As mudanças das últimas décadas trouxeram à sociedade portuguesa uma maior diversidade de sujeitos e de línguas e, neste âmbito, um incremento de contactos interculturais. Este fenómeno transpôs-se, obviamente, à escola que é um espelho da sociedade.
Neste quadro e tendo como premissa a diversidade linguística e cultural (DLC) dos contextos escolares, pretendemos analisar de que forma sete estudantes de mestrados profissionalizantes, da Universidade A (U-A), em Portugal, e simultaneamente estagiárias em escolas básicas na cidade A, desenvolveram o seu estudo empírico, estudo esse conducente ao relatório de estágio, ou mais genericamente, ao relatório de mestrado.3 São estes mestrados profissionalizantes que vão conferir habilitação para a docência.
Contextualização social e académica: da sociedade à escola
Na sociedade
Nas últimas décadas, as sociedades tornaram-se mais fortemente multiculturais. Fenómenos como a globalização, os fluxos migratórios, algumas situações de refúgio, a livre circulação de pessoas na Europa Comunitária, até há pouco possível (algumas fronteiras, entretanto, foram repostas por questões de segurança), contribuíram para o aumento dessa multiculturalidade.
Portugal, país de regime “misto” (dado ser simultaneamente recetor e emissor de migrantes), desde sempre foi um país multicultural, considerando a população das ex-colónias portuguesas de África, da Ásia, da América (Brasil) e a miscigenação daí resultante, para além da própria composição da população portuguesa (ciganos, judeus, mestiços e descendentes de negros4) e, ainda, dos estrangeiros residentes que até à Revolução de Abril de 1974 representavam uma pequena percentagem. Sobre estes últimos, na primeira metade do século XX, salientavam-se os ingleses, franceses e alemães que se dedicavam à indústria mineira ou à exploração do vinho do Porto ou, simplesmente, instalavam-se em Portugal atraídos por um clima ameno. É de realçar ainda a presença de espanhóis (Rocha-Trindade, 1995), fugidos à guerra civil, assim como de alguns galegos,5 procurando melhores condições de vida em Portugal.
Relativamente a 2017, o último Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo (RIFA), publicado, em 2018, pelos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), apresentava 421.711 cidadãos estrangeiros com título de residência válido,6 equivalendo este número a um aumento de 6% em relação ao ano anterior. Trata-se do segundo ano consecutivo de aumento do número de estrangeiros legalizados, fenómeno que veio contrariar as estimativas anteriores a 2016. De facto, desde 20057, com o início da crise económica em Portugal, muitos imigrantes foram deixando o país, embora essa tendência tenha sido mais acentuada nos estrangeiros chegados no início do milénio (por exemplo, os cidadãos provenientes das ex-repúblicas soviéticas) e não tanto os imigrantes dos países de língua oficial portuguesa. No entanto, devemos explicitar que uma parte substancial de estrangeiros que deixaram de constar nos relatórios do SEF, teve acesso à nacionalidade portuguesa.
O RIFA, de 2018, referente a 2017, destaca as dez comunidades estrangeiras mais representativas em Portugal. Acrescentamos, na Quadro 1, a comparação destes dados com o número de cidadãos estrangeiros residentes em 2016 (SEF, 2017).
Posição | País | Nº de cidadãos com título de residência válido | Comparação com o ano 2016 |
---|---|---|---|
1a | Brasil | 85. 426 | + 5,1% |
2a | Cabo Verde | 34.453 | - 4,4% |
3a | Ucrânia | 32.453 | -5,9% |
4a | Roménia | 30.750 | +1,1% |
5a | China | 23.195 | +3,1% |
6a | Reino Unido | 22.431 | + 15,7% |
7a | Angola | 16.854 | - 0,8% |
8a | França | 15.319 | + 35,7% |
9a | Guiné-Bissau | 15.198 | - 2,9% |
10a | Itália | 12.925 | + 51,6% |
Este novo aumento de estrangeiros deveu-se, segundo o SEF (2017, 2018), a dois tipos de fatores: a atratividade, dado que Portugal é visto como um país seguro, mas também as vantagens fiscais decorrentes do regime para o residente não habitual. Estes fatores tiveram principal impacto nos cidadãos oriundos da União Europeia: Reino Unido, França e Itália, este último em 10º lugar, lugar ocupado pela Espanha, em 2016. Veja-se o aumento significativo de cidadãos italianos, de mais de 50% do que no ano anterior.8 Em muito menor escala, encontramos também algumas nacionalidades do continente asiático, em particular da China.
Nesta segunda década do século XXI, dentro do continente europeu, não podemos esquecer o enorme drama dos refugiados (sírios, afegãos, egípcios, somalis, nigerianos, entre outros; Costa & Teles, 2017; Nogueira et al., 2017) que fugindo de guerras, de intolerância religiosa, de instabilidade política e do terrorismo, se encontram em situações humanitárias gravíssimas, porventura as mais graves depois da II Guerra Mundial.9 Na Europa terão entrado entre 2015 e 2016 um milhão e meio de refugiados, por terra e por mar. A Europa tem tentado encontrar formas de os receber, responsabilizando os países europeus pelo seu acolhimento, através de um sistema de quotas. Portugal, desde logo, foi solidário com esse projeto; a quota proposta pela Europa correspondia a 2.500 pessoas, mas Portugal disponibilizou-se para receber até 10.000. No entanto, os números disponíveis ficam, por enquanto, muito aquém do pretendido: Nogueira et al. (2017) apontam 379 refugiados, em junho de 2016, em território português. Segundo os dados oficiais do SEF, referentes a 2017, houve um acréscimo significativo do número de pedidos de asilo face ao ano anterior (+19,1%), registando-se 1.750, com o reconhecimento de 119 estatutos de refugiado e a concessão de 381 títulos de autorização de residência por proteção subsidiária (SEF, 2018, p. 39).
Neste contexto sociopolítico mundial, em que as sociedades se tornaram plurais e espelhando a escola essa pluralidade, o Ministério de Educação português tomou consciência de que Portugal não era um país monolingue. Ilusório o facto de se ter pensado que alguma vez o foi. Basta pensar no romani-caló, língua da comunidade cigana na Península Ibérica, que se instalou, possivelmente, no século XV, e o mirandês, língua asturo-leonesa em território português, só reconhecida oficialmente em 1999.
Na escola
Perante tanta diversidade na sociedade e, necessariamente, na escola, em 2001, o Ministério da Educação publica um Decreto-Lei que reconhece o português como língua segunda para os alunos do EB10 que não o têm como língua materna (LM) e atribui às escolas a responsabilidade de proporcionar atividades curriculares para o efeito (Decreto-Lei nº 6/2001, de 18 janeiro, artigo 8º). Na sequência, há uma vasta legislação linguística que se estende também ao ensino secundário (10º-12º anos) e muita documentação de apoio aos alunos de Português Língua Não Materna (PLNM), designação que o Ministério começa a usar, sensivelmente, a partir de 2005, substituindo língua segunda. PLNM recobrirá situações e contextos mais diversificados de aprendizagem do que língua segunda, começando esta a designar, sobretudo, o caso de imigrantes dos países africanos onde o Português é língua oficial, mas não é maioritariamente língua materna; será, portanto, segunda língua, em termos de aquisição.
Nesses documentos há uma grande inspiração do Conselho da Europa. Citemos o Quadro Europeu Comum de Referência11 (QECR) (2001a) e o Portefólio Europeu de Línguas (2001b), publicados pelo Ministério da Educação português, na sequência da publicação dos documentos originais, com os mesmos títulos, pelo Conselho da Europa, em 2001, Ano Europeu das Línguas. O Ministério da Educação traduziu e adaptou estas duas publicações para o contexto português, salvaguardando as premissas e os ideais da Europa: reforçar a unidade do continente, proteger a dignidade dos cidadãos, defendendo o respeito pelos valores fundamentais, como a democracia ou os direitos do homem, tomar consciência de uma identidade cultural europeia, mas, também, desenvolver a compreensão mútua entre os povos de culturas diferentes.
Em termos de ensino da LP, são utilizados no sistema educativo português os níveis de proficiência linguística propostos por estes documentos europeus (e supostamente comuns aos outros países da Europa), com ligeiras adaptações12: Iniciação (A1, A2), Intermédio (B1), Avançado (B2, C1) para o EB (Despacho Normativo nº7/2006, de 6 de fevereiro) e para o ensino secundário (Despacho Normativo nº30/2007, de 10 de agosto).
Na sequência da vasta legislação linguística e dos materiais de apoio aos alunos de PLNM disponibilizados pelo Ministério da Educação, durante mais de uma década, houve necessidade de fazer um balanço da situação nas escolas. Desta forma, foi encomendado um estudo a um grupo de investigadores, liderado por Madeira (2014). Este estudo tinha como propósito proceder a uma avaliação do impacto do PLNM nos ensinos básico e secundário, relativamente à aprendizagem da LP e ao aproveitamento dos alunos de PLNM. Decorreu em 2011/12 e 2012/13, em Portugal Continental, tendo sido usados como instrumentos de recolha de dados um questionário enviado às escolas de que resultaram 360 respostas válidas num total de 467 respostas e, posteriormente, algumas entrevistas. Foram identificadas 95 nacionalidades de alunos, com 76 línguas diferentes, sendo o crioulo cabo-verdiano, o crioulo guineense, o ucraniano e o romeno as línguas mais frequentes, sobretudo no EB.
As conclusões principais apontam para uma grande diversidade de procedimentos adotados em relação aos aprendentes de PLNM, pelas condições específicas de cada Escola; falta de formação específica em PLNM dos docentes e desconhecimento dos documentos orientadores, assim como dos materiais existentes; dificuldade em implementar orientações e medidas de PLNM, por insuficiência ou inexistência de recursos docentes nas escolas (exemplo: inexistência de horário para assegurar apoios adequados); distribuição assimétrica da população escolar de PLNM pelo país, o que conduz a que zonas com menos alunos estrangeiros tenham menos condições para que se constituam grupos de apoio a alunos não nativos nas Escolas.
Contextualização académica dos mestrados profissionalizantes
Os mestrados profissionalizantes (Mestrados em Ensino de …) criados ao abrigo do Decreto-Lei nº 43/2007 e, mais recentemente, do Decreto-Lei nº 79/2014, conferem habilitação profissional para a docência, mediante à realização de várias unidades de crédito (UCs13), num total de 120 ECTS (European Credit Transfer System), e a defesa pública de um relatório de estágio.
Estes mestrados têm, no presente, a duração de quatro semestres. Atualmente, na U-A, o 1º ano (1º e 2º semestres) destina-se às UCs da área da docência (especialidade), das ciências da educação e das didáticas específicas; os últimos dois semestres são destinados à Prática Pedagógica Supervisionada e ao Seminário de Orientação Educacional (anuais)14. Neste segundo ano, o mestrando realiza ainda duas UCs opcionais, semestrais, uma da área da didática e tecnologia educativa e uma outra da área das ciências da educação. Havendo uma ligação muito estreita entre a Prática e o Seminário, o mestrando vai elaborando, através destas duas UCs anuais, o seu relatório de estágio. Na U-A, e no âmbito do Seminário, constrói o enquadramento teórico e metodológico e desenha as atividades a implementar na escola onde estagia. Será deste percurso que resultará o relatório final de mestrado.
Pretende-se que haja uma articulação muito estreita entre a prática pedagógica e o seminário, como já referido. Na prática pedagógica, que se realiza em escolas da cidade ou dos arredores, o mestrando, futuro docente, desenvolve competências profissionais, observando as aulas dos orientadores-cooperantes15 e fazendo intervenções pontuais nas turmas destes, numa perspetiva reflexiva (Alarcão, 2001, 2006 16); por outro lado, implementa o seu projeto, realizando algumas atividades com os alunos na turma onde estagia; concilia, portanto, o papel de docente e de investigador (Alarcão, 2001). No Seminário, na Universidade, perante uma problemática, normalmente advinda da Prática, escolhe o tema e fundamenta-o teoricamente (1º semestre do 2º ano), assim como concebe o desenho metodológico do projeto, a sua justificação e a sua implementação (2º semestre do 2º ano) nas referidas escolas. Quando o ano académico termina, em junho, o relatório estará numa fase final, podendo ser entregue nessa altura e defendido até final de julho, ou na 2ª época, em final de outubro, para ser defendido, em provas públicas, até dezembro. É evidente que os constrangimentos temporais e situacionais são bastantes, uma vez que os estagiários, mestrandos, apenas têm um semestre para a implementação do seu projeto, numa turma que não é sua, mas do orientador-cooperante, dispondo ainda de um número muito reduzido de aulas para o efeito.
Os estudos
Nesta secção, pretendemos caracterizar e analisar os estudos desenvolvidos em sete relatórios de estágio, no quadro de dois mestrados: seis em ensino do 1º e do 2º ciclos do EB (CEB),17 um (Relatório 7) em educação pré-escolar e em ensino do 1º CEB (ver Anexo). Destes sete relatórios, três focam o 1º ciclo (Relatórios 3, 4 e 7) e quatro o 2º ciclo (Relatórios 1, 2, 5 e 6).
A escolha destes sete Relatórios (cf. Anexo) fundamentam-se no facto destes terem sido desenvolvidos:
no âmbito do Seminário de Orientação Educacional, cuja temática norteadora era uma abordagem ao PLNM;
em Mestrados em Ensino nos primeiros anos de escolaridade;
no eixo cronológico de 2012 a 2017, correspondendo aos diferentes anos letivos em que a temática do PLNM foi oferecida, na UC Seminário.
Os estudos em análise inserirem-se na área da educação em português, por outras palavras, num campo que ultrapassa o espaço da sala de aula, porque estabelece ligações com a sociedade plural, sendo a LP o verdadeiro elo de aproximação e de integração dos sujeitos-aprendentes. Outro aspeto a realçar é o facto da sua implementação ter ocorrido durante a Prática Pedagógica, com a preocupação de que nem todos os alunos são portugueses e de que é necessário promover e valorizar as línguas e culturas da turma e da Escola, para uma apropriação mais eficaz e harmoniosa da LP.
Metodologia e análise dos Relatórios
Para caracterizar e analisar os Relatórios, identificámos os seguintes aspetos: (a) temáticas; (b) opções metodológicas (objetivos, tipo de estudo, natureza da investigação, instrumentos de recolha de dados e alguns tópicos de análise); (c) resultados e contributos para a educação em português.
Temáticas
As temáticas destes Relatórios podem ser agrupadas em duas linhas: por um lado, as representações de alunos do EB português sobre alunos estrangeiros e/ou sobre a DLC (1, 2, 7) e, ainda, sobre as variedades de LP e seus falantes (4), por outro, uma aproximação à língua (3,5,6), – a lexicultura lusófona, as dificuldades linguística e a escrita de memórias.
As temáticas, obviamente, estão intimamente ligadas às opções metodológicas, em particular aos objetivos, pelo que passemos, de imediato, a este ponto.
Opções metodológicas
1.Objetivos
Para uma tipologia dos objetivos dos Relatórios, identificámos três dimensões que se enquadram na nossa conceção de educação em português: Educar para a Língua, Educar para a Diversidade Linguística e Cultural (DLC) e Educar para o Diálogo Intercultural.18 Visualizemos através da Quadro 2 a distribuição dos Relatórios por estas dimensões.
Comecemos pela dimensão Educar para a Língua que é dominante em apenas três Relatórios: no 3, no 5 e no 6, respetivamente trabalhando a lexicultura lusófona,19 como promotora da consciência léxico-semântica; as dificuldades linguísticas de alunas estrangeiras e a consciência sobre essas dificuldades; a produção de texto escrito, como espaço de memórias de línguas e de culturas.
A dimensão Educar para a DLC é focada em cinco Relatórios (1,2,3,6,7), como ainda espelhada nos títulos de cada um deles (ver Anexo). Como vimos, dois deles (3 e 6) tinham focado já a dimensão Língua; diremos, então, que a nova dimensão Educar para a DLC os vem complementar e situar.
Quanto à dimensão Educar para o Diálogo Intercultural, parece-nos ser a mais abrangente e aquela com alguma convergência entre todos os Relatórios, mas, de modo diferenciado:
Diremos, então, que os objetivos de quatro trabalhos se enquadram diretamente na dimensão Educar para o Diálogo Intercultural, embora intrinsecamente os restantes três aí vão convergir.
O facto de não haver grande incidência sobre a Educação para a Língua pode ser justificado, tendo em conta o público-alvo destes estudos, alunos dos dois primeiros ciclos de escolaridade. A reflexão sobre a língua e sobre a gramática torna-se mais evidente a partir 3º CEB, com alunos mais velhos.
2. Natureza da investigação
Passemos à natureza da investigação e sua justificação nas palavras das autoras. Todos os estudos se inscrevem, segundo estas, na investigação qualitativa, na senda de Bogdan e Biklen (1994). A investigação qualitativa é reconhecida como uma tendência atual em educação, apresentando as seguintes características:
1. a fonte direta de dados é o ambiente natural; o investigador é o instrumento principal;
2. a investigação qualitativa é descritiva, sendo os dados recolhidos sob forma de palavras, imagens mas não de números;
3. o maior interesse deste tipo de estudos incide sob o processo e não tanto sob os resultados ou produtos; a análise dos dados tende a ser indutiva;
4. o significado é de importância fulcral neste tipo de abordagem, por exemplo, o interesse no modo como diferentes pessoas dão sentido às suas vidas (Bogdan & Biklen, 1994, p. 50).
3. Tipo de estudo
Destes sete projetos, cinco dizem ainda tratar-se de estudos descritivos (1, 2, 4, 5 e 7), preferencialmente cruzando Bogdan e Biklen (1994) com Gagné et al. (1989), para quem o objetivo da investigação descritiva é compreender para explicar dados da realidade social e educativa (Relatórios 1, 2 e 4). Estes dados, segundo Gagné et al. (1989), podem ser recolhidos através de questionários, entrevistas ou pela observação de situações reais.
O estudo de caso é assinalado em dois Relatórios (5 e 6). Várias referências serviram de base para a fundamentação deste tipo de estudo (Coutinho, 2011; Pardal & Soares, 2011; Yin, 2010), mas citemos Gagné et al. (1989):
[l’étude de cas] consiste à observer un objet social bien circonscrit (un individu, un groupe et une situation) en tentant de l’analyser en profondeur. (Gagné et al., 1989, p. 42)
O Relatório 5 centra-se no caso de três alunas estrangeiras (brasileira, moldava e chinesa), do 5º ano de escolaridade, perante as suas dificuldades em LP e a (pouca) consciência dessas dificuldades. O Relatório 6, e revisitando Coutinho (2011), integra um caso coletivo, uma turma do 6º ano, com a qual se pretende, de alguma maneira, uma comparação para obter conhecimentos mais aprofundados sobre o fenómeno: a escrita de memórias de infância como meio de valorização da DLC e da promoção de uma educação intercultural. Nesta turma, de alunos maioritariamente da cultura dominante, encontrava-se uma menina portuguesa cigana, cuja cultura se esbatia no seio dos outros alunos portugueses20, e uma menina cabo-verdiana, à volta da qual todo o projeto emergiu, porque foi o seu texto de memórias de infância no seu país o mote para o projeto21 deste Relatório. A mestranda apoiou-se ainda na experiência de outros alunos que já tinham vivido no estrangeiro e, por isso, estavam mais permeáveis à(s) diversidade(s).
Os estudos restantes (3 e 7) afirmam utilizar uma investigação-ação, pelo facto de: (i) pretenderem solucionar um problema encontrado; (ii) agirem em ambiente socioeducativo através de um projeto de mudança; (iii) avaliarem esse projeto no final do processo (Bogdan & Biklen, 1994; Elliot, 2010; Latorre, 2008; Pardal & Soares, 2011). A metodologia de investigação-ação22 compreende vários ciclos reflexivos desenvolvidos em espiral. Nestes dois Relatórios, pelos constrangimentos temporais e espaciais já apontados, apenas se realiza um ciclo, avaliado no final. Por esse facto, as autoras afirmam tratar-se de estudos com contornos de investigação-ação e não de investigação-ação pura.
O primeiro projeto de investigação-ação (3) foi desenvolvido numa turma de 2º ano do 1º CEB (25 alunos), na qual predominavam alunos provenientes de países de LP, ou cujos pais tinham origens “lusófonas” diversas. O facto de o aluno ter nascido num país de língua oficial portuguesa, onde coexistem outras línguas, ou mesmo vivendo em Portugal, mas em famílias com uma LM diferente do português, faz com que o aluno nem sempre tenha um grande domínio linguístico da variedade padronizada e da variedade escolar. Assim, a mestranda convicta de que a lexicultura podia contribuir para o desenvolvimento linguístico e metalinguístico, em especial para o desenvolvimento da consciência léxico-semântica, elaborou a sua intervenção, em torno de uma história por si construída (uma viagem por alguns países lusófonos, correspondentes às origens dos alunos da turma), com seis sessões: a LP no mundo, a LP no Brasil, a LP na Guiné-Bissau, a LP em Angola, a LP em São Tomé e Príncipe; na última sessão, foi feita a avaliação das aprendizagens. Estas sessões contaram com atividades diversificadas à volta do léxico e da cultura dos países referidos, e com a presença dos pais estrangeiros/lusófonos (mãe ou pai) através de: música, dança, descrições dos países e dos costumes, algumas palavras numa das línguas desse país, como foi o caso do crioulo da Guiné-Bissau. Esta experiência, trazendo os pais à sala de aula, tornou a história mais real e, sobretudo, permitiu que alguns alunos expressassem o orgulho nas suas raízes (o santomense e as meninas guineenses), raízes que normalmente escondiam.
A segunda intervenção (7), com contornos de investigação-ação, decorreu igualmente numa escola do 1º CEB e numa turma do 4º ano (18 alunos). Os alunos eram na maioria portugueses, embora houvesse um aluno angolano e outro de origem brasileira, e ainda quatro crianças, tendo um dos pais estrangeiro (angolano, francês, inglês e russo). Os 18 alunos da turma disseram ter o português como LM, até mesmo as duas meninas ciganas que afirmavam só “falar cigano” em família. Tratava-se de uma turma complexa, com alguns problemas de indisciplina e alguma animosidade entre certos grupos.
A escola situa-se num bairro periférico e problemático, na cidade A, que conta com uma percentagem de residentes desempregados e famílias, muitas vezes, monoparentais, havendo entre os residentes muitos estrangeiros, sobretudo africanos, e portugueses ciganos e não ciganos. A questão mais crítica do bairro é a sua grande insegurança, existindo, com alguma frequência, cenas de violência, com intervenções sistemáticas da polícia. O recreio da escola, por vezes, funciona como um pequeno palco, transpondo do bairro para o recreio alguns desentendimentos acompanhados de violência e algumas atitudes de racismo.
Com esta turma, a autora pretendeu rentabilizar a DLC existente no grupo, valorizando-a e chamando a atenção para a igualdade de todas as línguas e culturas. A sua intervenção contou com quatro sessões, utilizando diversas atividades, a título exemplificativo: desenhar meninos de diferentes línguas e culturas, expressando as sua preferências e justificando; desta forma, pretendia-se compreender que línguas e países eram selecionados ou preteridos. Outro exemplo: o visionamento de um pequeno filme sobre racismo, a que se seguiu um debate. Por fim, foram (re)avaliadas as conceções finais dos alunos sobre determinados países, línguas e falantes. Nem sempre as conceções negativas dos alunos se alteraram, dado que a comunicação social, e em particular a televisão, apresentava imagens sobre a Síria de tal maneira fortes que a hipótese de terem como amiga ou colega de turma uma criança síria continuava a assustá-los: “Tenho medo, não gosto da Síria por causa da guerra e não percebo a língua” (Rodrigues, 2017, p. 89, Relatório 7).
Constata-se a importância que a língua desempenha nas escolhas e rejeições: um polaco e um português não teriam qualquer impacto, segundo dois alunos, justificando esse desinteresse pelo fator língua: a entrada de um novo aluno português não traria nada de inédito, porque “já conheço a língua e as pessoas” (Rodrigues, 2017, p.90). Quanto à chegada de um novo colega polaco, os alunos dizem não saberem falar a língua polaca, nem pretenderem aprender.
4. Instrumentos de recolha e alguns tópicos de análise
Passemos, então, aos instrumentos de recolha de dados utilizados nos Relatórios. No Quadro 3, temos acesso, por um lado, às narrativas de todo o projeto, ou seja, aos percursos didáticos selecionados e, por outro, às atividades desenvolvidas que, por vezes, coincidem com os instrumentos: entrevista, biografia linguística, jogo…
Relatório | Observação participante | Questionário | Entrevista | Fichas de trabalho | Biografia linguística | Desenhos | Jogo | Registo audiovisual e fotográfico |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | + | + | - | - | - | + | - | - |
2 | + | + | - | - | - | + | - | - |
3 | + | - | - | + | - | - | + | + |
4 | + | - | - | + | - | - | - | + |
5 | + | - | + | + | + | - | - | - |
6 | + | - | + | + | + | - | - | - |
7 | + | + | + | + | + | + | - | - |
Legenda: Presença: + ; Ausência: -
Todas as intervenções educativas se apoiaram na observação participante, dado que foram as próprias estudantes a conduzi-las, na qualidade de docentes (estagiárias) e investigadoras.
As autoras dos projetos 1 e 2, por não terem nas turmas alunos de PLNM, optaram pela recolha de dados apenas através de um inquérito por questionário, com o qual pretenderam analisar as representações dos alunos face a outros alunos, possíveis colegas, com outras línguas e culturas. O instrumento de recolha foi construído por ambas mas, antes de ser aplicado nas turmas de Português do Estágio, foi aferido noutras turmas dos mesmos anos de escolaridade, ou seja, no 5º (estudo 1) e no 6º ano (estudo 2). Este questionário, para além de solicitar respostas verbais, solicitava ainda desenhos legendados, no sentido de entender qual a abertura dos alunos para outras línguas e culturas. Em ambos os casos foi o fator língua, mais uma vez, a determinar a aproximação ou o afastamento de hipotéticos colegas, com determinadas línguas ou culturas, ou melhor, as representações que os alunos tinham sobre essas línguas e/ou sobre essa culturas: “Eu escolhi em primeiro [o colega] francês porque gostava de aprender Francês e em último o chinês porque não gosto da língua” (Cordeiro, 2013, p. 54, Relatório 2).
Como os projetos 1 e 2, também os projetos 3 e 4 funcionaram em rede, mas com uma organização distinta: utilizaram diferentes instrumentos de recolha de dados, embora também partilhassem alguns, como as fichas, os registos audiovisuais e os fotográficos. Pretendendo, o estudo 4, conhecer as representações prévias de 25 alunos de uma turma do 2º ano, sobre os falantes de Portugal, Brasil, Guiné-Bissau, Angola e São Tomé e Príncipe e sobre as respetivas variedades de português faladas nesses países, a mestranda passou uma ficha de monotorização a cada aluno, imediatamente antes da implementação de cada sessão do projeto 3, pela sua colega de estágio. No final da sua sexta e última sessão, solicitou um desenho legendado, para tentar verificar se se tinham alterado as representações iniciais menos positivas. De facto, no projeto 4, houve modificação na perceção de dois alunos face a São Tomé e Príncipe e Angola, devido não só a sessões de sensibilização à DLC, mas também porque essas crianças se aperceberam que na sala de aula havia colegas desses países, e como conheciam bem esses colegas, eram todos amigos – é de realçar, com efeito, o fator desconhecimento surgindo como impeditivo à aproximação. Em seguida, com o módulo interventivo do projeto 3, as representações face aos países lusófonos e suas variedades de LP sofreram evolução, pelo conhecimento de algum léxico específico do português de cada país e de alguns aspetos culturais associados. O Brasil, os brasileiros e a variedade brasileira de LP, – que muitas vezes surgiu como “língua brasileira”– , foram os preferidos em todos os momentos do projeto 4. Sendo a comunidade brasileira a comunidade estrangeira mais numerosa em Portugal, é frequente, na cidade A, ouvir falar o português do Brasil, até mesmo dentro da escola onde estes projetos educativos foram desenvolvidos. Atentemos nas observações de dois alunos portugueses às questões colocadas sobre os falantes brasileiros: “As pessoas do Brasil são “amigas, bonitas, simpáticas. Eu gostava de ir à terra deles” (p. 122), “As pessoas do Brasil falam…bem, a voz é bonita” (Ribeiro, 2013, p. 122); “As pessoas do Brasil são …, simpáticas e amáveis, são mulatas de cor de pele e são muito amigas, carinhosas e muito divertidas”(…) As pessoas do Brasil falam…bem, o som é suave e nós percebemos (Ribeiro, 2013, p. 123, Relatório 4).
Das principais técnicas de recolha de dados, falta-nos referir a biografia linguística e a entrevista. A biografia linguística, muito na linha do Portefólio Europeu de Línguas (Conselho da Europa, 2001b), é utilizada nos estudos 5, 6 e 7, constituindo-se como um espaço no qual o aluno pode inscrever a história das suas aprendizagens linguísticas e das relações com as várias línguas com que contactou (materna e não maternas). Coincidentemente os mesmos projetos (5, 6 e 7) utilizaram também a entrevista, mas com intuitos diferentes: como preparação para a elaboração da biografia linguística (6); como meio de identificação sociolinguística de três alunas estrangeiras e, simultaneamente, como ferramenta de despistagem de dificuldades no português escrito (5), – neste caso a entrevista coloca as participantes face às suas dificuldades linguísticas, tentando analisar a consciência que têm das suas dificuldades (escritas, orais, outras); por fim, integrada no questionário (7), a biografia linguística identifica os alunos e as suas línguas e os contactos e experiências interculturais, preparando-os para as entrevistas (coletiva e individuais), sobre questões de DLC e de discriminação.
Para obter uma análise dos dados quantitativos dos questionários, e de algumas fichas, as mestrandas utilizaram meios tecnológicos pouco sofisticados para o seu tratamento (Excel…). No que diz respeito às perguntas abertas e ao tratamento qualitativo, quer das entrevistas, quer dos questionários, quer ainda das biografias linguísticas que requeriam respostas em aberto, utilizaram a análise de conteúdo (Bardin, 1991), e sem recurso a nenhuma ferramenta informática.
Resultados e contributos para a educação em português
Estamos perante sete estudos no quadro da educação em português que focaliza um público dos dois primeiros ciclos do EB (dos 6 aos 12 anos de idade), em contextos educativos multiculturais.
Os estudos em causa afirmam ser de natureza qualitativa, como expectável em investigações educacionais em línguas. A maior parte deles justifica as suas opções metodológicas por uma configuração de tipo descritivo, pretendendo ler o real para compreender e interpretar os fenómenos sociais e educativos. Para além deste aspeto, encontramos dois estudos com contornos de investigação-ação e dois estudos de caso, tipologia enquadrada nas investigações realizadas em mestrados profissionalizantes na U-A. No que toca aos instrumentos de recolha de dados (Quadro 3), como principal visualizador de cada percurso metodológico, encontramos a observação participante comum a todos os estudos, visto retratar o duplo papel de cada autora (investigadora e futura professora).
De registar que esta opção metodológica, bem como a utilização de fichas de trabalho, na maioria dos relatórios, é conciliável com os restantes instrumentos, desempenhando esta combinatória uma função complementar: observação participante e biografia linguística, observação participante e desenhos, observação participante e entrevistas, observação participante e questionários.
Mencionemos, por fim, alguns resultados de outra natureza que apontam para a construção de conhecimento em educação em português. Comecemos pela necessária desmontagem (contributos vários) da questão complexa (de ordem sociológica, psicológica, afetiva), com repercussões a nível educativo: a importância que os alunos atribuem ao fator língua (língua conhecida/desconhecida, língua próxima/distante), e que se manifesta na aproximação aos estrangeiros ou no seu afastamento. Na verdade, trata-se de representações sobre essas línguas e sobre os povos que as falam, dado que o desconhecimento e a generalização de senso comum, face aos povos e culturas, influenciam as atitudes dos alunos.
Revisitemos duas situações: os alunos não aceitavam “no abstrato” fazer amizade com algumas crianças provenientes de países em guerra, como foi o caso da “rejeição” de crianças sírias; estas atitudes, certamente, refletem as representações construídas, por um lado, a partir dos médias e, por outro, de uma certa intolerância de alguma parte da população para o acolhimento de refugiados em Portugal (Relatório 7). A outra situação incidiu sobre alguma rejeição a crianças santomenses e angolanas, em geral, mas quando os alunos foram confrontados, em particular, com os colegas da sala de aula, um santomense e outro angolano, estes não eram sentidos como estranhos, nem estrangeiros, mas como amigos (Relatório 3). Neste caso preciso, acreditamos que esta rejeição estaria também ligada a desentendimentos anteriores entre as suas famílias e outras famílias originárias de São Tomé e Príncipe e de Angola, vizinhas de bairro.
Esta questão complexa, porque envolve diferentes “margens”, exige da parte do Educador (estagiário ou não) respostas eficazes e contínuas ao longo do ano escolar, e não apenas num determinado momento, como no caso das nossas sete estagiárias. Dessa forma, poderá ser possível consciencializar os alunos para a diversidade como uma mais-valia, e para a prevenção de atitudes de racismo e de discriminação.
Coincidentemente, quando o Relatório 7, Diversidade linguística e cultural – os estrangeiros pelos olhos dos alunos do 4º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico, estava em conclusão, foi publicado, em Portugal, o Decreto-Lei nº 93/2017 de 23 de agosto, que no seu Artigo 1, nos diz que a referida “…lei estabelece o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate a qualquer forma de discriminação em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem” (Diário da República, 2017, p. 4911).
A aplicação desta lei é acompanhada pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial que funciona junto do Alto Comissariado para as Migrações.
Considerações finais
Os estudos analisados partiram do pressuposto de que a LP era um fator de integração social e escolar e um meio de aprendizagem de outras disciplinas, quer para nativos quer para não nativos, tendo sido focada ainda a necessidade de valorização da língua e da cultura de origem dos alunos estrangeiros. Sublinhamos a importância de os alunos se sentirem bem com a/na sua LM, para que a aprendizagem de outras línguas, nomeadamente do português, se processe de uma forma harmoniosa. O mesmo se aplicará a aprendentes nativos, mas com variedades regionais e sociais distintas da variedade de escolarização. Recordemos que a partir da Revolução de 1974, com a democratização do ensino, a escola foi alargada a todas as faixas sociais da população. Presentemente numa só turma podemos encontrar aprendentes de diferentes extratos socioculturais e também, mas, em menor escala, de diferentes lugares do país. A apologia dessa diversidade foi, de facto, marcada em todos estes estudos. Senão, vejamos:
Como já referimos, a educação em português inclui contextos educativos alargados e não restritos à sala de aula, cuja tipologia de objetivos pode contemplar três dimensões: “Educar para a Língua”, “Educar para a DLC”, “Educar para o Diálogo Intercultural”. No entanto, neste texto, a incidência parece recair sobre o objetivo “Educar para a DLC”, se bem que “Educar para o Diálogo Intercultural” ocupe um espaço de convergência, expresso de modos diferenciados. E, com uma menor incidência, surge-nos a dimensão “Educar para a Língua”.
Provavelmente este será o percurso pela educação em português nos diferentes ciclos do EB: em primeiro lugar, educando para DLC (1º ciclo), em segundo lugar, educando para o diálogo intercultural (2º ciclo), para chegar à educação para a/na LP (3º ciclo). Os estudos apresentados, por se centrarem nos dois primeiros ciclos do básico, situam-se nas duas primeiras dimensões, ou seja, nos dois primeiros patamares.
Diremos, então, que Educar para DLC é a janela para os desafios posteriores que se colocam ao ensino da LP em contextos educativos multiculturais.