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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.45 no.1 Porto Alegre  2022  Epub 17-Jul-2023

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2022.1.41564 

Outros Temas

Contextualização do ensino de língua portuguesa e literatura: uma ferramenta de inclusão do sujeito quilombola em tempos de pandemia?

Contextualization of the teaching of portuguese language and literature: a tool for inclusion of the quilombola subject in times of pandemic?

Contextualización de la enseñanza de la lengua y la literatura portuguesa: ¿una herramienta para la inclusión del sujeto quilombola en tiempos de pandemia?

Maria Patrícia de Oliveira Teles1 

Maria Patrícia de Oliveira Teles Especialista em Língua Portuguesa e Literatura pela Faculdade Evangêlica do Piauí, em Teresina, PI, Brasil.; Professora substituta da rede pública municipal de Bela Vista, PI, Brasil. mariapatriciateles@gmail.com


http://orcid.org/0000-0003-4980-6323

Emanuel Moura Costa2 

Emanuel Moura Costa Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Piauí, Teresina, Piauí, Brasil. Professor da Faculdade Evangélica do Piauí, em Teresina, PI, Brasil. profissionalpedagogo@hotmail.com


http://orcid.org/0000-0002-4905-5366

Euvaldo de Sousa Costa Junior2 

Euvaldo de Sousa Costa Junior Mestre em Fitotecnia pela Universidade Federal do Piauí, Bom Jesus, Piauí, Brasil Professor da Faculdade Evangélica do Piauí, em Teresina, PI, Brasil. euvaldodesousacosta@hotmail.com


http://orcid.org/0000-0003-3359-4944

1Secretaria Municipal de Educação de Bela Vista, Bela Vista do Piauí, PI, Brasil.

2Faculdade Evangélica do Piauí (FAEPI), Nova Santa Rita do Piauí, PI, Brasil.


Resumo:

Objetivou-se analisar as mediações pedagógicas realizadas na disciplina de língua portuguesa, no que tange a literatura dos anos finais do ensino fundamental com a finalidade de contextualizar o sujeito quilombola em Bela Vista-PI na pandemia de COVID-19. O levantamento de dados foi feito através da análise do conteúdo dos cadernos de atividades encaminhados pelas escolas aos alunos dos anos finais do ensino fundamental durante os meses de agosto e dezembro do ano de 2020. Para dar suporte à análise, contribuíram com o estudo a respeito da mediação as abordagens de Alves (2020), Antunes (2014) e Pino e Sigardo (2000). Referente à mediação e à contextualização no ensino de língua portuguesa, as produções de Soares (2002), Bernardo (2016); Daros (2021) colaboraram com pesquisa a respeito da educação na pandemia de COVID-19 e sobre a educação do sujeito quilombola. Foi possível constatar que, embora a contextualização da vida do sujeito quilombola, bem como de outras minorias, no ensino na disciplina de língua portuguesa pudesse contribuir para a inclusão, os professores não a empregaram como instrumento pedagógico.

Palavras-chave: mediação; ensino; língua e literatura portuguesa; quilombola

Abstract:

The objective was to analyze the pedagogical mediations performed in the subject of Portuguese language, regarding the literature of the final years of elementary school with the purpose of contextualizing the quilombola subject in Bela Vista-PI in the covid-19 pandemic. The data collection was done through the analysis of the content of the activity notebooks sent by the schools to the students of the final years of elementary education during the months of August and December of 2020. To support the analysis, contributed to the study, regarding mediation and the approaches of Alves (2020), Antunes (2014) and Pino and Sigardo (2000). Regarding mediation and contextualization in Portuguese language teaching, the productions of Soares (2002), Bernardo (2016); Daros (2021), collaborated with the studies regarding education in the covid-19 pandemic, and about the education of the quilombola subject. It was possible to verify that, although the contextualization of the life of the quilombola subject, as well as other minorities, in teaching in the Portuguese language discipline could contribute to inclusion, the teachers did not employ it as a pedagogical tool.

Keywords: mediation; teaching; portuguese language and literature; quilombola

Resumen:

El propósito de este estudio fue analizar las mediaciones pedagógicas realizadas en la asignatura de lengua portuguesa, en relación con la literatura de los últimos años de la educación primaria con el fin de contextualizar la asignatura de quilombola en Bela Vista-PI en la pandemia del covid-19. La recogida de datos se realizó mediante el análisis de contenido de los cuadernos de actividades enviados por los centros educativos a los alumnos de los últimos cursos de primaria durante los meses de agosto y diciembre de 2020. Para apoyar el análisis, contribuyeron al estudio, en relación con la mediación y los enfoques de Alves (2020), Antunes (2014) y Pino y Sigardo (2000). A propósito de la mediación y la contextualización en la enseñanza de la lengua portuguesa, las producciones de Soares (2002), Bernardo (2016); Daros (2021), colaboraron con los estudios a propósito de la educación en la pandemia de covid-19, y sobre la educación del sujeito quilombola. Se pudo comprobar que, aunque la contextualización de la vida del sujeto quilombola, así como de otras minorías, en la enseñanza en la disciplina de lengua portuguesa podría contribuir a la inclusión, los profesores no la emplearon como instrumento pedagógico.

Palabras clave: mediación; la enseñanza; lengua y literatura portuguesas; quilombola

As discussões sobre as possibilidades e os impactos formativos da adoção de práticas pautadas na contextualização do ensino têm sido presentes nos debates do campo educacional, pois o papel do meio social na formação dos indivíduos é tão necessário, como insubstituível, já que o homem é produto e produtor do meio em que está inserido (Marx, 2010).

Haja vista essa participação inegável do social na formação e socialização dos alunos, as reflexões direcionaram a discussão para a realidade dos alunos do Quilombo Amarra Negro, do município de Bela Vista-PI, questionando sobre como a contextualização poderia ser utilizada como ferramenta de inclusão dos alunos quilombolas que, indo estudar na cidade (porque suas escolas foram nucleadas), se depararam com uma cultura muito diferente da sua, já que o desconhecimento tem via dupla: ele percebe-se apartado da nova realidade, enquanto os demais também se veem distantes da realidade dele.

Nesse sentido, elaborou-se o problema central de pesquisa: quais as mediações pedagógicas na disciplina de língua portuguesa nos anos finais do ensino fundamental com a finalidade de contextualizar o sujeito quilombola em Bela Vista-PI na pandemia de COVID-19? Concomitantemente, se pretendia entender quais as contribuições dadas pela contextualização para a formação desses alunos e quais as propostas de intervenção adotadas pelas escolas da rede municipal para a continuidade da oferta do ensino durante o período pandêmico de 2020.

O objetivo geral é analisar as mediações pedagógicas realizadas na disciplina de Língua Portuguesa, no que tange a literatura dos anos finais do ensino fundamental com a finalidade de contextualizar o sujeito quilombola em Bela Vista-PI na pandemia de COVID-19. E, de modo específico, compreender a importância da contextualização da vida do sujeito quilombola no ensino de literatura; levantar dados a respeito das mediações pedagógicas realizadas pelos professores de língua portuguesa dos anos finai do ensino fundamental; analisar o conteúdo das mediações pedagógicas levando em conta a sua proximidade com o contexto do sujeito quilombola.

Posta esta mobilização, realizou-se um estudo sistemático a respeito das mediações pedagógicas e das possibilidades formativas da contextualização, enquanto instrumento pedagógico que atua na construção do conhecimento por meio da apreensão de uma nova realidade a partir da sua historicidade e cultura. Nesse sentido, tomou-se como ponto de partida as contribuições de Alves (2020), Antunes (2014), Pino e Sigardo (2000) a respeito da mediação e contextualização no ensino de língua portuguesa; as produções de Soares (2002), Bernardo (2016) e Daros (2021), colaboraram com os estudos a respeito da educação na pandemia de COVID-19 e sobre a educação do sujeito quilombola.

As reflexões a respeito do potencial pedagógico da contextualização enquanto ferramenta de inclusão do sujeito quilombola no ensino de Língua e Literatura Portuguesas possibilitaram inferir que durante os meses de agosto e dezembro de 2020, pela ausência de mediações contextuais nas atividades encaminhadas aos alunos, a inclusão dos alunos foi dificultada ou impedida. Os resultados, procedimentos, discussões e reflexões dessa pesquisa contribuem para conhecer diferentes aspectos do serviço educacional ofertado em âmbito municipal, bem como para dinamizar o debate sobre a importância da inclusão dos alunos que vivem em comunidades quilombolas nas atividades escolares, de maneira que se garanta além do acesso, o aprendizado, por meio de uma permanência de qualidade.

Para apresentar o percurso do trabalho, as demais partes deste artigo, devido à natureza da pesquisa a partir da qual ele foi feito, organizou-se quatro seções principais, quais sejam: fundamentação teórica, metodologia, resultados e discussão e considerações finais.

Mediação por meio da contextualização e inclusão na pandemia de COVID-19

Esta seção está organizada de maneira a contemplar os seguintes aspectos: uma análise sobre o ensino de Língua Portuguesa e Literatura nos anos finais do ensino fundamental, aí constando reflexões sobre a contextualização e a inclusão, a relação entre o social, o geográfico e a aprendizagem, o contexto dos alunos da comunidade Amarra Negro, em Bela Vista-PI e a mediação pedagógica na pandemia de COVID-19.

O objetivo dessa seção é analisar o que os pesquisadores e os documentos legais acerca do ensino fundamental têm apontado a respeito do processo de ensino de LP e Literatura nos anos finais do ensino fundamental, entendendo-se que esse processo é um potente meio de inclusão dos alunos, haja vista o fato de nestas aulas existir forte produção e possibilidades de contextualizar a vida dos alunos e usar isso como instrumento que impulsione a aprendizagem e o desenvolvimento integral deles.

O ensino de LP e Literatura nos anos finais do ensino fundamental

As dificuldades do processo de ensino e aprendizagem são uma constante na educação brasileira. Logo, isso também ocorre no ensino de Língua Portuguesa e Literatura, pois há, sobretudo por parte dos alunos, um convencionalismo com as dificuldades que a língua materna apresenta, que vão desde a repulsão pela gramática, que engloba a leitura e escrita à literatura, com seus gêneros textuais, os quais têm se mostrado um desafio para a atuação do professor. Será este um evento sem precedentes? A língua é tão difícil que não pode ser internalizada? O que tem distanciado essas falantes da sua própria língua?

Soares (2002) também problematiza o uso da língua materna no contexto social no qual estão inseridos seus aprendizes, ressaltando a priorização do uso do elemento comunicativo da língua.

A influência que vem sendo exercida sobre a disciplina português concomitantemente pela pragmática, pela teoria da enunciação, pela análise do discurso; influência fundamental, porque, traz uma nova concepção de língua: uma concepção que vê a língua como enunciação, não apenas como comunicação, que, portanto, inclui as relações da língua com aqueles que a utilizam, como o contexto em que é utilizada, com as condições sociais e históricas da sua utilização. (Soares, 2002, p. 173)

Os autores trazem uma possibilidade de reflexão: há espaço sob esse viés, o ensino da língua portuguesa precisa ser pautado em torno do uso da língua, seja através do ensino da literatura, das produções textuais, da produção oral e escrita ou da compreensão da gramática de uma forma geral, com a finalidade de assegurar o desenvolvimento integral do indivíduo.

Nos anos finais do ensino fundamental, a legislação educacional aponta para a orientação das práticas a fim de atender ao desenvolvimento de habilidades específicas de cada componente curricular. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN's) englobam uma serie de apontamentos para o ensino e a aprendizagem de LP, incluindo-se a necessidade de organizar suas respectivas aulas na disciplina em apreciação de um formato que o aluno assuma a postura do conhecimento e desenvolva as práticas de linguagem durante o seu processo de formação escolar.

Os parâmetros orientam que é imprescindível que as habilidades referentes ao uso da língua estejam presentes na atividade diária da sala de aula, oportunizando, assim, aos alunos um desenvolvimento integral da compreensão textual, tão importante no processo de ensino e aprendizagem nos anos finais do ensino fundamental, porque o propósito nesta etapa da escolarização é proporcionar aos alunos, através do contato com diversas situações discursivas, uma expansão da competência discursiva.

Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escrita, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva. (Brasil, 1998, p. 27)

Cabe ressaltar a importância que o texto normativo concede à figura do discente como sendo apropriador de conhecimentos e produções sociais. Dessa forma, toda a prática docente perpassa por esse entendimento de que desde o nascimento somos seres em constante processo de evolução e aprendizagem, que essa evolução é social e deve ser levada em consideração no planejamento da atividade docente, pois “no processo de aprendizagem dos diferentes ciclos do ensino fundamental, espera-se que os alunos ampliem o domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas” (Brasil, 1998, p. 32). Espera-se que o aluno se torne crítico da realidade na qual vive e capaz de transformá-la.

A BNCC coloca em xeque a questão da linguagem como fator social importante no processo de aprendizagem da língua materna no ensino fundamental. Segundo aponta Geraldi (2015), a perspectiva de linguagem exposta no texto normativo, segue a mesma orientadora do PCN: a linguagem como interação que tem como principal expoente o filósofo russo Mikhail Bakhtin.

Se a linguagem é comunicação, pressupõe interação entre as pessoas que participam do ato comunicativo com e pela linguagem. Cada ato de linguagem não é uma criação em si, mas está inscrito em um sistema semiótico de sentidos múltiplos e, ao mesmo tempo, em um processo discursivo. (Brasil, 2017, p. 59)

É de extrema valia levar esse processo discursivo para dentro do campo de embate das habilidades a serem desenvolvidas no ensino fundamental aos anos finais. Pois, como pondera Bakhtin (1992), sempre será atual e relevante o estudo da linguagem, já que a língua é uma realidade viva e não pode ser desassociada de seu conteúdo ideológico. Da mesma forma, não pode ser distante da realidade na qual está inserida.

Outro ponto importante que a BNCC traz ao discorrer sobre o ensino de LP nos anos finais do ensino fundamental, diz respeito à ampliação das práticas de aprendizagem e a inserção de novas experiências no contexto escolar.

No componente Língua Portuguesa, amplia-se o contato dos estudantes com gêneros textuais relacionados a vários campos de atuação e a várias disciplinas, partindo-se de práticas de linguagem já vivenciadas pelos jovens para a ampliação dessas práticas, em direção a novas experiências. (Brasil, 2018, p. 136)

Entra nesse campo o conceito de interdisciplinaridade, bastante importante na compreensão dos estudos da LP, uma vez que a organização do componente curricular está baseada em campos de atuação como jornalístico-midiático, vida pública, artístico-literário, dentre outros, já apontando para os estudos da literatura quando mencionam o campo artístico-literário, que além de oportunizar contato com textos e obras literárias, leva à discussão da compreensão e ao desenvolvimento do aluno leitor/cidadão.

Está em jogo a continuidade da formação do leitor literário, com especial destaque para o desenvolvimento da fruição, de modo a evidenciar a condição estética desse tipo de leitura e de escrita. Para que a função utilitária da literatura – e da arte em geral – possa dar lugar à sua dimensão humanizadora, transformadora e mobilizadora, é preciso supor – e, portanto, garantir a formação de – um leitor-fruidor, ou seja, de um sujeito que seja capaz de se implicar na leitura dos textos, de “desvendar” suas múltiplas camadas de sentido, de responder às suas demandas e de firmar pactos de leitura. (Brasil, 2018, p. 138)

O desenvolvimento do leitor-fruidor compreende a necessidade de o estudante tornar-se um sujeito capaz de apreciar, fruir e compreender plenamente as obras literárias, doravante é o que se espera do corpo discente ao mencionarmos os estudos da LP. A preocupação e a direção para o campo da leitura e da literatura se dá pelo fato de que essas produções literárias trazem consigo várias objetivações e significações acerca das condições que determinam em cada momento a produção literária. Apropriar-se dessas produções é uma oportunidade de sentir-se pertencente a um contexto específico, entendo sua posição nos meios de produção e reprodução da sociedade. É também reconhecer que existe um contexto particular de sua atuação que é, ao mesmo tempo, universo que consubstancia relações mais complexas.

No bojo desta preocupação com o contexto e suas formas de superação por meio da apropriação de conhecimentos e habilidades da LP, organizou-se a próxima seção. Momento no qual são discutidos de forma sucinta o conceito de contextualização e sua relação com a aprendizagem.

Contextualização e aprendizagem

O campo do ensino de Língua Portuguesa ainda é muito baseado quase que exclusivamente na utilização do livro didático, o qual, apesar de desempenhar um papel essencial para a aquisição de conhecimento, tem sido alienado para ocupar um espaço dimensional muito mais abrangente do que o da sua finalidade: sintetizar os passos do processo, reduzindo a força de planejamento e desenvolvimento do trabalho do professor.

Superada essa visão equivocada – não sendo o livro o todo, mas uma parte –, cabe agora partir para uma visão de contexto e de processo de aprendizagem mais ampla, na qual se encontra a significação historicamente elaborada acerca do ensino contextualizado, que são práticas pedagógicas que “(…) explicitam a orientação de que os usos orais e escritos da língua constituem o eixo de seu ensino, o que equivale a colocar, no centro de toda atividade pedagógica de trabalho com a linguagem, o texto” (Antunes, 2014, p. 80). Desse modo, a prática docente requer do professor uma valorização da comunicação linguística do alunado, que pode ocorrer tanto através da oralidade, como da escrita.

Nesse sentido, as aulas de Língua Portuguesa precisam ser voltadas para o desenvolvimento linguístico dos alunos em um cenário de contextualização, levando em consideração os aspectos sociais e culturais nos quais os atores desse processo estão inseridos. De acordo com Campos (2014) um estudo bem orientado da gramática contribui para melhorar o desempenho dos usuários da língua. Além disso, ajuda no desenvolvimento das habilidades cognitivas, que resultaram em um avanço no processo de humanização/socialização.

Para desenvolver a competência linguística não basta o domínio da norma legitimada como “padrão”, o aluno precisa saber usar a língua em diversas situações que exijam graus de comunicação distintos. O estudo da nossa língua vai muito além de normas gramaticais, é necessário trabalhar com textos para que o aluno chegue à compreensão do uso da língua. (Bernardo, 2016, p. 6)

Sabe-se que há em nosso país diferentes formas de comunicação e que dentro delas há inúmeras variações linguísticas, portanto deve-se oportunizar aos aprendizes da língua materna maior conhecimento possível. Isso implica em ultrapassar os muros criados pelos manuais didáticos, pois é preciso que os textos sejam trabalhados para potencializar a compreensão do mundo humano e do reconhecimento do seu papel no mundo. Isso está fortemente relacionado com o reconhecimento do lugar onde se vive como parte do mundo nos textos. Desta forma, Antunes (2007, p. 62) pontua que “(…) a gramática é insuficiente para preencher todas as nossas necessidades comunicativas e garantir a preparação que precisamos ter para enfrentar as solicitações do mercado de trabalho”. É preciso todo um trabalho social voltado para a inclusão desses estudantes em uma esfera global, capaz de conceder-lhes equidade em suas vivências.

Apesar de todo este trabalho de contextualizar o ensino e do reconhecimento aqui feito à sua valorização, não se pode negar a situação de isolamento que os alunos de escolas públicas de várias comunidades do país têm sofrido. Muitas escolas da zona rural foram nucleadas por causa da diminuição da quantidade de matrículas e alocados em outras instituições de ensino que nem sempre reconhecem a diversidade que passa a compor o seu interior. Trabalhar com os alunos apenas o contexto da vida na cidade quando há alunos que moram na zona rural, cultivar uma concepção de escola única quando o seu público e heterogêneo, relativizar a presença justificando-se na posição de que o conhecimento liberta a todos etc. São expressões de uma escola que causa estranhamento, pois o lugar com o qual o aluno identifica a sua cultura parece não existir. Identidades negadas, vidas perdidas, percurso estranhado.

Não obstante a isso, o Brasil tem leis para tratar do assunto, inclusive, no contexto das políticas públicas e sociais, temos as políticas afirmativas, por meio da Resolução n.º 8, de 20 de novembro de 2012, que definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica (DCN) (Brasil, 2012).

Uma proposta de educação quilombola necessita fazer parte da construção de um currículo escolar aberto, flexível e de caráter interdisciplinar, elaborado de modo a articular o conhecimento escolar e os conhecimentos construídos pelas comunidades quilombolas. Isso significa que o próprio projeto político- -pedagógico da instituição escolar ou das organizações educacionais deve considerar as especificidades históricas, culturais, sociais, políticas, econômicas e identitárias das comunidades quilombolas, o que implica numa gestão democrática da escola que envolve a participação das comunidades escolares, sociais e quilombolas e suas lideranças. Por sua vez, a permanência deve ser garantida por meio da alimentação escolar e a inserção da realidade quilombola em todo o material didático e de apoio pedagógico produzido em articulação com a comunidade, sistemas de ensino e instituições de Educação Superior. (Brasil, 2012)

Em um cenário teórico, a visão ofertada pelas DCN é um levante na ideia da contextualização no estudo da língua materna, todavia a realidade ainda é distante do que preconizam os textos normativos. Ofertar um currículo aberto e flexível é possível, desde que haja um planejamento das ações docentes, pois quando isso acontece, há uma identificação dos alunos aos conteúdos trabalhados em sala de aula, da mesma forma ocorre a continuidade e progressão deles na vida acadêmica.

O sujeito quilombola e a educação em Bela Vista-PI

Segundo relatos dos moradores antigos da comunidade, o nome “Amarra Negro” surgiu devido à existência de um local para onde os africanos e seus descendentes escravizados fugiam dos senhores donos de grandes fazendas de gado da região e ali eram presos e chicoteados.

A resistência continuou e se formou a comunidade onde até hoje residem remanescentes dos quilombos de diferentes idades, dando continuidade às tradições de seus ancestrais, respeitando a terra e cultivando-a. A comunidade foi certificada pela Fundação Cultural Palmares no dia 26 de janeiro de 2014 e está registrada no Livro de Cadastro Geral n.º 016, sob o registro 2.031, na folha 150.

Esta resistência se faz presente nos laços culturais e religiosos dos remanescentes do quilombo através das tradições culturais como a dança do Maculelê, as rodas de capoeira e os festejos juninos e as novenas de São Francisco de Assis. Eventos que fazem lembrar a identidade, as lutas e o pertencimento de diferentes gerações.

O desenvolvimento da comunidade ocorreu paralelamente ao do próprio município onde está situada, pois, com o passar do tempo, ele conquistou sua emancipação política em 1994 e hoje tem uma população estimada de 4.044 habitantes, a partir do Censo do ano de 2010 (IBGE, 2010). Grande parte dos moradores da comunidade Amarra Negro vive do comércio de animais de pequeno porte e da agricultura.

Devido à organização administrativa da educação no município foi necessário fazer a nucleação de escolas para otimizar custos, acesso, permanência e aprendizagem. Isso teve impactos na comunidade, pois os alunos que tinham uma escola na sua comunidade (Amarra Negro) passaram a se deslocar a partir de 2019, diariamente, para a sede do município, o que lhes fez deparar com uma nova realidade.

Segundo dados da Qedu (2022), o Índice de Desenvolvimento da Educação básica da Unidade Escolar Municipal José Florêncio Neto – para onde foram transferidos os sujeitos dessa pesquisa depois do processo de nucleação da escola da sua comunidade – no ano de 2019 foi de 3,70. Não obstante a isso, os indicadores de aprendizagem situam-se em 4,46, sendo que somente 22% dos 262 alunos matriculados encontram-se na faixa de aprendizado adequado no que diz respeito à LP. Em relação ao nível de proficiência dos alunos na instituição, foi observado que somente 11% dos alunos estão em um patamar aceitável de desenvolvimento da leitura, já que 2% estão em nível avançado e apenas 9% são proficientes em LP. Um dado chama atenção: das atividades realizadas por eles fora da escola, somente 14% dizem estudar mais de 2 horas por dia. Inclusive, o percentual de alunos que leem jornais e revistas, livros, histórias em quadrinhos sempre ou quase sempre é de 12%, 10% e 13%, respectivamente.

Também é relevante o percentual de alunos que se declaram pretos ou pardos na instituição: 20% e 11%, respectivamente dos demais alunos – 11% disseram não saber informar. Reforçando o peso que a nucleação causou, o meio de locomoção até a escola para 45% dos alunos era o transporte escolar, enquanto outros 40% se deslocam a pé. Esse alto percentual de alunos transportados via transporte escolar diz respeito à desativação de escolas da zona rural, como é o caso da Unidade Escolar Municipal José Florêncio Neto. E, é preocupante o fato de 35% dos alunos não saberem o que farão após concluírem o ensino fundamental (Qedu, 2022).

Não obstante a esses dados e dificuldades com que os alunos tinham que enfrentar, veio a pandemia de COVID-19 e impôs um novo desafio a quem já demonstrava dificuldades em permanecer na escola, haja vista a diferença cultural e o distanciamento que já reclamavam. Agora, passou a existir um duplo distanciamento. Isso coloca em xeque a importância de conhecer as contribuições da contextualização para a inclusão desses indivíduos.

Ensino na pandemia de COVID-19

Com a disseminação do Coronavírus (COVID-19) o mundo teve que se adequar a uma nova realidade, que assustou a todos: um cenário caótico e de poucas esperanças, porque quase todas as atividades presenciais foram suspensas e a sociedade precisou se ajustar diante dos fatos. Quanto à educação não foi diferente, pois houve a suspensão das aulas presenciais, um choque para quem até o momento estava acostumado com uma relação muito próxima entre os participantes do processo de ensino e aprendizagem. Assim se delineava o ensino remoto: uma alternativa para não deixar os alunos alheios e continuarem aprendendo de forma diferente, mas situada, objetiva, intencional.

As dificuldades encontradas nesse processo foram várias, desde o próprio entendimento do que viria a ser ensino remoto, que na verdade foi confundido com educação a distância, visto que em ambas as relações entre professor e aluno se davam em ambientes diferentes, mas com condições igualmente diferentes. Daros (2020, s.p.) aponta que o ensino remoto pode ser compreendido sob o viés da “finalidade de minimizar os impactos na aprendizagem dos estudantes advindos do sistema de ensino originalmente presencial, aplicadas [sic] neste momento de crise”. Já a educação a distância (EaD) é uma modalidade (DE) ensino mais elaborada, com normas e legislações vigentes há um tempo. Tal entendimento gerou confusões em meio aos docentes, famílias e outras instituições.

Por se tratar de um período inusitado no cenário educativo, muitas práticas pedagógicas ainda foram sendo elaboradas como tentativa de responder ao desafio do distanciamento, mas é inegável que o uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC's) foram um grande recurso pedagógico. No entanto, as TIC's não eram uma realidade vivida por todas as famílias, já que grande parte delas sequer tinha condições de prover o alimento diário. Faltou acesso à internet e meios de acessá-la, inclusive.

O ensino via TIC's na rede pública como um todo, pode ser percebido como um grande equívoco, pois, inviabilizou o acesso ao conhecimento por parte da classe social menos favorecida, por não ter acesso às tecnologias digitais ou não possuírem condições de moradia adequada para acompanhar de maneira satisfatória os momentos de aulas virtuais – moram em residências pequenas, com poucos espaços apropriados para poder estudar (Alves, 2020). O sentido de permanecer na escola foi se esvaindo dos alunos.

Assistiu-se, assim, à alteração das metodologias adotadas pelos professores. O processo ganha uma perspectiva diferente e, conforme apontam Marques e Fragas (2020), é preciso fomentar a importância de orientar e direcionar os estudantes para a apropriação desse formato de busca pelo conhecimento, visto que é uma necessidade cada vez mais presente nas mais diversas atividades na vida contemporânea em nossa sociedade.

Foi esse o caminho adotado pelas instituições públicas de ensino? Orientar, direcionar os estudantes a buscar o conhecimento em seus diversos meios e possibilidades? Esses autores colocam a importância e o traço a ser seguido pelos professores para se conseguir uma atuação discente de excelência, mas nem todas as escolas adotaram uma perspectiva como essa. Essas perguntas têm espaço privilegiado nas discussões aqui realizadas. Este trabalho é uma resposta.

Metodologia

Com a finalidade de sistematizar o processo de pesquisa, análise e apresentação de dados, utilizou-se dos fundamentos e procedimentos que, a seguir, são apresentados.

Princípios e bases da pesquisa

O trabalho de pesquisa perfaz-se pela abordagem quali-quantitava, pois utiliza-se tanto da quantificação dos resultados, como na possibilidade de enxergar qualificações neles presentes. Em outras palavras, “interpreta as informações quantitativas por meio de símbolos numéricos e os dados qualitativos mediante a observação, a interação participativa e a interpretação do discurso dos sujeitos (semântica)” (Knechtel, 2014, p. 106).

Tomando como base esta construção da abordagem da pesquisa, foi eleita a pesquisa exploratória de caráter documental como meio de acesso aos dados, já que os cadernos de atividades enviados aos alunos continham a estratégia de ensino utilizada para impulsionar as aprendizagens na pandemia.

Para Bravo (1991), os cadernos de atividades são realizações produzidas pelos homens que se apresentam como indícios de sua ação e que podem revelar o conjunto de suas, opiniões e formas de ser e viver. Logo, eles são documentos a serem explorados pelo pesquisador, pois contém os dados de forma bruta, sujeita à análise.

Documentos e contexto

A pandemia de COVID-19 trouxe inúmeros desafios para a pesquisa na educação, mas também expôs um terreno fértil para pesquisas que têm como finalidade desvelar fatos e situações que não estavam evidentes.

As alternativas que se mostraram mais viáveis para o contato com os alunos foram os cadernos de atividades não presenciais, autorizados pela Parecer n.º 05/2020 e retificadas pela Resolução CNE/CP n.º 2, de 10 de dezembro de 2020 (Brasil, 2020).

Segundo a já mencionada resolução,

Art. 14. Por atividades pedagógicas não presenciais na Educação Básica, entende-se o conjunto de atividades realizadas com mediação tecnológica ou por outros meios, a fim de garantir atendimento escolar essencial durante o período de restrições de presença física de estudantes na unidade educacional. (Brasil, 2020)

Os cadernos de atividades foram, conforme autorizou a resolução, um meio de atender ao direito à educação em um momento de isolamento que impedia a participação presencial dos alunos na escola.

Conforme confere o instrumento legal já mencionado, esses cadernos, como forma de manter ativo o vínculo com a escola, passaram a ser utilizados como ferramenta de ensino e aprendizagem do conhecimento, de atitudes e valores já antes ensinados pela escola. Neles estava a estratégia, a filosofia de ensino do professor, sua aproximação, seu modo de formar opiniões e incentivar os alunos.

Análise dos dados

Feita a coleta dos dados nos documentos (cadernos de atividade não presenciais), procedeu-se a análise deles por meio da técnica de análise de conteúdo inspirada naquela proposta por Bardin, que Franco (2003, p. 14) diz ser “um procedimento de pesquisa que se situa em um delineamento mais amplo da comunicação e tem como ponto de partida a mensagem”. Triviños (1987, p. 160), citando Bardin (1977), diz que a análise de conteúdo:

É um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, obter indicadores quantitativos ou não que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/ recepção (variáveis inferidas) das mensagens.

Levando em conta o objetivo central da pesquisa e o meio onde estão dispostos os dados, é esta a forma mais adequada de se reconhecer os significados dos elementos presentes nos cadernos de atividades não presenciais (Bravo, 1991).

Para auxiliar na análise do conteúdo dos cadernos de atividades não presenciais foram levantados os seguintes critérios: ter sido enviado aos alunos no período compreendido entre outubro e dezembro de 2020, ter sido enviado para turmas de 6º ano ao 9º anos do ensino fundamental e conter atividades de língua portuguesa.

Por meio desses critérios, operacionalizou-se a separação dos dados e a organização dos resultados em campos específicos.

Resultados e discussão

Nesta seção, serão apresentadas as informações socioeconômicas dos estudantes, bem como de desempenho da Unidade Escolar Municipal José Florêncio Neto. Além disso serão apresentados os resultados da análise do conteúdo dos cadernos de atividades não presenciais encaminhados aos alunos pelas escolas no período de novembro e dezembro do ano de 2020.

Os cadernos de atividades contemplavam aspectos gramaticais, análise de textos e produção textual. O primeiro dado buscado foi a respeito da quantidade de atividades que eram solicitadas em cada caderno de atividades. Essas informações mostram que não havia uma quantidade específica de questões com as quais era organizado o caderno de atividades. Prevaleceram nos cadernos analisados, em sua maioria, uma, três e quatro questões.

O fato de o caderno conter atividades para todas as semanas do mês, denuncia o tempo que esses alunos ficavam alheios às atividades, haja vista o quanto deveriam esperar para tomar o próximo caderno. Em média, os alunos resolviam uma atividade por semana. Antes de analisar o quanto essa quantidade de atividades evidencia o vínculo aluno-escola, é preciso pensar que elas representam a flagrante desigualdade no acesso à internet no Brasil, pois, conforme aponta Couto et al. (2020, p. 210) “as vulnerabilidades sociais e econômicas de aproximadamente cem milhões de pessoas se tornaram chocantemente visíveis” nesta pandemia.

Ter acesso aos cadernos e atividades que zelassem pelo ritmo de aprendizagem dos alunos, era considerar a natureza socializadora da educação neste difícil momento e o papel das competências socioemocionais na constituição dos alunos, o que é preconizado na legislação educacional brasileira.

No segundo ponto analisado nos cadernos pretendia-se entender qual o padrão de organização das atividades no caderno, ou seja, qual era a lógica de organização e seleção das atividades. A intenção era conhecer se a relação entre as questões ou atividades era pela temática, por meio de uma sequência didática disciplinar ou interdisciplinar, pois era preciso entender esse raciocínio para determinar a conexão ou aleatoriedade com a qual o trabalho era desenvolvido. Constata-se que apenas 12% das atividades tinham afinidade temática e apenas 25% demonstravam compor uma sequência didática ativa. O que mais se destaca é que essa organização não chega a 40% do total de atividades. Sobressaem-se aqui as atividades que se aglutinam ou não em um raciocínio claro, ou seja, nesses cadernos algumas atividades estavam alinhadas e outras não. A questão aqui é: os cadernos pedagógicos, enquanto ferramenta de ensino, devem estar organizados por meio de uma sequência lógica que, na ausência do professor, facilitasse a compreensão dos sentidos do conhecimento em questão?

A didática que fundamenta o trabalho do professor fica expressa na constituição da sua atividade, ou seja, na forma como ele conduz a sua prática. Podendo se revestir do caráter libertador/emancipador ou não (Freire, 2019). Essa condução aponta para um trabalho pautado do desenvolvimento humano. A respeito desse assunto, Castaman e Rodrigues (2020, p. 9) se posicionam da seguinte maneira:

É preciso retomar a responsabilidade pelo ensino e pela aprendizagem de modo mais abrangente, inclusive no sentido de contar com a gradativa autonomia, empoderamento e autodeterminação do estudante para a produção do conhecimento devendo o estudante ser compreendido e estimulado a ser também responsável por sua formação intelectual. (Castaman & Rodrigues, 2020, p. 9)

Fica expresso nesta citação que os cadernos de atividades não presenciais deveriam ser mais abrangentes e gerar autonomia e empoderamento, o que exige um roteiro organizado e eficaz, desde a proposta à sua avaliação. O resultado dessa sistematização e organização dos cadernos era a inclusão dos alunos por meio da significação do seu lugar de fala. Aprofundando um pouco mais, buscou-se conhecer dessas atividades que tinham alguma afinidade lógica, seja pela abordagem gramatical ou de intertextualidade, quais eram os temas nelas abordados. Os cadernos analisados tinham na maioria de seus textos ou questões menções à cultura local (tradições religiosas, danças, manifestações culturais), organização da sociedade (convivência, ética, política, economia) e saúde e bem-estar – COVID-19, dengue, DST's, câncer e saúde mental. Em apenas 12% dessas atividades se falava de questões relacionadas à escola, à aprendizagem ou ao ensino. O que revela certa desconexão com o propósito inicial dessas atividades não presenciais: manter o vínculo.

Os cadernos de atividades não presenciais, enquanto ação proposta pelo Parecer CNE/CEP n.º 5/2020, tinham a função de orientar os alunos no desenvolvimento das habilidades propostas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2020). Isso pressupõe um trabalho organizado em torno dos objetivos e das competências indicadas no documento.

Tanto a segunda questão aqui posta como resultado (lógica de organização dos cadernos) como esta última destacam a qualidade e a estrutura dos cadernos de atividades e, por conseguinte, o seu potencial de impacto na aprendizagem dos estudantes por meio da captação do contexto no qual esses alunos estão vivendo. Logo, esses “estudantes que estão em processo de formação merecem todos os esforços tanto dos profissionais da educação envolvidos nesse processo, bem como de suas famílias para que possam ter o conhecimento científico de qualidade” (Marques & Fragas, 2020, p. 43). O que inclui o aluno é o conhecimento da prática social em um nível elevado de criticidade.

Analisando os cadernos em um âmbito mais geral e alinhando-as ao objetivo da pesquisa, buscou-se encontrar nas atividades e textos elementos que se aproximassem de alguma forma da cultura e da organização social dos povos quilombolas. Os itens analisados nessa parte do levantamento buscavam encontrar elementos que se aproximassem dos seguintes aspectos da vida dos alunos que vivem em quilombos: religiosidade, relações econômicas (modos de subsistência), vivência dentro da comunidade, saúde e vulnerabilidade de pessoas em situação de risco, lutas e conquistas de direitos e educação de crianças no quilombo. Os resultados mostram claramente que nenhuma das atividades dos cadernos dos anos finais do ensino fundamental enviados para os alunos entre os meses de novembro de dezembro continha qualquer menção à vida nos quilombos, seja por meio de textos ou quaisquer outros meios de contemplá-los.

Pergunta-se a partir de tal contexto: qual a necessidade inserir o contexto da vida dos alunos nesses cadernos por meio da contextualização? Os cadernos de atividades precisavam contemplar aspectos da vida dos alunos? O que esta situação deflagra?

Oliveira et al. (2020, p. 7) diz que o “ensino remoto tem função socializadora, pois mantém os alunos conectados entre si, com os professores e com a escola, para que tenham um horizonte nesse período de pandemia”. Fica claro que os cadernos se afastavam da sua propositura e se configuravam em um tipo de educação que não pretendia gerar liberdade, esperanças, emancipação e inclusão em meio ao hostil momento que os alunos e suas famílias estavam passando. Freire (2019, p. 80-81) chama atenção para uma educação com a finalidade depositária, ou seja, a educação “bancária”, na qual os alunos apenas recebiam o conteúdo das atividades. Em outras palavras, seria aquela “em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los”.

Esse entendimento de Freire (2019) coloca em pauta a necessidade de direcionar os processos educativos para a formação dos alunos a partir da história, das situações sociais nas quais estavam inseridos e nas características do lugar onde eles vivem – o que diretamente se conecta à contextualização da vida do aluno, como forma de fazê-lo construtor do seu mundo, da sua história, do seu aprendizado.

Considerações finais

Através da produção desta pesquisa foi possível compreender o quanto é importante e necessária que se faça uma abordagem sobre o ensino de língua portuguesa e literatura como uma ferramenta de inclusão do sujeito quilombola diante do contexto da pandemia. Foi possível compreender que se trata de algo bastante complexo, e que precisa ser contextualizado, para que se possa compreender melhor e, assim, buscar possíveis soluções, estratégias e formas de conduzir o ensino na direção da efetiva inclusão dos alunos quilombolas.

Nesse sentido, o conhecimento de que diante de uma realidade como a que se está vivenciando na pandemia, e com todos os desafios inerentes à aprendizagem dos conhecimentos da disciplina, como também do contexto pesquisado, percebe-se que há a necessidade e a importância de se desenvolver o ensino de modo que supere a prática pela prática. Mais especificamente, na repetição dos conteúdos presentes nos livros didáticos, restringindo somente a uma abordagem que não desperta muito interesse dos alunos, ou que não trabalhe com questões que coloquem ênfase na existência da cultura e da vida dos povos quilombolas. Isso resultaria diretamente em uma aprendizagem mais significativa.

Portanto, ficou claro que com a chegada da pandemia foram tomadas medidas para garantir que o vínculo com a atividade de estudo não fosse perdido, todavia, as atividades acabaram por se resumir ao envio não sistemático de exercícios de livros ou partes deles. A ausência da contextualização, que é uma importante ferramenta na construção dos sentidos de aprender, viver e conviver, ficou de lado. O que acarretou desmotivação para continuar aprendendo.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

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Recebido: 20 de Agosto de 2021; Aceito: 13 de Setembro de 2022; Publicado: 21 de Novembro de 2022

Endereço para correspondência

Euvaldo de Sousa Costa Junior, Faculdade Evangélica do Piauí, Rua 13 de Maio, 2660, Pio XII, 64.018-285, em Teresina, PI, Brasil.

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