A leitura é essencial para a formação e a aprendizagem dos sujeitos, pois através do ato de ler, a criança desenvolve competências e habilidades indispensáveis para a vivência e a atuação na sociedade, ao constituir valores, conceitos morais e éticos, além de atender a múltiplas finalidades de reflexão, criação e recriação no decorrer do processo educativo humano. As narrativas literárias apresentam-se como um espaço privilegiado de reflexão e de dialogicidade entre o real e o imaginário.
Desse modo, costumeiramente são utilizados termos como “era uma vez” ou o “faz de contas” para evocar expressões usadas culturalmente para se referir ao universo da leitura. Nesse contexto, os sujeitos são formados e formadores de histórias, quer sejam advindas da vivência ou da cultura de um povo, quer sejam por enredos lúdico-ficcionais. Outrossim, as transformações sociais e os avanços das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) nas duas últimas décadas fizeram surgir significativas formas de narrar e de contar histórias, que potencializaram a imersão das crianças em enredos lúdicos, propiciaram o acesso a novos espaços de aprendizagem e ampliaram as possibilidades de leitura e expressividade infantil na contemporaneidade.
Para Soares (2002) o letramento digital torna-se de grande relevância no processo de compreensão da utilização de tecnologias digitais para a formação de leitores. Nesse contexto, a autora afirma que a leitura em tela propicia novas relações estabelecidas entre o escritor/texto, escritor/leitor e leitor/texto, de modo a enfatizar a importância do hipertexto, pois as dimensões do texto em tela (hipertexto) são dadas por meio do leitor, ao interligar links e hiperlinks no processo de leitura e de interpretação das informações que lhe são dadas.
Sendo assim, o objetivo desse trabalho é refletir sobre a utilização das narrativas literárias digitais na formação de leitores na segunda infância, de modo a entender como essas influenciam nas experiências ligadas às aprendizagens, dando relevância aos principais sentimentos expressos pelas crianças durante a experiência proposta de manuseio e de interação com conteúdos dessa natureza. Este estudo faz parte do projeto de pesquisa intitulado: “Interação e Aprendizagem de Crianças com narrativas e conteúdos digitais3: um estudo exploratório com crianças de 0 a 8 anos de idade e sua relação com o desenvolvimento psicossocial e cognitivo”, em execução no Grupo de Pesquisa em Formação de Professores, Educação e Contemporaneidade (Forpec), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB/Campus VIII), em parceria com o Grupo de Pesquisa Educação, Tecnologias e Contemporaneidade, da Universidade Tiradentes (UNIT).
Mídia, infância e cenários de aprendizagem
Os nativos digitais estão por toda a parte, impulsionando novos e significativos modelos colaborativos a partir de interações, por meio de dispositivos eletrônicos em rede. Eles modificam estruturas da informação e da comunicação no contexto familiar, educativo e social, de modo a identificar quando uma inovação será de fundamental importância para as relações constituídas. Tapscott (2010) afirma que é por meio das mídias digitais que a criança da geração internet desenvolve e impõe a sua cultura a seus semelhantes, revelando-se como forte agente na transformação social.
Nesse contexto, as crianças imersas em bits e softwares não questionam a presença e a funcionalidade das TDIC em sociedade. Elas simplesmente fazem uso delas como forma de entretenimento, expressividade, comunicação e colaboração. Diferentemente de seus pais, as crianças da cultura digital desenvolvem novas possibilidades de brincar, se comunicar e interagir com seus pares, de modo a potencializar os cenários de aprendizagens nas experiências de socialização e de interação.
A pesquisa TIC Kids Online Brasil 20174 (Núcleo de Informação e Comunicação do Ponto BR [NIC.br], 2018) aponta que 51% de crianças e de adolescentes de nove a 17 anos conectados leem e/ou assistem notícias na internet, apresentando relevante crescimento no consumo de notícias on-line nos últimos anos: em 2013 era de apenas 34%.
Segundo a pesquisa, estima-se que cerca de oito entre dez crianças e adolescentes (85%) com idades entre nove a 17 anos eram usuários de internet no ano de 2017, correspondendo a 24,7 milhões de crianças e de adolescentes nessa faixa etária por todo o País. A pesquisa ainda observou, ao longo dos últimos anos, um crescimento exponencial do uso de dispositivos móveis entre crianças e adolescentes com acesso à web. Em 2012 os dados apontados eram de que 21% acessavam a internet por meio do celular; já em 2017 foram contabilizados 93%, o equivalente a 23 milhões de crianças e adolescentes.
Nesse contexto, pode-se afirmar que boa parte das crianças faz uso da televisão de forma diferenciada de seus pais, esses pertencentes à “Geração TV”. Segundo Tapscott (2010), para muitas crianças e adolescentes, a televisão apresenta-se como uma espécie de música ao fundo. As crianças, frente à TV, estão executando outras atividades simultaneamente, tais como fazer pesquisas escolares, acessar e interagir em várias janelas digitais abertas no computador, brincar em jogos eletrônicos, assistir a vídeos on-line e, até mesmo, enviar mensagens instantâneas aos seus pares através do celular.
Nesse sentido, cabe enfatizar os processos da televisão educativa infantil, destacados por Mazzarella et al., (2009) e Greenfield (1998) quando citam o programa Vila Sésamo, como exemplo de conteúdo televisivo com a finalidade educativa. Nessa reflexão, observam que o planejamento e a adequação à faixa etária adequada, formam narrativas potenciais para o desenvolvimento de habilidades cognitivas nas crianças.
De acordo com Lago e Mozzer (2014), o brincar é um processo histórico constituído socialmente. Logo, as crianças aprendem a brincar a partir das interações com outros membros de sua cultura, e suas brincadeiras possuem hábitos, valores e conhecimentos do grupo social no qual fazem parte. Sendo assim, as crianças pertencentes a uma cultura digital utilizam-se de dispositivos eletrônicos e demais instrumentos midiáticos como novas e enriquecedoras possibilidades de brincar.
Ao apresentar os jogos de televisão como premissa, Levin (2007) enfatiza que a tecnologia traz os videogames e tudo o que resulta deles como constituição do atual brinquedo por excelência. O extraordinário sucesso e a popularização dos videogames ampliaram o alcance desde 1990 do século XX, revolucionando o mercado dos brinquedos e as formas de brincar da criança ao passar das décadas: o brincar em tela, propício da utilização do videogame e dos demais jogos digitais que possibilitam experiências pautadas na interconectividade, interatividade e mobilidade.
Não obstante, as relações estabelecidas, a criatividade e as formas de brincar da criança, acompanham em ritmo desenfreado o avanço das tecnologias digitais. As crianças da cultura digital apresentam-se como colaboradoras, produtoras e recriadoras de linguagens. Elas querem liberdade de escolhas, autonomia para personificar e apropriar-se das coisas. Agem como colaboradoras naturais que gostam de conversar, atuam como analisadoras de informações e narrativas, lutam por integridade, querem diversão dentro e fora dos muros escolares, consideram a velocidade normal, e a inovação faz parte dos cenários de interação e aprendizagens no cotidiano.
Narrativas infantis na cultura digital: mapeando caminhos
O ato de contar e narrar histórias sempre fez parte da humanidade. Antes mesmo do advento da cultura escrita, o homem já apresentava formas de registrar fatos ocorridos em sua vivência, a fim de retratar a historicidade e a cultura de seu povo para gerações futuras. Segundo Machado e Axt (2014), as narrativas, sejam de caráter ficcional ou não, estabelecem meios de apresentar informações e possibilitar uma comunicação entre sujeitos pertencentes à mesma comunidade, antecedendo o advento da cultura escrita.
Desde os primeiros anos de vida da criança, as narrativas se fazem presentes, quer seja por meio da historicidade de um povo, ou por meio de contos e enredos que embalam sonhos, metas e desejos. Para tanto, as narrativas apresentam-se como norteadoras no processo de criação e de desenvolvimento do imaginário infantil. Através da imersão na fantasia, proporcionada por aspectos lúdicos narratológicos, as crianças desenvolvem subsídios indispensáveis para a sua aprendizagem, interação e socialização com seus pares desde a infância.
Nesse contexto, o conceito de infância e as práticas sociais envolvendo esses atores sociais se constituem no curso histórico como sendo um enigma curioso, conforme relata Larrosa (2017) ao descrever sobre o sentimento de descoberta do universo infantil, inclusive no campo científico e nas distintas sociedades. Em muitos casos, a infância foi sendo tratada como fase efêmera e passageira, sendo necessário apressá-la.
Dessa maneira, as transformações sociais nos revelam aspectos importantes no processo de formação cultural infantil. Entre elas, a percepção da criança sobre o mundo, as relações estabelecidas e o seu papel frente aos contextos sociais e as inovações tecnológicas que circundam. Dito isso, é possível compreender as crianças como leitoras e produtoras de enredos que formulam histórias, apresentam informações e constroem meios e trocas comunicativas com seus pares, revelando-se como protagonistas em suas aprendizagens.
Assim sendo, os avanços tecnológicos ocorridos a partir do século XX estabelecem possibilidades enriquecedoras ao ato de contar e recontar histórias, proporcionando a evolução das TDIC em processos criativos, de modo a potencializar os recursos tecnológicos enquanto fonte de aprendizagem e interação social, além de ressignificar o papel das narrativas digitais na formação de leitores infantis contemporâneos.
Soares (2002), abordando os espaços de escrita, cita o computador como um dispositivo eletrônico que amplia as possibilidades de leitura e escrita. Nele, a escrita em tela propicia a criação de um texto diferenciado do texto em papel, o hipertexto, que estabelece novas e significativas relações entre escritor e texto, escritor e leitor e leitor e texto.
Nesse mesmo direcionamento, Alves (2007) ressalta a importância de aprender novas formas de escrita desenvolvidas por meio de imagens e sons que, ao tecer diferentes fios, formam uma rede de múltiplas linguagens. As narrativas ganham novos caminhos de expressão, novos formatos e outros enredos que atuam no imaginário humano.
Não obstante, a imaginação, base de toda atividade criativa do ser humano, apresenta-se em todos os aspectos culturais da vida, possibilitando criações artísticas, técnicas e científicas. Lévy (2014) afirma que a leitura e a interpretação vão sendo modificadas, sendo possível, com o uso das TDIC, resgatar as memórias, atualizar os pensamentos do tempo já vivido e criar novas práticas de leitura e acesso às informações, afinal, “(...) as aparelhagens produtoras de formas culturais, o computador cria um tipo ainda desconhecido de conhecimento e savoir-faire, instaura novas relações entre os códigos, a matéria e a ação” (p. 162).
Santos, Santos e Schneider (2020), falando sobre as mudanças das práticas culturais nas culturas digitais, ressaltam o processo de ressignificação das dimensões da vida social, destacando os modos de produção da cultura com ênfase nas linguagens hibridizadas, coletivas e interativas, cultivadas nas experiências com os dispositivos digitais.
Desse modo, o ciberespaço surge como uma possibilidade enriquecedora no processo de criação, leitura e interpretação de histórias. Para Chartier (1994), as relações estabelecidas entre o leitor e o texto em tela apresentam-se como uma revolução no espaço da escrita. Elas abrem imensas possibilidades aos processos cognitivos dos sujeitos através de representações textuais eletrônicas.
Prado, Laudares, Viegas e Goulart (2017) descrevem que as narrativas digitais passam a ocorrer por meio da produção textual, nas experiências de interconexão, nos espaços característicos da cibercultura, a exemplo das comunidades virtuais, onde crianças, jovens e adultos se apropriam dos processos audiovisuais e tecnológicos, agregando sentidos à leitura. Assim, as narrativas se apresentam com novas roupagens e significações na formação cultural das crianças por meio de sua imersão em espaços virtualizados.
Para tanto, é preciso compreender os processos de digitalização da cultura infantil, conhecer caminhos, comportamentos e relações estabelecidas através de narrativas digitais e suas contribuições na transformação, aprendizagem e interação social infantil na contemporaneidade – abordadas nesta seção, a fim de ressignificar sentidos, desejos e imaginação em amplas possibilidades de leitura, criação, expressão e aprendizagens infantis propiciadas em mundos virtualizados.
Martins e Santos (2019) destacam que a emergência de uma pedagogia da hipermobilidade demarca novos tempo e espaços que privilegiam a formação de experiências com o uso de aplicativos ubíquos, considerado as mudanças tecnológicas, sendo importante olhar para os praticantes culturais, nesse caso, as crianças, atentos ao modo como produzem sentidos e dão significado aos saberes e conteúdos nestes dispositivos moveis digitais. Corroborando com esse pensamento, Santos e Lucena (2019) reforçam que, na sociedade em rede, potencializada pelos fenômenos da cultura digital é necessário promover contextos comunicativos pautados nas experiências formativas, capazes de extrapolar a dimensão apenas técnica do uso dos dispositivos.
Nesse contexto, as crianças, em contato com os diferentes instrumentos midiáticos e dispositivos móveis de informação e comunicação, apresentam-se conectadas ao ciberespaço em boa parte do tempo. Segundo dados do Ibope Nielsen Online – NetView divulgados em agosto de 2015, as crianças de dois a 11 anos que acessam a internet em casa já ultrapassam 4,5 milhões no Brasil. Sendo assim, a pesquisa TIC Crianças5 (NIC.br, 2010) aponta uma expressiva proporção de crianças (57%) que utilizam computadores na escola, em lan houses e em casa. Por conseguinte, entre as atividades diárias realizadas através do uso do computador por crianças, está a realização de desenhos (80%) e escrita de textos (64%). Não obstante, segundo as entrevistas realizadas, 97% das crianças utilizam a rede para jogar, preferindo sites com desenhos e personagens parecidos com os que assistem na TV.
A pesquisa ainda revela que o uso do celular ultrapassa o uso do computador, atuando como uma das tecnologias mais presentes no cotidiano da criança pequena, pois 65% já usaram um aparelho e 14% têm um. Nesse sentido, o uso do telefone móvel é destinado aos jogos (88%), a ouvir música (60%) e a se comunicar; e conclui-se que 64% já ligaram para alguém do próprio celular (pais ou amigos).
De acordo com a pesquisa, o acesso à internet acontece a partir dos três anos de idade. Antes disso, prevalece o uso da televisão, tornando a rede como referência entre oito a 12 anos, fase em que as crianças estão em processo de alfabetização. Desse modo, a criança em rede também atua como um agente que analisa, interpreta, comenta, cria e publica conteúdos nesta era de conectividades.
O mesmo acontece quando a criança em contato com uma câmera de vídeo ou celular; apresenta-se envolvida ao interagir com o dispositivo eletrônico da mesma forma que interage com um de seus semelhantes.
Assim sendo, os comportamentos e as relações estabelecidas entre as crianças e os diversos instrumentos tecnológicos digitais levam-nos a refletir sobre a digitalização em curso. Segundo Lucena (2016), denominam-se como cultura digital as novas formas de culturas potencializadas por meio de tecnologias digitais conectadas em rede. A ela, soma-se o uso de dispositivos móveis que propiciam novas potencialidades, a partir de sua amplitude no mundo e da modificação das formas de produção, interpretação e veiculação na sociedade. Santos e Schneider (2020) ampliam essa ideia destacando que:
O elemento digital e a radicalidade possível com a mobilidade das experiências nos dispositivos de acesso ao ciberespaço, forjaram mediações desterritorializadas, permitiram não só o encurtamento das distâncias, a flexibilizando a explorarão de novas relações aproximativas, o convívio e cultivo de narrativas online, dentro de um quadro não estável, ao contrário fluido, controverso e tensionado pelas diferentes formas de comunicação por distintos agrupamentos. (p. 8)
Esses são indícios das mudanças ocorridas no cotidiano das práticas socioculturais, pautadas em produtos e serviços acessados por dispositivos digitais caracterizados pela hipermobilidade, ubiquidade, interatividade e interconexão, mais do que nunca, cultivada em ambiências de linguagens com o digital. Para Prensky (2019), crianças aprendem facilmente uma nova linguagem e resistem com vigor ao uso de uma velha. Nesse sentido, explica-se a familiaridade do público infantil com os diferentes e os diversificados instrumentos tecnológicos de informação e de comunicação na contemporaneidade, de modo a potencializar suas aprendizagens, o brincar e o conjunto de interações em sociedade. Faz-se necessário, então, mapear alguns comportamentos e relações estabelecidas por uma infância digital contemporânea.
Percursos metodológicos da pesquisa
Por tratar-se de uma pesquisa de caráter educativo e social, a abordagem qualitativa inspirada na multirreferencialidade, explicitada por Macedo (2015), tomou como possibilidade a vivência de uma experiência com crianças, buscando entender os caminhos, expressões e sentidos esboçados por elas ao imergirem em narrativas literárias por meio dos dispositivos digitais móveis de comunicação e de interação.
Trata-se de uma pesquisa implicada com o cotidiano, situada na emergência de outros estilos e de produções culturais das crianças, com a finalidade de entender a formação de leitores infantis por meio das narrativas digitais. Esta pesquisa foi realizada com dez crianças com idades de cinco a seis anos, residentes no município de Paulo Afonso, no estado da Bahia, em fase de desenvolvimento da segunda infância e regularmente matriculadas em uma escola da rede municipal. A escolha das crianças, participantes deste estudo, levou em consideração os seguintes critérios: (a) crianças nascidas na cultura digital; (b) crianças em fase de desenvolvimento na segunda infância; (c) crianças pertencentes a uma turma de segundo período da educação infantil. Em função da delimitação da análise e levando em consideração o sigilo nominal, optou-se por criar uma numeração para as crianças, conforme será percebido no texto.
Os principais instrumentos utilizados durante o processo desta pesquisa foram: a filmagem e a observação participante ativa, realizadas durante a oficina denominada “Ciberliteratura Infantil: as mídias também contam histórias”, planejada e executada com o intuito de propiciar às crianças a imersão de narrativas literárias digitais, por meio dos dispositivos móveis.
Os recursos tecnológicos utilizados nas atividades foram: projetor e caixa de som, cedidos pela escola e, dispositivos móveis, tablets e smartphones, providenciados pelos mediadores/pesquisadores envolvidos no estudo. Salienta-se que as crianças que participaram do estudo tiveram o contato com os dispositivos móveis exclusivamente em ambiente familiar para acesso a conteúdos e narrativas, por meio de equipamentos cedidos pelos pais, uma vez que a escola não dispõe de tais tecnologias.
Discussão e resultados da experiência
As atividades executadas com as crianças na oficina foram: rodas de conversa interativa, exposição do vídeo-poesia As histórias do dedão do pé do fim do mundo e a exploração do aplicativo “Crianceiras” (ambos constituídos por poesias de Manoel de Barros), e a exposição do trailer book Como apanhar uma estrela. Essas atividades são descritas e analisadas a seguir.
Deu-se início à oficina com um breve diálogo com as crianças, de modo a explorar, por meio da conversa interativa, os elementos que contextualizam a imersão das crianças na cultura digital, visando à utilização de recursos tecnológicos em âmbito familiar e social, além de constituir um contato inicial e um envolvimento com as crianças. Quando questionadas sobre o uso do tablet ou do celular, as crianças de ambos os grupos relataram manusear dispositivos móveis no âmbito familiar com muita frequência.
Em seguida, na apresentação das atividades a serem desenvolvidas ao longo da oficina, perguntou-se às crianças sobre as narrativas que tinham acesso em casa. As crianças relataram ter contato com contos clássicos e narrativas transmidiáticas referentes a desenhos animados e enredos fílmicos. Sendo assim, as principais narrativas/personagens apresentadas por elas foram: Rapunzel, Elza (personagem da animação Frozen), Tiranossauro Rex, Homem Aranha, Branca de Neve e Cinderela.
Ademais, na apresentação das narrativas que têm contato no âmbito de socialização, algumas crianças enfatizam o acesso às histórias por meio de dispositivos tecnológicos e recursos audiovisuais. Isso é notório no relato da Criança 1, quando verbaliza a seguinte frase: “Eu assisto Branca de Neve no meu tablet e na televisão”. (Criança 1, comunicação pessoal, 22 nov. 2018) Ou no questionamento da Criança 2, quando traz para o diálogo a seguinte pergunta: “Você já assistiu a história do pé de feijão?”, (Criança 2, comunicação pessoal, 22 nov. 2018), referindo-se ao conto clássico João e o pé de feijão.
Fonte: Registro fotográfico realizado pelos autores na Oficina de Literatura Digital, em novembro de 2018.
Não obstante, no decorrer da roda de conversa, um dos alunos que sinalizou anteriormente gostar da “história do Homem Aranha” após breve diálogo com o colega sentado ao lado, levanta-se e começa a fazer gestos parecidos com o personagem, tais como “jogar a teia” e pular. Para Greenfield (1988) o movimento visual de narrativas televisadas auxilia na aprendizagem ao tornar as informações por meio de ações mais fáceis de serem lembradas. Segundo a autora, enquanto no livro (embora descritas na narração) as ações apresentam-se implícitas, na televisão ou no cinema as ações apresentam-se visualmente explícitas, de modo que quando a criança é lembrada da história em versão televisada, posteriormente também utiliza-se de ações para retratá-la.
Além disso, os movimentos visuais da televisão ou do cinema atraem a atenção da criança, imergindo-a no contexto ou na narrativa exposta na tela. Nesse sentido, no decorrer da exposição do vídeo-poesia, foi notório o envolvimento de grande parte das crianças observadas. Algumas buscavam se aproximar da tela para melhor visualização, outras apontavam para a tela, enquanto algumas apresentavam-se atentas e envolvidas com os olhos fixados e as bocas entreabertas. Nesse direcionamento, Levin (2007, p. 34) enfatiza que “o espelho cultural da televisão liga a criança com uma rede de ideias, sentidos, imagens e sensações afetivas rápidas, fragmentárias e simultâneas”. Enquanto para Greenfield (1988), os recursos visuais dinâmicos da televisão propiciam o ajuste de operações mentais que compõem o processo de leitura da criança.
Cabe mencionar que tanto o uso dos dispositivos digitais por crianças, quanto a exposição delas a tais artefatos, embora não seja a pretensão desse artigo, perpassa também por dilemas cotidianos, como por exemplo, alterações de humor, dificuldade de concentração ou reflexos físicos decorrentes do tempo excessivo de utilização etc. Já existem pesquisas e estudos que buscam entender e aprofundar essas questões, com destaque para as pesquisas no campo da saúde.
Falando sobre o tema da dependência digital, Schneider, Santos e Santos (2020) destacam a necessidade de ponderar e manter-se alerta aos comportamentos de crianças, jovens e adultos que possibilitem visualizar a saturação do corpo e das relações virtualizadas que podem desencadear distúrbios, dentre eles, “(...) a dependência, ansiedade, isolamento social, pânico, alucinação, inabilidade, dentre outros” (p. 13). Ainda segundo eles, esses fenômenos decorrentes das experiências digitais apontam para a necessidade de uma reeducação dos usos, do tempo de exposição às telas, prevalecendo em todos as situações necessidade de mediação, especialmente das crianças que transitam nessas ambiências de interação.
Por outro lado, o uso do movimento pode ser utilizado para prender a atenção da criança no decorrer da atividade audiovisual proposta, de modo a estimular processos cognitivos infantis no processo de iniciação da leitura. Porém, durante a observação das crianças imersivas no vídeo-poema, pode-se notar que isso não ocorre com todas as crianças. Em alguns momentos do vídeo, um dos meninos afasta-se e começa a explorar a sala, enquanto alguns buscavam a todo o momento solicitar ir ao banheiro, perdendo o foco da narrativa literária exposta.
Ao longo da exposição do vídeo-poesia, três meninas sentadas ao lado questionavam a todo o momento: “Depois dessa história a gente vai fazer o quê? (Criança 3, comunicação pessoal, 22 nov. 2018). A gente também vai mexer no tablet?” (Criança 4, comunicação pessoal, 22 nov. 2018). Provavelmente, esta ansiedade para a execução da próxima atividade a ser proposta foi devido à visualização dos aparelhos e dos dispositivos móveis na sala.
Ainda durante a exposição do vídeo-poesia A história do dedão do pé do fim do mundo, observaram-se algumas expressões, como risadas estimuladas por risos presentes na sonorização da narrativa, olhos atentos à tela, crianças imitando o movimento do desenho ilustrativo do poema com a cabeça, sorriso explícito e verbalização de algumas palavras ou pequenas frases tais como: “uau”, “eita, olha!”, “quantas mãos...” (Criança 5, comunicação pessoal, 22 nov. 2018). Isso explica-se a partir das concepções de Vygotsky (2007) sobre o desenvolvimento da percepção e da atenção da criança. Para o autor, a criança inicia o processo de percepção do mundo não somente por meio dos olhos, mas também por meio da fala. Assim, a linguagem e a percepção estão ligadas, pois, de acordo com o autor, a linguagem apresenta um grande papel no processo de percepção infantil, de modo que a partir de tendências implícitas naturais do processo de percepção visual, elementos independentes em um campo visual apresentam-se simultaneamente com a linguagem.
Ademais, ao longo da exposição do vídeo-poesia, foram observados a expressão e o questionamento da Criança 5, quando no vídeo-poesia é narrado a seguinte rima do poema “Brincadeiras” de Manoel de Barros (2016):
O céu tem três letras.
O sol tem três letras.
O inseto é maior...
O que parecia um despropósito, para nós não era despropósito.
Porque o inseto tem seis letras e o sol só tem três.
Logo o Inseto é maior.
Ao ouvir a narração da rima poética, a Criança 5 começa a questionar com expressão de surpresa e olhos voltados aos mediadores, questionando: “Três? O céu só tem três?! E o inseto é maior que o céu e o sol?! Ah, é porquê o inseto tem seis né?!” (Criança 5, comunicação pessoal, 22 nov. 2018). Nessa verbalização da Criança 5, nota-se uma comparação do poema narrado com o mundo real. A partir do processo de generalização, a criança está fazendo um paralelo entre o “objeto” e a constituição da palavra. Para Vygotsky (2007), a elaboração conceitual é sempre mediada pela palavra, de modo que a palavra se torna a primeira mediadora do processo de conceituação para, em seguida, tornar-se símbolo, no qual a criança explora o real, o material sensorial e opera intelectualmente a partir da constituição da palavra por meio de interlocuções.
Não obstante, Scheibe (2009) retomando as ideias de Piaget, afirma que as crianças desenvolvem ativamente a compreensão do mundo por meio de contínuos processos de assimilação, ao incorporar novas informações e conhecimentos aos já existentes, além do processo de acomodação, através da reorganização das formas de entendimento, levando-se em conta as novas informações obtidas.
Após a finalização do vídeo-poesia, em um diálogo sobre a narrativa literária visualizada, as crianças explicitam os aspectos narrativos que mais gostaram do poema exposto. Entre os relatos, apresentam-se elementos fragmentados: “Eu gostei do passarinho” (Criança 6, comunicação pessoal, 22 nov. 2018); “Eu gostei mais do sol”, (Criança 7, comunicação pessoal, 22 nov. 2018); “não, eu gostei mais quando ele estava com um monte de mãos”; (Criança 8, comunicação pessoal, 22 nov. 2018); “E eu gostei do dedão que vira mundo” (Criança 9, comunicação pessoal, 22 nov. 2018). De acordo com Scheibe (2009) as crianças pequenas geralmente perdem ou esquecem informações que dão sentidos às histórias, podendo lembrar-se apenas de elementos que foram importantes para elas, como características sonoras e visuais, mesmo quando não estão diretamente relacionados ao enredo narratológico. Por conseguinte, entre o diálogo sobre os aspectos do vídeo-poesia, a Criança 10 traz uma contribuição interessante a respeito dos aspectos narratológicos do poema apresentado da seguinte forma:
Eu gostei da parte que dava para fazer brinquedo com a letra. (Criança 10, comunicação pessoal, 22 nov. 2018)
E como a gente pode fazer brinquedo com a letra? (Mediador, comunicação pessoal, 22 nov. 2018)
Ao fundo: Montando... (Criança 6, comunicação pessoal, 22 nov. 2018)
Porque quando a gente faz palavra, a gente pode brincar. (Criança 10, comunicação pessoal, 22 nov. 2018)
Neste relato, a Criança 10 traz aspectos importantes do poema de Manoel de Barros: ao fazer poemas a gente pode brincar com as letras e as palavras, de modo a agregar sentimentos e imaginação ao longo da obra poética, que visa de uma forma única e especial tocar corações. Segundo Levin (2007), o brincar para a criança é imaginar, evocar e pensar. É um ato estrutural criador de experiência infantil, no qual suscita-se questionamentos ao mundo contemporâneo. Sendo assim, as obras poéticas possibilitam a concepção de elementos vivenciais por meio dos detalhes e sentidos no brincar com as palavras, adquirindo grande relevância ao processo de imaginação e criação infantil.
Fonte: Captura de tela realizada pelos autores por meio do dispositivo móvel utilizado na Oficina de Literatura Digital, em novembro de 2018.
Fonte: Captura de tela realizada pelos autores por meio do dispositivo móvel utilizado na Oficina de Literatura Digital, em novembro de 2018.
Nestas concepções, ao analisar os desenhos virtuais a partir do contato e da imersão das narrativas poéticas musicadas no aplicativo Crianceiras,6 as crianças representam os respectivos personagens, alguns aspectos de acontecimentos e a representação dos cenários no qual os enredos poéticos acontecem, de modo a tornar-se significativa a experiência de imersão literária através de dispositivos móveis digitais. De acordo com Levin (2007), quando as imagens são utilizadas pelas crianças para brincar e criar, tornam-se grande potencial de estímulos e descobertas. Diz ele:
(...) quando as imagens digitais controladas pelo mundo adulto são usadas pelas crianças para brincar, inventar e recriar a realidade, constituindo novos espelhos, a curiosidade se expande e pode estimular novas descobertas. Nesses, a imagem não aprisiona nem detém o devir infantil, pois ela joga o jogo multivocal da linguagem. (Levin, 2007, p. 37)
Diante das observações realizadas, nota-se que os registros, as criações e os sentimentos expressos apresentam grande relevância no processo de desenvolvimento e de aprendizagem das crianças. Ao interagir com as narrativas digitais e seus pares no período de realização das atividades propostas na oficina, foram perceptíveis os sorrisos, a troca de olhares, o encanto entre a visualização dos poemas, a partilha de achados e descobertas no aplicativo com os colegas, o envolvimento e a participação ativa dos pequenos leitores, de modo a agregar sentidos e a ressignificar a importância de atividades lúdicas e narratológicas digitais nas aprendizagens de crianças em fase pré-escolar.
Não obstante, torna-se relevante destacar os pontos conflitivos e dificuldades vivenciadas ao longo da experiência: em alguns momentos, as crianças apresentaram-se dispersas, querendo explorar o espaço físico utilizado para a execução da oficina, pois o mesmo, aparentemente, não faz parte do uso contínuo das crianças participantes. Em alguns momentos, as atividades precisaram ser interrompidas devido a uma solicitação da coordenação pedagógica, para a realização de atividades presentes na rotina das crianças, como o período de intervalo escolar, sendo necessário flexibilizar o plano de ações da oficina literária digital proposta.
Apontamentos (in)conclusivos
Estudar o modo como as crianças se apropriam de elementos narratológicos disponibilizados através de dispositivos digitais tornou-se uma experiência fascinante. Dessa análise, emerge a necessidade de aprofundar os desdobramentos sobre o uso e os sentidos utilizados por elas no contato com os dispositivos digitais, especificamente aqui, o manuseio e a imersão com narrativas literárias digitais. Por essa razão, os apontamentos que se seguem, em consonância com a natureza exploratória desse estudo, são apresentados como apontamentos investigativos não conclusivos da experiência realizada.
Sendo assim, um dos principais elementos constituintes desta pesquisa foi o de caráter formativo, advindo da complexidade e da relevância que o objeto possui, além das implicações e dos sentidos dos sujeitos envolvidos. Quer seja da inquietude, da ansiedade e da curiosidade por novas descobertas digitais dos pequenos partícipes, quer seja das incertezas, dos receios, do engajamento e dos sentidos expressos durante a proposta da pesquisa-formação.
Ao longo do presente estudo, foi oportunizado às crianças a experiência da imersão em narrativas literárias digitais e transmidiáticas que ampliam as potencialidades de leitura, expressão e criação por meio de recursos audiovisuais e dispositivos eletrônicos móveis durante a oficina literária digital proposta. A partir das observações in loco através dos registos de filmagem, foi possível entender que as narrativas digitais de comunicação atuam como potencializadoras de competências cognitivas infantis a partir da memória, da imaginação, da criação, da atenção e da interpretação narratológica.
As narrativas digitais também atuam no processo de imaginação, criação e expressão de sentidos e emoções das crianças. Nesse contexto, quanto aos principais sentimentos expressos pelas crianças, ao manusearem narrativas digitais durante a experiência proposta, evidenciam-se ao longo de toda a experiência de aprendizagem sorrisos acompanhados de gargalhadas, olhos atentos e bocas entreabertas, demonstrando curiosidade e surpresa, gestos corporais como o balançar da cabeça, o pular ou, até mesmo, dançar enfatizando o envolvimento, a alegria e o prazer ao se manusear, ouvir e visualizar as narrativas literárias digitais apresentadas no decorrer da oficina executada.
Quanto ao que expressam as crianças sobre a experiência de imersão com narrativas digitais de comunicação durante a experiência vivida na oficina de literatura digital, observa-se que, ao longo das atividades propostas na oficina, as crianças apresentam-se envolvidas, participativas e imersas nos enredos narratológicos explorados durante a experiência, de modo a apresentar as narrativas digitais de sua preferência em âmbito familiar e social, as percepções e as curiosidades sobre os aspectos constituintes das narrativas literárias propostas, além de enfatizar os elementos narratológicos que mais lhes chamaram a atenção no processo de aprendizagem vivenciado.
Por outro lado, dentre as dificuldades vividas durante a sistematização da experiência, se destaca a resistência da instituição escolar para a realização da oficina, oferecendo apenas um horário parcial para a execução da pesquisa. Levando em consideração a ausência de recursos tecnológicos na escola para realização dessa experiência, foram providenciados tablets e celulares smartphones para uso durante a experiência.
Considerando a atividade proposta com as crianças e o seu protagonismo enquanto atores sociais e leitoras de múltiplas linguagens midiáticas, destaca-se como apontamento relevante a ideia da criança como sendo autora-produtora de narrativas que vão além dos enredos apresentados nas histórias disponibilizadas. Na experiência, destaca-se a criação de novos enredos e personagens que ultrapassam as ideias previamente pensadas, corroborando a ideia de que as narrativas digitais podem potencializar o repertório de linguagem e, consequentemente, o estímulo de funções cognitivas, relevantes nessa fase de desenvolvimento.
As narrativas digitais de literatura atuam como potencializadoras no desenvolvimento de competências e de habilidades cognitivas indispensáveis ao processo formativo de crianças, sinalizando a sua incorporação enquanto proposta potencial e alternativa capaz de reinventar o desenvolvimento das aprendizagens infantis vividas nas culturas infantis contemporâneas, demarcadas pela presença dos dispositivos narratológicos digitais.