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Educação

Print version ISSN 0101-465XOn-line version ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.44 no.2 Porto Alegre May/Aug 2021  Epub Apr 25, 2022

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2021.2.33803 

Outros Temas

A relação escola-família nos documentos da política para a educação básica: que relação se induz?

La relación escuela-familia en los documentos de la política para la educación básica

School-family relation in policy documents for basic education

Letícia Veiga Casanova1 

Doutora em Educação e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Contextos da Educação da Criança da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professora do Colégio de Aplicação UNIVALI e da Rede Municipal de Ensino de Itajaí, SC, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-7548-6565

Valéria Silva Ferreira1 

Professora da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Graduada em Pedagogia pela UNIVALI, mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorado em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Membro do Conselho Superior, coordenadora do Programa de Pós-Graduação e professora titular de Pedagogia da UNIVALI.


http://orcid.org/0000-0002-3990-7182

1Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, SC, Brasil.


Resumo:

A presente pesquisa analisou os tipos de relações escolas-famílias delineadas pelos documentos da política para a Educação Básica, a partir da Lei de Diretrizes e Bases n° 9.394/96. O caminho metodológico teve como referência a análise arqueológica de Foucault, que busca profundidade, reconhece as posições e as funções que os sujeitos ocupam e procura definir as unidades, os conjuntos, as séries e os jogos de relações em um tecido documental. Os resultados apontam para o movimento empresarial como um dos atores que estão influenciando a elaboração dos documentos e, dessa forma, trazem os valores de uma perspectiva de mercantilização para os processos da educação e das relações escolas-famílias. Essas relações mobilizam as famílias a participarem da melhoria da qualidade da educação. Contudo, a qualidade é medida pela performance nos testes padronizados e, assim, cabe às famílias fiscalizarem o gerenciamento das performances mensuráveis.

Palavras-chave: Relação escola-família; políticas públicas; educação básica; mercantilização

Resumen:

En la presente investigación se analizaron los tipos de relaciones escuelas-familias delineadas por los documentos de la política para la Educación Básica a partir de la Lei de Diretrizes e Bases n° 9.394/96. El camino metodológico tuvo como referencia el análisis arqueológico de Foucault, que busca profundidad, reconoce las posiciones y las funciones que los sujetos ocupan y busca definir las unidades, los conjuntos, las series y los juegos de relaciones en un tejido documental. Los resultados apuntan al movimiento empresarial como uno de los actores que están influenciando la elaboración de los documentos y, de esa forma, traen los valores de una perspectiva de mercantilización para los procesos de la educación y de las relaciones escuelas-familias. Una relación que moviliza a las familias a participar en la mejora de la calidad de la educación. Sin embargo, la calidad se mide por la performance en las pruebas estandarizadas y, por lo tanto, corresponde a las familias fiscalizar la gestión de las performances mensurables.

Palabras clave: Relación escuela-familia; políticas públicas; educación básica; mercantilización

Abstract:

This research analyzed the types of school-family relations outlined by the documents of the policy for Basic Education from the Lei de Diretrizes e Bases no. 9.394/96. The methodological approach was based on Foucault's archaeological analysis, which seeks depth, recognizes the positions and functions that the subjects occupy and seeks to define the units, series and sets of relations present in the documents. The results point out the business movement as one of the actors that are influencing the elaboration of the documents and, in this way, they bring the values from a perspective of commodification to the processes of education and school-family relations. A relation that mobilizes families to participate in improving the quality of education. However, quality is measured by performance on standardized tests, thus, it is up to families to monitor the management of measurable performances.

Keywords: School-family relation; public policies; basic education; commodification

Introdução

Após a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, alguns documentos foram elaborados para a educação básica, dos quais alguns definem ideias e conduzem condutas para as relações entre escolas e famílias, como: Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, Mobilização Social pela Educação e Plano Nacional de Educação.

Esses documentos são leis, decretos, programas, materiais de orientação e divulgação, que são elaborados a partir de elementos comuns. Esses elementos sustentam-se por meio de valores e de interesses e contribuem para a construção das ideias sobre as relações entre escolas e famílias, induzem os discursos, geram efeitos e sentidos nas pessoas e definem escolhas.

Esse movimento de recomendar ações para a relação entre escolas e famílias, encontrado nos documentos da política para a educação básica, torna-se visível, também, em várias partes do mundo ocidental. Nogueira (2005) traz alguns exemplos, como: nos Estados Unidos, em 1994, com o estabelecimento da colaboração família-escola como a oitava meta da educação nacional; na Inglaterra, nos anos de 1990, com a criação de um “contrato casa-escola”, no qual os pais se comprometiam a assumir a responsabilidade no plano da assiduidade, da disciplina, da realização dos deveres dos seus filhos; na França, em 1998, com o lançamento de uma campanha nacional pela parceria família-escola, sendo uma das ações a “semana dos pais na escola”.

No Brasil não é diferente. Os documentos da política para a Educação Básica apontam para ações que incentivam essa relação, como: o Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares (Brasil, 2004a), que visa garantir a participação da comunidade escolar e local na gestão das escolas e na melhoria da qualidade do ensino; o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (Brasil, 2007), que prevê a participação das famílias e da comunidade, mediante programas e ações que visem a mobilização social pela melhoria da qualidade da educação; a Mobilização Social pela Educação, que é o chamado do Ministério da Educação à sociedade para o trabalho de mobilização das famílias e das comunidades pela melhoria da qualidade da educação; o Plano Nacional de Educação (Brasil, 2014a), que estabelece estratégias como o incentivo à participação dos pais no acompanhamento das atividades escolares. Esses documentos da política para a educação básica incentivam as relações entre escolas e famílias, visam mobilizar as famílias pela participação no acompanhamento da vida escolar das crianças e pela melhoria da qualidade da educação. No entanto, que tipo de relação é delineada pelos documentos?

Para responder tal pergunta, nosso objeto de estudo caracterizou-se pela análise de alguns documentos da política para a educação básica brasileira, com foco nas relações escolas-famílias, datadas após a LDB n° 9.394/96. O recorte cronológico afere-se a partir da LDB, pois foi com dela que se desencadeou “[…] importantes inovações normativas, organizativas e pedagógicas, em grande parte influenciadas pelo compromisso com a agenda da Educação para Todos” (Marcilio, 2014, p. 345). Assim sendo, a seguir, abordamos quais documentos foram analisados e como foi organizada a busca nesta pesquisa. Em seguida, discorremos sobre os tipos de relações escola-família delineadas pelos documentos da política para a educação básica a partir da LDB n° 9.394/96. Por fim, trazemos algumas considerações em relação aos dados encontrados.

Caminho metodológico

Utilizamo-nos da análise documental, definida por Bell (1997) como a metodologia que se caracteriza quando os documentos são o alvo do estudo. Dessa forma, analisamos: 12 cadernos do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares (Brasil, 2004), Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (Brasil, 2007), Mobilização Social pela Educação (Brasil, 2015a, 2015b) e Plano Nacional de Educação (Brasil, 2014a). Em cada obra, realizamos a busca pelos termos família, pai, mãe, comunidade, conselho escolar e gestão democrática, no singular e no plural, com o objetivo de encontrar as partes significativas do texto e os discursos que definem as relações escolas-famílias nos documentos.

Como aponta Foucault (2014, p. 60, grifo do autor), os discursos são feitos de signos, mas “[…] o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse ‘mais’ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever”. Desse modo, é necessário identificarmos os elementos dos discursos e descrevermos a complexidade das relações de rede, dos nós de poder e influência na elaboração dos documentos da política educacional que influenciam as relações escolas-famílias. Para tanto, inspirados na análise arqueológica, criamos dois quadros, que foram utilizados para cada documento selecionado.

Para a primeira parte da organização das ideias sobre as formas de interação entre escolas e famílias nos documentos da política para a Educação Básica (explicadas no Quadro 1), no qual se registra o nome do documento, a natureza, o objetivo e os envolvidos, realizamos uma leitura dos documentos e registramos as informações respectivas. Dessa forma, podemos demonstrar a cronologia das políticas, suas inter-relações e as relações de rede na sua elaboração. A segunda parte da elaboração das informações dos documentos (explicadas no Quadro 2) registra o texto, a localização e a intencionalidade, fornecendo dados sobre os conceitos, os elementos de cada documento e as regularidades entre eles.

Quadro 1 Registro dos documentos da política: cronologia, inter-relações e relações de rede 

Documento/ano Natureza Objetivo Envolvidos
Nome do documento e ano de publicação. Define se é uma lei, decreto, resolução, cartilha, manual, caderno ou material de publicidade. Objetivo que tem o documento. Atores estatais e não estatais envolvidos na elaboração do documento.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos objetivos da pesquisa.

Quadro 2 Registro dos documentos da política: conceitos, elementos e regularidades 

Texto Localização Intencionalidade
São os recortes do texto dos documentos sinalizados na busca pelos termos. Local do documento no qual se encontra o texto. Demarca as ações, as intenções descritas e definidas nos textos.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos objetivos da pesquisa.

Para o preenchimento da segunda parte, realizamos uma busca em cada um dos documentos a partir dos termos de busca, como já mencionado anteriormente. As palavras foram localizadas e destacadas com o objetivo de encontrar partes significativas do texto que definam as relações escolas-famílias nos documentos. Após encontrados, os termos foram copiados e transferidos na íntegra para um quadro. Após a transferência dos parágrafos, realizamos uma leitura cuidadosa e registramos, na coluna “intencionalidades”, os conceitos, temas e elementos encontrados em cada fragmento.

Dessa maneira, o que se analisou não foram, certamente, “[…] os estados terminais do discurso, mas sim os sistemas que tornam possíveis as formas sistemáticas últimas” (Foucault, 2014, p. 90). O que buscamos, com os documentos, é superar a análise dos elementos linguísticos e identificar os movimentos, as relações, as redes, os contextos, os poderes estabelecidos e os embates empregados na formulação das ideias e dos discursos sobre as relações escolas-famílias nos textos da política.

O discurso sempre se produziu em razão de relações de poder (Foucault, 2014). Assim, foi necessário identificar quais são os elementos dos discursos sobre as relações escolas-famílias e que relações se estabeleceram na construção desses elementos nos textos das políticas. Como define Ball (2014), há uma mudança epistemológica em toda a ciência política, da sociologia e da geografia social, que investe mais nas relações sociais, nos fluxos e nas mobilidades ao invés de ter interesse em estruturas sociais.

Observamos, também, a reforma do Estado, da década de 1990, os discursos das políticas neoliberais e, consequentemente, a construção das políticas para a educação desse novo Estado, as quais também são influenciadas pelas recomendações estabelecidas pelos organismos internacionais, como: Fundo Monetário Internacional, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e Banco Mundial.

Relação escola-família-políticas para a educação

Para investigarmos a relação escola-família-políticas para a educação, precisamos entender que essa é uma relação construída a partir de relações de poder que não pertencem única e exclusivamente às escolas, às famílias, aos movimentos sociais ou ao Estado. As relações entre escolas e famílias fabricam-se por meio das redes de relações, que são definidas pelas diversas interações que esses atores experimentam em um tempo e um espaço.

Dessa forma, observamos as transformações que vêm influenciando a instituição familiar e o sistema escolar, que levam ao surgimento de novos aspectos, e, também, observamos transformações no contexto do Estado, que influenciam a elaboração de políticas públicas e, por consequência, influenciam as condutas das famílias, do sistema escolar e das relações entre escolas e famílias.

No contexto das famílias, podemos retratar algumas das principais mudanças ocorridas na ocidental, dos países industrializados, citadas por Nogueira (2005), como o decréscimo do número de casamentos, novas formas de uniões e de arranjos familiares, elevação da idade de casamento e de divórcios e limitação do número de filhos.

Nogueira (2005) também registra as novas formas de relações com os filhos, com o significado de criança e o lugar que ocupa na família sendo modificado a partir de alguns fatores, como, por exemplo: proibição do trabalho infantil; aumento do período de educação obrigatória; ampliação dos direitos sociais; a criança torna-se objeto de afeto e de cuidados e não mais força de trabalho ou garantia de sucessão; as famílias não contam mais com vizinhos ou parentes para a função de socialização, havendo, dessa maneira, a diversificação do papel educativo. As modificações também foram sentidas no contexto escolar com as “[…] políticas de democratização do acesso ao ensino, a complexificação das redes escolares e a diversificação dos perfis dos estabelecimentos de ensino, as mudanças nos currículos, nos princípios e métodos pedagógicos” (Nogueira, 2005, p. 572).

Observamos essas transformações sociais modificando as relações das famílias, das escolas e entre as escolas e as famílias. Percebemos, então, a ideia sobre o que é ser família, o que é ser escola e como ambas podem se relacionar. Dessa maneira, as relações entre escolas e famílias passam a ser valorizadas e são também representadas nos documentos da política para a educação.

A Constituição Federal de 1988, por exemplo, garantiu o que se buscava pelos movimentos sociais: o direito à participação e o princípio da gestão democrática na educação. A lógica democrática, reivindicada pelos movimentos sociais e aferida na constituinte, “[…] refletia a defesa do direito à população usuária (pais, alunos e comunidade local) de participar da definição de políticas educacionais” (Adrião & Camargo, 2002, p. 72).

A perspectiva de democratização está fundamentada em valores e interesses que entendem a educação como um direito social, no qual a qualidade do ensino é construída coletivamente pela comunidade escolar, a gestão da educação é realizada com a participação coletiva nas decisões, a escola é um lugar de discussão, de negociação, de reflexão sobre a educação das crianças, as famílias são colaboradoras, protagonistas e partícipes desse processo e as relações entre escolas e famílias são plurais, cooperativas e de compartilhamento. Como define Paro (2006), devemos entender a democratização, não apenas como escola para todos, como universalização da educação, mas precisamos compreendê-la no sentido de:

[…] democratização das relações que envolvem a organização e o funcionamento efetivo da instituição escola. Trata-se, portanto, das medidas que vêm sendo tomadas com a finalidade de promover a partilha do poder entre dirigentes, professores, pais, funcionários, e de facilitar a participação de todos os envolvidos nas tomadas de decisões relativas ao exercício das funções da escola com vistas à realização de suas finalidades. (Paro, 2006, p. 1).

Os documentos da política para a educação básica demonstram que a participação é citada em todos os textos, mas, apesar da menção à participação e à gestão democrática, não são os valores da perspectiva de democratização que encontramos nos documentos da política para a educação básica, como podemos visualizar no Quadro 3:

Quadro 3 As ideias sobre as formas de interação entre escolas e famílias nos documentos da política para a educação básica 

Documentos da política para a educação básica As ideias sobre as formas de interação entre escolas e famílias
Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares (2004)

    –. Elaborar o Regimento Interno do Conselho Escolar;

    –. coordenar o processo de discussão, elaboração ou alteração do regimento escolar;

    –. convocar assembleias-gerais da comunidade escolar ou de seus segmentos;

    –. garantir a participação das comunidades escolar e local na definição do projeto político-pedagógico da unidade escolar;

    –. promover relações pedagógicas que favoreçam o respeito ao saber do estudante e valorize a cultura da comunidade local;

    –. propor e coordenar alterações curriculares na unidade escolar, respeitada a legislação vigente, a partir da análise, entre outros aspectos, do aproveitamento significativo do tempo e dos espaços pedagógicos na escola;

    –. propor e coordenar discussões junto aos segmentos e votar as alterações metodológicas, didáticas e administrativas na escola, respeitada a legislação vigente;

    –. participar da elaboração do calendário escolar, no que competir à unidade escolar, observada a legislação vigente;

    –. acompanhar a evolução dos indicadores educacionais (abandono escolar, aprovação, aprendizagem, entre outros) propondo, quando se fizerem necessárias, intervenções pedagógicas e/ou medidas socioeducativas, visando à melhoria da qualidade social da educação escolar;

    –. aprovar o plano administrativo anual, elaborado pela direção da escola, sobre a programação e a aplicação de recursos financeiros, promovendo alterações, se for o caso;

    –. fiscalizar a gestão administrativa, pedagógica e financeira da unidade escolar;

    –. promover relações de cooperação e intercâmbio com outros conselhos escolares.

Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (2007)

    –. divulgar na escola e na comunidade os dados relativos à área da educação, com ênfase no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, referido no art. 3º;

    –. acompanhar e avaliar, com participação da comunidade e do conselho de educação, as políticas públicas na área de educação e garantir condições, sobretudo institucionais, de continuidade das ações efetivas, preservando a memória daquelas realizadas;

    –. fomentar e apoiar os conselhos escolares, envolvendo as famílias dos educandos, com as atribuições, dentre outras, de zelar pela manutenção da escola e pelo monitoramento das ações e consecução das metas do compromisso.

Mobilização Social pela Educação (2008)

    –. Acompanhar o processo de alfabetização das crianças para assegurar que elas estejam alfabetizadas até os oito anos;

    –. assegurar a crianças e adolescentes um momento diário em casa para estudar;

    –. assegurar que as crianças façam sempre o dever de casa e outras atividades demandadas pela escola;

    –. interessar-se e conversar sobre o que as crianças estão aprendendo na escola;

    –. verificar se os filhos estão indo às aulas todos os dias;

    –. ficar atentos aos horários da escola, ajudando os filhos a chegarem na hora certa;

    –. ajudar a criança a conservar o material escolar e o uniforme;

    –. comunicar-se regularmente com a escola, respondendo sempre aos bilhetes e avisos que receber;

    –. avisar a escola quando o filho precisar faltar;

    –. comunicar os responsáveis e a escola sobre crianças que estão fora do espaço escolar;

    –. cuidar da higiene e saúde dos filhos;

    –. conhecer seus direitos (oferta de vagas para os filhos a partir de quatro anos na escola mais próxima de sua residência, merenda escolar, educação artística, educação física etc.);

    –. matricular a criança na educação infantil;

    –. assegurar à criança com deficiências o direito de estudar nas classes comuns do ensino regular, junto às outras crianças;

    –. cobrar da escola acompanhamento individual dos alunos e aulas de reforço, quando necessário;

    –. informar aos órgãos responsáveis (conselhos tutelares, Ministério Público etc.) situações irregulares: falta de vagas, falta de professores, instalações deficientes, falta de merenda de qualidade etc.;

    –. acompanhar a frequência dos professores;

    –. conhecer a direção, a equipe pedagógica e os demais profissionais da educação que atuam na escola dos filhos;

    –. visitar a escola regularmente e participar das reuniões de pais;

    –. conhecer o desempenho escolar dos filhos;

    –. conhecer indicadores de qualidade da aprendizagem, como a Prova Brasil e o Desenvolvimento da Educação Básica;

    –. participar como voluntários, com suas diferentes aptidões e potencialidades, de programas que transformem a escola em espaço comunitário de aprendizagem (formal ou informal);

    –. conhecer os conselhos escolares e suas atribuições e participar nessa instância;

    –. demandar da escola a criação de conselhos escolares, caso não existam.

Plano Nacional de Educação (2014)

    –. Incentivar a participação dos pais ou responsáveis no acompanhamento das atividades escolares dos filhos, por meio do estreitamento das relações entre as escolas e as famílias (estratégia 2.9);

    –. estabelecer políticas de estímulo às escolas que melhorarem o desempenho no Desenvolvimento da Educação Básica, de modo a valorizar o mérito do corpo docente, da direção e da comunidade escolar (estratégia 7.36);

    –. estimular a participação e a consulta de profissionais da educação, alunos(as) e seus familiares na formulação dos projetos político-pedagógicos, currículos escolares, planos de gestão escolar e regimentos escolares, assegurando a participação dos pais na avaliação de docentes e gestores escolares (estratégia 19.6).

Fonte: Elaborado pelas autoras, com base em Brasil (2004a, 2007, 2008, 2014a).

Observamos que os documentos da política escolar definem ideias e criam estratégias sobre como escolas e famílias deveriam se relacionar. Nos textos do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, há a indicação da participação das famílias a partir dos conselhos escolares, que se constitui como “[…] uma assembleia de pessoas para aconselhar, dar parecer, deliberar sobre questões de interesse público” (Brasil, 2004b, p. 23). Ao conselho escolar, caberia propor e coordenar discussões, participar da elaboração do regimento escolar, do calendário escolar, do projeto político pedagógico, das alterações curriculares, metodológicas, didáticas e administrativas e do acompanhamento dos indicadores educacionais. Dessa forma, os integrantes do Conselho Escolar (diretor da escola, representantes dos funcionários, representantes dos professores, representantes dos pais), reúnem-se, discutem, deliberam sobre as questões referentes à escola.

No Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, os documentos induzem para a participação de todos — União, estados, Distrito Federal e municípios, em colaboração das famílias e comunidades — em proveito da melhoria da qualidade da educação (Brasil, 2007). Dessa maneira, não só os conselhos escolares, mas também Estado, escolas, famílias e comunidade são responsáveis pelo acompanhamento e pela avaliação das políticas públicas, por divulgar e conhecer os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), fomentar e apoiar os conselhos escolares, para zelar pela manutenção da escola e pelo monitoramento das ações das metas do compromisso.

Nesse documento, as famílias, quando são chamadas a participar, ficam no papel de controladores, já estabelecido, e não em um lugar de encontro, discussão, diálogo, construção coletiva do que se pretende acompanhar e monitorar. Observamos que apenas nos documentos do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares há a indicação de propor e coordenar discussões.

Verificamos, também, na Mobilização Social pela Educação, que o papel das famílias é reduzido ao acompanhamento das tarefas, organização do tempo de estudo dos filhos em casa, presença em reuniões, controle do que a escola oferece ou deixa de oferecer e ter conhecimento sobre o desempenho dos filhos e dos indicadores, como IDEB e Prova Brasil. Dessa forma, começamos a observar características de uma relação baseada no monitoramento e no gerenciamento das performances, cuja eficiência e produtividade deve ser medida e é determinada como qualidade. Assim sendo, o produto é o mais importante do processo, e esses não são valores que pertencem a uma perspectiva democrática, mas, sim, a uma perspectiva de mercantilização.

A perspectiva de democratização compreende a educação como um direito social, um direito de todos a uma educação de qualidade, que é entendida em sua complexidade e é construída coletivamente. A gestão da escola, como já apontamos, é concebida a partir da participação coletiva nas decisões, no acompanhamento do processo, e a escola é um lugar de discussão, de negociação e de reflexão. As famílias, nessa perspectiva, são protagonistas, partícipes e colaboradoras, e as relações com as escolas são plurais, de cooperação e de compartilhamento (Adrião & Camargo, 2002; Silva, 2003; Fortunati, 2009; Bondioli & Savio, 2013).

Já, na perspectiva de mercantilização, a educação é uma mercadoria e é administrada pelas normas do mercado, no qual a qualidade é simplificada e medida pela eficiência e pela produtividade com base nos resultados das performances dos sujeitos. A gestão da escola baseia-se no monitoramento e no gerenciamento dessas performances, e a escola torna-se um local para concentrar os sujeitos nas metas e na elevação dos níveis do sistema. As famílias são clientes usuárias de um serviço e, para tanto, devem fiscalizar o que está sendo feito. Dessa maneira, as relações entre famílias e escolas tornam-se hegemônicas (Abrucio, 1997; Ball, 2014; Peroni, 2012, 2015).

Observamos que a perspectiva de mercantilização, que transfere os valores do mercado e a busca de soluções privadas para problemas da educação pública, está presente nos documentos das políticas educacionais e orientam a relação escola-família. Ball (2014) discorre que esse movimento se fortalece por conta da influência das empresas, dos empreendimentos sociais e da filantropia na prestação de serviços, na elaboração das políticas e nas novas formas de governança, que foram estimuladas com o aparecimento de um novo tipo de Estado (Ball, 2013, 2014). Um exemplo é a criação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, que foi influenciado pela proposta dos empresários e incorporou a agenda empresarial nos documentos da política para a educação básica. Ferrarotto e Malavasi (2016, p. 236) citam o “[…] conjunto de empresas que compõem o Compromisso Todos pela Educação”, entre elas: Grupo Pão de Açúcar, Fundação Itaú-Social, Fundação Bradesco, Instituto Gerdau, Grupo Gerdau, Fundação Roberto Marinho, Fundação Educar-DPaschoal, Instituto Itaú Cultural, Faça Parte-Instituto Brasil Voluntário, Instituto Ayrton Senna, Cia. Suzano, Banco ABN-Real, Banco Santander e Instituto Ethos.

Essa influência traduz o movimento das redes políticas, cujos “[…] governos estão, cada vez mais, catalisando todos os setores — público, privado e voluntário — em ação para resolver os problemas de sua comunidade” (Ball, 2014, p. 31). Esse movimento retrata o surgimento de um novo tipo de Estado, de novas formas de governança em rede, em que as empresas, os empreendimentos sociais e a filantropia têm um papel cada vez maior na prestação de serviços de educação, de políticas educacionais e na disseminação de soluções privadas aos problemas da educação pública (Ball, 2014).

É importante compreendermos o papel do Estado e suas modificações, pois nos fazem entender os sistemas que tornam possíveis a elaboração das ideias que visam induzir a determinadas práticas sociais por meio dos instrumentos legais. Saraceno e Naldini (2003) enfatizam que a família é objeto de regulação do Estado, seja direta ou indiretamente, e revelam que “[…] a intervenção do Estado na família data do nascimento do próprio Estado moderno” (Saraceno & Naldini, 2003, p. 299). As autoras ainda reforçam que o Estado define padrões, distribui recursos, atribui direitos e deveres às famílias e às escolas.

O Estado define padrões, atribui direitos e deveres por meio de um conjunto de valores e de interesses. Podemos observar, claramente, outros valores e interesses no movimento das transformações do Estado e da reforma do Estado da década de 1990, contexto em que a LDB n° 9.394/96 foi elaborada. Bresser Pereira (1997) enfatiza que a tarefa política desse período foi a reforma do Estado, pois ele entrou em crise, depois dos anos de 1970, com o crescimento distorcido e com o processo de globalização; e a grande crise dos anos de 1980, que reduziu a taxa de crescimento dos países.

Para Abrucio (1997, p. 9), desde o final da década de 1970, “[…] a reforma do Estado se tornou uma palavra de ordem em quase todo o mundo. O antigo consenso social a respeito do papel do Estado perdia forças rapidamente, sem nenhuma perspectiva de retomar o vigor”. Essa reforma incluiu a substituição de um modelo burocrático para um modelo gerencial, no qual o corte de gastos e o aumento da eficiência estavam presentes. Dessa forma, como afirma Abrucio (1997, p. 10), o modelo gerencial substitui o modelo antigo, “[…] introduzindo a lógica da produtividade existente no setor privado”.

No Brasil, essa reforma aconteceu em 1995, quando foi elaborado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (Brasil, 1995). Bresser Pereira (1997) justifica a necessidade da reforma a partir da crise do Estado com as despesas que foram se ampliando na área social. Cabe ressaltar que, nesse período, havia, no mundo, o avanço do neoliberalismo que defende a privatização dos direitos sociais, a não intervenção do Estado na economia e a ampliação da influência dos organismos financeiros mundiais.

Ball (2014, p. 229) também discorre que o “[…] neoliberalismo é econômico (um rearranjo das relações entre o capital e o Estado), cultural (novos valores, sensibilidades e relacionamentos) e político (uma forma de governar, novas subjetividades)”. Observamos, dessa maneira, os valores e os interesses do mercado incorporando-se na reforma do Estado e na reforma da educação do país depois da LDB n° 9.394/96. Nas ações do Estado, como um todo, o que se buscava era a criação de um espaço livre para o mercado e, na educação, observa-se os conceitos de participação, de gestão e de qualidade sendo referenciados no contexto empresarial.

Dessa forma, “[…] novas vozes e interesses são representados no processo político, e novos nós de poder e influência são construídos e fortalecidos” (Ball, 2013, p. 178). Um exemplo é o documento Compromisso Todos pela Educação (Brasil, 2007), que, segundo Ferrarotto e Malavasi (2016, p. 236), incentiva a aproximação entre família-escola, mas apresenta a implementação de propostas do conjunto de empresas que compõem o Compromisso. Dessa maneira, vai sendo construída uma “[…] nova gramática e um novo léxico da vida organizacional e incutem um tipo particular de reflexividade” (Ball, 2014, p. 160). Uma reflexividade baseada na perspectiva de mercantilização, na qual a educação é uma mercadoria, a eficiência e a produtividade nas provas padronizadas definem a qualidade, a gestão da escola e baseia-se no monitoramento e no gerenciamento das performances para alcançar-se a eficiência, e as famílias tornam-se fiscalizadoras e executoras de medidas definidas de fora para dentro.

As famílias, assim, apenas complementam as ações da escola, de forma simplista e reducionista. São esses os valores que podemos observar na Figura 1, que se segue, na cartilha Acompanhem a vida escolar dos seus filhos (Brasil, 2014b), um dos materiais de divulgação da Mobilização Social pela Educação, criado um ano após o Compromisso Todos pela Educação.

Fonte: Cartilha Acompanhem a vida escolar dos seus filhos (Brasil, 2014b).

Figura 1 Cartilha Acompanhem a vida escolar dos seus filhos – Como participar da vida escolar de seus filhos 

Novamente, as relações entre escolas e famílias são apresentadas de forma simplista e reducionista: às famílias cabe visitar a escola, conversar com os professores, para perguntar como os filhos estão, e pedir orientação de como ajudá-los em casa, ler e responder bilhetes e comparecer às reuniões, dando sua opinião.

Silva (2003) enfatiza que essas são ações de uma dimensão individual, que engloba as atividades feitas por cada pai ou professor no âmbito da escolarização das crianças/filhos. Contudo, as relações entre escolas e famílias também devem favorecer as ações em uma dimensão coletiva, em que a discussão, a construção e a atuação organizada sejam refletidas conjuntamente.

É importante destacar que a cartilha Acompanhem a vida escolar dos seus filhos, que enfatiza a dimensão individual das relações entre escolas e famílias, foi elaborada pelo Ministério da Educação, UNESCO, Todos pela Educação, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil, Conselho Latino Americano de Igrejas e Conferência Nacional de Bispos do Brasil. Identificamos, dessa forma, algumas das instituições que estão criando ideias, apresentando ações, influenciando as condutas de famílias e escolas no Brasil.

Observamos, também, a reforma do Estado da década de 1990, os discursos das políticas neoliberais e, consequentemente, a construção das políticas para a educação desse novo Estado, as quais também são influenciadas pelas recomendações estabelecidas pelos organismos internacionais, como: Fundo Monetário Internacional, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, UNESCO e Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, além do Banco Mundial, que já foram citados no início do capítulo.

Esses organismos supranacionais são encarregados da integração econômica mundial, ajuda e cooperação internacional. Shiroma, Moraes e Evangelista (2011) confirmam que essas organizações exerceram importante papel na definição das políticas públicas para a educação no Brasil e mobilizaram os países por meio da Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien, em 1990, e, dez anos depois, no Fórum Mundial de Educação, realizado em Dakar. Machado e Alavarse (2014, p. 414) destacam que:

[…] após a Conferência de Jomtien, em 1990, dois traços são recorrentes nas políticas educacionais da imensa maioria dos países. Um deles refere-se à consideração de que a educação escolar é condição indispensável para o desenvolvimento econômico, notadamente para os países caracterizados como emergentes. O outro traço é a preocupação com a qualidade, que majoritariamente vai sendo associada a desempenho em provas padronizadas, neste caso com uma pressão de muitas agências e bancos de fomento. (Machado & Alavarse, 2014, p. 414).

A qualidade associada ao desempenho em provas padronizadas também é observada nos documentos da política para a educação básica brasileira. Todos fazem referência aos indicadores educacionais e na necessidade de estes serem conhecidos e acompanhados pelas famílias e comunidade. O Quadro 4 apresenta esses dados.

Quadro 4 As ideias sobre as formas de interação entre escolas e famílias a partir dos indicadores educacionais 

Documentos da política para a educação básica As ideias sobre as formas de interação entre escolas e famílias a partir dos índices
Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares (2004)

    –. Acompanhar a evolução dos indicadores educacionais (abandono escolar, aprovação, aprendizagem, entre outros) propondo, quando se fizerem necessárias, intervenções pedagógicas e/ou medidas socioeducativas visando à melhoria da qualidade social da educação escolar.

Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (2007)

    –. Divulgar, na escola e na comunidade, os dados relativos à área da educação, com ênfase no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, referido no art. 3º.

Mobilização Social pela Educação (2008)

    –. Conhecer o desempenho escolar de seus filhos;

    –. conhecer indicadores de qualidade da aprendizagem, como a Prova Brasil e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.

Interação família escola: subsídios para práticas escolares (2009)

    –. Interagir para melhorar os indicadores.

Plano Nacional de Educação (2014)

    –. Estabelecer políticas de estímulo às escolas que melhorarem o desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, de modo a valorizar o mérito do corpo docente, da direção e da comunidade escolar (estratégia 7.36).

Fonte: Elaborado pelas autoras, com base em Brasil (2004a, 2007, 2008, 2014a) e Castro e Regattieri (2009).

Todos os documentos da política para a educação básica citam os índices como algo a ser conhecido e acompanhado pelas famílias. Assim, os índices tornam-se referência de eficiência e de produtividade e traduzem-se como qualidade. Já Peroni (2003, p. 94) enfatiza que “[…] as políticas dos anos de 1990 foram formuladas dando respostas aos organismos internacionais”. Acreditamos que todas essas modificações no contexto do Estado influenciam as relações escolas-famílias, definem o que escolas e as famílias devem buscar, como devem interagir, para onde devem olhar e como devem definir qualidade da educação.

Essa qualidade é medida pela perspectiva, pela racionalização da mercantilização, em que se buscam “[…] meios de concentrar indivíduos nas metas e nas práticas orientadas para ‘melhoria’ da organização ou da produtividade (ou geração de renda) e na elevação dos níveis do sistema” (Ball, 2014, p. 70). Dessa forma, famílias e escolas são conduzidas a participar de sistemas de gestão de desempenho, transformando o indivíduo em uma unidade produtiva (Ball, 2014). A qualidade associada ao desempenho em provas padronizadas é, também, observada nos documentos da política para a educação básica brasileira. Todos fazem referência aos indicadores educacionais e à necessidade de estes serem conhecidos e acompanhados pelas famílias e comunidade.

Há, nesse sistema de gestão de desempenho, um conjunto de valores que se apoia em uma perspectiva de mercantilização em detrimento da perspectiva de democratização. Dessa forma, precisamos nos atentar que, para além de todos os documentos mobilizarem e incentivarem a “participação” das famílias, a maioria induz para ações que se fundamentam em valores que transformam as relações plurais, complexas, de participação, de negociação, de reflexão e de construção coletiva, em uma relação hegemônica, que concentra os sujeitos no monitoramento e no gerenciamento e supervisão de metas já estabelecidas.

Algumas considerações

As relações escolas-famílias não estão postas ao acaso, mas, sim, são planejadas e fazem parte de um movimento maior, que envolve os contextos institucional, social, cultural, econômico e político. Contextos que influenciam nossas condutas, que induzem a interiorização de saberes, de práticas, de atitudes, de crenças, de ideias e de valores. Contextos que são conjuntos complexos de relações de produção, significado e poder.

Observamos, com os dados desta pesquisa, que há uma influência da lógica gerencialista (oriunda do campo econômico) na produção de ideias e de valores nos documentos da política educacional. O processo de elaboração de políticas educacionais estabelece-se por meio de determinadas redes políticas, redes de relações que são atravessadas por influências, disputas, discursos, elementos, valores e poderes. Os documentos da política educacional, assim, representam a síntese dessas disputas, dos elementos, dos valores, dimensionam aonde se quer chegar, que tipo de saber se quer fazer circular e que tipo de relação escolas-famílias se almeja.

Contudo, esse desejo de melhoria da qualidade da educação, que pertence aos pais e à sociedade em geral, está sendo utilizado pelos interesses de um determinado contexto: o econômico. Essa constatação fez-se por intermédio do movimento de mapear as políticas, pois identificamos um conjunto de instituições da iniciativa privada, que estão investindo e influenciando a elaboração de políticas que mobilizam as famílias para a participação na vida escolar das crianças. Logo, investigar as relações escolas-famílias, nos documentos da política para a educação básica, levou-nos a analisar mais do que palavras e signos. Fez-nos identificar os fluxos e os sistemas que estabelecem as formas sistemáticas últimas dos discursos nos documentos da política, as redes políticas atravessadas por disputas, influências e interesses.

A presença dos valores de mercantilização traz os princípios do mercado para a gestão pública, como o gerencialismo e a performatividade (Ball, 2005, 2010). Há um poder que vem do contexto econômico, que está criando estratégias para que famílias, escolas e sociedade acreditem que, para a educação melhorar, é necessário comprar (literalmente) as soluções do mercado.

Essas soluções fundamentam-se, porém, na perspectiva de mercantilização, cujo foco das relações está voltado apenas à eficiência e à produtividade, a partir dos resultados das performances de alunos e dos professores, medidas pelos testes padronizados. O valor está no produto, nas ações individuais de superação de medidas numéricas, na competição. Dessa maneira, estamos desvalorizando as ações de construção, de participação coletiva nas decisões, no planejamento, no acompanhamento do processo educacional. Estamos correndo o risco de perder o entendimento e o desejo das relações escolas-famílias na sua pluralidade, as quais são múltiplas, porque gerenciam o funcionamento da escola por meio da participação e da partilha do poder entre diretores, professores, funcionários, famílias e alunos nas decisões, nas discussões, nas construções a serem tomadas referentes à educação das crianças. Estamos, também, correndo o risco de entendermos e desejarmos a educação como ação escolarizante, com atividades voltadas ao treino, à memorização e à reprodução dos conceitos matemáticos e linguísticos, exigidos pelos testes padronizados. Há, assim, o esquecimento dos aspectos do desenvolvimento social, emocional e moral, pois eles não têm nenhum valor performativo mensurável (Ball, 2014).

É importante compreendermos que as soluções do mercado, que devem ser compradas para a educação melhorar, estabelecem um lugar social para os sujeitos. Famílias, profissionais das escolas, crianças, comunidade escolar e local são conduzidos a partir de um sistema já estabelecido. Não é um sistema repressivo, que os obriga a executar determinadas ações, mas, sim, um sistema positivo, que atua sobre os desejos das pessoas e faz com que elas acreditem e desejem determinados caminhos.

No processo de criação e de estabelecimento dos desejos, não se propõem ouvir, dialogar, discutir ou construir coletivamente. Famílias, profissionais das escolas e crianças já têm seus papéis definidos. Como afirma Foucault (2015, p. 133), “[…] se as crianças conseguissem que seus protestos, ou simplesmente suas questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino”. No entanto, a escuta, o diálogo e a construção coletiva não fazem parte das estratégias.

Estamos visualizando, na maioria dos documentos da política educacional, apenas um tipo de relação escola-família. Uma relação singular, hegemônica, na qual a construção coletiva, a partilha de poder e a avaliação dos processos, do ambiente educativo, da prática pedagógica, da organização dos espaços e dos tempos, da gestão da escola, da formação dos professores e das condições de trabalho não são consideradas. Uma relação em que as vivências, as experiências sensoriais, motoras, afetivas, emocionais, lúdicas, culturais e tudo mais que não pode ser medido pelos testes padronizados são desconsiderados. Uma relação em que as culturas das infâncias e das famílias não são valorizadas.

Para além de todos os documentos mobilizarem e incentivarem para a participação das famílias, a maioria induz para ações que se fundamentam em valores que transformam as relações plurais, complexas, de participação, de negociação, de reflexão e de construção coletiva, em uma relação que concentra os sujeitos apenas no monitoramento e no gerenciamento de metas já estabelecidas por provas padronizadas. As relações escolas-famílias não se definem, portanto, pela participação e pela construção de um ideário coletivo de educação que queremos, mas, sim, da manutenção de um sistema de qualidade já definido, que desconsidera o diálogo e a construção coletiva e valoriza o acompanhamento da performance que pode ser mensurada.

Os textos deste artigo foram revisados pela Zeppelini Publishers e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

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Recebido: 01 de Abril de 2019; Aceito: 28 de Março de 2021; Publicado: 16 de Setembro de 2021

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