(os) educadoras(es) de infância e as(os) professoras(es) (Rocha & Ferreira, 1994; Ferreira, 2001).
Nessa categoria documental também se inclui a produção académica sobre as crianças e a infância. A particularidade dessa fonte face às demais é que nela as crianças podem ser ditas por si próprias se os procedimentos de recolha de dados assim o considerarem. Em áreas científicas permeáveis às assunções da sociologia da infância, a ação social da criança e a sua autonomia concetual podem ser consideradas teórica e metodologicamente, sendo a sua voz captada no processo de problematização e de interpretação e compreensão desencadeados pelas pesquisas. Esta outra forma de fazer ciência, não sobre as crianças, mas com elas, é também denotativa da conceção de infância em curso na contemporaneidade, a criança como ator social (Ferreira & Rocha, 2012, 2016). Por conseguinte, a mobilização de cada uma destas fontes para conhecer a infância e a sua educação permite uma apropriação particular e a obtenção de “respostas” parcelares, mas, até certo ponto, interdependentes e complementares, passíveis de responderem a perguntas fundamentais: de que modos contribuem para a construção da categoria infância enquanto categoria biossocial distintiva e universal, mas internamente diferenciada? Quais as dimensões através das quais a infância ou as infâncias, ganham visibilidade social, particularmente no campo da educação?
Acerca da natureza das fontes documentais em análise
A reflexão acerca das virtudes, impasses e limitações metodológicos na pesquisa documental das crianças, da infância e da sua educação em Portugal, realizada pelas autoras, implicou a análise de documentos escritos, mas recenseados em três fontes documentais diferentes e relativos a diferentes temporalidades.
Fontes estatísticas de âmbito nacional. Produzidas no decurso do período que medeia entre os anos de 1875-1925;3 período em que se assiste à constituição definitiva do observatório estatístico nacional, nos campos da demografia,4 da assistência,5 da justiça, essencial no processo de construção de um estado-nação moderno e republicano e em que se assiste às primeiras formulações de política sociais e de justiça para a infância e à criação de instituições de proteção para as crianças e para as mães das famílias pobres (Vasconcelos, 2005).
“Repertório Analítico da Imprensa de Educação e Ensino”. Coordenado por Nóvoa (1993), abrangendo o período de 1818-1989. Esse Repertório Analítico é composto por um total de 530 títulos de periódicos (jornais e revistas), com fichas de análise que descrevem as principais características, o objetivo e o conteúdo do periódico, produzidas por diversos grupos sociais nacionais (pedagogos, psicólogos, políticos, médicos, filantropos) e referentes a todo o país, num período em que se assiste à emergência da infância como problema social e educativo, das instituições e profissões para a infância e sua educação; às primeiras formulações de política educativa para as crianças.
Produção Académica, relativa a dissertações de Mestrado e teses de Doutoramento apresentadas nas Universidades Portuguesas entre 1995-2005, que constam na Base de Dados da Biblioteca Nacional e que permitiram constituir um corpus analítico geral, com um total de 1274 títulos, e, posteriormente, um corpus específico com um total de 147 títulos. Essa produção académica reporta-se a um período da pesquisa em Portugal em que se dá a expansão do ensino superior e da oferta de formação dos graus académicos pós-graduados, em que a permeabilidade à infância e à educação como referentes analíticos privilegiados mais se faz sentir, e em que as perspetivas trazidas pelo novo paradigma da infância também se começam a fazer sentir (Ferreira & Rocha, 2016).
A natureza diferenciada dessas fontes documentais obriga a recuar à sua génese e aos contextos socio-históricos da sua produção para considerar que, enquanto as Estatísticas Nacionais e a Imprensa Educativa se constituíram, no âmbito da investigação, como fontes privilegiadas para a recolha de dados empíricos sobre as crianças e a infância, contribuindo assim para se compreender os processos de construção social da infância em Portugal, nas realidades e condições infantis privilegiadas nessa observação e nos modos produziram um léxico particular para classificar e descrever a diversidades das crianças, já o recurso à Produção Académica como fonte, tinha a particularidade de responder a esse e a outro desígnio inerente à investigação: a identificação e o conhecimento prévio do estado da arte.
Assim, o recurso a fontes como as Estatísticas e a Imprensa Pedagógica permite: i) identificar os principais critérios usados para descrever e classificar as crianças e as respetivas nomenclaturas; ii) observar e avaliar continuidades, mudanças ou desaparecimentos no uso dessas designação ao longo de um dado tempo e a emergência de outras, novas; iii) identificar as áreas disciplinares que tomam as crianças e infância como objetos de estudo e as suas problemáticas; iv) percecionar os principais observadores; v) questionar a presença e a ausência de determinadas realidades das crianças/infância; e vi) obter dados relevantes do contexto de influência e do ambiente socioeducativo e político.
Por seu lado, a Produção académica permite: i) colmatar a necessidade de sistematizar e dar a conhecer os saberes que têm sido produzidos nas universidades, atendendo à sua intensidade e diversidade segundo as várias áreas do saber académico; ii) identificar quais as zonas geográficas, temas e problematizações de maior incidência da pesquisa e as de menor investimento científico; iii) identificar a construção plural de objetos científicos segundo várias matrizes disciplinares e metodologias para os objetos criança, infância e educação; iv) difundir posteriormente o conhecimento obtido, sob a forma de recensões bibliográficas facilitadoras de leituras orientadas segundo a cronologia, campos disciplinares, problemáticas, metodologias, resultados de pesquisa e bibliografias, entre outros. Por outras palavras, o acesso a uma sistematização documental desta natureza proporciona aos investigadores uma visibilidade maior do estado do conhecimento acerca da infância e, com isso, permite antecipar o desenho no campo das investigações pertinentes.
Pode, então, dizer-se que a pesquisa de fontes documentais escritas no estudo da infância representa um trabalho incalculável de atenção e de minúcia para respigar, reunir e sistematizar conhecimento disperso e, muitas vezes, não publicado ou já esquecido, mas de vital importância para a sua divulgação e disseminação social, ou seja, para a transferência do conhecimento. De vital importância, também, para a indagação do estado do conhecimento e, com isso, trazendo aportes à história social das crianças, da infância e de sua educação e à (des)construção da normatividade produzida acerca delas.
Assinaladas algumas das virtudes da pesquisa de fontes documentais escritas, em seguida dedicaremos particular atenção a explorar a opacidade e alguns dos impasses e limitações experimentados em pesquisas documentais por nós realizadas relativas à infância e à sua educação, especialmente quando um dos critérios considerados relevantes foi a categoria idade.
Pesquisa em fontes documentais escritas – lidar com os impasses e limitações metodológicos
Não obstante, a evidência social e intelectualmente construída em torno da infância e das crianças na contemporaneidade, o recurso à pesquisa documental escrita não é isento de impasses, dúvidas e dilemas, muitos deles não previstos inicialmente. Tais situações, sendo igualmente constitutivas da pesquisa, colocam o pesquisador frente a si mesmo, e aos documentos e foco da pesquisa, obrigando-o a ter de lidar com tais contingências e imprevistos, a tomar decisões e acionar estratégias, a ponderar ética e criticamente acerca delas e das suas consequências. Por outras palavras, os problemas metodológicos que se geram nas práticas de pesquisa suscitam a reflexividade em torno da construção teórica e metodológica que preside à escolha dos critérios de busca usados, e em torno dos pressupostos teóricos em que assentam.
Identificado como um dos problemas centrais da pesquisa documental, um dos mais comuns e recorrente, o da deteção das crianças nas fontes por relação com o uso do critério idade, procuramos agora dar conta dos modos como lidámos com os impasses e as limitações metodológicas nas diversas fontes que mobilizámos nas nossas pesquisas.
A idade das crianças e da infância como critério de deteção, seleção e classificação nas fontes documentais
Nas estatísticas nacionais: Demografia, Assistência E Justiça (Portugal, 1875-1925). Na pesquisa em que nos socorremos do uso de fontes documentais como as estatísticas para compreender a construção social da infância, ao percorrermos os campos da Demografia, Assistência E Justiça de forma a detetar onde é que, em cada um deles, se encontravam referências explícitas às crianças por via dos recortes etários e/ou das nomenclaturas por que eram designadas, verificámos que, conforme os campos, as referências explícitas às idades das crianças divergiam. Pela natureza dos fenómenos inerentes aos próprios campos, variava o retrato das crianças porque variava a capacidade dos observadores de as retratarem.
Assim, enquanto nos campos da Demografia e da Assistência se observava um recorte etário muito minucioso, em outros, como a Justiça, o processo é inverso, ou seja, as idades agregavam-se em grandes categorias. No caso da Demografia e da Assistência, a desagregação das idades é tal que pode ir do dia, ao mês, ao ano. Ao mesmo tempo assinala-se a instabilidade desse recorte no aparelho estatístico, dado o problema de não estarem estabilizados os critérios etários de classificação e de organização da informação relativos aos registos de ocorrência dos fenómenos ou de não se subentenderem outros critérios de registo da informação dos fenómenos a não ser a casuística da sua própria ocorrência. Esse problema só é atenuado, por exemplo, no campo da Demografia, a partir de 1917, quando a observação estatística adota um recorte de idades agregado e estabilizado de 5 em 5 anos. No entanto, se essa agregação permite uma leitura rápida e regular do fenómeno, ele perde em densidade descritiva. Assim, se um investigador com o olhar do presente procurar interrogar as estatísticas desse período segundo o recorte de idades que lhe é familiar, ver-se-á confrontado com a necessidade de proceder a agregações de dados a fim de construir uma inteligibilidade acerca dos fenómenos que presidem à observação estatística acerca das crianças. Se esta operação é possível quando os dados estão desagregados, na situação inversa, quando estão agregados, o investigador fica irremediavelmente condicionado às idades tornadas visíveis e condenado ao exercício da inferência e da imaginação sociológica relativamente a algumas idades deixadas na sombra, invisíveis.
Já no campo da Justiça, a lógica de organização começa inicialmente por desenhar-se segundo um grande recorte – maiores e menores de 20 anos. Deste modo, para o período em análise, 1875-1925, o problema irresolúvel foi o de captar as crianças, e o de as captar nas suas várias idades. Aquando da criação da justiça de menores, em 1911, as estatísticas da Justiça passam a dar conta do seu universo oferecendo uma outra visibilidade ao objeto judicial “menor”, mediante recortes mais finos, com início nos sete anos, e que vêm a manter alguma estabilidade no tempo. Em todo o caso, fica claro que os grupos de idade, tal como a estatística da Justiça os constituiu têm a virtualidade de nos fazer compreender que são produto de um trabalho de construção estatística que, no caso concreto, acompanhou a diferenciação interna do sistema de justiça.
Em Portugal, as informações veiculadas em fontes documentais como as estatísticas nacionais revelam a questão social que à época se colocava, o paradigma da ciência dominante em que se inscrevia o conhecimento pericial em curso, a mentalidade e a sensibilidade adultas acerca das crianças e da infância que se afirmavam no âmbito da transição do século XIX para o século XX. Apesar da sua formalização matemática, as estatísticas oficiais não se tratam, portanto, de artefactos independentes da realidade sócio-histórica em que foram produzidas.
Na Imprensa Educativa (Portugal, 1880-1940). No caso da imprensa educativa, o critério idade e o recorte específico a que se referia estavam previamente definidos pela pesquisa em causa – crianças com idades entre os três e seis anos enquanto objeto de intervenção dos profissionais da educação pré-escolar e os saberes requeridos por essa intervenção. Em conformidade com o tipo particular da fonte de que se socorreu (Nóvoa, 1993), a análise dos índices remissivos (cronológicos, temáticos, por autor) constituiu-se num primeiro procedimento para detetar quais as revistas em que havia referência explícita àquelas idades. Ora este foi o primeiro problema encontrado: as referidas idades, até cerca de 1910, estão praticamente ausentes. Isso significa que a pesquisa apenas com base nesse critério, poderia levar-nos a considerar que as crianças daquelas idades não constituíam um objeto educativo suficientemente relevante para aquela época, já que o grande volume de informação se reportava privilegiadamente às idades escolares, dos sete aos 10/12 anos.
Perante este panorama da imprensa educativa, para localizar as crianças das idades pré-escolares (três e seis anos) foi então necessário seguir outras pistas que as permitissem detetar. Na mesma fonte, exploraram-se então disciplinas e contextos relacionados a elas, de modo mais direto (psicologia e pedagogia da infância, instituições de educação infantil e outras) ou indiretamente (assistência social, educação feminina e outras). Essa estratégia revelou-se mais adequada, mas mais trabalhosa e morosa, já que implicou a leitura integral de cada uma das referências bibliográficas a fim de aferir a efetividade da presença daquele recorte específico de idade e as problemáticas associadas.
Em seguida, novos problemas se colocaram em relação à ambiguidade inerente a determinadas problemáticas e suas designações. A título de exemplo, atente-se à designação ensino das primeiras letras que, remetendo para a escolarização das crianças, ora iluminava as idades escolares, e ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, balizados nos sete anos de idade e seguintes; ora denunciava e criticava os malefícios da sua precocidade em crianças de menores idades. Nesse caso, e na confrontação com a escassez ou quase ausência de referências que diretamente se referiam às idades procuradas (três a seis anos), mantivemos como estratégia de pesquisa a observação das mesmas fontes, mas agora alargando o perímetro de referências – palavras-chave – para captar outras informações e ampliar o leque profissional dos autores dos textos publicados – os médicos, especialmente os pediatras. A informação agora encontrada reforçava a importância das idades escolares, dos sete anos em diante, e as problemáticas associadas à medicina escolar, mas dava igualmente a conhecer um novo recorte de idades em que os dois a três anos se começavam a destacar pela sua autonomia funcional (elevada autonomia de mobilidade, progressivo domínio da linguagem oral) e pela perceção adulta do seu potencial educativo – essa descoberta levou à pesquisa inopinada de outras fontes documentais adjacentes produzidas no campo da medicina e à identificação de um discurso médico preocupado com as crianças de idades entre os zero e os três anos.
As estratégias que se foram (re)configurando durante a pesquisa, ora em função dos problemas, ora das pistas encontradas, não invalidam considerar que a ausência de informação em determinada fonte acerca de um determinado objeto de estudo – neste caso as crianças de idades entre os três e os seis anos, não desencadeie e possa vir a constituir-se, em si, matéria de indagação da investigação inicial. A pergunta que então passou a fazer-se foi: onde estão as crianças dos três a seis anos e qual o significado social e educativo de tal ausência? (Ferreira, 2000)
Na produção académica nacional (Portugal, 1995-2005). No caso da produção académica das universidades, em que se procurava fazer um “estado da arte” das pesquisas acerca das crianças, da infância e da sua educação de âmbito nacional, a observação do recorte etário dos zero aos 10 anos foi assumida previamente. Considerando que a primeira visibilidade dessas fontes é dada pelo seu título, o problema com que nos deparámos de imediato, foi o de que a indicação da idade das crianças a que se reportavam as investigações não constava da maior parte dos títulos. Acresceram, ainda, outros problemas do tipo: dificuldades em detetar o recorte etário das idades das crianças em análise quer nas palavras-chave quer em resumos.
Como se depreende, estas sucessivas triagens em busca das informações pretendidas resultaram do diálogo possível com a fonte através do seu título, admitindo-se que houvesse dissertações e teses que, respeitando às crianças dos zero aos 10 anos, e tendo por problemática a educação e/ou a infância, não tivessem sido identificadas por via desses procedimentos.
Por outro lado, fomos também confrontadas com informações que, respeitando a crianças dos zero aos 10 anos, extravasavam a sua relação com o campo da educação – por exemplo, em produções académicas realizadas nos campos da Medicina, Desporto ou da Linguística, Engenharia, Arquitetura, Economia e Gestão etc. Neste caso, e tendo em conta os objetivos da pesquisa, foi necessário aplicar critérios de exclusão aquando a constituição do corpus específico de análise.
Nas produções académicas que, à partida, se enquadravam nos objetivos da pesquisa, a leitura dos resumos e a vaga referência ao universo dos sujeitos abrangidos, por exemplo, do tipo, “uma turma do 4.° ano de escolaridade”, suscitou algumas dúvidas. Se, em muitos casos, para o esclarecimento dessas dúvidas bastou a leitura da caraterização das crianças da tal turma do 4.° ano apresentada no capítulo da metodologia das dissertações ou teses; em outros, a constatação de que essas turmas incluíam algumas crianças com mais de 10 anos gerou novos impasses. Que decisão tomar nesse caso? Respeitar o critério idade tal como foi definido e aplicá-lo liminarmente, excluindo essas produções académicas? Ou relativizá-lo em função de uma compreensão devidamente contextualizada? Se no primeiro caso, a aplicação cega do critério idade excluía da pesquisa a existência de crianças que, eventualmente, tinham sofrido retenções no seu processo de escolaridade, já no segundo caso, essa identificação de crianças com insucesso escolar permitiu ainda perceber que, por vezes, algumas delas pertenciam a determinadas etnias e, por conseguinte, reconsiderar a sua inclusão no corpus de análise. Tratava-se de uma opção não isenta de consequências metodológicas e éticas já que se apenas parcialmente respeitava o critério definido, ao mesmo tempo também tinha a vantagem de expor uma condição da criança-aluno e da criança-aluno-cigano, que de outro modo teria ficado invisível. Essa invisibilidade teria colocado na sombra, ocultando, os processos de seleção e de reprodução social que operam no interior da sala de aula e da escola. Nestes casos, a opção final foi a de incluir estas produções no corpus de análise.
Os vários exemplos relativos aos problemas metodológicos que se geram nas práticas de pesquisa quando se usou como critério de referência a idade mencionada nos vários tipos de documentos, mostram como se trata de um indicador que “ora ilumina”, trazendo luz para certas idades, ora “produz uma sombra”, gerando a invisibilidade de determinados grupos de idade na infância. Com efeito, sendo os documentos produzidos por atores socialmente localizados, eles devem ser apreendidos como apropriações seletivas e parciais acerca da infância e sua educação, incitando o(a) pesquisador(a) a uma reflexividade crítica acerca das fontes.
A idade das crianças e da infância: um critério credível e confiável? Enquanto categoria conceptual, a idade, cujo étimo latino “aetas”, “-atis” remete para “duração da vida, tempo, época, geração”,6 procura traduzir, em termos cronológicos, a sequencialidade, a duração e a irreversibilidade do tempo que assiste à vida humana, desde o nascimento à morte. Assim sendo, na consideração do ser humano como um ser vivo que apresenta um devir em processo, e na necessidade de apreender e dar sentido a essa realidade, classificando a sua diversidade, as chamadas “fases da vida” constituem um modo possível de categorização do curso da sua existência, sendo usual que a infância corresponda à primeira fase, a que decorre do nascimento. Com efeito,
a existência, [e] a vida humana aparecem numa primeira abordagem como um percurso fisiológico de crescimento, depois de decrescimento compreendido entre a conceção (…) e a morte. (…) submetido a uma segmentação linguística e cultural. (Darraut-Harris & Fontanille, 2008, p. 1)
Essas categorizações, enquanto formas de leitura do tempo do organismo humano existentes em todas as culturas, são observadas pelos historiadores, nomeadamente Ariès (1960), quando se interroga acerca da emergência do sentimento de infância. Ou seja, de uma sensibilidade adulta atenta às especificidades das crianças e disposta a respeitá-las, e que irá definir os critérios socialmente distintivos para instituir uma diferença entre os conceitos de crianças e de adultos. Essa explicitação, mediante a atribuição de diferentes papéis e expectativas acerca das experiências de crianças e de adultos, está na base de uma série de conceções de criança e de adultez. Ora, esta ideia de infância como período distinto da idade adulta, com suas particularidades, os seus espaços e atividades, seus hábitos e comportamentos determinados, só pode ser compreendido como resultado de transformações na esfera familiar e da distinção entre os espaços público e privado, que culminaram em novas relações de intimidade e privacidade na família, bem como na esfera pública, com a emergência e a consolidação da escola obrigatória associada à escola de massas e a progressiva retirada das crianças do mundo do trabalho. De acordo com Harven (1995 citado em Silva, 2008, p. 156)
até o início do século XIX fatores demográficos, sociais e culturais combinavam-se de tal modo que as sociedades pré-industriais não procediam à separação nítida ou a especializações funcionais para cada idade. A diversidade de idades entre as crianças de uma mesma família, a ausência da regulamentação de um tempo específico para o trabalho e a coabitação de famílias extensas são apenas alguns dos fatores que, em conjunto, não favoreciam a fragmentação do curso da vida em etapas determinadas.
Será preciso aguardar pelo XIX para observar a progressiva emergência de diferenciações etárias, de especialização de funções e de espaços, atividades e relações associados a cada grupo de idade. A formalização do fracionamento do curso da vida em períodos mais formais, as transições mais rígidas e uniformes entre diferentes idades e a sua cada vez mais clara separação espacial vêm a contribuir para que no século XX se registasse a estabilização de categorias etárias e a sua maior uniformidade interna. A este processo de institucionalização das etapas e idades de vida não é alheia a institucionalização socioeducativa da infância moderna, a que se sucedeu a adolescência e a juventude, nem o papel que aí jogou a produção de saberes periciais no campo da medicina e da psicologia do desenvolvimento (Ferreira & Rocha, 1994; Ferreira, 2000; Huerre, 2000; Turmel, 2008).
Com efeito, não sendo a idade uma categoria conceptual especificamente reportada às crianças, assume, por relação a elas, um significado particular pela forma como, através dela, a infância foi sendo configurada pelo conhecimento científico produzido pelo mundo adulto. Isso significa, antes de mais, que tanto as estatísticas quanto as ciências médicas e psicológicas, enquanto conhecimentos produzidos acerca da mesma realidade social – a crianças –, se integram no programa mais vasto da ciência moderna – nomotética, técnica, objetiva e universal – e das suas aspirações em fornecer bases teóricas e empíricas sólidas, capazes de se tornarem as referências em que assentam os debates e a tomada de decisões em outros espaços sociais. A definição e a adoção de indicadores e critérios comuns para a recolha de dados bem como de procedimentos metodológicos para o seu tratamento uniforme; a sua submissão a cálculos e modelos matemáticos pautados na quantificação para assegurar critérios de objetividade, rigor, fiabilidade e validação da informação; a sua replicação para fundamentarem a sua generalização, constituem expressões centrais de um trabalho de racionalização científica da realidade social e do uso de “indicadores robustos – sexo e idade –, com implicações concretas no caso da infância. Como já referido por Rocha e Ferreira (2000; 2016) na sociedade ocidental, o processo de construção social da infância ou da criança, ao abstrair da imensa heterogeneidade biossocial das crianças concretas – género, idades, etnia, classe social – permitiu classificá-las e ordená-las segundo uma contabilização indexada a uma sequência temporal que se inicia e é assinalada com o seu nascimento e que, atualizada anualmente, proporciona sínteses da realidade social mais facilmente apreensíveis em termos de idades e níveis etários. Daí que, a idade se torne um critério classificatório e um modo de codificação da realidade infantil capaz de introduzir distinções amplas entre gerações – adultos e crianças –, ou cada vez mais refinadas, internamente, entre grupos de idades que traduzem uma série de identidades coletivas ordenadas, desde os/as recém-nascidos/as, aos/às jovens (idem). É esta representação tendencialmente universal da infância que vem a ter a sua expressão mais acabada na Convenção dos Direitos da Criança (1989).
Pode assim dizer-se que nem a conceptualização da infância como categoria estrutural unitária, nem a idade, usada frequentemente como “indicador robusto”, correspondem a dados naturais e culturalmente universais. Desse ângulo, e no contexto de uma cultura científica que se entende em processo e se pretende reflexiva e crítica, abre-se uma brecha que instiga os(as) pesquisadores(as) ao questionamento do conhecimento estabelecido e das múltiplas traduções que processam e interpõem entre a observação da realidade, a sua descrição e a sua representação (James, 2007), e ao esforço e à sensibilidade para passarem a incluir outras possibilidades de descreverem a realidade social das crianças e da infância, porventura mais subjetivas, mas mais informadas empiricamente pelos entendimentos e competências em ação manifestos pelos próprios atores. Ou seja, enfatizando a construção de um outro conhecimento acerca da infância, mais embasado pelas ações levadas a cabo pelas crianças, pelo que fazem, dizem e sentem em contexto, mais aberto à inclusão de indicadores subjetivos de bem-estar das crianças (Ferreira & Sarmento, 2008) o que daquilo que é suposto fazerem e dizerem em função da padronização de idades cronológicas calculadas com base em unidades de tempo mensuráveis a que são reportadas determinadas qualidades substantivas, normalizadas e normalizadoras.
Contributos da pesquisa documental para o estudo da infância e sua educação – as designações
Quando agora se procura compreender as relações que se tecem entre as particularidades das fontes documentais e as classificações e codificações que produziram para apreender, descrever e inscrever a diversidade das crianças e as condições biossociais da infância, torna-se possível apreender uma diversidade de designações com que são reportadas, iluminando umas e deixando outras na sombra, mas todas elas participando na (re)construção sócio-histórica da infância e da sua educação em Portugal.
Assim sendo, nas estatísticas nacionais (Portugal, 1875-1925) era preocupação central localizar as crianças, i.e., indivíduos dos zero aos 20 anos – para nelas identificar e analisar o recorte das frações etárias com que foram sendo aferidas e classificadas, e as designações que lhes foram sendo atribuídas nos campos referidos da Demografia, Assistência, Educação e Justiça. Na Demografia encontra-se a entrada e a saída da vida das crianças expressa em categorias como “recém-nascidos”, “nados vivos”, “nascidos mortos”, “mortos recém-nascidos”, “fetos mortos”, e recobrindo temporalidades que vão desde um dia, a semanas. Já na Assistência, a observação estatística regista, entre outras, um conjunto de designações que expõem socialmente a vulnerabilidade inerente e estrutural das criança: os “expostos”, as “crianças abandonadas”; as “crianças desvalidas”, as “crianças desamparadas”, evidenciando o uso de critérios de classificação relativos à origem social das famílias dessas crianças e a condições de vidas pautadas por incapacidade ou extrema dificuldade para a sua provisão e guarda devidas à pobreza, negligência ou indigência, e a que são associadas, também, as designações os “órfãos”, os “filhos de pais incógnitos”, e a distinção entre os “filhos legítimos” e os “filhos ilegítimos”, expressão de critérios referenciados à conceção e nascimento associado à conjugalidade parental ou à sua ausência. Identificam-se, ainda, outras designações que visam diferenciar e classificar as crianças segundo “anomalias” físicas explicitadas como “cegos de um olho ou dos dois”; os “surdos mudos”; os “idiotas” e “alienados”, que denotam a presença de critérios biossociais e psicológicos por referência a um dado padrão de normalidade.
Também na Educação, a observação estatística discrimina as crianças como “analfabetos” e, como alunos que, na condição de aprendizes, “sabem ler”, “sabem ler e escrever”; “sabem ler, escrever e contar” e os que “têm exame da instrução primária”, dando conta dos diferentes níveis de escolarização preconizados na educação elementar das crianças e dos seus diferentes posicionamentos em função da sua aquisição de conhecimentos. Na Justiça, estão registados os “infratores” que recobrem um naipe de designações em que se destaca a consideração das crianças enquanto especificidade própria e não mais um pequeno adultos em que se distinguem os “menores de idade” e “menores de 7 anos” dos “reclusos menores” e dos “menores punidos com penas correcionais”, e em que os critérios e as causas sócio-psicomorais inerentes a designações como “vadios”; “mendigos”; “desobedientes”; ”incorrigíveis” que estão na origem da sua detenção supõem agora a sua reinserção social e reeducação segundo metodologias mais correcionais e pedagógicas do que punitivas.
Por seu turno, as fontes documentais da Imprensa Educativa (Portugal, 1880-1940), referenciáveis a um determinado contexto social e ideológico e a determinados grupos socioprofissionais, desempenharam um importante papel enquanto espaço intelectual, de difusão e de debate de ideias, correntes, figuras, opiniões e experiências, mas também de influência, denúncia e crítica social acerca da realidade infantil. Os diversos discursos produzidos, oferecem-se, pois como fontes privilegiadas para observar a construção de uma cientificidade psicopedagógica em torno da infância e da proliferação de designações acerca das crianças. As “criancinhas”, “pequeninos”, “crianças pequenas”, “crianças de tenra idade”, “crianças”, enquanto adjetivações variadas do tempo da vida de todos nós, em que após o nascimento se desenrola a nossa existência, supõem, por si sós, um código de leitura do processo orgânico em curso em que noções de grandeza e de maturação sublinham o seu diminuto tamanho e consistência mole e delicada, representando as idades mais vulneráveis também. A produção destas inúmeras designações para apreender a condição biossocial de crianças pequenas e muito pequenas, faz parte do vasto léxico com que a infância, como idade da vida, vai ser apreendida e categorizada na sua especificidade face a outras idades, e na sua diferenciação interna ao longo do tempo. Neste sentido, encontra-se no discurso médico, que é divulgado na imprensa pedagógica, um conjunto de designações que remetem léxico específico da Medicina e da Obstetrícia, em que a fase pré-natal e os seus diferentes estádios diferentes temporalidades pré-natais são reportados: “período de formação intrauterina”, “evolução intrauterina”, “período embrionário”, “período fetal”, “embrião”. O mesmo acontece, depois, em relação a um léxico informado pela Pediatria em que se sucedem as designações de “recém-nascido” e as associadas a determinadas facetas essenciais à sua sobrevivência física ou “período da criação”, como sejam a condição de “lactante”, o momento do “desmame” com a passagem de uma alimentação essencialmente líquida à progressiva ingestão de uma variedade de alimentos sólidos, e em que as mudanças associadas ao momento da “dentição” assumem um papel importante. A gravidade de que se reveste a “mortalidade infantil” das “crianças nos primeiros três anos” de vida definem essa idade como um marco crucial na infância, expressando a sua robustez e resistência física, essenciais na constituição de um corpo saudável. A partir daí, a atenção dos médicos concentra-se nas sucessivas aprendizagens biossociais que as crianças apresentam, com particular destaque para a sua autonomia funcional, motora e comunicacional, “criança que anda (2-3 anos)”, “criança de 3 anos”, “criança que fala”. A importância da “educação física das crianças”, que vem a complementar-se com a ênfase na “educação moral da criança”, define, por volta dos sete anos, a “idade da razão”, que coincide com a entrada na escolaridade obrigatória. A partir de então, tornam-se recorrentes, no discurso psicopedagógico veiculado na imprensa pedagógica, as designações de “educandos”, “alunos”, que assim coparticipam na instituição do novo ofício das crianças – as crianças como alunas (Ferreira, 2000; Rocha & Ferreira, 2008).
Por fim, as fontes documentais que integram a análise da produção académica recente das universidades públicas portuguesas (1995-2005), tinha por objetivo sistematizar e divulgar os saberes ali produzidos acerca das crianças e sua educação (zero a 10 anos) segundo os vários campos disciplinares e as áreas de incidência da pesquisa. Tratou-se de radiografar o estado da arte em Portugal, relativo à investigação da infância e sua educação identificando: i) a construção de objetos científicos e metodologias privilegiadas; e ii) as conceções de infância, de criança e de educação que nesse campo têm sido mobilizadas. Nesta produção académica, e atendendo à pluralidade das áreas científicas,7 a variação das designações encontradas diferenciam as crianças segundo o prisma da observação que adotam, nomeadamente, por referência i) ao ciclo vital – o “embrião”, o “feto”, o “recém-nascido”, o “bebé”, a “criança” etc.; ii) ao desenvolvimento humano - “motor”, “psicológico”, “afetivo”, “moral” etc.; e iii) ao laço familiar – “filho”, “irmão”, “neto”. No que respeita ao campo específico da educação prevalece a referência às crianças na condição de alunos, tendo sido identificado um conjunto de designações como – “alunos”; “alunas”; “aluno do pré-escolar”, “aluno do 1° ciclo”.
Por relação com as instituições destinadas à educação da infância, das creches a Jardins de Infânciae escolas do 1° Ciclo do Ensino Básico, tornadas contextos de vida das crianças e uma “forma estatisticamente normal de estar[em] na nossa sociedade” (Sacristan, 2003/2005, p. 13), a pesquisa revela um conjunto de designações que sublinham critérios relativos à heterogeneidade das crianças que a frequentam, associadas à nacionalidade/etnia – “crianças brancas portuguesas”; “crianças de origem cigana”, “crianças africanas”, “crianças cabo-verdianas”; à experiências institucional – “crianças veteranas, “crianças novatas”; à sua condição biopsicológica e de saúde – “crianças asmáticas”, “crianças surdas”, “crianças hiperativas”, “crianças com sida”, “crianças autistas”, “crianças sobredotadas”, “crianças deficientes”, “crianças NEE”; à sua proteção social e origem geográfica – as “crianças institucionalizadas”, “crianças negligenciadas”, “crianças pobres”, “crianças rurais”; ao seu comportamento e desempenho escolar – “crianças com dificuldades de aprendizagem“; “aluno bem comportado”; “aluno indisciplinado”, “aluno responsável”, “aluno autónomo”; “aluno participativo”; crianças bilingues” (Ferreira & Rocha, 2016).
A identificação dessas designações permitiu dar conta de um conjunto de condições da infância que, na sombra da designação genérica de “alunos”, tiveram a virtude de desvelar e trazer à luz um conjunto de dimensões negligenciadas ou escondidas do ofício das crianças como crianças e como alunas pré-escolares e escolares. A desnaturalização da suposta linearidade atribuída à infância dentro do campo da Educação da Infância contemporânea8 aponta assim para a necessidade de se reconcetualizar e contextualizar as crianças na sua diversidade e desigualdade, muito particularmente. As designações educativas, os ambientes de aprendizagem e as áreas de saber que participam agora da educação escolar desalojam a conceção tradicional de aluno aprendente dos saberes e fazeres básicos – ler, escrever e contar –, estando em curso outra mais complexa segundo a qual o/a aluno/a deverá desenvolver e mostrar-se na mobilização de outras qualidades – espírito experimental, ecologicamente responsável, digital expertise e poliglota –, vistas como essenciais no desempenho de competências assentes num património de conhecimento que antecipa também o perfil do futuro cidadão adulto num mundo globalizado e competitivo. Tal complexidade deixa ainda de sobreaviso em relação à necessidade de se compreenderem esses fenómenos à luz dos efeitos das agendas políticas nacional, europeia e internacional no campo científico nacional (Garnier, 2016; Ferreira & Tomas, 2016, 2017).
Pode assim dizer-se que a produção de designações da realidade infantil, à semelhança do uso do critério idade, deve sempre ser compreendida no âmbito de um enquadramento mais amplo e complexo em que o conhecimento científico é visto como sendo permeável à influência de fatores económicos, sociais e políticos, e às configurações que resultam de tais interdependências às escalas locais, nacionais ou globalizada.
Considerações finais
Qualquer projeto de pesquisa que tenha como ponto de partida a realização do “estado da arte” ou “estado do conhecimento” acerca da temática em causa, faculta que o(a) pesquisador(a) seja capaz de formular perguntas originais e pertinentes, de construir uma problemática teoricamente informada e concetualmente atual na qual referenciar, perspetivar e reinterpretar a análise dos dados de modo a gerar novos conhecimentos. Isso significa que quando se realiza uma pesquisa documental, e muito em particular no âmbito dos estudos do “estado da arte”, há que decidir, em função da interrogação a perseguir, acerca das fontes a explorar e mapear, e sua confiabilidade, acerca do seu recorte temporal e espacial e sua relevância. Essas escolhas, perante o leque de opções possíveis, são essenciais para a compreensão das conceções e práticas presentes em determinados contextos sociais, políticos, económicos, culturais etc., e poderão afetar a pesquisa e os seus resultados em termos da amplitude e da densidade em que incidirá o estudo ou a exploração de uma dada fonte documental. Acrescem, ainda, algumas outras preocupações prévias que devem ser consideradas, relativas aos modos como são identificadas as fontes, os critérios de busca e de seleção a usar, ou a sua exaustividade, como aconteceu com o caso do critério idade, nas análises documentais a que fizemos referência.
E, no entanto, apesar de todos esses cuidados teórico-metodológico e de uma atitude ética avisada, é no momento em que o(a) investigador(a) se dedica, finalmente, às práticas para lidar com esse modo de pesquisa, que muito se joga em termos do conhecimento que será produzido e seus contributos. Ou seja, não há nenhum design de pesquisa, por muito elaborado que se encontre, que seja capaz de antever o seu curso, o processo em ação, e as eventuais vicissitudes e problemas que possam acontecer e as estratégias para os minimizar. Ora, não existindo um método de pesquisa documental claro definido, acresce que é, precisamente, acerca desse processo de tomadas de decisão que muito pouco se sabe porque escasseiam textos em que os(as) pesquisadores(as) se debrucem com igual labor a descrever os procedimentos inerentes ao seu próprio trabalho de pesquisar, e, ainda menos, a interrogá-las, sobretudo quando se trata de retirar da sombra os impasses e as limitações metodológicas com que, reiteradamente, se depararam.
Atribuir estatuto epistemológico a essas situações que escapam às tomadas de decisão que são produzidas intencionalmente e em conformidade com a agenda de pesquisa previamente definida, torna-se uma vertente central e crítica do trabalho de pesquisa documental de fontes escritas, e uma forma de se procurar avançar no esclarecimento dos resultados das nossas investigações, produzindo um conhecimento mais humano – essas as principais preocupações, e pretextos, para a escrita deste texto. Neste sentido, e de entre os muitos dilemas e impasses já vividos aquando da pesquisa documental, debruçámo-nos sobre a problematização do uso da idade como critério para identificar, selecionar e analisar os dados relevantes e para, com base nele, refletirmos acerca das classificações e designações usadas e em uso para descreverem e falarem acerca das crianças e da sua educação.
Retira-se da experiência de campo com a pesquisa documental acerca de fontes escritas diversas que a idade cronológica, embora constituindo um indicador recorrente quando procuramos trabalhar acerca das crianças, da infância e sua educação, não é uma categoria natural nem objetiva, nem um dado imediato da consciência universal. Pelo contrário, é um indicador que foi construído, valorizado e aperfeiçoado no decurso da vida social, devendo, por isso, o seu uso ser cauteloso e devidamente contextualizado. Daí que, não obstante a familiaridade social intelectualmente construída em torno da infância e das idades das crianças, quando o(a) investigador(a) procura localizar as crianças nas fontes documentais referidas, usando como indicador a idade para identificar os modos como aquelas mesmas fontes contribuíram e/ou contribuem para a (re)construção da infância, se depare com um conjunto de problemas ético-metodológicos. A sua consciencialização obriga a entrar em linha de conta com o estatuto epistemológico das próprias fontes bem como com os critérios usados para a sua identificação e seleção, isto é, a entendê-los enquanto produtos “fabricados” pela época e pelos atores que os produziram, e enquanto instrumentos cujo significado heurístico decorre da construção do objeto de investigação, sendo que esse depende das perguntas formuladas pelo investigador e das mútuas interpelações que se possam seguir, como aconteceu com a pesquisa da imprensa educativa e com a produção académica. Consequentemente, apesar das vantagens do(a) pesquisador(a) poder obter um grande volume de dados com relativa rapidez e sem estar presente no campo, ilibando-se da posição de poder influenciar os sujeitos que geraram os documentos bem como a parcialidade desses – “os registos tendem a ser imparciais, pois os documentos são agrupados geralmente para outros fins” (Ahmed, 2010, p. 10) –, a análise documental é sempre limitada, à partida, pela (in)disponibilidade de material, pelos dados ausentes ou incompletos – mesmo quando se trata de uma pesquisa online –, pelas imprecisões nos vieses inerentes aos próprios dados. Daí que, qualquer pretensão em obter uma visão total de um determinado fenómeno social proporcionada por estudos do “estado da arte” seja uma empreitada condenada ao fracasso.
Não está em causa que os estudos do “estado da arte” assentes na pesquisa documental, quando disponibilizada a sua publicação, ajam como ferramentas úteis e mapas de síntese eficazes, por possibilitarem um retrato amplo e célere da realidade. Essa razão é, em si, suficiente para que se sustente a ideia de um reforço da presença de estudos do “estado da arte” acerca da infância e sua educação, nas suas múltiplas possibilidades de instigar à imaginação sociológica para descobrir e explorar fontes documentais menos previsíveis, inusitadas, e à reflexividade metodológica para levar mais longe o trabalho dos dados. Com a consciência do que se perde na objetivação realizada. E, com a consciência de ser necessário prosseguir na busca de camadas de sentido que permitam compreender a complexidade e a diversidade das condições de vida das crianças e a sua subjetividade no campo educativo.