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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.44 no.2 Porto Alegre maio/ago 2021  Epub 25-Abr-2022

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2021.2.33168 

Outros Temas

O status público da instituição comunitária: bem público, responsabilidade social e processos democráticos

The public status of the community institution: public good, social responsibility and democratic processes

El estado público de la institución comunitaria: bien público, responsabilidad social y procedimientos democráticos

Raquel Paula Fortunato1 

Doutoranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF), em Passo Fundo, RS, Brasil; bolsista CAPES/PROSUC.


http://orcid.org/0000-0002-3480-3886

1Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, RS, Brasil.


Resumo:

Este ensaio discute a educação superior como um bem público, criticando a sua transformação em um mero serviço de mercado. Face ao esgotamento dos modelos estatista e privatista de organização acadêmica, incapazes de dar conta da complexidade que permeia a realidade empírica, busco refletir e analisar o conceito de bem público no contexto público não estatal. O campo investigativo teórico apoia-se em Dewey, Nussbaum e Marginson, dentre outros, com vistas a evidenciar concepções de público, conceitos de compromisso social e de colegialidade, bem como os desafios contemporâneos das instituições de educação superior diante da hegemonia do pensamento neoliberal. Por fim, através de dedução lógica entre tal referencial teórico e revisão da literatura sobre as instituições comunitárias, argumento que, para manterem o status e a concepção de públicas, faz-se necessário que tais universidades promovam ações voltadas ao bem comum, a responsabilidade social e a gestão colegiada e democrática.

Palavras-chave: educação superior; público não estatal; bem público; compromisso social; gestão colegiada e democrática

Abstract:

This essay discusses higher education as a public good, criticizing its transformation into a mere market service. Before with the exhaustion of the state and private models of academic organization, unable to handle for the complexity that permeates the empirical reality, aim to reflect and analyze the concept of public good in the non-state public context. The theoretical research field is based on Dewey, Nussbaum and Marginson, among others, to highlight public conceptions, concepts of social commitment and collegiality, as well as the contemporary challenges of higher education institutions in the face of neoliberal hegemony. Finally, through a logical deduction between such a theoretical reference and a review of the literature on community institutions, argument that in order to maintain the status and conception of publics, it is necessary that such universities promote actions aimed at the common good, social responsibility and collegiate and democratic management.

Keywords: higher education; non-state public; public good; social commitment; collegiate and democratic management

Resumen:

Este ensayo discute la educación superior como un bien público, criticando su transformación en un mero servicio de mercado. Ante el agotamiento de los modelos estatista y privatista de organización académica, incapaces de atender la complejidad que impregna la realidad empírica, busco reflexionar y analizar el concepto de bien público en el contexto público no estatal. El campo investigativo teórico se apoya en Dewey, Nussbaum y Marginson, entre otros, con vistas a evidenciar concepciones de público, conceptos de compromiso social y colegialidad, así como los desafíos contemporáneos de las instituciones de educación superior ante la hegemonía del pensamiento neoliberal. Por último, a través de deducción lógica entre tal referencial teórico y revisión de la literatura sobre las instituciones comunitarias, argumento que, para mantener el status y la concepción de públicas, se hace necesario que tales universidades promuevan acciones dirigidas al bien común, la responsabilidad social y la gestión colegiada y democrática.

Palabras clave: educación superior; público no estatal; bien público; compromiso social; gestión colegiada y democrática

Analisar as configurações que as instituições de educação superior têm adotado na contemporaneidade, faz-se necessário, principalmente para compreender os novos fenômenos e as realidades das instituições, observando as potencialidades e os múltiplos e complexos desafios existentes. Ao delimitar a temática, o presente ensaio investiga a Instituição Comunitária de Ensino Superior (ICES), uma vez que representa um importante modelo da educação superior brasileira, distinta do modelo público estatal e do modelo privado, caracterizada como um modelo público não estatal.

Vivemos tempos em que o mundo da educação superior está em efervescência como nunca antes, impregnado por um processo “prenhe de tensões” (Adorno, 1996, p. 390). Compreendidas em um cenário cambiante da sociedade, do Estado e do mercado, a instituição comunitária encontra-se tensionada, por um lado, para o crescimento econômico, com adesão a um estilo gerencial próprio à competição no mercado e, por outro, a manter atividades voltadas ao seu compromisso social de serviço à comunidade. Equilibrar os compromissos acadêmicos e regionais, bem como, manter a sustentabilidade econômico-financeira, buscando estratégias de colocação no mercado, é o grande desafio. Isso, considerando que, nas últimas décadas, a educação superior enfrentou um ambiente altamente competitivo, de forte concorrência das instituições privadas mercantis (com fins lucrativos) e de grande expansão das instituições públicas estatais (universidades estaduais e federais).

Deste modo, repensar o propósito da educação superior e o seu princípio como um bem público nunca foi tão urgente, pois conforme argumenta Marginson (2011), se a educação superior for esvaziada de um propósito público comum a longo prazo, sua sobrevivência é incerta. Especificamente, no âmbito da discussão sobre bem público e bem privado, muitos compreendem a educação superior como bem privado, concebem-na como um serviço comercial, submetido à lógica do mercado e ao desenvolvimento econômico, uma visão neoliberal apoiada pelo Banco Mundial, conforme documento divulgado em 1998 (World Bank, 1998). Já outros, entendem a educação superior como bem público, são críticos aos processos de mercantilização e de instrumentalização das instituições em favor do mercado, argumentam que o conhecimento não é uma mercadoria e, sim, um bem gerado na educação superior, que se constitui como um bem coletivo e, portanto, um bem público, pensamento defendido pela UNESCO em documento publicado em 2009.

Proteger o princípio da educação e do conhecimento como bem público no atual cenário de emergência de mercados, é imprescindível para a educação superior, em especial, para as instituições comunitárias que carregam em sua missão propósitos públicos comuns, voltados ao desenvolvimento social, econômico e cultural das comunidades nas quais estão inseridas.

Entretanto, conceber o ensino superior como um bem público no espaço púbico não estatal das comunitárias, requer investigar e problematizar, o que a legitima como instituição pública. E, ainda, como as instituições comunitárias mantêm o status e a concepção de públicas? Visando, responder esse problema, busco precisar concepções de público, de compromisso social e de gestão democrática colegiada no ambiente das ICES.

Neste sentido, o ensaio tem como objetivo nuclear, refletir e analisar o conceito de bem público no contexto da universidade comunitária, observando seu estatuto social e democrático, à luz dos desafios do mercado econômico, em tornar a educação um serviço comercial.

A pesquisa é de natureza bibliográfica. Com influência na tradição norte-americana, aborda reflexões acerca das obras O público e seus problemas (1927) e Democracia e educação (1959), do filósofo, ativista social e pensador John Dewey, o qual contribui para que se reflita sobre a construção do bem público/bem comum, a relação público-privado, a “grande sociedade” e a “grande comunidade”, a concepção de democracia e a compreensão de público. Inspira-se também, no trabalho contemporâneo, ético e político da visionária acadêmica Martha Nussbaum, através da obra Sem fins lucrativos: porque a democracia precisa das humanidades (2015), para situar no atual contexto de globalização econômica do conhecimento, a tendência de transformação da educação em mercadoria, empobrecida no que diz respeito às artes e às humanidades e, ainda, a eminente ameaça ao vigor da vida democrática.

Complementando a revisão literária, aborda-se o ensaio “Higher Education and Public Good” (2011), do Australiano pesquisador e professor da educação superior Simon Marginson, o qual busca superar a dicotomia e o reducionismo das distintas concepções de público-privado e apresenta noções de público. Demais artigos científicos, específicos ao tema, também serão analisados, como “O comunitário em tempos de público não estatal” (2010), do professor doutor em Ciência Política, João Pedro Schmidt, dentre outros.

O “estudo da arte investigativa” está estruturado em quatro grandes pilares. O primeiro, trata da disposição inata das IES comunitárias de caráter público não estatal, destacando o princípio de comunidade e a concepção de público não estatal. O segundo, apresenta a educação e o conhecimento como bens públicos e bens comuns, criticando a concepção de bem privado à educação superior. Já o terceiro, expõe a relação orgânica entre bem público e compromisso social, atinentes aos interesses da sociedade. E, o quarto e último momento, destaca o aspecto público, no âmbito do compromisso social e da forma democrática de gestão colegiada nas decisões das IES comunitárias. Por fim, apresenta as inferências do estudo, ora construídas, dado o limite e inacabamento da temática em discussão.

A disposição inata das IES comunitárias de caráter público não estatal

As instituições comunitárias de educação superior são organizações da sociedade civil brasileira, que possuem características singulares, se distinguem claramente das instituições públicas estatais e das privadas, denominando-se como públicas não estatais. Para melhor compreender o que é essa denominação e o diferencial da proposta, a pesquisadora Bittar (2011, p. 219) esclarece:

Procurando diferenciar-se do chamado ensino privado “empresarial” ou “comercial”, os representantes dessa IES passam a denominar suas instituições como “públicas não-estatais”, indicando que este seria o aspecto inovador de suas propostas, isto é, pelo fato de prestarem um serviço público, caracterizado pelos trabalhos sociais desenvolvidos com as populações de baixa renda, aproximam-se do setor público estatal, distanciando-se do segmento estritamente particular.

Em um Estado carente de sinergia com a sociedade civil e o mercado, o público não estatal assenta-se como uma potência política bastante interessante e promissora ao país. Por seu ideário democrático, pode contribuir ao compartilhar com o Estado e com as organizações da sociedade civil a tarefa de oferecer serviços públicos de qualidade, uma vez que os modelos de organizações acadêmicas disponíveis são insuficientes ou inapropriados, para atender de forma satisfatória as expectativas da sociedade, principalmente, quanto ao acesso, à qualidade e ao custo acessível.

O “público não estatal” também é identificado como “privado, porém público”, “privado sem fins lucrativos” ou “terceiro setor”, uma combinação de termos derivados da distinta concepção de público-privado (Fernandes, 2002). De acordo com o que propõe Marginson (2011), a noção de público não estatal articula a combinação de uma concepção de origem econômica e outra de origem política, ou seja, o público e o privado na educação superior se mesclam, afastando assim ideias reducionistas deste campo que, comumente, associam o público com o estado e o privado com o mercado. Para o autor, o misto das perspectivas econômicas e políticas possibilitam maior alcance, superando lacunas que ora uma ou outra não contemplariam.

A universidade púbica não estatal, representa na atualidade um modelo de organização híbrida,2 pois, ao mesmo tempo que é independente do Estado, tem forte missão pública, ou seja, características públicas e privadas coexistem. Deste modo, o que a distingue da instituição privada mercantil é sua missão pública de compromisso regional e comunitário. Para Schmidt (2008, p. 57), “o público não-estatal é aplicável propriamente às universidades comunitárias em sentido estrito, que partilham características centrais ao que se pode ser considerado efetivamente público”.

O debate sobre o público não estatal ganhou força a partir dos anos de 1980. Foi reconhecido e legitimado no texto da Carta Constitucional de 1988, a qual incorporou em seu artigo 213 a especificidade da educação comunitária. O artigo prevê que as universidades comunitárias, em suas atividades de pesquisa e de extensão, poderão receber apoio financeiro do Poder Público.

O status de universidade comunitária foi alcançado pela Constituinte de 1988, no entanto, o caráter público não estatal de compromisso regional e comunitário, que essas instituições efetivamente exerciam, somente foi reconhecido a partir da Lei n.° 12.881/2013, referida atualmente como Lei das Comunitárias. O artigo 1.° da Lei das Comunitárias, destaca um conjunto de características e de qualificações que tornam essas universidades um modelo singular, quais sejam: (a) as ICES são organizações da sociedade civil e do poder público, as quais detêm o patrimônio; (b) são constituídas na forma de associação ou fundação, com natureza jurídica de direito privado; (c) são instituições sem fins lucrativos, sendo o lucro financeiro reinvestido na própria instituição; (d) apresentam transparência administrativa-financeira, publicitando resultados e relatórios; (d) têm profunda inserção na comunidade regional e com o seu entorno; (e) estabelecem em seu estatuto, a participação de representantes da comunidade acadêmica (docentes, estudantes e técnicos administrativos) em órgãos colegiados deliberativos da instituição; e (f) prescrevem, em caso de extinção das atividades, que o patrimônio seja destinado a uma instituição pública ou congênere (Brasil, 2013).

No entanto, nem todas as instituições que se identificam como comunitárias, de fato, preenchem os requisitos do público não estatal. Bons exemplos de universidades comunitárias regionais, encontram-se no Sul do país, mais especificamente, nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Nessas instituições as características de público não estatal evidenciam-se de modo mais claro, ou seja, o núcleo do discurso e dos documentos dessas instituições é a identidade pública não estatal. As instituições gaúchas e catarinenses estão fortemente marcadas pelo caráter coletivo, pela gestão democrática e pela transparência administrativa (Schmitd, 2008). Segundo Longhi (1998), as universidades comunitárias são instituições de vocação regional, comprometidas com o desenvolvimento social, econômico e cultural das comunidades nas quais estão inseridas.

A instituição pública não estatal, ao prestar um serviço público de interesse coletivo, caracterizado pelos trabalhos sociais à comunidade, busca promover o bem público, ou seja, um bem comum que os seres humanos compartilham e comunicam entre si, um bem que consiste em ser uma comunidade, na qual todos alcançam seu bem-estar.

Para melhor compreender a identidade comunitária das universidades, é pertinente observarmos a concepção do termo comunidade a partir da visão deweyana. No documento Em busca da grande comunidade, Dewey (1927a), compreende que a comunidade se constitui através de atividade conjunta e de um bem compartilhado por todos. Para o autor:

Onde quer que haja atividade conjunta cujas consequências sejam percebidas como boas por todas as pessoas singulares que participam dela, e quando a percepção do bem for tamanha a ponto de promover um desejo e esforço energético para mantê-lo justamente porque ele é um bem compartilhado por todos, há, em certa medida, uma comunidade. A consciência clara de uma vida comunitária, em todas as suas implicações, constitui a ideia de democracia. (Dewey, 1927a, p. 5)

O autor atribuiu à comunidade uma vida comum e associada a qual constitui a própria ideia de democracia, uma vez que reflete todas as nuances da sociedade. Para tanto, a concepção de comunidade em Dewey está diretamente associada com a democracia.

Seguindo o mesmo pensamento de Dewey (1927a), Schmidt (2008) reconhece que o uso do termo comunidade está ligado à própria identidade institucional das IES comunitárias. Diz respeito, nesse caso, ao “conjunto de cidadãos de uma região geográfica, que possuem entre si laços sociais fortes, de coesão e de integração” (Schmidt, 2008, p. 53). Para tanto, o comunitário “é aquilo que é comum à comunidade, o que é coletivo, de todos os membros da comunidade” (Schmidt, 2008, p. 53).

É notória a pertinência da comunidade na vida das pessoas. O sociólogo e filósofo Bauman (2003), na obra Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, explica e fundamenta a relevância da comunidade a partir das sensações que ela provoca. Para o autor, a comunidade sugere uma coisa boa, um lugar cálido, confortável, aconchegante, ou ainda, um lugar seguro em que podemos contar com a boa vontade dos outros. Todavia, convém ressaltar que a vida associada não exclui o conflito, nem tampouco assegura unidade de todos em todas as questões.

O ideal de comunidade e de democracia também encontra uma visão bastante interessante nas obras A nova razão do mundo (2016) e Comum (2017), dos autores franceses Dardot e Laval, os quais buscam refundar o conceito de comum, diferentemente, dos diversos usos dessa noção no passado (filosóficas, jurídicas ou teológicas). Para Dardot (2016) e Laval (2017), o comum está na atividade coletiva dos seres humanos, possibilitando o autogoverno das pessoas, a própria libertação, seja da dominação do Estado, seja da dominação do mercado. Os autores compreendem que o comum pode ser definido como público não estatal, o qual garante a universalidade de acesso aos serviços através da participação direta dos usuários em sua gestão. Para tanto, o comum surge como um termo central de uma lógica de pensamento e de ação capaz de fortalecer a democracia e, sobretudo, a sociedade.

Por fim, as instituições comunitárias de caráter público não estatal, criadas pela mobilização e pelo esforço coletivo regional, redefinem a relação entre Estado e sociedade civil, qualificando os serviços públicos e potencializando a democracia de forma plena e solidária.

Educação e conhecimento: bens privados, bens públicos e bens comuns mundiais

Na atualidade há consenso de que a educação é um bem público. Os discursos internacionais frequentemente reafirmam que a educação é um direito humano e um bem público. Tristan McCowan (2015, p. 35), afirma que “a educação superior é, sem dúvida, um componente-chave do desenvolvimento. É um bem público, possibilitando oportunidades de aprendizagem superior, permitindo a manutenção e desenvolvimento das tradições intelectuais e culturais”. Já a UNESCO (2016), ao conceber o conhecimento como patrimônio comum da humanidade, reconhece que a educação, assim como o conhecimento, deve ser considerada um bem comum mundial.

Para East et al. (2014, p. 1618) “um bem público é geralmente coletivo em sua provisão e considerado uma ‘coisa boa’ para a sociedade como um todo”. Para Marginson (2006), o conhecimento como um bem gerado na educação superior constitui-se como um bem coletivo e, portanto, um bem público.

Em recente publicação a UNESCO, através da obra Repensar a educação: rumo a um bem público mundial (2016, p. 84), apresenta o princípio normativo da educação como um bem público a partir de sua associação com o bem comum. Enfatiza, para tanto, que o bem comum é uma alternativa construtiva, capaz de ultrapassar os limites da teoria do bem público, isso em razão de que, “a teoria do bem público inscreve-se em uma longa tradição e tem raízes na economia de mercado”. O que para o campo da educação sempre é um pouco problemático. Em outras palavras, a agência reconhece os limites que residem na concepção econômica e instrumental dos bens públicos e privados, voltados ao bem-estar individual e avança para a noção de bem comum, em uma dimensão coletiva, de relações mútuas nas quais e pelas quais todos alcançam seu bem-estar.

Nesta perspectiva, o bem comum é “constituído por bens que os seres humanos compartilham intrinsicamente e que comunicam entre si, como valores, virtudes cívicas e um senso de justiça … É um bem que consiste em ser uma comunidade” (UNESCO, 2016, p. 84), o que exige um esforço social compartilhado, responsável e solidário. O bem comum representa a própria vida compartilhada, ou seja, um bem comum e coletivo que todos podem aproveitá-lo, pois é algo bom e justo para a sociedade. É um processo de ação associada, uma vez que esses só existem em decorrência de ações compartilhadas e solidárias. Portanto, o bem comum está intimamente associado ao compromisso social, ou seja, um bem que consiste em ser uma comunidade, de vidas compartilhadas, que requer coesão, envolvimento, participação, deliberação e, acima de tudo, compromisso e responsabilidade social.

Uma vez concebida a educação superior como bem público e bem comum, é preciso também observar sua noção como bem privado ou serviço comercial. Para problematizar esse conceito, recorro ao manifesto de Nussbaum (2015), o qual faz um alerta sobre a crise mundial da educação, uma crise caracterizada essencialmente pela submissão da educação ao lucro. Para a autora, esse é um problema educacional contemporâneo, de enormes proporções e de grave significado global, pois afeta governos e países, assim como a democracia.

É importante considerar que o debate sobre a natureza de bem público ou serviço comercial da educação superior, teve proeminência a partir dos anos 1980, em decorrência ao posicionamento do Banco Mundial, em 1986, de que os investimentos em educação básica geram maiores retornos sociais e individuais que os investimentos em educação superior. Logo, o cenário das instituições de nível superior mudou. Muitos países passaram a realizar contingenciamento nos investimentos estatais, buscaram outras fontes de recursos, modificaram a organização acadêmica e motivaram a expansão pela privatização da educação superior. Com efeito, deu-se o início das políticas baseadas na lógica de mercado à educação superior. Políticas essas endossadas pelo Banco Mundial, em 1998, ao defender a ideia de que a educação superior, antes de ser um bem público, é um bem privado, ou seja, um serviço comercial (Bertolin, 2009).

Em decurso aos novos tempos de emergência de mercados, dada a influência dos organismos multilaterais, as instituições comunitárias encontram-se fortemente ameaçadas, pois, por um lado são pressionadas pela concorrência das instituições privadas mercantis e, por outro, pela expansão das públicas estatais. O que exige que essas instituições encontrem soluções e se adéquem ao novo contexto, sem perder sua relevância acadêmica e o entendimento de que o conhecimento gerado na educação superior é um bem público. A seguir, Schmidt (2008, p. 50) faz um importante alerta sobre os riscos que as instituições comunitárias estão expostas:

O ambiente de concorrência crescente está colocando em xeque aspectos importantes do caráter comunitário de muitas instituições, levando-as a abrir mão de ações sem retorno econômico e concentrando esforços na sua sobrevivência. Várias dessas organizações, históricas, em diferentes regiões do país, tensionadas pela dinâmica do mercado e pelo baixo apoio do Estado, veem-se forçadas a adotar estratégias empresariais de sobrevivência para não correr o risco de sucumbir.

Em um ambiente de concorrência, para além do risco de sucumbir das comunitárias, Nussbaum (2015, p. 4) enfatiza que a educação, de modo geral, torna-se cada vez mais voltada à tendência utilitária e ao lucro. Tendência essa que, segundo a autora, se prosseguir, “todos os países logo estarão produzindo máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros”. A preocupação central da autora é de que no alvoroço competitivo, as competências decisivas para o bem-estar interno de qualquer democracia e para a criação de uma cultura mundial generosa, sejam deixadas de lado em detrimento ao lucro.

Como resposta a essa situação terrível, Nussbaum (2015, contracapa) defende a ideia de que

devemos resistir às tentativas de reduzir o ensino a uma ferramenta do Produto Interno Bruto e nos esforçar para conectarmos novamente a educação às humanidades, a fim de dar aos estudantes a capacidade de ser verdadeiros cidadãos democráticos de seu país e do mundo.

No mesmo sentido, a UNESCO (2016) argumenta que a educação precisa ir além da estreita visão utilitarista e economista, buscando integrar as múltiplas dimensões da existência humana. Para tanto, uma educação voltada para economia de mercado e para a carreira profissional, certamente não dará conta de atender às múltiplas dimensões da existência humana, consequentemente, muitas competências essenciais para a formação de cidadãos democráticos competentes não serão contempladas.

Contudo, Nussbaum (2015) reconhece que a ciência e as ciências sociais, especialmente, a econômica, também sejam decisivas para a educação dos cidadãos, e salienta que não precisamos escolher entre um modelo de educação que promova o lucro e outro que promova a cidadania plena pois, certamente, a maioria de nós não gostaria de viver em uma nação próspera que tivesse deixado de ser democrática. No entanto, a pressão em defesa do crescimento econômico e a vulnerabilidade da educação, baseada, principalmente, na lucratividade de mercado global, geram em grande medida “uma estupidez gananciosa que põe em risco a própria existência da democracia, e que certamente impede a criação de uma cultura mundial satisfatória” (Nussbaum, 2015, p. 143).

A crise diagnosticada por Nussbaum (2015), requer franco debate público sobre os propósitos da educação. Assim, a autora faz uma ampla defesa da permanência das artes e das humanidades nos currículos acadêmicos, pois em quase todos os países elas estão perdendo rapidamente seu status, uma vez que seus governantes preferem correr atrás do lucro de curto prazo e investir em disciplinas mais “úteis”.

Portanto, preservar a educação e o conhecimento como bens públicos/bens comuns e, sobretudo, manter as humanidades nos currículos acadêmicos, é zelar pelo vigor da democracia e pela sobrevivência das instituições que, de fato, preocupam-se com uma formação completa do indivíduo e buscam manter viva a comunidade em seu ideário democrático, pleno e responsável.

A relação orgânica entre bem público e compromisso social

Por décadas as universidades acumularam críticas por seu modelo como torre de marfim ou mosteiro, desvinculado da realidade da comunidade onde estavam inseridas. O apelo sempre foi por instituições mais envolvidas com a sociedade. Logo, as instituições foram encorajadas a estreitar laços e vínculos com a comunidade, de modo a contribuir com o desenvolvimento local. Em estudo recente, Fioreze e McCowan (2018), relatam que os organismos multilaterais, como a OCDE e o Banco Mundial, vêm intensificando as motivações para um modelo de universidade mais porosa, mais aberta para a realidade externa e ao desenvolvimento local.

Neste contexto, a instituição comunitária pública não estatal, acolhe e atende o apelo por maior envolvimento democrático com a comunidade local. Pois, seus objetivos visam contribuir no desenvolvimento social, econômico e cultural das comunidades nas quais estão inseridas. Por meio do ensino, da pesquisa e da extensão procuram concretizar suas atividades, desempenhando um papel público em relação ao local. A gestão das comunitárias é caracterizada pela democracia interna e pela colegialidade, com a participação de representantes da comunidade local nas decisões da instituição.

Para tanto, o modelo comunitário está aberto à realidade externa e amplamente comprometido com o bem público, isto é, com o interesse coletivo e comum de todos. Segundo Walker e McLean (2013), o bem público é um objetivo da educação superior, relacionado diretamente com o compromisso social das instituições, isto é, o seu compromisso com os interesses gerais da sociedade.

A universidade, ao promover o bem público, fortalece a democracia e a responsabilidade social, formando profissionais habilitados para a promoção de tal bem. Em outras palavras, “a universidade, se está a serviço do bem público, deve preparar os estudantes para fazer avançar a justiça social” (East et al., 2014, p. 1620). Um caminho possível é por meio do ensino, o qual é capaz de reintegrar o bem público e avançar no bem social, conforme argumentam as autoras abaixo:

O ensino é um caminho certo para reintegrar o bem público e avançar no bem social (…). Este é o espaço no qual nós podemos educar, formar e moldar cidadãos publicamente engajados, como pensadores críticos e cidadãos democráticos que entendem suas obrigações com os outros (…). (Walker & Boni, 2013, p. 24-25)

Para Marginson (2011), quando se trabalha com a ideia de bem público, subentende-se que a educação superior seja aberta, igualitária e suscetível ao controle (accountability) por parte da comunidade, para além da universidade, isto é, um controle, que não pode se resumir ao controle estatal. A relação, nesse caso, é de transparência e de participação coletiva de diversos setores sociais.

De acordo com a afirmação de Walker e McLean (2013, p. 20-21), o bem público está relacionado com “o comprometimento com o bem-estar humano para todos os membros da sociedade”. A instituição pública não estatal, ao prestar um serviço público de interesse coletivo, caracterizado pelos trabalhos ou programas sociais à comunidade, indica comprometimento com o bem público e bem-estar humano, ou seja, um bem comum em uma dimensão coletiva em que todas as pessoas poderão compartilhar seus propósitos de forma igualitária. No entanto, “a compreensão social e os interesses sociais só podem se desenvolver em um meio genuinamente social, onde exista o mútuo dar e receber, na construção de uma experiência comum” (Dewey 1959, p. 394).

Fioreze (2017, p. 202), com base em análise documental, afirma que “as IES comunitárias expressam formalmente uma concepção de universidade como bem público, apresentando uma perspectiva de responsabilidade social nas suas intencionalidades”. Segundo a pesquisadora:

O engajamento das instituições na direção do bem público também é exposto quando, em seus documentos, elas tendem a se apresentar como universidades socialmente responsáveis, reivindicando, de forma mais ou menos explícita, uma relação orgânica entre a natureza comunitária institucional e o compromisso com a responsabilidade social. (Fioreze, 2017, p. 202)

Para tanto, o compromisso social faz parte da origem e das intencionalidades das instituições comunitárias as quais, por meio, principalmente, da extensão, buscam desenvolver projetos de cunho social junto à comunidade, a exemplo do atendimento em clínicas de saúde, assistência judiciária, organização de eventos culturais e artísticos e outras atividades. Os serviços em sua grande maioria são gratuitos, oferecidos, especialmente, às comunidades carentes e despriorizadas da sociedade.

Por outro lado, a concepção de universidade comprometida com o bem público e com o compromisso social, muitas vezes, gera forte tensão às comunitárias, pois os recursos financeiros, disputados em uma lógica de mercado, nem sempre dão conta de atender a todos os compromissos públicos, principalmente, aqueles voltados às atividades de aspecto social, que normalmente são deficitárias e demandam investimentos.

Público: compromisso social, colegialidade e democracia

Dewey, na obra O público e seus problemas (1927b), compreende que o princípio da distinção política, entre público e privado, reside no fato de que as ações humanas têm consequências sobre os outros, sendo essas consequências de dois tipos: aquelas que afetam as pessoas diretamente envolvidas em uma transação e aquelas que afetam outras além daquelas diretamente envolvidas. Assim, “o limite entre privado e público deve ser fixado com base na extensão e no escopo das consequências das ações que são tão importantes de modo a precisarem de controle, seja por inibição ou por promoção” (Dewey, 1927b, p. 10). Em outros termos, alguns resultados da ação coletiva humana são percebidos, o que gera um interesse comum, e consequentemente, um esforço posterior para controlar a ação de modo a manter algumas consequências e refutar outras.

Para Dewey (1927b), aqueles indiretamente afetados formam um público que, quando organizados, tomam providencias para que seus interesses sejam conservados e protegidos. “O Estado é a organização do público realizada através de agentes públicos para a proteção dos interesses (…)” (Dewey, 1927b, p. 22). Nesta perspectiva, Dewey compreende que o interesse do público passa a ser o critério supremo da atividade governamental, o qual habilita o público a formar e a manifestar seus objetivos. No entanto, salienta que a grande dificuldade, neste caso, reside em descobrir os meios pelos quais um público disperso, inconstante e múltiplo possa se reconhecer e se associar para definir e comunicar seus interesses. Para o autor, o problema é buscar as condições sob as quais a “Grande Sociedade pode se tornar a Grande Comunidade” (Dewey, 1927b, p. 5), o que requer um público democraticamente organizado, que conheça, perceba e publicite todas as consequências que dizem respeito a ele.

Em sua concepção de democracia, na obra Democracia e Educação, capítulo VII, Dewey (1959, p. 93) parte da ideia de que “uma democracia é mais do que uma forma de governo; é, principalmente uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada”, ou seja, concebe a democracia como um modo de vida, para além do que pode ser exemplificada no Estado. Entende que a democracia, para ser percebida, precisa afetar a todos os envolvidos nas distintas associações humana e, ainda, que o resultado da experiência conjunta precisa ser conhecido e comunicado.

Para Dewey (1927a, p. 18) “não pode haver público sem total publicidade com relação às consequências que dizem respeito a ele”. O autor, defende a ideia de que para haver público é preciso haver comunicação livre e sistemática, no sentido de tornar as coisas públicas, descobertas e conhecidas. A publicidade constituirá a opinião pública tão necessária para que em uma sociedade democrática as pessoas sejam capazes de participar e compartilhar os resultados, se envolver e construir uma opinião comum. Assim, “o que quer que obstrua e restrinja a publicidade, limita e distorce a opinião pública (…)” (Dewey, 1927a, p. 18), pois “a opinião pública é julgamento que é formado e considerado por aqueles que constituem o público e diz respeito a questões públicas” (Dewey, 1927a, p. 25).

Conforme já mencionado aqui, o público em Dewey (1927a) consiste naqueles indiretamente afetados, que quando organizados controlam seus interesses. Outrossim, esse conceito se aproxima da compreensão sobre a democracia e a publicidade, uma vez que o público somente passará a existir se for conhecido e compartilhado entre os envolvidos para construção de uma opinião comum, podendo ser manifesto e percebido pelo grupo como algo que os afeta – positivamente ou negativamente – o que requer controle, seja para inibir ou manter as ações produzidas pelas vidas associadas.

Portanto, no ideal democrático deweyano, o grande desafio insere-se na questão da constituição e da organização dos públicos. Pois, compreende que para revitalizar a democracia é preciso aperfeiçoar o púbico, tornando-o ativo por meio de sua participação dentro do Estado. Para tanto, neste processo a linguagem assume papel central, pois é a ferramenta de comunicação e de organização do público, uma vez que estreita os laços comunitários e permite o compartilhamento de valores comuns.

Nesse ínterim, a educação superior consiste em uma oportunidade de engajamento na vida comunitária, de modo a promover o desenvolvimento das competências que habilitam o indivíduo a participar na vida social, enquadrando os grupos e formando o público. Para Schmidt (2010, p. 33) “o comunitário é uma das formas do público, do público não-estatal”.

Compreendida a dimensão de público em Dewey (1927a) é possível considerar que as IES comunitárias públicas não estatais são públicas na medida em que a comunidade política comum compartilha e comunica seus interesses democraticamente. Os processos democráticos constituem a própria ideia de público. Nesta perspectiva, tanto o compromisso social como a gestão participativa colegiada das comunitárias as confere o status de pública.

Dado que a adoção do modelo de gestão democrática está prevista nas normativas institucionais das universidades comunitárias, professores, funcionários, pais, estudantes e participantes da comunidade passam a ter vez e voz nas decisões internas da instituição. A participação torna-se valor central na relação entre dirigentes e comunidade, os quais partilham responsabilidades. Fioreze (2017, p. 215-216), em sua tese, confirma a presente afirmação a partir dos documentos institucionais analisados:

(…) a universidade comunitária possui um modelo de gestão – enfatizando o aspecto da participação – significativamente público, uma vez que é baseado em colegialidade e democracia, contemplando a participação dos atores institucionais e representantes do mundo exterior nos processos de tomada de decisão.

As comunitárias distinguem-se nitidamente das universidades privadas mercantis por vários aspectos, um deles é justamente a existência da democracia interna, a transparência e a participação de todos nas decisões, através de uma gestão colegiada. Pois, conforme argumenta Cunha (2007), a partir de Dewey (1927b) os verdadeiros propósitos da educação só podem ser efetivados para todos em uma sociedade genuinamente democrática, ou seja, quando não há a imposição de finalidades externas ao processo educativo e quando as relações sociais são equilibradas, permitindo compartilhar experiências, atividades e interesses. No mesmo sentido, Marginson (2011) defende uma universidade envolta em uma base comunicativa, pautada em relações colegiadas, com formas abertas e democráticas.

A forma de gestão colegiada, por meio de suas instâncias decisórias, tais como, conselho universitário, conselho de gestão, conselho de ensino, pesquisa e extensão, entre outras, atribui ênfase aos processos participativos, de modo substancialmente público. A participação da comunidade acadêmica e dos membros externos em seus órgãos colegiados, quando não apenas protocolar e normativa, isto é, quando não meramente cumpridora formal dos requisitos estatutários, mas efetivamente plena, qualifica o processo, emancipa as pessoas e revigora a democracia. Nas IES comunitárias, os valores da democracia, da participação e da transparência são constitutivos de sua natureza, ou seja, são características que deram origem a essas instituições.

No entanto, os processos participativos e decisórios entre os atores institucionais e os representantes externos, nem sempre estão isentos de conflitos internos e divergências de ideias. No atual contexto, permeado pelo capitalismo, formam-se correntes: de um lado, pela defesa das estruturas menos democráticas e mais corporativas e, de outro, pela defesa em fortalecer a colegialidade e a democracia na gestão. As universidades comunitárias não estão isentas desta tensão pública, pois lutam para manter uma estrutura colegiada e participativa de gestão e, também, para garantir o compromisso social e a própria concepção de universidade promotora do bem público. Para viabilizar as instâncias colegiadas nas universidades, a literatura sugere estabelecer processos internos de amplo diálogo e comunicação, para imprimir maior agilidade nas decisões e garantir a participação de todos.

Considerações finais

Os achados contribuem para a compreensão qualificada da realidade brasileira no contexto público não estatal das instituições comunitárias, em uma reflexão voltada à educação superior como bem público, o qual exige comprometimento social e gestão democrática nas decisões internas dessas instituições. As universidades púbicas não estatais, com características de um modelo híbrido, se distinguem nitidamente das demais universidades privadas mercantis, pois apresentam em sua “finalidade não lucrativa, participação, transparência e inserção comunitária” (Schmidt, 2017, p. 52). Essas instituições prestam um serviço público de interesse coletivo, caracterizado pelos trabalhos sociais à comunidade, ou seja, desempenham um papel público em relação ao local. Portanto, representam na atualidade um modelo inovador bastante interessante, dada a carência de sinergia existente entre Estado, sociedade civil e mercado.

A universidade comunitária está a serviço do bem público, um bem intimamente associado ao compromisso social, isto é, um bem que consiste em ser uma comunidade, de vidas compartilhadas. Contudo, nem sempre está isenta de conflitos internos. As divergências de ideias e interesses, podem pôr à prova a democracia institucional, o que requer segundo Dewey (1927a), aperfeiçoar o público para que possa se reconhecer e se associar democraticamente para definir e comunicar seus interesses.

As IES comunitárias, por compreenderem que o conhecimento é um bem comum, portanto um bem público promovido e gerado na educação superior, e não um serviço comercial, vêm resistindo e se reconfigurando para não reduzir o ensino aos fins lucrativos, com submissão à hegemonia econômica, que transforma as universidades em empresas que, por sua vez, vendem educação e pesquisa em um mercado competitivo. De acordo com Marginson (2011), a educação superior quando definida simplesmente como a agregação de interesses privados, evapora a lógica das instituições de ensino superior como fundações sociais distintas com múltiplos papéis públicos e privados. Logo, a razão de ser do ensino superior é o social, o que requer promover e publicitar o bem público, caso contrário, a longo prazo, será sucumbido ao esquecimento.

Por fim, dado o problema proposto para este artigo, por meio da revisão bibliográfica, é possível inferir que a instituição comunitária pública não estatal é pública na medida em que promove ações voltadas a propósitos públicos comuns, a responsabilidade social e a gestão colegiada e democrática. Em outras palavras, a universidade comunitária evidencia o status e a concepção de pública, sobretudo por zelar e manter sua identidade e missão comprometidas com o compromisso social, isto é, o compromisso com os interesses gerais e o bem-estar da sociedade da qual faz parte, bem como pela adoção da forma democrática das relações de poder e de forma colegiada de gestão nas decisões no interior dessas instituições.

Como já indicamos, boas referências de IES comunitárias com identidade pública não estatal situam-se no Sul do Brasil, em estados como Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Essas instituições evidenciam a dimensão pública de seus atos instituidores, estão fortemente marcadas pelo caráter coletivo, pela gestão democrática e pela transparência administrativa (Schmitd, 2008). Em suma, são universidades comunitárias de relevância, com tradição e reconhecimento social, vocacionadas ao bem público.

2Híbrido: na contemporaneidade, o conceito de hibridismo em educação, tem sido empregado para a adequada compreensão do modelo comunitário, dadas as transformações ocorridas nas relações entre universidade, Estado e sociedade civil. Fioreze (2017), esclarece que os modelos institucionais híbridos: referenciados, dentre outros, por Ben Jongbloed (2015, p. 292), caracterizam-se pelas capacidades de plasticidade e resiliência, isto é: “plasticidade no sentido de adaptar-se para acolher as demandas que são colocadas pelo mundo prático, as quais variam no tempo e no espaço. E resiliência no sentido de, mesmo amoldando-se às novas situações e demandas, preservar os valores acadêmicos centrais, com a habilidade de, diante de fortes pressões, ajustar-se sem negligenciar seus compromissos com o bem público”.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação da autora antes da publicação.

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Recebido: 26 de Janeiro de 2019; Aceito: 12 de Maio de 2021; Publicado: 16 de Setembro de 2021

Endereço para correspondência Raquel Paula Fortunato, Universidade de Passo Fundo Faculdade de Educação BR 285 São José, 99052-900 Passo Fundo, RS, Brasil. raquel.paula.fortunato@gmail.com

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