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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.44 no.1 Porto Alegre jan./abr 2021  Epub 20-Jul-2021

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2021.1.33373 

Outros Temas

Letramento em contexto religioso: um estudo com mulheres camponesas no Sertão da Bahia

Literacy in a religious context: a study with women rural workers in Bahia’s countryside

Cultura escrita en contexto religioso: un estudio con mujeres campesinas en el sertão de Bahía

Sônia Maria Alves de Oliveira Reis1 

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, MG, Brasil, professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em Guanambi, BA, Brasil.


http://orcid.org/0000-0003-0129-0719

Carmem Lucia Eiterer2 

Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, MG, Brasil


http://orcid.org/0000-0002-6978-155X

Ana Maria de Oliveira Galvão2 

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, MG, Brasil professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, MG, Brasil


http://orcid.org/0000-0001-9063-8267

1Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Guanambi, BA, Brasil.

2Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.


Resumo:

O presente artigo apresenta parte dos resultados de pesquisa qualitativa, desenvolvida por meio de entrevistas semiestruturadas e de observação participante, que teve como objetivo compreender os modos de participação nas culturas do escrito de mulheres camponesas que atuam como lideranças comunitárias no interior da Bahia. Buscamos analisar, especificamente, o lugar ocupado por movimentos e rituais vinculados à Igreja Católica, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Pastoral da Criança, a catequese e a missa. A pesquisa mostrou que a atuação em instâncias religiosas efetivamente contribui para que as mulheres ampliem seus modos de participar nas culturas do escrito, marcadas, no contexto estudado, pela interação com outras dimensões da linguagem, como o oral, o visual e o gestual. Constatamos, ainda, que os sentidos atribuídos ao lido e ao escrito são regulados pela comunidade de leitores da qual participam.

Palavras-chave: letramento; mulher e religião; trabalhador rural; educação não formal

Abstract:

This article presents the results of a qualitative research, developed through participant observation and semi structured interviews, that aimed to understand the ways of participation in the writing cultures of women rural workers who act as community leaders in the countryside of Bahia. It is our intent to analyze, specifically, the place occupied in this process by movements and rituals linked to the Catholic Church, such as the Basic Ecclesial Communities (CEBs), the Children Pastoral, catechesis and mass. The research has shown that women’s activities in the religious instances effectively increase their participation ways in the cultures of writing, marked in the context studied by interaction with other dimensions of language such as the oral, the visual and the gestural. We also find that the meanings attributed to reading and to writing are regulated by the community of readers in which they participate.

Keywords: literacy; woman and religion; rural worker; non-formal education

Resumen:

El presente artículo presenta parte de los resultados de una investigación cualitativa, desarrollada por medio de entrevistas semiestructuradas y de observación participante, que tuvo como objetivo comprender los modos de participación en las culturas del escrito de mujeres campesinas que actúan como líderes comunitarias en el interior de Bahia. Buscamos analizar, específicamente, el lugar ocupado por movimientos y rituales vinculados a la Iglesia Católica, como las Comunidades Eclesiales de Base (CEBs), la Pastoral del Niño, la catequesis y la misa. La investigación mostró que la actuación en instancias religiosas efectivamente contribuye a que las mujeres amplíen sus modos de participar en las culturas del escrito, marcadas, en el contexto estudiado, por la interacción con otras dimensiones del lenguaje, como el oral, el visual y el gestual. Constatamos, además, que los sentidos atribuidos a lo leído y al escrito son regulados por la comunidad de lectores en la que participan.

Palabras clave: cultura escrita; mujer y religión; trabajador rural; educación no formal

Diversos estudos têm mostrado que a participação em práticas religiosas se constitui, em muitos casos, um poderoso agente de letramento3. Já nos anos 1970, (Johansson, 2007/1977), em trabalho hoje considerado clássico, estudou o emblemático caso da Suécia, que teve a quase totalidade de sua população alfabetizada ainda no século XVIII, sem que uma rede de escolas houvesse sido formada. A Reforma Protestante, ao impor uma série de obrigações às famílias em relação à leitura e à escrita, havia sido decisiva nesse processo.4 Mesmo em denominações que têm a oralidade e o gestual como fundantes dos rituais religiosos, como é o caso do pentecostalismo, é possível evidenciar, principalmente quando se trata de lideranças religiosas, que a participação nas igrejas contribui para o desenvolvimento de práticas de leitura e de escrita.5

Se as relações entre protestantismo e cultura escrita têm sido estudadas sistematicamente há mais de quatro décadas, não se pode afirmar o mesmo em relação a outras tendências religiosas,6 principalmente no caso brasileiro.7 Embora o Brasil tenha sua história profundamente marcada pela presença da Igreja Católica, os trabalhos que estabelecem associações entre catolicismo e cultura escrita geralmente tomam como objeto de estudo congregações religiosas, escolas confessionais e impressos católicos. Raros ainda são os estudos8 que, ao se debruçarem especificamente sobre comunidades, grupos e/ou indivíduos, buscam compreender o papel das práticas religiosas associadas ao catolicismo em sua participação na cultura escrita.

É nesse quadro que se insere a pesquisa9 que deu origem a este trabalho. Trata-se de investigação qualitativa, desenvolvida por meio de entrevistas semiestruturadas e de observação participante que teve como objetivo compreender os modos de participação de mulheres camponesas que atuam como lideranças comunitárias no interior da Bahia, nas culturas do escrito. Neste artigo, buscamos analisar, especificamente, o lugar ocupado por movimentos e rituais vinculados à Igreja Católica como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Pastoral da Criança, a catequese e a missa, nesse processo.

As CEBs são comunidades criadas, sobretudo, a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), que se disseminaram, principalmente, entre as décadas de 1970 e 1980, em vários países da América Latina. Constituem-se de pequenos grupos, formados geralmente em função da proximidade territorial e compostos principalmente por membros das classes populares (Betto, 1981). A Pastoral da Criança, por sua vez, foi criada em 1983, como organismo de ação social da CNBB, e “alicerça sua atuação na organização da comunidade e na capacitação de líderes voluntários que ali vivem e assumem a tarefa de orientar e acompanhar as famílias vizinhas em ações básicas de saúde, educação, nutrição e cidadania”.10

As mulheres investigadas na pesquisa são lideranças das CEBs, leitoras de carne e osso, pertencentes a diferentes gerações, mães e avós, negras, adultas e idosas que, neste trabalho, receberam nomes de flores.11 As práticas de leitura e escrita desenvolvidas nas CEBs, em outras vivências religiosas, em suas residências com seus filhos e em tantos outros espaços sociais que ocupam, abrangem inúmeras vivências. Essas experiências vão muito além daquelas características do espaço escolar, pois suas atividades de leitura e escrita se constituem considerando-se diferentes demandas sociais.

Conforme destacado por vários autores, os suportes impressos, os manuscritos, as gravações e os materiais visuais e informatizados são manuseados de diferentes maneiras por cada grupo social (Chartier & Cavalo, 1998). Kleiman (1995) já frisava que, a partir do momento em que os estudos deixam de tomar como universais os efeitos das práticas de uso da escrita e passam a analisar esses efeitos por meio de práticas sociais e culturais de diferentes grupos, ocorreu um alargamento do conceito de letramento. De modo semelhante, (Soares, 2003) afirma que diferentes contextos sociais e culturais fazem usos distintos da leitura e/ou da escrita em cada particular situação. Isso significa dizer que os eventos de letramento – qualquer situação mediada pela presença do escrito –, que surgem em circunstâncias da vida religiosa, social ou profissional, respondem a necessidades ou a interesses pessoais ou grupais e são vividos e interpretados ancorados em seus contextos sociais e culturais. É nessa direção que mobilizamos o conceito de práticas de letramento. De modo diferente dos eventos, elas não podem ser empiricamente observáveis, pois, como modelo analítico, dizem respeito a formas culturais gerais de utilização do escrito que as pessoas colocam em jogo em um evento de letramento (Barton, 1991).

Ao focalizar o letramento no espaço religioso, concebemo-lo não apenas como um fenômeno situado, mas, ainda, um fenômeno cuja efetivação é motivada pelos diversos usos da leitura e da escrita estabelecidos em atendimento às demandas de comunicação e de veneração ao sagrado. Por conseguinte, entendemos que a relação entre as práticas de leitura e escrita adquiridas e ensinadas não se dão de forma linear, mas em função do contexto, neste caso, religioso, em que essas práticas aparecem. Notamos que tal prática, particularmente em contextos rurais, como é o caso em análise, está circunscrita nas comunidades pela orientação cristã e, particularmente, pelos modos de participação que a Igreja Católica propõe. Nesse contexto, é de fundamental importância o papel desempenhado pelo representante da instituição – o padre ou outra liderança, lugar ocupado muitas vezes pelas mulheres pesquisadas – que assume a sua voz, respaldada pelo texto escrito “sagrado”.

Práticas de leitura e escrita nas CEBs

Consideremos a realização de um círculo bíblico coordenado por Jasmim em sua comunidade. A temática da ocasião foi “O problema das divisões dentro da Comunidade”. Realizada a introdução do encontro, a liderança solicitou aos participantes que localizassem, na Bíblia, o trecho “1Cor 1,1-16”. Contextualizando a leitura, disse: “o mesmo problema ocorre hoje em muitas das nossas comunidades” (Jasmim, comunicação pessoal, 30 jun. 2012). Enfatizou que tensões e divisões dificultam a vida de muitas pessoas. Mas, para ela, o que chamava a atenção na carta de Paulo aos Coríntios era o jeito “carinhoso” e, ao mesmo tempo, “firme”, utilizado para discutir o problema das divisões em busca de uma solução. Em suas palavras: o jeito de Paulo pode nos ajudar na busca de uma solução para os problemas que hoje enfrentamos nas nossas comunidades (Jasmim, comunicação pessoal, 30 jun. 2012).

A leitura foi feita em voz alta por um dos presentes; enquanto isso, as demais acompanharam, com o apoio de suas bíblias, silenciosamente a leitura. Depois, Jasmim propôs aos participantes uma reflexão sobre a leitura a partir do método “Ver, Julgar e Agir”.12 Tendo como ponto de partida o “ver”, questionou: olha de perto, o que estava acontecendo lá na comunidade de Corinto? (Jasmim, comunicação pessoal, 30 jun. 2012). Realizaram-se vários comentários fundamentados no texto. Ela, então, provocou o grupo perguntando: hoje, nas nossas comunidades acontece algo semelhante?”. Após as falas, dividiu o grupo em duplas e propôs que trocassem ideias, a partir das perguntas: 1. Estes problemas de divisão acontecem em nossa comunidade e/ou em nossas famílias? 2. Por que será que nascem tantas divisões, quando todos parecem querer o bem comum? 3. O que nós estamos fazendo para criar mais unidade?” (Jasmim, comunicação pessoal, 30 jun. 2012).

Depois da partilha feita pelas duplas, iniciou-se o segundo momento do círculo bíblico denominado de “julgar”. Para Jasmim, como revelou em entrevista, tratava-se de ocasião para “iluminar” a situação da comunidade a partir do texto bíblico. Desse modo, propôs nova leitura lenta e atenta do trecho bíblico citado. Pediu às pessoas que, enquanto lessem, ficassem com a seguinte pergunta “na cabeça e no coração”: Quais as sugestões de Paulo para superar as divergências nas nossas comunidades e nas nossas famílias? (Jasmim, comunicação pessoal, 30 jun. 2012). Houve um momento de silêncio e, após, ela sugeriu aos participantes que trocassem ideias em grupo para descobrir, na atualidade, qual “a luz do texto bíblico”, a partir das indagações: “1. O que mais chamou sua atenção nas palavras de Paulo? 2. Quais as sugestões de Paulo para superar as divergências? 3. Qual a luz que encontramos para iluminar os problemas da nossa comunidade?” (Jasmim, comunicação pessoal, 30 jun. 2012).

Assim que os participantes falaram, Jasmim fez a seguinte reflexão acerca de diferentes modos de vida urbana e do campo:

Ler e meditar as cartas de Paulo pra mim é buscar caminhos para evangelizar e viver o hoje com coragem e sabedoria (…). Muitas pessoas deixaram a roça e foram morar na cidade, atraídos pela propaganda e pelos sonhos de uma vida melhor. Na roça, a vida não é fácil, o trabalho na agricultura é pesado, mas acho que a vida aqui não é pior do que na cidade (…). A fé aqui é transmitida dentro da família, há solidariedade entre nós e os filhos acompanham os pais na vida e na religião. (…) Pra os que saem da roça e vão pra cidade cheios de esperanças, a vida na cidade se torna um pesadelo. Tudo é muito apressado. Não sobra tempo pra conversar e conviver. Na cidade, quem não tem trabalho não tem dinheiro. Sem dinheiro em uma cidade se morre de fome. Por outro lado,*** com dinheiro se consegue tudo aquilo que a cidade oferece em termos de consumo. A cidade produz uma mudança na cabeça das pessoas. Os filhos se adaptam mais rápido que seus pais à vida da cidade e não aceitam mais o modo de viver e de agir deles. Não seguem mais o comportamento religioso dos pais. Abandonam a fé e buscam novas formas de viver a religião. E numa cidade o que não falta são propostas religiosas e igrejas. Na verdade, a cidade é um grande mercado religioso, onde as pessoas escolhem a religião que mais lhes agrada. (Jasmim, comunicação pessoal, 30 jun. 2012)

No terceiro momento do círculo bíblico, denominado “agir e celebrar”, Jasmim solicitou ao grupo a escrita de uma frase ou uma palavra para a síntese do encontro. Alguns formularam preces espontâneas com a intenção de agradecer a Deus pela vida, pelas aprendizagens daquele dia e pelos compromissos assumidos. Alguns participantes escreveram as preces em papeizinhos e alguns as liam em voz alta os outros as depositaram em uma caixinha. Por fim, rezaram um salmo na Bíblia e encerraram a reunião com a oração do Pai Nosso e o canto final.

Na leitura da Bíblia, como mostram vários estudiosos da história da leitura, têm sido privilegiados modos intensivos de ler. (Chartier, 2001) define esse estilo de leitura, que se dá de forma repetida, memorizada, reconhecida, como uma prática que representa estratégias de in-corporação do escrito. Para (Chartier, 2001, pp. 86-89), nessa modalidade de leitura, há uma relação atenta e de deferência entre o leitor e aquilo que lê, “incorporando em seu ser mais íntimo a letra do que leu”. A leitura intensiva é, pois, entendida como “uma maneira de ler que assegura eficácia ao texto, graças a um trabalho de apropriação lento, atento e repetido” (Chartier, 2001, p. 89).

Além da leitura intensiva da Bíblia, observamos, nas práticas das CEBs, outro modo característico do letramento religioso: a busca do controle da interpretação. Podemos observar, a partir do círculo bíblico analisado, o papel desempenhado pela oralidade, pela partilha da experiência entre membros de uma mesma comunidade e pela legitimidade13 exercida pela liderança religiosa na construção dos sentidos atribuídos à leitura. Não se trata, portanto, de uma leitura de “livre interpretação”, mas de uma leitura cujos sentidos são produzidos coletivamente e norteados por pressupostos de uma comunidade específica de leitores – as CEBs.14 Ainda que tendo o mesmo texto como ponto de partida – a Bíblia –, a interpretação a ela atribuída é produzida em um contexto concreto.

A imbricação entre diferentes dimensões da linguagem é, de modo geral, comum nas CEBs; outros modos de práticas comunicativas se unem à palavra escrita ou falada. A presença multimodal da escrita revela, por meio de diferentes modos de representação discursiva, novas possibilidades para as diferentes ordens de comunicação.15 Nesse contexto, a multimodalidade refere-se às mais distintas formas e modos de representação utilizados na construção linguística de uma dada mensagem, tais como: palavras, imagens, cores, formatos, marcas/traços tipográficos, disposição da grafia, gestos, padrões de entonação, olhares etc. Conforme (Rojo, 2012), a multimodalidade não é apenas a soma de linguagens, mas a interação entre linguagens diferentes em um mesmo texto. Com exposições de textos multimodais, as paredes do interior das Igrejas e dos salões comunitários ganham mensagens visualmente atrativas, que aproximam pessoas com diferentes níveis de letramento da cultura escrita. No salão paroquial Espírito Santo, de uma cidade do interior da Bahia, por exemplo, observamos a exposição itinerante em comemoração ao centenário da diocese que, trazendo fotografias e legendas, representando as diversas comunidades que compõem a paróquia, possibilitava a interação entre os participantes.

Cabe mencionar que nos salões comunitários há quadros nos quais são expostos a programação da comunidade, avisos em geral, a prestação de contas de entradas e saídas dos recursos do dízimo e demais ofertas realizadas pela comunidade. Observamos também a exposição de cartazes e varal com atividades produzidas pelas crianças, pelos adolescentes e pelos jovens da catequese.

As mulheres pesquisadas lidam, portanto, com textos cada vez mais multimodais, que exigem delas novas estratégias. Nesse contexto, Jasmim explicou o uso de filmes nos encontros da comunidade. Eles despertam ou até mesmo conduzem o “leitor” para a realidade vivida por aquelas pessoas neles retratadas. Citou como exemplos dois dentre outros muitos filmes presentes nas suas atividades, Anel de Tucum (Berning, 1994) e País dos Poços (Megdessian, 2000). Segundo Jasmim, essa prática, além de sensibilização dos participantes, possibilita conhecer determinada experiência, dando a impressão de que se participa dela.

Acompanhamos, na comunidade de Jasmim, a exibição do filme O Anel de Tucum (Berning, 1994), que retrata o cotidiano dos homens e das mulheres participantes das Comunidades Eclesiais de Base e dos movimentos populares. O filme pode ser dividido em dois momentos que se mesclam no transcorrer da exibição. O primeiro é uma narrativa com recurso a personagens e roteiros totalmente fictícios. Já o segundo é formado por partes de registro documental, cujos integrantes pertencem aos movimentos populares, às Comunidades Eclesiais de Base; eram lideranças religiosas que ganhavam voz. No salão comunitário onde foi exibido o filme foram expostos, em cartazes, vários fragmentos das falas dos personagens e recortes dos depoimentos de bispos, como Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom Pedro Casaldáliga.16 Em um dos cartazes foi transcrita uma poesia apresentada no documentário, que vai do repente ao rap, quando declamada por um catador de papel. A poesia foi lida em voz alta pela filha de Jasmim. Todos os presentes ouviram com atenção e, ao final da leitura, reconheceram que o texto apresentava recursos da fala cotidiana em meio ao ritmo e à rima.

Diante do exposto, compreendemos que as situações mediadas pela linguagem escrita, promovidas pela CEBs, podem ser associadas a práticas de letramento religiosas, uma vez que são eventos regulares na comunidade e contribuem para a construção de padrões culturais de usos da leitura e da escrita. Os casos analisados evidenciam como, no interior das comunidades, a leitura e a escrita, profundamente imbricadas com outras dimensões da linguagem – como o oral, o gestual, o visual – têm um papel fundamental no processo de conferir significado ao tornar-se cristão na perspectiva por elas propugnadas, em que a relação com o sagrado é indissociável da efetiva participação na transformação social.

Outras práticas religiosas

A cultura escrita também está presente em outras rotinas que se relacionam, direta ou indiretamente, às atividades exercidas por essas mulheres nas CEBs. Por meio dos lugares de liderança que ocupam, elas são solicitadas a participar ativamente de outras práticas religiosas e movimentos sociais.

A Pastoral da Criança é uma dessas instâncias que atua como agente de letramento. No trabalho na Pastoral, as mulheres usam cotidianamente a leitura e a escrita com o objetivo de comunicar, organizar e executar as ações. Atribuem significados às atividades que desenvolvem durante a visita domiciliar, ao atendimento às crianças menores de 6 anos, à celebração da vida, ao acompanhamento das famílias e da comunidade, à reunião de reflexão e à avaliação das atividades realizadas.

Salientamos que as atividades da Pastoral são fortemente marcadas pela oralidade, pela leitura e pela escrita de materiais diversos (jornais, folhetos, relatórios, cadernetas), em um fazer que se aprende e se adquire com o outro, em contextos culturais específicos que requerem participação, atividade e ação. Nos encontros da Pastoral, outros materiais não escritos também são utilizados, como materiais radiofônicos (programa Viva a Vida17; entrevistas; spots, vinhetas e jingles) e CDs, o que os tornam marcadamente multimodais, como ocorre nas CEBs.

Citamos a seguir duas práticas, registradas no diário de campo, que ocorreram aos domingos no Centro Comunitário São José. A primeira, descrita a seguir, envolve as lideranças e a comunidade:

Hoje é dia de “Celebração da Vida”. Neste dia, as famílias e as líderes se reúnem para avaliar o desenvolvimento de suas crianças, trocar experiências e celebrar os resultados alcançados. A comunidade organizou a celebração no salão comunitário, ao ar livre, debaixo das árvores. As líderes pesam as crianças e compartilham um lanche em clima de festa. Enquanto as crianças são pesadas, o peso é registrado na caderneta da criança, para controle da família, e no Caderno do Líder, para posteriormente ser enviado à Coordenação Nacional da Pastoral da Criança. O encontro é enriquecido com brincadeiras com as crianças. A espiritualidade está presente por meio da mística. (Acácia, comunicação pessoal, 26 ago. 2012)

O outro evento observado é focado, principalmente, na ação e na avaliação do trabalho das lideranças:

Hoje é dia de “Reunião de Reflexão e Avaliação”. É o dia em que as líderes e os coordenadores paroquiais da Pastoral da Criança, depois que as visitas domiciliares e o dia da celebração da vida já foram feitos, avaliam os resultados de suas ações na comunidade, com base nos indicadores anotados no Caderno da Líder, utilizando o método Ver, Julgar, Agir, Avaliar e Celebrar. Nesse encontro, elas observam a realidade das famílias que acompanham, identificam as causas e as consequências de determinada situação, unem esforços e avaliam quais alternativas podem ajudar as famílias ou a comunidade. Elas também preenchem as Folha de Acompanhamento e Avaliação Mensal das Ações Básicas de Saúde e Educação na Comunidade (FABS) que são enviadas à Coordenação Nacional da Pastoral da Criança. (Íris, comunicação pessoal, 23 set. 2012)

Trata-se, assim, de encontros que também representam a culminância de um trabalho desenvolvido por meio de visitas domiciliares. Todas as atividades realizadas por Acácia e Íris e pelas demais líderes são, ao final de cada visita domiciliar, anotadas e registradas em relatórios que, em seguida, são endereçados à equipe paroquial da Pastoral da Criança para posteriormente alimentar os dados da Coordenação Nacional da Pastoral da Criança e para comprovar os serviços prestados. A construção desses relatórios, resultado das atividades realizadas, constitui-se como um evento de letramento.

As próprias visitas requerem os usos da linguagem escrita. Ao acompanhar as gestantes da Pastoral da Criança, Acácia, por exemplo, por meio de um instrumento denominado “Laços de amor” é interpelada a usar a leitura e a escrita. A cada mês, as gestantes recebem uma cartela com as principais informações sobre o desenvolvimento do bebê, as alterações no corpo da mulher e os incentivos para que elas façam seu pré-natal. São mensagens que visam cuidar também da autoestima da futura mãe.

Mas, como já nos referimos, os eventos de letramento postos em ato nessas atividades devem ser pensados de forma ampla; consideramos, por exemplo, que os usos das tecnologias permitem que atividades aparentemente orais sejam marcadas também pela escrita. Em uma notícia em um programa de rádio, por exemplo, verificamos um evento de letramento, tendo em vista que o texto ouvido tem as marcas típicas da modalidade escrita oralizada.18 Nos cartazes – Figura 1- a seguir, fotografados na comemoração dos 25 anos da Pastoral da Criança na Diocese, observamos, uma vez mais, a recorrência a múltiplas formas de linguagem.

Fonte: Montagem elaborada com imagens do arquivo pessoal das autoras (2 jun. 2012).

Figura 1 – Fotos do Aniversário dos 25 anos da Pastoral da Criança 

Há, ainda, outras práticas religiosas que atuam como instâncias de participação das mulheres na cultura escrita. A celebração do culto dominical, por exemplo, pode ser considerada um evento de letramento. Tivemos a oportunidade de acompanhar um desses momentos na comunidade de Hortênsia. A missa, com a presença do sacerdote, ou o culto, sem ele, é a celebração dominical em torno da qual a comunidade se reúne, constituindo-se no evento religioso mais frequente na Igreja Católica, contribuindo para a manutenção de uma identidade religiosa local. Hortênsia relatou que em sua comunidade as pessoas participam do culto nos finais de semana e, também, da catequese, porque ali se sentem um grupo (Hortência, comunicação pessoal,10 nov. 2012). Segundo ela, para a realização do culto, existiam cinco equipes de liturgia, cujos membros assumiam os papéis de leitores, comentaristas e dirigentes do culto, de acordo com sua organização. Hortência participava de uma delas. Na ocasião, a leitura do folheto O Domingo19 foi realizada pelos membros da equipe de liturgia. A assembleia participou da celebração conforme a indicação feita no próprio folheto, assim como o fez no momento dos cantos. Os eventos de letramento, nesse contexto, estão convencionados por um ritual, que requer modos de participação específicos e práticas regulares em torno do texto escrito; nele, observamos claramente a multidimensionalidade da linguagem, em que oral, escrito, gestual estão profundamente imbricados.

Outro evento analisado na pesquisa e no qual Hortênsia também exerce liderança é a catequese. Essa atividade ocorre semanalmente no formato de curso e dela participam crianças, adolescentes, jovens e adultos que desejam realizar a primeira comunhão ou a crisma. As pessoas da própria comunidade, voluntariamente, prestam serviço à catequese. Segundo Hortênsia, em geral, há mais catequistas mulheres do que homens. Elas são formadas em alguns encontros na paróquia e cada uma trabalha com um grupo separado por faixa etária. Adota-se um livro, predeterminado pela paróquia, que norteia o trabalho. A seguir, descrevemos um encontro realizado com 33 adolescentes e jovens na faixa-etária de 14 a 20 anos que iam realizar a crisma, um sacramento que ratifica a opção pelo batismo. Inicialmente, Hortênsia propôs um momento de oração espontânea, após apresentou oralmente a temática do quinto encontro do grupo: Deus Chama Abraão. Em um primeiro momento, denominado Olhando a vida, ela expôs, em um cartaz, a imagem do Brasil como um grande latifúndio (Figura 2) e perguntou: “qual a realidade dramática que o desenho exposto quer mostrar?”.

Fonte:Bucciol (2004, p. 17).

Figura 2 – Latifúndio no Brasil 

Em seguida, apresentou outro cartaz (Figura 3) organizado da seguinte forma pela catequista:

A seguir, a catequista Hortênsia convidou os crismandos para cantarem, juntos, uma música de autoria de Luiz Gonzaga, Luar do Sertão. Pediu a atenção às palavras da música: “Não há, ó gente, ó não/ Luar como este do sertão”. Terminado o canto, perguntou ao grupo: “entre má distribuição da terra e da renda, injustiças sociais, pobreza etc., e migração, existe ligação? Por quê?”.(Hortência, comunicação pessoal, 3 maio 2012). Houve a participação dos jovens, que realizaram inferências, por meio de saberes da experiência de migração na família e na comunidade. Eles pediram ainda esclarecimento sobre questões desconhecidas e anotaram as informações apresentadas.

Fonte: Imagem do arquivo pessoal das autoras (3 maio 2012).

Figura 3 – Maneira de dividir as terras no Brasil 

No segundo momento do encontro, intitulado Procurando na Bíblia, foi distribuído e lido de forma compartilhada um texto escrito com a história de Abraão, conforme mostra a Figura 4, a seguir:

Lido o texto, passou-se ao terceiro momento do encontro: Voltando à vida. Hortênsia convidou-os a conversar em grupos, por 15 minutos, a partir das seguintes questões:

1.O que nos pode ensinar a história de Abraão? 2. Será que Deus gostaria de dar a cada lavrador uma terra como a Abraão? 3. Então, por que existem tantos lavradores sem terra? 4. Quais as dificuldades da vida que mais desanimam a gente? 5. Procuramos, às vezes, resolver as dificuldades esquecendo de Deus? 6. A nossa fé já passou por alguma provação? E a fé ficou mais forte ou mais fraca?

A socialização das reflexões realizadas nas conversas em grupo, na plenária, foi participativa.

Fonte:Bucciol (2004, pp. 17-18).

Figura 4 – “Procurando na Bíblia”: História de Abrão 

Por fim, utilizando o livro Canta Povo de Deus (Bucciol, 2007, p. 51), entoaram o canto O Senhor me chamou a trabalhar. Na sequência, a catequista apresentou e discutiu os compromissos da semana, constantes no manual dos crismandos:

Fonte:Bucciol (2004).

Figura 5 – Compromissos dos crismandos 

Encerrando o evento, Hortênsia adiantou que, no encontro seguinte, assistiriam a um filme e corrigiriam o resumo do encontro, que seria feito em casa, durante a semana. Como vemos abaixo (Figura 6), mais uma vez, a leitura e escrita se evidenciam como ferramentas para auxiliar a reflexão:

Outra prática de leitura observada em encontro de crismandos foi realizada por Margarida, em outra comunidade, como retratado no seguinte trecho do diário de campo:

Inicialmente, Margarida fez um momento de relaxamento com o grupo de crismandos. Em seguida, invocou o Espírito Santo de Deus e pediu sua ajuda. Margarida explicou que segue os passos aprendidos com as freiras. No primeiro momento, cada um dos crismandos pegou sua Bíblia e leu com calma o texto bíblico; leu, releu, tornou a ler, até conhecer bem o que está escrito, até assimilar o próprio texto. Depois, fecharam a Bíblia e fizeram um momento de silêncio interior, lembrando-se do que leram. Os jovens partilharam oralmente suas impressões em relação ao texto repetindo palavras, frases, versículos. (Margarida, comunicação pessoal, 11 nov. 2012)

Fonte:Bucciol (2004).

Figura 6 – Resumo do 5º encontro: “Deus Chama Abraão” 

Após a partilha da leitura pelo grupo e evidenciado o lugar de devoção ao sagrado, Margarida interfere:

agora já não é mais só o que o texto diz, mas o que esta Palavra está dizendo a cada um de nós dentro da realidade em que estamos vivendo. O que Deus falou no passado e o que está falando hoje, através deste texto? O que o texto diz? [pediu aos jovens para trazer o texto para a própria vida e para a realidade pessoal e social] O que Deus está me falando? (Margarida, comunicação pessoal, 11 nov. 2012)

Margarida lembra aos crismandos, assim, que a leitura e a meditação se transformam em um encontro íntimo e pessoal com Deus e, ao mesmo tempo, um modo de agir no mundo:

O que o texto bíblico e a realidade de hoje nos motivam a rezar”. Nesse momento, propôs a oração pessoal (...) e perguntou: “O que o texto me faz dizer a Deus? [Rezar – suplicar, louvar, dialogar com Deus, orar...]”. Após esse momento, Margarida sugeriu a contemplação que, para ela, não é algo que se passa na cabeça, mas é um agir novo que envolve todo nosso ser. Encerrou o momento de leitura orante da Bíblia com os questionamentos: “a partir deste texto como devo olhar a vida, as pessoas, a realidade... O que devo fazer de concreto? O que ficou em meu coração e me desperta para um novo modo de ser e agir?”. Solicitou aos crismandos que registrassem no caderno e, por fim, sugeriu que escolhessem uma frase para memorizar. (Margarida, comunicação pessoal, 11 nov. 2012)

Segundo Margarida, em entrevista concedida à pesquisa, com os padres, as freiras e as companheiras, ela aprendeu a fazer a leitura “orante” da Bíblia, prática que ela realiza individualmente e em grupo, em momentos de retiro e de oração.

Em outro momento, ao visitar Jasmim, observamos também um encontro de crismandos coordenado por ela. Após o momento inicial, com acolhida e oração, ela exibiu o filme O País dos Poços, com duração de 10 min. O filme aborda o processo do autoconhecimento. Prosseguindo com a atividade, Jasmim propôs um roteiro, escrito por ela em seu caderno de planejamento e de anotações dos encontros e convidou os crismandos, para o diálogo em grupo sobre o vídeo exibido, a partir do registro feito no quadro de giz:

1. Cada um expresse aos outros aquilo que mais lhe chamou a atenção, a impressão [ênfase adicionada] que a parábola suscitou em você... Sentiu-se identificado [ênfase adicionada] em algum momento desta parábola?

2. À primeira vista, qual parece o significado dessa parábola? 3. Enumere os diversos elementos [ênfase adicionada] que intervêm na parábola (poço, borda, terra seca, superfície, profundidade, vazio, coisas “para encher”, água, flores, corrente interna, o “sabor” da água, manancial, montanha etc.). Cada um tente explicar aos outros o simbolismo [ênfase adicionada] de cada elemento enumerado. 4. Proceder igualmente com as diversas atitudes [ênfase adicionada] que se manifestam na parábola. (Jasmim, comunicação pessoal, 2 set. 2012)

Depois da discussão, foi elaborado o seguinte cartaz (Figura 7):

Fonte: Imagem do arquivo pessoal das autoras (2 set. 2012).

Figura 7 – Cartaz exposto no encontro e utilizado no momento da reflexão 

Após a leitura do cartaz feita por um dos crismandos do grupo, Jasmim perguntou:

Como estas atitudes se manifestam em nós? Qual seria o processo para passar da primeira à segunda coluna? O que significa água no interior do poço? À luz do simbolismo, clarificar as seguintes questões: o que é “sentir-se bem” no fundo? O que é “aumentar” a profundidade? O que significa “tirar água”? Por que muda o ambiente ao “tirar água”? Por que cada um tem um “sabor diferente”? O que significa “a água une a todos por dentro”? Como interpretar que “a água vinha para todos de um mesmo lugar”? A partir da perspectiva cristã, identificar o manancial e a Montanha e se perguntar: que influência tem em nossa vida? Como podemos perceber sua presença? De que maneira pode aumentar sua influência em nós? (Jasmim, comunicação pessoal, 2 set. 2012)

A análise dos eventos mediados pela linguagem escrita, observados na catequese, também contribui para a compreensão de práticas religiosas de letramento. Ler e escrever, ao lado do cantar, do gesticular, do falar, do visualizar, do ouvir, são ferramentas significativas para dar sentido e ampliar a relação com o sagrado e para o agir no mundo.

Considerações finais

A pesquisa realizada mostra que a atuação em instâncias religiosas, como as CEBs, as pastorais, o culto dominical e os encontros catequéticos, efetivamente contribui para que mulheres camponesas, que exercem o papel de lideranças comunitárias, ampliem seus modos de participar nas culturas do escrito. Por meio da análise de eventos de letramento vivenciado por essas mulheres nesses contextos, verificamos que essas instâncias possibilitam que elas tenham contato e produzam ativamente diferentes materiais escritos - ao lado dos visuais e dos sonoros -, que exigem estratégias diversas de tratamento e de interpretação.

Constatamos, ainda, que os sentidos atribuídos ao lido e ao escrito são regulados pela comunidade de leitores da qual participam, norteada pelas ações de um catolicismo que apresenta especificidades muito marcantes. A relação com o sagrado, de um lado, e a ação sobre o mundo no sentido de transformá-lo, de outro, caracterizam, em linhas gerais, a prática religiosa de letramento de uma tendência da Igreja Católica que se desenvolveu principalmente na América Latina, da qual as CEBs e as pastorais são expressões.

3Utilizamos, neste artigo, a expressão sponsors of literacy, no sentido atribuído por (Brandt, 2001, p. 19), para a autora, “sponsors (…) are any agentes, local or distant, concrete or abstract, who enable, support, teach, and model, as well as recruit, regulate, suppress, or withhold literacy – and gain advantage in some way”.

4Ver, entre outros Frago (1993) e Magalhães (2001). Para um estado do conhecimento sobre história do protestantismo e cultura escrita em teses e dissertações brasileiras, ver (Sepulcro Júnior & Galvão, 2018). A análise empreendida por esses últimos autores mostra que, muitas vezes, as relações entre o cristianismo reformado e a cultura escrita têm sido estabelecidas de modo quase natural e sem problematizações.

5Ver, por exemplo, os estudos de Silva (2010) e Silva e Galvão (2007). Para o caso das igrejas afroamericanas nos Estados Unidos ver Moss (1994).

6Para estudos sobre espiritismo e cultura escrita no Brasil ver Lewgoy (2000) e Reis (2018). Para o caso do candomblé ver (Castillo, 2008). Internacionalmente, (Street, 1984) e, posteriormente, pesquisadores agrupados em torno dos New Literacy Studies, pesquisou, ao estudar o caso do Irã, as relações entre islamismo e cultura escrita.

7Em levantamento bibliográfico realizado em 2010, Galvão (2010) constatou que apenas 1% das teses e dissertações realizadas sobre história da cultura escrita no Brasil, problematizavam o papel das igrejas como agentes de letramento.

8Uma das exceções é o trabalho de Souza (2009), que buscou compreender como um grupo de rezadeiras e benzedores, adultos com breves experiências de escolarização, constroem modos de participação na cultura escrita em uma comunidade rural do Norte de Minas Gerais.

9Trata-se de pesquisa de doutoramento, realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

10Pastoral da Criança. Disponível em: https://www.pastoraldacrianca.org.br/missao-2. Acesso, 10 set. 2018.

11Todas as participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE): Acácia, Dália, Hortência, Íris, Jasmim e Margarida. Nascidas entre 1950 e 1974, são, em sua maior parte, negras (cinco delas), filhas de pequenos agricultores, que nasceram e cresceram na zona rural. Tiveram infâncias marcadas pela religiosidade popular, por dificuldades de acesso a bens e serviços necessários às suas sobrevivências e das suas famílias. Entre essas dificuldades, destaca-se a dificuldade de acesso à escola: duas frequentaram a escola na 1.ª série, uma delas frequentou até a 3.ª série e três delas concluíram a 4.ª série. A 4ª. Série equivale ao 3º ano, observamos que “série” era a nomenclatura utilizada antes da reforma de 2006, quando o Senado aprovou o Projeto de lei n° 144/2005 que estabeleceu a duração mínima de 9 (nove) anos para o Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade.

12Trata-se de método disseminado pela Teologia da Libertação na América Latina: consiste no diagnóstico da realidade social (ver), na avaliação da realidade (julgar) e na intervenção no sentido de transformá-la (agir). Ver, entre outros, Dussel (1999).

13 Bourdieu (1989, p. 14), ao analisar sistemas simbólicos, como a religião, afirma que o poder simbólico, “graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário”.

14Na verdade, a “livre interpretação”, para autores como Chartier (1990, p. 121), não existe do ponto de vista histórico e social, na medida em que qualquer interpretação produzida é resultado da relação entre os imperativos do impresso e do texto (e, portanto, da ação de autores e editores, por exemplo) e o leitor, que embora apresente características singulares, está sempre inscrito em pertencimentos mais amplos – geracionais, religiosos, étnico-raciais, de gênero, de classe – e, portanto, em comunidades interpretativas específicas. Nessa tensão entre o dispositivo (“o carácter todo poderoso do texto”) e a “liberdade do leitor” é que se situa a noção de apropriação do autor.

15 Castillo (2008) mostra como, no caso do candomblé, as experiências multissensoriais, possibilitadas pela multiplicidade de dimensões da linguagem postas em ação, são essenciais nos rituais que ocorrem nos terreiros.

16Trata-se de dois importantes nomes da Igreja Católica na América Latina, vinculados a movimentos sociais e à “opção preferencial pelos pobres”.

17O programa de rádio Viva a Vida é semanal, por exemplo, possui 15 minutos de duração e veicula temas sobre saúde, nutrição, educação, direitos, organização comunitária entre outros assuntos de interesse desse público. Para saber mais sobre o Programa de rádio Viva a Vida, ver site da Pastoral da Criança (https://www.pastoraldacrianca.org.br/noticias2/902-programa-viva-a-vida-20-anos-com--voce recuperado em 27 maio 2021).

18Para uma análise do rádio como agente de letramento, ver Neves (2018).

19O Domingo: semanário litúrgico-catequético é um folheto produzido pela editora Paulus (vinculada à congregação Pia Sociedade de São Paulo) que serve de base para a realização das celebrações. Com tiragem semanal de quase dois milhões de exemplares, O Domingo é um periódico que tem a missão de colaborar na animação das comunidades cristãs em seus momentos de celebração eucarística. Ele é composto pelas leituras litúrgicas de cada domingo, uma proposta de oração eucarística, cantos próprios e adequados para cada parte da missa e duas colunas, uma reflete sobre o evangelho do dia e a outra sobre temas relacionados à vida da Igreja (Silva, 2011).

Referências

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Recebido: 15 de Fevereiro de 2019; Aceito: 22 de Abril de 2021; Publicado: 21 de Junho de 2021

Endereço para correspondência Sonia Maria Alves de Oliveira Reis, Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação - Campus XII, Av. Universitária Vanessa Cardoso, s/n, Ipanema, 46430.000, Guanambi, BA, Brasil. sonia_uneb@hotmail.com

eiterercarmem@gmail.com

anamariadeogalvao@gmail.com

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