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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.44 no.1 Porto Alegre jan./abr 2021  Epub 20-Jul-2021

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2021.1.32274 

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Aprendizagem e tecnologias móveis sem fio: conexões, problematizações e possibilidades

Learning and mobile technologies: connections, problematizations and possibilities

Aprendizaje y tecnologias moviles inalambricas: conexiones, problematizaciones y posibilidades

Carine Bueira Loureiro1 

Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, RS, Brasil; professora do Instituto Federal Rio Grande do Sul (IFRS), em Porto Alegre, RS, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-3329-2535

Maura Corcini Lopes2 

Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil; professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, RS, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-2419-9208

1Instituto Federal Rio Grande do Sul (IFRS), Porto Alegre, RS, Brasil.

2Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil.


Resumo:

O objetivo deste artigo é discutir e problematizar a disseminação e o enaltecimento da aprendizagem móvel a partir dos conceitos de ferramenta de prática discursiva e de subjetividade. Narrativas digitais produzidas por estudantes da Educação Básica e práticas discursivas mobilizadas pela Unesco constituem a empiria da discussão tecida nessa problematização. As narrativas demonstraram que o uso feito por adolescentes das tecnologias digitais móveis sem fio (TMSF) como ferramenta para a aprendizagem restringe-se a utilitarismo, treinamento e reprodução. Alicerçada nos estudos foucaultianos, a analítica desenvolvida permite afirmar que a exacerbação da ideia de aprendizagem móvel cria condições de possibilidade para a produção de outros tipos de subjetividades, mais participativas e dispersas, ligadas à necessidade de conexão em rede. A este outro modo de subjetividade, denomina-se Homo œconomicus discentis accessibilis, um sujeito que, além de encarregar-se de empresariar a si mesmo, também assume a necessidade de manter-se disponível para acessar e ser acessado.

Palavras-chave: aprendizagem móvel; tecnologias móveis; subjetividade

Abstract:

The aim of this article is to discuss and problematize both the dissemination and praise of mobile learning from the tool concepts of discursive practice and subjectivity. Digital narratives produced by Basic Education students and discursive practices mobilized by UNESCO constitute the empirical basis for the discussion held in this problematization. The narratives have shown that adolescents’ use of mobile digital technology as a learning tool is restricted to utilitarianism, training and reproduction. Based on Foucauldian studies, the analysis has enabled us to state that the exacerbation of the idea of mobile learning creates conditions of possibility for the production of other types of subjectivities, more participatory and dispersed, linked to the necessity of network connection. This other kind of subjectivity is called Homo œconomicus discentis accessibilis, a subject that besides being his or her own entrepreneur also assumes the need to remain available to access and be accessed.

Keywords: mobile learning; mobile technologies; subjectivity

Resumen:

El objetivo de este artículo es discutir y problematizar la diseminación y el enaltecimiento del aprendizaje móvil a partir de los conceptos herramientas de práctica discursiva y de subjetividad. Narrativas digitales producidas por estudiantes de la Educación Básica y prácticas discursivas movilizadas por la UNESCO, constituyen la empírica de la discusión planteada en esta problematización. Las narrativas demostraron que el uso por parte de los adolescentes de las tecnologías digital inalámbricas (TMSF) como herramienta para el aprendizaje, se restringe al utilitarismo, entrenamiento y reproducción. Basada en los estudios foucaultianos, la analítica desarrollada permite afirmar que, la exacerbación de la idea del aprendizaje móvil crea condiciones de posibilidades para la producción de otros tipos de subjetividades, más participativas y dispersas, ligadas a la necesidad de conexión en red. A este otro modo de subjetividad se le denomina Homo oeconomicus discentis accessibilis, un sujeto que, además de encargarse de auto gestionarse empresarialmente, también asume la necesidad de mantenerse disponible para acceder y ser accedido.

Palabras clave: aprendizaje móvil; tecnologías móviles; subjetividad

História 1. Um garoto, aluno do primeiro ano de escola pública de uma capital brasileira, assiste, no celular, a uma vídeoaula no YouTube sobre funções polinomiais. Para o garoto, essa é uma das formas mais eficazes de retomar o conteúdo desenvolvido pela professora na manhã do mesmo dia. Em menos de dez minutos, o conteúdo trabalhado ao longo de dois períodos pode ser recapitulado.

História 2. As mensagens do grupo de WhatsApp “8ª série A” não param de chegar. Algumas meninas enviam as fotos das páginas de seus cadernos em que fizeram anotações do que o professor abordou na sala de aula. Outros colegas do mesmo grupo enviam emoticons para demonstrar surpresa, dúvida, pânico e até coraçõezinhos como referência ao diálogo dos possíveis casais que se formam na turma. Um dos estudantes faz um comentário sobre a camiseta do professor de Geografia. Outro faz repercutir o comentário. Uma dúvida sobre a prova vem em uma mensagem acompanhada por “carinhas de choro”. Mais fotos das páginas de um caderno…

História 3. A mãe chama a atenção da filha, que digita agilmente no celular enquanto deveria estudar para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A menina rebate e explica que está, justamente, estudando para o exame. A mãe não sabe, mas todas as informações do Enem estão disponíveis em um aplicativo para smartphones e tablets. Ao mesmo tempo em que estuda, a garota aproveita para acompanhar as atualizações nas redes sociais e responde às mensagens de WhatsApp, que não param de chegar.

As histórias que abrem este artigo são fictícias, elaboradas a partir de narrativas digitais produzidas por alunos da educação básica – no caso das duas primeiras – e de informações obtidas no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) – história 3. Por meio dessas histórias, temos três objetivos. O primeiro deles, que também é o objetivo deste texto, é problematizar a disseminação e o enaltecimento da aprendizagem móvel a partir dos conceitos de ferramenta de prática discursiva e de subjetividade. Mais do que isso, a reverberação da ideia de que “os dispositivos móveis têm potencial para oferecer diferentes níveis de envolvimento e podem ensejar estratégias diferenciadas para oferecer novas oportunidades de interação dos estudantes entre si e com o professor” (Barcelos, Tarouco, & Berch, 2009, p. 9) mobiliza-nos a pensar as implicações e os desdobramentos que a concepção de aprendizagem mediada por tecnologias móveis produz na educação escolarizada. O segundo objetivo consiste em compartilhar os resultados obtidos com a pesquisa “Aprendizagem mediada por tecnologias móveis sem fio”,3 em que foram produzidas, por estudantes da educação básica, narrativas digitais sobre o uso que aqueles fazem das TMSF como recurso para a aprendizagem. Por meio da investigação supracitada, buscamos conhecer como alunos da educação básica utilizam os dispositivos mobile como ferramenta para a aprendizagem. Em terceiro lugar, com essas histórias, também queremos evidenciar a forma de ser e de estar no mundo própria dos nascidos na primeira década do século XXI, em que as tecnologias portáteis conectadas à internet parecem estar acopladas em seus corpos.

Ao optar por representar os achados da pesquisa por meio de histórias, além de preservar a identidade e os relatos dos participantes, queremos dar ênfase aos tipos de usos das TMSF por estudantes nas práticas escolares. São crianças e adolescentes que consideram “ter a própria cabeça nas mãos e à sua frente, bem cheia, haja vista a quantidade enorme de informações disponíveis” (Serres, 2015, p. 35-36). Conforme narra um dos adolescentes participantes de nossa pesquisa, a “forma online de aprendizado é muito prática e rápida. A compreensão realmente torna-se mais fácil, e ter em mãos os conteúdos me passa confiança”. (Estudante P14, comunicação pessoal, 1 out. 2016) A noção de que o saber está acessível de forma rápida e, muitas vezes, organizada, ilustrada e ao alcance dos dedos produz mudanças e faz com que esses jovens desenvolvam interesses, formas de expressão e de relacionamento diferentes daqueles que eram característicos das gerações anteriores.

Os eixos analíticos – a saber: reprodução de explicações, utilitarismo e treinamento – definidos a partir das narrativas produzidas pelos sujeitos da pesquisa demonstram como a sensação de dispor da informação ao alcance das mãos torna superficial o processo de aprendizagem. Com isso, queremos dizer, amparadas em Biesta (2016), que a disponibilidade instantânea produzida pelo uso de tecnologias mobile conectadas à internet dá a impressão de que a escola tem se tornado supérflua diante de tudo o que pode ser aprendido “online”. Colocado de forma mais específica, o que se quer demonstrar é que o uso que os estudantes fazem das TMSF, essas últimas consideradas por eles para a aprendizagem, destoam dos discursos que propagam a aprendizagem móvel quase como solução para a crise da escola contemporânea. Os eixos analíticos, aliados a práticas discursivas disseminadoras da noção de aprendizagem móvel, constituem o alicerce da problematização aqui proposta.

Assim, pautadas nos pontos aqui elencados, compreendemos que práticas discursivas que enaltecem a mobilidade ofertada pelas tecnologias como diferencial para o processo de aprendizagem produzem outras formas de ser sujeito e contribuem para certo esvaziamento das funções atribuídas à escola e para a superficialidade do processo de aprendizagem. Fundamentadas nos Estudos Foucaultianos, para dar conta da discussão que aqui propomos, dividimos este artigo em quatro secções, a partir desta introdução.

A primeira, dedicamos ao recorte metodológico, onde serão apresentados os conceitos-ferramenta de discurso e de subjetividade, a partir dos quais foi desenvolvida a analítica que sustenta a discussão aqui proposta. A segunda seção é dedicada à ênfase atribuída à noção de aprendizagem (móvel), considerando como tal enfoque promove outras formas de ser sujeito, mais flexíveis, mais em sintonia com a forma de viver neoliberal. Na terceira seção, a partir dos achados da pesquisa citada no primeiro parágrafo, problematizamos os usos das tecnologias pelos estudantes como recursos para a aprendizagem, bem como os discursos que circulam e se constituem em produtores de verdades sobre tais usos. Possibilidades para pensar a aprendizagem mediada pelo uso das TMSF na educação, indo além do uso utilitarista e da busca pela informação, são apresentadas na última seção. Pontuamos, entretanto, que tais possibilidades não devem, em momento algum, ser tomadas como método de ensino, nem como referência ou como qualquer outra coisa que não aberturas para “pensar de outro modo” (Touraine, 2007) a utilização das tecnologias digitais móveis no processo de ensino e de aprendizagem.

O caminho das conexões

Agora o ENEM cabe no seu smartphone e tablet. (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2016)

A educação não se limita ao aprendizado em ambientes formais (por exemplo, escolas), mas inclui todos os aspectos do ensino e da aprendizagem para todos os tipos de alunos – crianças, jovens e adultos. (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco], 2016a, p. 17)

Chamadas como as que abrem esta seção são publicadas com frequência e adquirem cada vez mais adeptos, estejam esses vinculados ou não a instituições de ensino. Assim como o Inep, que divulga o aplicativo para tablets e smartphones como uma vantagem – quase sem precedentes – para estudar para o Enem, a Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco) informa que, “como as pessoas, na maior parte do tempo, levam consigo aparelhos móveis, a aprendizagem pode ocorrer em momentos e locais que antes não eram propícios à educação” (Unesco, 2016a, p. 16). Aprender a todo momento e em qualquer local – eis o princípio da aprendizagem móvel.

A aprendizagem móvel, ou m-learning, assume, na atualidade, a centralidade das discussões quando se trata de tecnologias na educação. Talvez por esse motivo, diferentes esferas, sejam elas pública, privada, de caráter político, pedagógico ou até mesmo comercial, divulgam o que consideram ser os “benefícios da aprendizagem móvel” (Unesco, 2016a, p. 11). Agências supranacionais, como a Unesco, por exemplo, publicou as “Diretrizes de políticas para aprendizagem móvel” (Unesco, 2016a). Em parceria com a empresa Nokia, a agência lançou o documento intitulado “O futuro da aprendizagem móvel: implicações para planejadores e gestores de políticas públicas” (Unesco, 2016b). A Unesco, assim como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), juntamente com empresas do setor privado e do terceiro setor – como a Fundação Telefônica Vivo –, compõem uma rede etnográfica4 que demonstra como essas instituições estão ao mesmo tempo comprometidas entre si e com a propagação das diretrizes que orientam a disseminação da aprendizagem móvel.

Na contramão desses discursos que, ao festejarem a m-learning, produzem o alargamento dos espaços e tempos para a aprendizagem. Neste artigo, argumentamos que, em nome da flexibilidade e da sensação de gerenciamento do próprio tempo, muito mais do que outras formas de aprender, o que está em jogo é o comprometimento dos sujeitos com outras formas de ser e de estar no mundo e, portanto, outras formas de conceber a si mesmos e, também, aos outros. Em outras palavras, os discursos que disseminam a aprendizagem móvel moldam “novos ambientes sociais de modo a constituir novas subjetividades” (Veiga-Neto, 2013, p. 10). Ao analisarmos as narrativas de jovens estudantes sobre o tipo de uso que fazem das tecnologias móveis como ferramentas para a aprendizagem, verificamos que as ressonâncias dos discursos pró-aprendizagem móvel, mais do que a constituição de um sujeito responsável pelo seu próprio processo de aprendizagem, criam as condições de possibilidade para constituição do homo oeconomicus discentis accessibilis (Loureiro & Lopes, 2015), um tipo de sujeito que, além de empreender a si mesmo, precisa ser um aprendiz permanente e estar disponível para acessar e ser acessado.

As narrativas digitais que compõem o conjunto de materiais empíricos que sustenta a discussão aqui desenvolvida foram produzidas em meio eletrônico por 18 alunos do ensino médio de escolas públicas de duas cidades gaúchas – Bento Gonçalves e Porto Alegre. A opção por narrativas deu-se porque essas podem ser “construídas a partir de um conjunto de pontos de vista pessoais e, portanto, podem existir diversas versões da mesma história ou da experiência” (Valente & Almeida, 2014, p. 39). Essa forma de elaboração fornece ao pesquisador uma coleção de escritas de si e, no caso da investigação citada, sobre a relação do aluno com o uso das TMSF e a aprendizagem. Em síntese, a escolha de narrativas está pautada na ideia de que esse instrumento permite ao autor contar sua história a partir da organização de suas experiências. Para o desencadeamento das histórias, utilizamos a seguinte pergunta: “como tu utilizas as TMSF enquanto ferramenta para a aprendizagem?”. O formato digital foi escolhido porque nos pareceu ser o mais adequado para atingir o objetivo proposto na pesquisa, uma vez que permite que os estudantes façam uso de um recurso que lhes é familiar. Por serem digitais, as narrativas puderam ser escritas “a qualquer hora e em qualquer lugar” (Unesco, 2016a, p. 8), bastando que a pessoa dispusesse de um dispositivo móvel conectado à internet, conforme anunciam as diretrizes que justificam a aprendizagem móvel.

As produções dos estudantes foram analisadas sendo entendidas como práticas discursivas. Compreende-se que

as práticas discursivas não são pura e simplesmente modos de fabricação de discursos. Ganham corpo em conjuntos técnicos, em instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e de difusão, em formas pedagógicas que, por sua vez, as impõem e as mantêm. (Foucault, 1997, p. 12)

Dito de outro modo, são “práticas que constituem, medeiam, regulam e modificam (…) as formas como cada pessoa conduz a si mesma e aceita ser conduzida ou conduzir o outro” (Márín-Díaz, 2013, p. 27).

O conceito-ferramenta discurso, entendido “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (Foucault, 2009, p. 55), é utilizado para analisar as práticas discursivas. Além de discurso, outro conceito operativo nesta analítica é o de subjetividade. Ao falarmos em subjetividade, referimo-nos aos “mecanismos pelos quais nos tornamos sujeitos e ao mesmo tempo assujeitados aos outros e a nós mesmos” (Veiga-Neto, 2006, p. 81). Para Foucault, os modos de subjetivação são as práticas que constituem os sujeitos, ou as formas como o indivíduo age sobre si mesmo e se transforma em sujeito (Castro, 2009). Colocado de forma mais específica, a subjetivação diz respeito

aos efeitos de composição e recomposição de forças práticas e relações que se esforçam ou operam para transformar o ser humano em diversas formas de sujeito, que sejam capazes de se constituir em sujeitos de suas próprias práticas, bem como das práticas de outros sobre eles. (Rose, 2011, p. 236)

Assim, por constituírem-se em escritas de si mesmos, entendemos que as narrativas dos estudantes nos permitiram identificar modos de subjetivação produzidos por meio do enaltecimento do uso das tecnologias móveis como forma de promover a ideia de aprendizagem móvel.

Flexibilidade: aprender além do tempo e do espaço escolar

A sedução exercida pela possibilidade de aprender por meio de dispositivos móveis é justificada, principalmente, pela flexibilidade propiciada por tais artefatos. A mobilidade de aprender a qualquer hora e em qualquer lugar é o que atrai e é apresentado como potencial e principal benefício desse tipo de recurso. A constituição de sujeitos flexíveis, ativos e autônomos marca a sociedade da aprendizagem e, como não poderia deixar de ser, essas são as características a serem desenvolvidas pelo indivíduo aprendente (Ensweiler, 2017).

A flexibilidade das noções de tempo e de espaço, uma das principais características da Contemporaneidade quando comparada com a Modernidade, aparece no centro dos discursos que promovem o uso das TMSF para aprendizagem à condição de solução para a formação de sujeitos aprendentes. É importante ressaltar aqui que, com a colocação feita nas linhas acima, não queremos dizer que não somos mais modernos e que hoje nossos modos de viver são outros, totalmente pautados nas relações e nas condições mais fluidas e digitais da Contemporaneidade. Enquanto, na Modernidade, tempo e espaço eram compreendidos como algo rotineiro e linear, hierarquizado e localizável, na Contemporaneidade, tem-se a sensação de que o espaço foi encurtado e de que o tempo foi alongado. Lugares geograficamente distantes um do outro, na atualidade, graças ao advento das tecnologias conectadas à internet, parecem estar cada vez mais próximos. De outra forma, o volume de tarefas que temos de dar conta, diariamente, provoca a sensação de encurtamento do tempo, em contraposição aos tempos de espera, que parecem cada vez mais alongados (Saraiva, 2010). Em suma, a experiência social do espaço e do tempo sob os efeitos das tecnologias da informação foi profundamente afetada, de modo que, na sociedade atual, há cada vez menos lugares, partidas e chegadas, ao passo que há cada vez mais fluxos de informação em tempo real (Corea, 2016a).

O que queremos marcar com a discussão tecida no parágrafo acima é que algumas características adquirem mais ênfase na atualidade, enquanto outras, mais modernas, vão sendo esmaecidas. Esse é o caso da noção de flexibilidade. Contrapondo-nos à solidez moderna, às “formas rígidas de burocracia, e também aos males da rotina cega” (Sennett, 2012, p. 9), cultuamos a flexibilidade, que, ao mesmo tempo em que produz a sensação de adaptabilidade, maleabilidade e liberdade, cria as condições de possibilidade para a produção de “novas estruturas de poder e controle5” (Sennett, 2012, p. 54). “Essa flexibilidade permite que as pessoas estudem durante um intervalo longo, ou durante uma viagem curta de ônibus” (Unesco, 2016a, p. 16).

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que tamanha mobilidade pode representar vantagens relacionadas ao uso das TMSF como ferramentas para aprendizagem, também produz a sensação de que devemos estar sempre conectados, atentos e dispostos a aprender. Expressando de outra forma, ingenuamente cremos que a evolução tecnológica está ao nosso dispor para que não desperdicemos tempo nem oportunidades. Aqui entendemos que essa é uma crença ingênua porque a ideia de flexibilização de tempo e de espaços, de que podemos desempenhar várias tarefas simultaneamente, de que somos adaptáveis, maleáveis, implica a produção de outras formas de ser sujeito, outras subjetividades. A subjetivação flexível (Moraes, 2008), que se opõe à subjetivação dócil, tradicionalmente conferida à educação moderna, talvez seja a mais representativa desse comportamento adaptável e aberto a mudanças, desejável na Contemporaneidade. Tais possibilidades, ainda que pareçam vantajosas, produzem uma sensação de endividamento de cada sujeito consigo mesmo. O homem endividado (Lazzarato, 2011) é o sujeito da atualidade, próprio das sociedades de controle, cuja moeda é valorada pela capacidade de concorrer e competir, bem como pela potencialidade de consumir.

Além da subjetivação flexível e da sensação de endividamento, o culto à mobilidade e à acessibilidade propicia a produção de outras formas de controle e de regulação, provavelmente mais eficazes do que as formas modernas, que eram baseadas na vigilância física e na separação entre dentro e fora, como problematizado por Foucault (2010) ao tratar das sociedades disciplinares. O controle, mais sutil do que a vigilância disciplinar, é operado por meio de máquinas refinadas, que capturam, monitoram, regulam o indivíduo, mesmo a céu aberto (Deleuze, 2010). “O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua” (Deleuze, 2010, p. 228). Nas sociedades de controle, o “homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado” (Deleuze, 2010, p. 228).

Mais do que a evolução computacional, a principal mudança que, para Deleuze (2010), marca as sociedades de controle é a do capitalismo, que traz consigo as modificações que fortalecem a sensação de endividamento provocada nos sujeitos. Dessa forma, não à toa que a aprendizagem móvel, que privilegia a autoaprendizagem e a aprendizagem ao longo da vida, é tão cara a organizações supranacionais, a empresas privadas e, até mesmo, ao poder público. Por esses motivos, entendemos ser um tanto quanto ingênuo acreditar que o advento tecnológico traz apenas facilidades para as nossas formas de ser e estar no mundo. Com isso, não estamos dizendo que não é bom ou que as facilidades proporcionadas pelas tecnologias móveis devem ser evitadas; o que queremos marcar é a necessidade de pensar sobre o que está dado como bom, que parece simples e sempre muito tranquilo. A responsabilização individualizada (Sennett, 2012), quer pela aprendizagem, quer pelo trabalho, faz com que sejam criadas outras formas de controle, muito mais refinadas do que aquelas utilizadas quando exigida a presença física. Os estudantes, assim como os trabalhadores, “trocam uma forma de submissão ao poder – cara a cara – por outra, eletrônica” (Sennett, 2012, p. 68).

Se, na Modernidade, a escola era a instituição responsável pela criação do espaço e do tempo para o ensino e a aprendizagem, na Contemporaneidade, é o próprio sujeito, e não mais aquela instituição, que deve assumir a responsabilidade pelo próprio processo de aprendizagem. Ao contrário do que é disseminado, que “a tecnologia móvel torna-se capaz de melhor individualizar a aprendizagem” (Unesco, 2016a, p. 14), a possibilidade de cada indivíduo organizar a sua aprendizagem de forma individualizada não produz mais liberdade, mas aumenta a sensação de endividamento. Ao tomar para si mesmo a responsabilidade pelo processo de aprendizagem, o indivíduo desonera empresas e o próprio Estado da responsabilização e dos investimentos em educação e na qualificação dos seus trabalhadores. Mais do que isso, a aprendizagem individualizada desvincula o sujeito das oportunidades criadas no espaço e no tempo compartilhados coletivamente ao longo do processo de ensino e de aprendizagem que ocorre no ambiente escolar, mais especificamente, na sala de aula. Por esse e pelos motivos que desenvolveremos a seguir, compreendemos que, ao problematizarem-se os discursos que propagam o uso das TMSF para aprendizagem, importa trazer para discussão a importância da escola, como instituição responsável pelo ensino e pela aprendizagem, e do sujeito na centralidade desse processo.

Salas de aula ou tecnologias móveis como espaços e tempos do exercício pedagógico

Com o título desta seção, nossa intenção é discutir a ideia de sala de aula como espaço e tempo destinados para o compartilhamento coletivo de conhecimentos e experiências que, por meio da condução pedagógica exercida pelo professor – que, por sua vez, se utiliza de saberes e de experiência –, produzem aprendizagens. Consideramos que o processo de aprendizagem que acontece nesse tipo de espaço está implicado com a relação que se dá entre os sujeitos que o compartilham. A partir desse entendimento, questionamos a ideia de mobilidade e de individualização reverberada pelos discursos que justificam por essas vias o uso das TSMF como ferramentas de conexão e de interação para o favorecimento da aprendizagem. Esse tipo de apelo, além de contrapor-se à ideia de existência de um espaço e de um tempo coletivos para o compartilhamento de saberes e de conhecimentos, é um tanto fantasiosa. Diferentemente do que se comemora como o principal diferencial das tecnologias móveis, Sibilia (2012) aponta que a conexão promovida por esses dispositivos dificulta o diálogo e as possibilidades de experiências entre os sujeitos, pois cada um se detém em acessar o que lhe convém e quase não há espaço para o diálogo e as trocas de experiências. Nesse sentido, a proposta de aprendizagem em tempos e espaços individualizados “produz um tipo de subjetividade bem diferente daquela que germinava na sala de aula” (Sibilia, 2012, p. 89). Indo além, a “hiperconexão produz desconcentração” (Sibilia, 2012, p. 89).

Os achados da pesquisa mencionada na introdução deste artigo demonstraram que adolescentes fazem uso de seus smartphones para tarefas individuais, repetitivas e muito semelhantes àquelas que representam o estereótipo (negativo) da escola tradicional, tão combatido pelas teorias que criticam o modelo de escolarização moderna. A analítica desenvolvida a partir das narrativas produzidas pelos participantes da pesquisa mostrou que o uso das TMSF como ferramentas para a aprendizagem se restringe à reprodução de explicações, utilitarismo e treinamento. Os estudantes declaram, por exemplo, que gostam “bastante de sites como a Khan Academy, YouTube, e até mesmo o Facebook, que possibilitam o compreendimento e aproximação de diversos assuntos e curiosidades. O celular ainda é o melhor instrumento, por ser prático e estar sempre à mão”.(Estudante B05, comunicação pessoal, 1 out. 2016) Eles dizem que utilizam as TMSF “para fins didáticos e educativos, conversas com colegas em grupos no WhatsApp, acesso de sistemas, PDF, PowerPoint, e-mail, produção, conclusão e desenvolvimento de trabalhos da escola. Para maior entendimento e conhecimento, videoaulas no YouTube”, (Estudante B10, comunicação pessoal, 1 out. 2016) ou ainda, “para estudos pré-provas, utilização de conversores de unidade, curiosidades online, tradutores, baixar arquivos para utilizar em aula pelo sistema acadêmico, aplicativos como Estudos, Passei Fácil, etc., para treinar os conhecimentos”. (Estudante B03, comunicação pessoal, 1 out. 2016)

Ao que nos parece, estamos diante de um paradoxo: por um lado, a mobilidade e a possibilidade de interação e de ampliação dos tempos e dos espaços são enfatizadas como diferenciais e potenciais dos artefatos digitais enquanto recursos para a aprendizagem individualizada. Por outro, constata-se que os nativos digitais fazem um uso bastante restrito desses recursos. Assistir a videoaulas disponíveis no YouTube, tirar fotos dos cadernos de colegas, transferir e descarregar arquivos e “fixar” conteúdos por meio de aplicativos do tipo pergunta e reposta são as principais atividades relacionadas ao ensino e à aprendizagem efetuadas por esses jovens em seus smartphones.

Embora o avanço tecnológico ofereça um extenso e variado cardápio de possibilidades de uso, observamos que o aparato digital é utilizado para a reprodução de práticas há muito conhecidas nas salas de aula. Mais do que isso, ao transferir-se para a videoaula a busca pelos conhecimentos antes partilhados na sala de aula, troca-se a construção artesanal pela produção em série. A interação propiciada pela conexão em rede, conforme demonstrado nas narrativas analisadas, é superficial. Os estudantes trocam mensagens entre si sem se aterem ao que é dito pelos colegas; eles não parecem dialogar, apenas se mantêm em contato. O que se percebe é mais dispersão do que conexão. A conexão em rede possibilita o acesso a uma gama tão grande e variada de informações, de participações e de interações que a sua utilização com fins educacionais se perde sem condução e sem a existência de um código preestabelecido.

Diferentemente disso, a aprendizagem desenvolvida em sala de aula conta com a intencionalidade pedagógica (Ensweiler, 2017) do professor na condução do processo. A intencionalidade pedagógica consiste em uma forma de preservar ou (re)inventar os modos como os alunos podem ser ensinados por, pois essa é uma das marcas específicas que diferenciam o espaço e o tempo escolar daqueles outros – espaços sociais, políticos, culturais, digitais etc. – que, sem dúvida, também oportunizam que os indivíduos aprendam. Dito de outra maneira, assim como um artífice, o professor “sustenta um diálogo entre práticas concretas e ideias; esse diálogo evolui para o estabelecimento de hábitos prolongados, que por sua vez criam um ritmo entre a solução de problemas e a detecção de problemas” (Sennett, 2015, p. 20). Para Biesta (2013),

na situação em que os alunos aprendem de seus professores, o professor aparece como um tipo de recurso e o que é aprendido está sob controle do aluno, a experiência de “ser ensinado por” trata de situações em que se recebe algo de fora que está fundamentalmente além do controle do aluno. (p. 57)

Biesta (2018) explica que a aprendizagem escolarizada está comprometida com um propósito educativo, que envolve três aspectos fundamentais, quais sejam: a qualificação, dos conhecimentos e das habilidades; a socialização, que implica o encontro educativo com culturas e tradições; e a subjetivação, como uma orientação educativa acerca dos estudantes como sujeitos de ações e de responsabilidades, não apenas como objetos de intervenção e de influências. Nesse sentido, a escola tem a função de dar acesso ao “conhecimento, habilidades e caráter” (Biesta, 2018, p. 23) que permitam ao estudante “fazer alguma coisa, seja no sentido estrito de se tornar qualificado para o mundo do trabalho ou para uma atividade ou profissão específica, seja no sentido (…) de se tornar qualificado para a vida nas complexas sociedades modernas” (Biesta, 2018, p. 23).

Com isso, o que queremos mostrar é que as TMSF, como artefatos que não só facilitaram como também, e especialmente, modificaram nossas formas de comunicação, de trabalho, de interação e de estar no mundo, criam uma atmosfera de sedução e de encantamento, dadas as possibilidades de usos que nos proporcionam. No entanto, as TMSF, por si só, não produzem as mesmas condições de aprendizagem que a educação escolar. Veiga-Neto (2007, p. 107) pontua que “a internet pode ser entendida como uma instituição” e que, como tal, produz a “ressignificação do espaço e do tempo”; “na medida em que somos mais ou menos livres para entrar na internet e dela sair, seu funcionamento não depende do sequestro dos nossos corpos, como foi e é o caso da escola moderna”. O autor explica que a internet produz assujeitamentos diferentes daqueles produzidos pela escola, embora funcione “como uma maquinaria educacional” (Veiga-Neto, 2007, p. 108). Não queremos dizer que a conexão em rede não pode funcionar como meio para o processo de ensino e de aprendizagem, mas sublinhar a necessidade de que o sujeito seja “capaz de dizer a si mesmo o que é certo e o que é errado fazer (e não fazer)” (Veiga-Neto, 2007, p. 108) quando conectado com a finalidade de estudar e de aprender algo. Em outras palavras, as práticas pedagógicas comprometidas com a aprendizagem escolarizada, estão implicadas com “um propósito”, ou uma série deles (Biesta, 2016). São esses propósitos que fornecem os subsídios para que o sujeito, por meio da conexão em rede, tenha conhecimento e discernimento para desenvolver aprendizagens online.

Entendemos que seja importante enfatizar que aprender não é uma habilidade natural ao indivíduo – mais do que isso, o processo de aprendizagem está implicado com imprevisibilidade, com compartilhamento de saberes, conhecimentos e experiências, bem como com a possibilidade de que conhecimentos novos sejam adquiridos e agregados ao processo. A partir da discussão desenvolvida por Cristina Corea (2016b), enfatizamos que a aprendizagem móvel, por dar-se em condições diferentes do processo que ocorre sob a condução pedagógica do professor, produzirá conhecimento se o aprendiz se dispuser a colocar em jogo uma série de operações, táticas e saberes que, no caso da educação escolarizada, são operacionalizados pelo professor. De acordo com a autora, o que se percebe, frente a uma tamanha quantidade de informações ao alcance dos nossos dedos, é muito mais uma sensação de vazio e de dispersão do que de aprendizagem de conhecimentos outros, pois a informação só será consistente por decisão e trabalho do próprio usuário.

Desse modo, dispor de dispositivos móveis conectados à rede, embora necessário, não se configura como condição suficiente para que haja aprendizagem de conhecimentos. Tampouco isso é suficiente para que as informações acessadas sejam processadas e conscientizadas pelo indivíduo, pois é preciso tempo para retenção e assimilação da informação; muitas vezes, os registros são necessários, e é esse conjunto de operações que torna possível pensar o pensamento. Assim, ao que nos parece, muito mais do que um equipamento com tecnologia de ponta, velocidade e facilidade de acesso a um infindável número de informações, o que pode tornar a aprendizagem móvel mais efetiva ou não é o compromisso e a disciplina daquele que aprende.

Por meio da análise das narrativas obtidas com nossa pesquisa, observamos que, ainda que milhões de informações estejam ao alcance das mãos – ou dos polegares, como expressa Michel Serres (2015) –, os estudantes demonstraram fazer um uso restrito e superficial das TMSF no processo de aprendizagem. A dispersão é evidenciada nas narrativas, pois se consideram usuários multitarefas nos smartphones, e a conexão à rede limita-se a trocas de mensagem – que, de modo geral, ficam em torno do compartilhamento de imagens e vídeos, relacionamentos sociais e trocas de informações sobre prazos e tarefas. Em outras palavras, o que prevalece é a possibilidade de participar de maneira ativa da rede que se constitui, não importando para isso “a qualidade dos resultados nem a sua transformação em diálogo, experiência ou pensamento: isso dependerá das operações que cada um realize e, para consegui-lo, será preciso estar preparado” (Sibilia, 2012, p. 186).

Nesse sentido, as análises demonstraram que, mais do que a utilização das ferramentas tecnológicas como forma de ampliar informações, assimilá-las e produzir novos conhecimentos, o que importa é a possibilidade de estar disponível para acessar ou ser acessado. Participar da conexão em rede é o que ocupa a centralidade do processo de aprendizagem, nesse caso.

Nossas observações contrapõem-se ao festejo disseminado por discursos mobilizados pela Unesco, OCDE, Fundação Telefônica Vivo etc. com relação à aprendizagem móvel. Em nosso entendimento, pelo menos dois pontos devem ser considerados.

O primeiro deles refere-se aos interesses mobilizados por meio das agências supracitadas. Elas impelem cada vez mais esforços no sentido de movimentar e de difundir a racionalidade neoliberal. Suas práticas discursivas estão implicadas com a produção de sujeitos comprometidos com o neoliberalismo, que se constitui em um conjunto de discursos, práticas e dispositivos que tem na concorrência o motor para a condução das condutas e no modelo da empresa a forma de subjetivação (Dardot & Laval, 2016). Desse modo, cada um de nós deve se tornar um “empreendedor potencial”, um ser “à procura de qualquer oportunidade de lucro (…) graças às informações que ele tem e os outros não. Ele se define unicamente por sua intervenção especifica na circulação de bens” (Dardot & Laval, 2016). Em outras palavras, os indivíduos tomam para si a responsabilidade de gerar seu próprio trabalho, caso isso seja necessário, e assim desonerar o Estado das suas obrigações com políticas sociais, assistencialistas, para a educação, saúde, geração de empregos etc.

O segundo ponto a ser evidenciado é a compreensão de que falta para os alunos, com relação à utilização dos dispositivos mobile para aprendizagem, a condução pedagógica do processo, justamente aquilo que as práticas discursivas, ao propagarem a ideia de aprendizagem móvel, reverberam como vantagem em relação ao uso das tecnologias. Com isso, compreendemos que, mais do que outra forma de aprender, a ideia de flexibilidade fomentada pelo uso das TMSF como ferramentas para aprendizagem está imbricada com a produção de um outro tipo de sujeito, o homo œconomicus accessibilis (Loureiro & Lopes, 2015). O homo œconomicus concebe a si mesmo como uma empresa (Foucault, 2008). Sua subespécie, o homo œconomicus accessibilis, além de comportar-se como uma empresa, assume para si mesmo a necessidade de estar (sempre) disponível para acessar e para ser acessado, não sendo característicos do seu comportamento a concentração e o foco em uma única atividade. Noguera-Ramírez (2011), ao ler a Modernidade pelo viés da educação, mostra que a virada do século XIX para o XX é marcada pela constituição de um tipo sujeito, denominado por ele de homo discentis. Uma nova forma de subjetivação que produz um tipo de sujeito cujas características são a “responsabilidade pessoal e a autogestão dos próprios riscos e do destino” (Noguera-Ramírez, 2011, p. 16). Para nós, na Contemporaneidade, além de um aprendiz permanente, o homo discentis é também um sujeito flexível, empreendedor, acessível. O que importa para esse tipo de sujeito é participar, expressar sua opinião sem nenhum tipo de regulação ou proibição; não são estabelecidos códigos, apenas fluxos de informações (Corea, 2016b). Com isso, o modo de subjetividade produzido pela disseminação da aprendizagem móvel, a do homo œconomicus discentis accessibilis, em vez de provocar e de potencializar outras formas de pensar, promove a participação ilimitada dos sujeitos no âmbito da opinião. Além disso, esse tipo de subjetividade favorece a ampliação e o fortalecimento das possibilidades de controle, pois, quanto mais indivíduos conectados à rede, maiores são as chances de exercícios de controle.

Conclusão e algumas possibilidades

Neste artigo, ao problematizarmos a temática da aprendizagem atrelada à ideia de mobilidade propiciada pelas TMSF, nosso propósito foi problematizar a disseminação e o enaltecimento da aprendizagem móvel a partir dos conceitos ferramenta de prática discursiva e de subjetividade. A partir dos desdobramentos da pesquisa citada na introdução, também problematizamos o tipo de uso que estudantes da educação básica fazem das tecnologias móveis enquanto ferramentas para a aprendizagem.

No primeiro caso, das práticas discursivas que disseminam a ideia de mobilidade tecnológica como recurso para a aprendizagem, procuramos ressaltar que habilidades como a flexibilidade, funcionam como diferencial para a lógica empreendedora que pauta na lógica econômica as relações sociais, de trabalho e educacionais. Tais habilidades, como a flexibilidade, estão imbricadas com a constituição de sujeitos que assumem para si mesmos a responsabilidade pelo processo de aprendizagem. Assim, são reconfiguradas as funções docentes e discentes e, por conseguinte, o espaço e o tempo destinados para o ensino e a aprendizagem antes conferidos à educação escolarizada. Por esse viés, em defesa do tempo e do espaço escolar para o desenvolvimento do processo de ensino e de aprendizagem, desenvolvemos uma analítica acerca do uso limitado das TMSF por estudantes como ferramentas para a aprendizagem.

Os achados da pesquisa, para nós, demonstram que é necessário tensionar os discursos que propagam a ideia de aproveitamento de qualquer tempo e espaço para a aprendizagem viabilizada pelas tecnologias móveis. Mais do que isso, no nosso entendimento, soa quase paradoxal tamanho enaltecimento das tecnologias digitais móveis como recursos para a aprendizagem quando o uso de tais artefatos fica restrito à reprodução, ao utilitarismo e ao treinamento. No cerne das duas práticas analisadas, tanto no que se refere aos discursos que enaltecem a aprendizagem móvel, quanto no que diz respeito ao tipo de uso que estudantes fazem das tecnologias para a aprendizagem, o que se percebe é a produção de outro tipo de subjetividade, que não é mais a pedagógica, constituída pela escola moderna, mas um aprendiz permanente, que antes de tudo é um empreendedor de si mesmo e que a sua condição de aprendizagem, na atualidade, está condicionada a sua capacidade de estar disponível para acessar e ser acessado. O que está em jogo, portanto, é a produção do homo oeconomicus discentis accessibilis, que deixa para trás a solidez do conhecimento e embarca na fluidez e na dispersão da informação.

Em contraposição à dispersão produzida por meio da acessibilidade à informação de forma aleatória, entendemos que a intencionalidade pedagógica pode privilegiar o ensino e a aprendizagem de conhecimentos, bem como o compartilhamento de saberes que estão além do acesso à informação. Nesse cenário, a condução exercida pelo professor pode potencializar e promover o uso adequado das TMSF no processo de aprendizagem. Com isso, não estamos propondo uma volta ao passado, o que não faria nenhum sentido; o que queremos marcar é que nada é tão tranquilo quanto parece. Mais do que um recurso que agregue outras possibilidades para o processo de aprendizagem, o que se tem visto é o esvaziamento desse processo, a tal ponto que, talvez, nos restem apenas dados isolados e sem sentido. Indo além do treinamento por meio de aplicativos de perguntas e respostas, o que se espera é que existam mais possibilidades de pensar o que está dado como pronto na máquina, mais possibilidades de criar imagens, em vez de somente acessá-las.

Em síntese, o que se propõe com este texto, além de problematizar a exacerbação do uso das TMSF como ferramentas para aprendizagem, é que a intencionalidade pedagógica protagonize a utilização das tecnologias móveis como ferramentas de auxílio e de complementação do processo de ensino e de aprendizagem. As possibilidades de uso das tecnologias para a aprendizagem são, sem dúvida, inúmeras. No entanto, colocar tamanha responsabilidade nas mãos dos adolescentes e esperar que eles façam um uso adequado, proveitoso e focado na busca de conhecimentos outros talvez seja até mesmo um pouco perverso para com eles. Para “pensar de outros modos” e além dos discursos que massificam o uso das TMSF para a aprendizagem, propomos que nós, professores, a partir dos saberes que utilizamos na condução pedagógica da aprendizagem, criemos práticas para uma utilização consistente, criativa e inovadora dos recursos tecnológicos no processo de ensino e de aprendizagem. Por esse viés, repensar a própria condução pedagógica também parece ser necessário, pois, quando os conhecimentos desenvolvidos em sala de aula são facilmente reproduzidos e acessados em videoaulas no YouTube, é importante que o espaço e o tempo escolar sejam utilizados para experiências que não são (ainda) reproduzidas na internet. Entendemos, portanto, que a utilização de TMSF como ferramenta para a aprendizagem não exclui a necessidade de uma série de propósitos, próprios das práticas educativas, que estão presentes na condução pedagógica. Mais do que disponibilizar e fomentar o acesso a dados e informações, é fundamental que os estudantes sejam formados no contexto de um propósito educativo. O que defendemos é a aprendizagem escolar comprometida com o propósito educativo promove subjetivações em que os estudantes constituam a si mesmos como sujeitos de ação e responsabilidades.

3Pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Matemática e Tecnologias (GEPEMAT/CNPq/IFRS).

4Por meio de uma pesquisa realizada em 2016 (Edital PIBIC/CNPq), na qual foi utilizada e metodologia da etnografia de rede (Howard, 2002), foi possível compor uma rede que demonstra o quanto diferentes instituições estão imbricadas entre si e com a necessidade de propagar a ideia de aprendizagem móvel.

5Deleuze (1992) retoma o termo sociedades de controle, utilizado por Foucault, para referir-se a esse momento em que os meios de confinamento, como a escola, a prisão e a fábrica, estão em crise; trata-se de um tempo que não é mais regido plenamente pelas formas disciplinares de vigilância, mas cada vez mais pelas formas de controle.

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Recebido: 19 de Outubro de 2018; Aceito: 20 de Janeiro de 2021; Publicado: 21 de Junho de 2021

Endereço para correspondência Carine Bueira Loureiro, Instituto Federal Rio Grande do Sul, Rua Coronel Vicente, 281, Centro Histórico, 90030-041, Porto Alegre, RS, Brasil

Maura Corcini Lopes, Universidade Federal do Vale do Rio dos Sinos, Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93022-750, São Leopoldo, RS, Brasil

loureirocarine@gmail.com

maura@unisinos.br

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