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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.45 no.1 Porto Alegre  2022  Epub 17-Jul-2023

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2022.1.37005 

Outros Temas

Reflexões sobre a Educação para a Cidadania Global na formação dos estudantes universitários

Reflections on Education for Global Citizenship in the education of undergraduate students

Reflexiones sobre la Educación para la Ciudadanía Global en la formación de estudiantes universitarios

Karen Graziela Weber Machado1 

Karen Graziela Weber Machado

Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil; doutoranda em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-5115-8989

Adriana Justin Cerveira Kampff1 

Adriana Justin Cerveira Kampff

Doutora em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil. Pró-Reitora de Graduação e Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil; professora e pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Educação em Ciências e Matemática da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil.


http://orcid.org/0000-0003-1581-1693

Camila de Barros Rodenbusch1 

Camila de Barros Rodenbusch

Doutora em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil; mestre em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil. Coordenadora Acadêmica do curso de Bacharelado em Educação Física e docente da Faculdade Sogipa, em Porto Alegre, RS, Brasil; docente da Faculdade da Região Centro Sul (Fundasul), em Camaquã, RS, Brasil.


http://orcid.org/0000-0001-6831-5410

1Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.


Resumo:

O presente estudo teve como objetivo analisar a percepção dos docentes da educação superior sobre a Educação para a Cidadania Global no processo de formação dos estudantes. Esta pesquisa se caracteriza como um estudo qualitativo, de caráter descritivo e com abordagem de estudo de caso. Para a realização da coleta de dados foi utilizado um questionário online, e os dados foram analisados conforme princípios da análise de conteúdo. Através das percepções dos docentes, foi possível identificar que eles têm o entendimento sobre os princípios da Educação para a Cidadania Global, assim como estão preocupados com a formação de cidadãos comprometidos com a tolerância e a compreensão, visando a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Sendo assim, a Educação Superior pode promover uma educação capaz de preparar os estudantes para os desafios do contexto local e global em que estão inseridos, através de práticas pedagógicas inovadoras, que visem à formação do estudante de maneira holística.

Palavras-chave: educação superior; educação para a cidadania global; formação humana; prática pedagógica

Abstract:

This study aims to analyse the perception of Higher Education faculty members about Education for Global Citizenship in the process of training students. This research is identified as a qualitative study, of a descriptive character and with a case study approach. In order to perform the data collection an online questionnaire was used and the data was analyzed according to the principles of content analysis. Through the faculty members’ perceptions, it was possible to identify that they have an understanding of the principles of Education for Global Citizenship, as well as are concerned with the development of citizens committed to tolerance and understanding, aiming at building a more fair and solidary society. Thus, Higher Education can promote an education capable of preparing students for the challenges of the local and global context in which they are inserted, through innovative pedagogical practices, focused at training students in a holistic approach.

Keywords: higher education; global citizenship education; human formation; pedagogical practice

Resumen:

El presente estudio tuvo como objetivo analizar la percepción de los docentes de la Educación Superior sobre la Educación para la Ciudadanía Global en el proceso de formación de los estudiantes. Esta investigación se caracteriza como un estudio cualitativo, de carácter descriptivo y con enfoque de estudio de caso. Para la realización de la recogida de datos se utilizó un cuestionario online, y los datos fueron analizados conforme principios del análisis de contenido. A través de las percepciones de los docentes, fue posible identificar que ellos tienen el entendimiento sobre los principios de la Educación para la Ciudadanía Global, así como están preocupados con la formación de ciudadanos comprometidos con la tolerancia y la comprensión, para construir una sociedad más justa y solidaria. Por lo tanto, la Educación Superior puede promover una educación. Así, la Educación Superior puede promover una educación capaz de preparar a los estudiantes para los desafíos del contexto local y global en el que se insertan, a través de prácticas pedagógicas innovadoras, que apunten a la formación del estudiante de manera holística.

Palabras clave: educación superior; educación para la ciudadanía global; formación humana; práctica pedagógica

Atualmente, vive-se em um mundo de constantes mudanças relacionadas aos meios de produção e de serviço, as quais podem implicar em modificações em diversas esferas da sociedade, afetando o modo de pensar, de atuar e na forma como o conhecimento é desenvolvido e adquirido, o que demanda uma nova postura dos profissionais, capazes de atuar em contextos de incerteza e imprevisibilidade, em equipes interdisciplinares, cooperando no desenvolvimento de soluções inovadores. Tais demandas impactam inclusive na esfera educacional, exigindo que os processos educacionais sejam repensados em todos os níveis, especialmente no contexto da educação superior.

Desse modo, cabe ressaltar que a educação transmissiva, em que o professor discorre sobre os temas e os alunos são receptores passivos, não prepara os estudantes de maneira integral para enfrentar os desafios atuais. As aulas transmissivas, realizadas por meio de uma vasta quantidade de conteúdos, inúmeros exercícios e repetições, e provas individuais como única forma de avaliação, não possibilitam o desenvolvimento das aprendizagens e competências necessárias para inovar em um mundo em acelerada transformação.

Frente às novas demandas, pode-se afirmar que está em curso uma mudança significativa no discurso e na prática da educação contemporânea. Em virtude disso, compreende-se que a educação deve assumir o papel responsável de preparar os estudantes para lidar com os desafios e as oportunidades advindos da globalização, promover a cidadania global e a transformação social para que o mundo se torne cada vez mais justo, pacífico, tolerante, inclusivo, seguro e sustentável (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [UNESCO], 2015). Corroborando com essa premissa Goergen (2020) salienta que é fundamental que a educação prepare profissionais competentes para atender às expectativas do mundo do trabalho e para acessar uma vida digna, e desperte as pessoas para a necessidade de sua formação subjetiva. Para isso, cabe buscar fomentar nos sujeitos a consciência crítica, a responsabilidade ética, o respeito e a dignidade humana.

Por esse motivo, é importante ressaltar que os estudantes devem ter oportunidades diversificadas na Educação Superior para construírem aprendizagens importantes. Estas aprendizagens, por sua vez, dizem respeito a um conjunto de conhecimentos, competências, habilidades, valores, atitudes e comportamentos, capazes de preparar os estudantes para a vida acadêmica, pessoal, profissional e para a cidadania, vinculando aspectos locais e globais.

Diante das questões mencionadas, percebe-se que este momento histórico e social requer que os indivíduos se tornem protagonistas de seu próprio desenvolvimento e do mundo em que vivem. Nesse sentido, cabe à educação fomentar a formação humana integral e a construção de uma sociedade mais inclusiva, democrática e justa, o que vai muito além de desenvolver aprendizagens relacionadas somente aos conteúdos específicos no decorrer das disciplinas ofertadas em determinadas unidades educativas.

Nesta perspectiva, é relevante desenvolver a Educação para a Cidadania Global (ECG) que segundo a UNESCO (2015) tem um papel relevante a desempenhar para preparar estudantes para lidar com o mundo dinâmico e interdependente apresentado na atual conjuntura. Sendo assim, o presente estudo teve como objetivo analisar a percepção dos docentes da educação superior sobre a ECG no processo de formação dos estudantes.

Contextos emergentes

Nesta seção, apresentam-se temas pertinentes às transformações e aos tensionamentos emergentes na educação superior e as premissas para o desenvolvimento da ECG.

Educação superior

Para Tiffin e Rajasingham (2009) a universidade moderna, que surgiu no Iluminismo, foi criada para responder às necessidades da sociedade que a sustém, nesse sentido, esta instituição não foi projetada ou equipada para responder às novas demandas globais, o que exige a produção de conhecimento inovador. Conforme Morosini (2014) a educação superior na contemporaneidade vive um momento singular e de mudanças no contexto sócio-histórico e econômico mundial. Além de desafios às funções de ensino, pesquisa e extensão de qualidade, novas vertentes estão sendo apresentadas e precisam ser consideradas, bem como as demandas locais dentro de um contexto global.

A respeito da universidade, McCowan (2018) revela que a universidade é considerada uma instituição muito antiga que tem um papel relevante a desempenhar na sociedade. A universidade tem sido capaz de se adaptar e sobreviver, diante das mudanças políticas, econômicas, sociais e científicas ocasionadas nos últimos oito séculos. Em virtude disso, a manutenção da identidade da universidade tem se tornado um grande desafio, levando em consideração o processo de mercantilização da Educação de forma geral e, de forma mais evidente, no crescimento das instituições marcadamente mercadológicas.

Para complementar, McCowan (2018) aponta que, na contemporaneidade, as alterações no papel e função das universidades apresentadas pelo processo de desagregação (se refere à dinâmica em que os produtos anteriormente ofertados em conjunto são desmembrados em suas partes constituintes, sendo impulsionada por dois fatores: motivações financeiras, sendo liderada pelo setor com fins lucrativos; e pedagógicas, através da ênfase na personalização e na empregabilidade) podem envolver as seguintes questões: a destruição das variadas ofertas e instalações, deixando somente a atividade principal de instrução; a desagregação das principais funções de ensino e pesquisa em instituições separadas, ou a divisão dessas atividades entre distintos docentes e técnicos; e a perda do papel de validação tanto dos conhecimentos, quanto das habilidades dos estudantes.

Em vista disso, pode-se afirmar que as universidades públicas ou sem fins lucrativos demonstram-se preocupadas e estão reagindo de modo a buscar estratégias que possibilitem a manutenção e aprimoramento de um modelo institucional pautado na indissociabilidade das suas atividades de ensino, pesquisa e extensão. Pois a tríade relacionada ao ensino, à pesquisa e à extensão, por exemplo na América Latina, tem sido fortemente defendida como definição de universidade (McCowan, 2018).

De acordo com a UNESCO (1998) os sistemas de educação superior devem: ampliar sua capacidade para viver em meio à incerteza, para modificar e provocar mudanças, visando atender às necessidades sociais e promover a solidariedade e a igualdade; preservar e exercer o rigor científico e a originalidade, buscando atingir e manter a qualidade; e, colocar os estudantes no centro das suas preocupações, dentro de uma perspectiva continuada, permitindo a integração dos mesmos na sociedade de conhecimento global do século XXI.

Essa formação na educação superior não é recente, os textos do alemão Wilhelm von Humboldt (1767–1835) sobre as reformas no sistema de ensino, de 1810, apontavam para uma nova era, um processo de modernização da pedagogia, mais especificamente a alemã. Destacava a função social do professor enquanto educador da humanidade. Conforme Thomas (1973, p. 219) a reforma educacional de Humboltd “marca uma das poucas instâncias em que uma antropologia filosófica formou a base explícita para um programa de mudança social bem-sucedido”.

A UNESCO (1998) aborda que as missões e valores fundamentais da Educação Superior, devem contribuir para o desenvolvimento sustentável e o melhoramento da sociedade, tendo o intuito de: (a) educar e formar indivíduos qualificados, cidadãos responsáveis, capazes de atender às necessidades acerca dos aspectos da atividade humana, proporcionando qualificações significativas, incluindo capacitações profissionais que relacionem conhecimentos teóricos e práticos através de cursos e programas que se adaptem de maneira constante às necessidades presentes e futuras da sociedade;

(b) prover um espaço aberto de oportunidades para a educação superior e para aprendizagem permanente, de modo a educar para a cidadania e a participação plena na sociedade com abertura para o mundo, visando à construção de capacidades e a consolidação dos direitos humanos, o desenvolvimento sustentável, a democracia e a paz em um contexto de justiça; (c) promover, gerar e difundir conhecimentos por intermédio da pesquisa; (d) favorecer a compreensão, interpretação, preservação, reforço, fomento e difusão das culturas nacionais e regionais, internacionais e históricas, em um contexto de pluralismo e diversidade cultural; (e) contribuir em relação a questões voltadas à proteção e à consolidação dos valores da sociedade, formando indivíduos conforme os valores baseados na cidadania democrática, e proporcionando perspectivas críticas e independentes tendo o propósito de colaborar no debate a respeito das opções estratégicas e no fortalecimento de perspectivas humanistas; e, (f) favorecer o desenvolvimento e melhoria da educação em todos os níveis.

Considerando as questões abordadas, cabe destacar que a educação superior tem grande importância para o desenvolvimento histórico, sociocultural e econômico dos diversos países, desse modo torna-se relevante preparar estudantes com aprendizagens indispensáveis para atender as demandas apresentadas pela sociedade vigente. Compreende-se que, nesse contexto, existe interesse crescente nas Universidades em relação à ECG, que sinaliza uma mudança no papel e no propósito da educação para a construção de sociedades mais justas, pacíficas, tolerantes, inclusivas e empáticas (UNESCO, 2015).

Na contramão desse movimento, no entanto, cabe destacar a questão da mercantilização da educação (McCowan, 2018), impulsionada pela ampliação do setor com fins lucrativos e pela dinâmica do processo de desagregação das universidades também presente em nossa sociedade, criando tensionamentos e contradições que podem dificultar que a ECG se concretize no contexto da educação superior. Essa desagregação é capaz de promover duas dinâmicas na sociedade: a individualização e a economização. Tais aspectos estimulam uma maior adaptabilidade do aprendizado no que diz respeito a metas, necessidades e estilos de vida individuais; e coloca o fator econômico no centro das decisões, envolvendo o custo-eficiência do processo educacional e os resultados, ao invés de fomentar a compreensão humana, a conscientização e a igualdade social (McCowan, 2018).

Educação para a Cidadania Global

Segundo a UNESCO (2015) a Educação para a Cidadania Global é um marco paradigmático que sintetiza a forma como a educação pode desenvolver conhecimentos, habilidades, valores e atitudes, salientando que os estudantes precisam colaborar para que o mundo se torne cada vez melhor para se viver. A EGG reconhece a importância da educação para a compreensão e a resolução de questões globais em diversas dimensões, tais como sociais, políticas, culturais, econômicas e ambientais. Além disso, reconhece que o papel da educação deve transcender o desenvolvimento de conhecimentos e de habilidades cognitivas específicas, favorecendo a construção de valores, habilidades socioemocionais e atitudes entre estudantes, facilitando a cooperação internacional e promovendo a transformação social. Nesse sentido, a ECG tem um papel importante a desempenhar para preparar os aprendizes com saberes e competências para lidar com o mundo dinâmico e interdependente do século XXI (UNESCO, 2015). É importante ressaltar que a UNESCO (2016, p. 16) menciona que a ECG tem o propósito de permitir aos estudantes:

Entender as estruturas de governança, os direitos e as responsabilidades internacionais, questões globais e relações entre sistemas e processos globais, nacionais e locais; reconhecer e apreciar as diferenças e identidades múltiplas, por exemplo, em termos de cultura, língua, religião, gênero e nossa humanidade comum, além de desenvolver habilidades para viver em um mundo com cada vez mais diversidade; desenvolver e aplicar as competências cidadãs fundamentais, como investigação crítica, tecnologia da informação, alfabetização midiática, pensamento crítico, tomada de decisão, resolução de problemas, construção da paz e responsabilidade pessoal e social; reconhecer e analisar crenças e valores e como eles influenciam as decisões políticas e sociais, as percepções sobre a justiça social e o engajamento cívico; desenvolver atitudes de interesse e empatia pelos outros e pelo meio ambiente, além de respeito pela diversidade; adquirir valores de equidade e justiça social, assim como habilidades para analisar criticamente as desigualdades com base em gênero, status socioeconômico, cultura, religião, idade e outros fatores; participar e contribuir para questões globais contemporâneas em âmbito local, nacional e global, como cidadãos globais informados, engajados, responsáveis e responsivos.

De acordo com Alessandrini (2002) a noção de competência relaciona-se à capacidade de compreender uma determinada situação/problemática e agir de maneira eficaz diante da mesma, estabelecendo uma avaliação de tal situação/problema de modo proporcionalmente justo, considerando a necessidade que a questão sugerir, com vistas a atuar da melhor forma possível para enfrentar os desafios propostos na busca de solucionar os problemas existentes.

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2018) aborda que o termo competência se refere a uma combinação de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores aplicados com sucesso em diversos contextos. Já as habilidades podem ser definidas como a capacidade de realizar um padrão complexo e organizado de pensamento (no caso de uma habilidade cognitiva) ou de comportamento (em relação a uma habilidade comportamental) a fim de atingir um objetivo específico. A competência requer várias habilidades, o que pode incluir: raciocínio com informações oriundas de diversas fontes e em múltiplos formatos; comunicação em contextos interculturais; resolução de conflitos; e adaptabilidade frente a cenários adversos. Assim, percebe-se que desenvolver habilidades como as exemplificadas é importante para lidar com as demandas apresentadas na vida cotidiana e no exercício profissional, em uma perspectiva de cidadania global.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aborda que, embora a ECG tenha sido aplicada de várias formas em diversos contextos, regiões e comunidades, a mesma apresenta elementos comuns, que envolvem fomentar nos estudantes aspectos relacionado a:

  1. uma atitude alicerçada por um entendimento de vários níveis de identidade e o potencial para uma identidade coletiva que transcenda diferenças individuais culturais, religiosas, étnicas ou outras;

  2. um conhecimento aprofundado referente às questões globais e valores universais como justiça, igualdade, dignidade e respeito;

  3. habilidades cognitivas para pensar de maneira crítica, sistêmica e criativa, adotando uma abordagem de multiperspectivas que possibilite reconhecer as diferentes dimensões, perspectivas e ângulos das questões;

  4. habilidades não cognitivas, integrando habilidades sociais, como empatia e resolução de conflitos, habilidades de comunicação e aptidões de construção de redes (networking) e de interação com pessoas com diversas experiências, origens, culturas e perspectivas;

  5. capacidades comportamentais para agir de modo colaborativo e responsável, visando encontrar soluções abrangentes para desafios globais, empenhando-se pelo bem coletivo.

Compreende-se que em um mundo cada vez mais interconectado e interdependente, torna-se necessário o desenvolvimento de uma pedagogia capaz de preparar os estudantes para solucionar problemas existentes relacionados aos contextos local e global.

Gil (2015) destaca que a pedagogia da educação superior tem avançado com novos conceitos e métodos. O estudante, que era considerado como sujeito passivo, na atualidade é compreendido como sujeito ativo da aprendizagem, que necessita procurar ativamente a informação complementar indispensável para a solução de problemas concretos, estruturando racionalmente os conhecimentos que vai adquirindo, relacionando o que foi discutido no contexto educativo com o que ele próprio procura, em nível teórico e/ou prático.

Nesse sentido, o ensino passa a ser mais do que a simples transmissão de conhecimento, passa a exigir a oferta de métodos e de ferramentas para o desempenho do papel ativo, possibilitando que a ação educativa tenha como foco a aprendizagem. Essa abordagem modifica o papel do professor, visto que a atenção principal na ação educativa passa, em grande parte, do ensino para a aprendizagem. Dessa forma, o professor torna-se mais do que transmissor de conhecimento, sendo um facilitador da aprendizagem (Gil, 2015).

Sendo assim, nesse período histórico, compreende-se que é necessário que as práticas pedagógicas sejam desenvolvidas de maneira:

  1. centrada no estudante;

  2. holística, fomentando a consciência de desafios locais e de preocupações e responsabilidades coletivas;

  3. a estimular o diálogo e a aprendizagem com respeito;

  4. a reconhecer normas culturais, políticas nacionais e marcos internacionais que causam impacto na formação de valores;

  5. a promover o pensamento crítico e a criatividade, além de serem empoderadoras e orientadas para soluções;

  6. a desenvolver resiliência e “competência para ação”.

Sendo assim, a ECG pode ser desenvolvida por meio de uma pedagogia conectada com os problemas atuais do mundo, que auxilie a ampliar a relevância da educação, tanto internamente, quanto externamente à sala de aula, buscando engajar partes interessadas da comunidade mais ampla.

Metodologia

Este trabalho se caracteriza como um estudo transversal, de cunho qualitativo e de caráter descritivo. De acordo com Triviños (1987, p. 110) “A maioria dos estudos que se realizam no campo da educação é de natureza descritiva. O foco essencial destes estudos reside no desejo de checar a comunidade, seus traços característicos, seus agentes, seus problemas, suas escolas, seus professores, sua educação”.

A primeira fase orientou-se pelo aprofundamento teórico e pela pesquisa bibliográfica, que conforme Marconi e Lakatos (2005) têm como base a análise de materiais já publicados. A segunda fase caracteriza a abordagem do estudo de caso, que compreende o planejamento, a coleta e a análise dos dados. De acordo com Castro (1994, p. 61), um estudo de caso “(…) apresenta as condições de conter as descrições (…) um retrato da situação estudada (…). Oferece também a possibilidade de apresentar as múltiplas concepções que emergem do estudo realizado”. Ao revelar a escolha dos participantes para este trabalho, aponta-se para professores atuantes em cursos de Graduação e de Pós-graduação em Educação em uma Instituição de Educação Superior, localizada no estado do Rio Grande do Sul (RS). Os docentes têm doutorado em Educação e estão vinculados em regime de tempo integral de trabalho na unidade educativa referida.

Para atender ao objetivo do estudo, foi utilizado para a coleta de dados um questionário on-line. A ferramenta utilizada para construção do questionário deste estudo foi o Google Forms. O questionário foi composto com questões abertas, elaboradas pelas próprias pesquisadoras, e disponibilizado por e-mail através de um link gerado automaticamente pela ferramenta. Na parte inicial do formulário do questionário foi exposto o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visando informar aos participantes sobre a temática, o objetivo, a justificativa e o funcionamento de participação da pesquisa, para que eles pudessem optar por participar do estudo.

A amostra foi composta por cinco professores, que concordaram em participar do estudo, denominados como Docente 1, 2, 3, 4 e 5. Os docentes participantes da pesquisa são indicados por meio da palavra “Docente”, seguida de numeração sequencial, para assegurar o anonimato dos sujeitos que constituíram a amostra.

Análise e discussão dos resultados

Os dados coletados foram analisados conforme a Técnica de Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2011), o momento de pré-análise inclui a leitura global e individual do questionário respondido pelos participantes da pesquisa para se ter uma ideia do todo, identificando as unidades de registro para proceder a sua categorização.

Após a leitura, exploração e análise dos dados, foi elaborada uma síntese, através da Interpretação e Inferência dos Resultados, tendo como ponto de referência os autores citados no estudo, possibilitando relacionar conceitos e teorias com os dados encontrados. Foi por meio desse processo que foram constituídas três categorias finais, a priori, a saber: o entendimento sobre a ECG; o processo de formação para a cidadania global; e, por fim, os desafios da educação superior para promover a ECG.

O entendimento sobre a educação para a cidadania global

As respostas dos participantes para o entendimento sobre a ECG englobam a formação do sujeito como um todo, na sua integralidade, a partir de aspectos técnicos, sociais, cognitivos, emocionais, culturais e de relacionamentos interpessoais e intrapessoais. Para o Docente 2

É uma cidadania para a inteireza, comprometida com a formação de um sujeito aprendente integral, holístico e capaz de empreender mudanças e transformações pessoais e sociais a nível local e global com vistas à reflexão sobre problemas/desafios enfrentados pela humanidade a nível planetário.

Essas transformações perpassam pela universidade e pelas pessoas envolvidas neste contexto, sejam professores ou estudantes, indo ao encontro do que afirmam Maturana e Razepka (2000, p. 10) de que a educação é um processo de transformação e tem como tarefa:

formar seres humanos para o presente, para qualquer presente, seres nos quais qualquer outro ser humano possa confiar e respeitar, seres capazes de pensar tudo e de fazer tudo o que é preciso como um ato responsável a partir de sua consciência social.

Todos os participantes deste estudo consideram importante que a educação superior prepare os indivíduos para cidadania global, afirmando serem “conhecimentos necessários à formação humana e social, ampliam nossa visão de mundo e o respeito às humanidades como um todo” (Docente 4). Corroborando com esta fala, o Docente 5 salienta a importância de a universidade ir além da formação técnica, ressaltando a importância do desenvolvimento dos valores e da formação humana e social dos acadêmicos.

Para o Docente 2:

É preciso entender, refletir e tensionar esse processo de imbricação entre o local e o global (Hall) na perspectiva de orientar o aprendente para o exercício de uma cidadania global que promova a percepção que atitude local é global e que questões globais fazem parte de nosso cotidiano a nível local.

Hall (2006), ao mencionar a respeito do impacto referente à última fase da globalização acerca das identidades nacionais, reflete que uma de suas características principais corresponde à compreensão espaço-tempo, à aceleração dos processos globais, de modo que a sensação é de que o mundo e as distâncias são menores, e que certos eventos ocorridos em um determinado lugar impactam imediatamente em indivíduos e regiões, até mesmo naquelas consideradas muito distantes.

Assim, compreende-se a necessidade de se promover a ECG, pois esta tem por finalidade: preparar os estudantes com as competências para melhor atuar no mundo dinâmico e interdependente, para que se tornem capazes de solucionar problemas globais (existentes e emergentes), os quais ameaçam o mundo; e, ajude-os a aproveitar com sabedoria as oportunidades ofertadas por essa educação.

Corroborando com esta perspectiva, o Docente 3 afirma que “a nossa sociedade já não é mais local e sim global. Para isso o estudante tem que ser visto na sua integralidade”. Edgar Morin (2001) também afirma o quanto é importante entender e ver o Ser Humano a partir da sua integralidade, reconhecendo suas múltiplas particularidades e contribuindo para formação de estudantes mais éticos e humanos.

O entendimento dos participantes está de acordo com a proposta da UNESCO (2015) de ECG, que trabalha com o conceito de Formação Integral e visa contribuir e auxiliar na resolução de desafios globais, buscando construir sociedades responsáveis e preocupadas com um mundo e um futuro melhor para todos. Diante das questões mencionadas, torna-se relevante destacar, a seguir, aspectos que podem contribuir para uma formação na perspectiva da cidadania global, bem como, as possibilidades de práticas pedagógicas que podem favorecer o desenvolvimento deste processo.

O processo de formação para a cidadania global

Segundo a UNESCO (2015) a ECG deve promover uma aprendizagem voltada para a obtenção de uma maior consciência sobre questões relativas à vida real e das circunstâncias que as cercam, de modo a proporcionar uma maneira de realizar mudanças no contexto local que podem influenciar o contexto global por meio de estratégias e métodos participativos.

Nesse sentido, a pedagogia transformadora é vista como uma possibilidade para ajudar a aumentar a relevância da educação dentro e fora da instituição educativa, além de engajar partes interessadas da comunidade mais ampla, que também fazem parte tanto do ambiente, quanto do processo de aprendizagem. A pedagogia transformadora deve levar a inovações educativas e sociais, visando alcançar melhorias e a qualificação do processo de formação ofertado pelas unidades educacionais (UNESCO, 2015).

Dessa forma, a ECG precisa de professores qualificados, que compreendam sobre o ensino e a aprendizagem transformadores e participativos. O papel fundamental do educador é ser um guia e facilitador para, assim, incentivar os estudantes a se envolver na investigação crítica e auxiliar no desenvolvimento de conhecimentos, habilidades, valores e atitudes que promovam mudanças capazes de beneficiar as dimensões pessoais e sociais (UNESCO, 2015).

Quando questionados sobre o que é necessário para o desenvolvimento da cidadania global, os docentes destacaram a importância do posicionamento ético e crítico, da resolução de problemas reais, desenvolvimento de valores humanos, culturais e emocionais,

(…) desenvolvendo e aprimorando habilidades como: discussões sobre diferentes pontos de vista, sobre o respeito à diversidade de culturas e ideias, o acesso ao conhecimento científico, à cultura, à inovação, possibilitando a esses estudantes condições reais e humanas de evoluírem e aprenderem no coletivo deste processo educativo. (Docente 4)

A respeito do questionamento “Quais as competências necessárias a serem trabalhadas com os estudantes da Educação Superior para o desenvolvimento da cidadania global, as quais podem contribuir para lidar com o mundo dinâmico e interdependente do século XXI”? os participantes da pesquisa apresentaram diferentes relatos, porém observou-se que a partir das respostas dos docentes 1, 4 e 5 dadas como respostas à questão, as declarações revelaram um ponto em comum, isto é, a empatia. Isto pode ser evidenciado nos argumentos dos participantes a seguir:

  1. “Comunicação pessoal, empatia e resolução colaborativa de problemas”. (Docente 1)

  2. “Diversidade de ideias, posicionamento crítico, empatia, coletividade e sensibilidade humana”. (Docente 4)

  3. “Competências relacionadas com aspectos éticos e críticos, valores humanos, culturais, emocionais, a empatia, é preciso trabalhar os relacionamentos”. (Docente 5)

De acordo com Gómez (2015), a empatia constrói autoconsciência e conecta os indivíduos, proporcionando a base que auxilia na orientação para o comportamento e o agir das pessoas. Galvão (2010) afirma que ela pode ser desenvolvida de diferentes formas, possibilitando o engajamento social e comportamentos altruístas, podendo ser desenvolvida no contexto educacional.

Com relação ao questionamento apontado anteriormente, o Docente 3 salientou que as competências necessárias a serem trabalhadas com os estudantes da educação superior para o desenvolvimento da cidadania global se referem a: “Ética, compreensão, respeito, aprender a aprender, a ser, a conviver e a fazer. Os quatro pilares de Delors” (Docente 3).

Em vista disso, percebe-se que este participante citou algumas competências indispensáveis para atuar neste contexto histórico em que estamos vivendo, dentre as quais destacou a importância dos quatro pilares desenvolvidos por Jacques Delors, que preocupado com os desafios e com o compromisso mundial de garantir a todas as pessoas os conhecimentos necessários a uma vida digna, ressaltou alguns princípios gerais que deveriam orientar a formação de todos os indivíduos. Delors (1998) aponta os quatro pilares da educação, com o objetivo de favorecer o desenvolvimento do “Ser Integral” e a realização da pessoa na sua totalidade, são eles: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos; e, aprender a ser.

O primeiro pilar da educação é o “aprender a conhecer”, que objetiva a aquisição de um repertório de saberes codificados e o domínio dos instrumentos do conhecimento. Este pilar pressupõe aprender a aprender, de modo a exercitar a atenção, a memória e o pensamento. O processo de aprendizagem do conhecimento nunca está acabado e pode ser enriquecido com diversas experiências (Delors, 1998).

O segundo pilar da educação refere-se a “aprender a fazer”, que está diretamente ligada a aprender a conhecer, entretanto a aprendizagem referente ao segundo pilar está mais relacionada à formação profissional. Esse tipo de formação deve aliar-se ao desenvolvimento de suas capacidades voltadas para melhor se comunicar, se comportar socialmente, trabalhar com os outros, gerir e resolver conflitos. Pois, estes elementos tornam-se cada vez mais importantes para a qualificação da aprendizagem, bem como para a formação do sujeito (Delors, 1998).

O terceiro pilar consiste em “aprender a viver juntos, a aprender a viver com os outros”, considerado um dos maiores desafios impostos à educação. Visto que, no mundo atual existem manifestações de violência, preconceitos, competições, disputas, dentre outros fatores geradores de tensões e conflitos. Assim, percebe-se que a educação precisa incluir metodologias que possibilitem a descoberta progressiva do outro, buscando desenvolver a atitude de empatia, para que as pessoas possam se colocar no lugar dos outros, compreendendo as suas reações; e a participação em projetos comuns, a fim de evitar ou resolver conflitos latentes. O que é de grande valia para os comportamentos sociais ao longo da vida (Delors, 1998).

Por fim, o quarto e último pilar corresponde a aprender a ser, que representa a via essencial que integra os três precedentes, e vincula-se ao desenvolvimento integral do ser humano, objetivando a melhor construção da sua personalidade, forma de agir com autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Para tanto, cabe a educação contribuir para o desenvolvimento das potencialidades de cada pessoa: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se, dentre outros elementos que permitam que cada sujeito possa compreender o mundo em que vive e a comportar-se como cidadãos responsáveis e justos (Delors, 1998).

Levando em consideração o foco de aprendizagem apresentados nos quatro pilares da educação – “aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a ser; aprender a conviver” – compreende-se que esses pilares podem auxiliar na formação para a ECG, já que esta modalidade educativa também permite um enfoque holístico na aprendizagem do ser humano. Neste sentido, as práticas pedagógicas que, por exemplo, propiciem aos estudantes o desenvolvimento de engajamento e atuação ativa, a nível local e global, e que sirvam para enfrentar e resolver desafios globais, podem contribuir para a formação integral do indivíduo ao longo da vida, oferecendo oportunidades para exercer a sua cidadania de forma responsável.

Referente à pergunta “Como as competências voltadas para favorecer o desenvolvimento da cidadania têm sido ou podem ser trabalhadas com os estudantes no decorrer das aulas?” os docentes (1, 3, 4 e 5) responderam o seguinte:

  1. “Metodologias ativas de aprendizagem devem ser estimuladas, sem perder foco nos conteúdos”. (Docente 1)

  2. “Trabalhando de forma interdisciplinar, em pares, promovendo o diálogo e a negociação. Com atividades que partam de problemas reais”. (Docente 3)

  3. “Acredito que podem ser trabalhadas aproveitando o contexto em que vivemos (local e global), também valorizando o interesse dos alunos e trazendo discussões que os tirem da zona de conforto”. (Docente 4)

  4. “Podem ser trabalhadas através da interdisciplinaridade e das práticas, o aluno necessita ter contato com outras realidades e com outros grupos de pessoas”. (Docente 5)

Por intermédio dos argumentos referidos, observou-se que os professores que participaram deste estudo destacam a possibilidade de trabalhar com aspectos relacionados ao desenvolvimento da cidadania global nas aulas, através do uso de metodologias ativas de aprendizagem, trabalhando de forma interdisciplinar, promovendo o diálogo e a negociação, proporcionando discussões que tirem os estudantes da zona de conforto, fazendo-os pensar em diferentes contextos, incluindo práticas que oportunizem o contato com pessoas e realidades diferentes. Nas respostas obtidas, no entanto, os participantes do estudo não exemplificaram como isso acontece no decorrer do seu trabalho pedagógico.

No que concerne a ECG, a UNESCO (2015) aborda que este modelo de educação ocorre através do desenvolvimento de práticas pedagógicas que alimentam um espaço educativo respeitoso, inclusivo e interativo; infundem abordagens de ensino e aprendizagem independentes e interativas, culturalmente responsáveis e centradas no estudante, que se alinham aos objetivos de aprendizagem; incorporam atividades reais de desempenho; fundamentam-se em ferramentas de aprendizagem orientadas globalmente, que ajudam o estudante a perceber uma imagem mais ampla de si próprio no mundo, em relação a suas circunstâncias locais; utilizam estratégias de determinação e avaliação alinhadas aos objetivos de aprendizagem e às formas de instrução utilizadas para mediar a aprendizagem; propiciem oportunidades para os estudantes experienciarem a aprendizagem em diversos contextos, o que inclui a sala de aula e atividades de toda a instituição educativa e nas suas comunidades, do contexto local ao global.

É importante considerar que esta abordagem de formação pressupõe romper com padrões e modelos rígidos, abordagem essa que muitos professores podem não ter vivenciado em seus processos formativos. Diante disso, a instituição de educação superior que decidir trabalhar por meio dessa nova concepção educativa, visando atender as demandas da sociedade e qualificar o processo de ensino e aprendizagem, necessita estabelecer estratégias para tal, passando pelo diálogo com os educadores sobre as transformações necessárias e pela oferta de espaços formativos para que novas práticas pedagógicas sejam desenvolvidas.

Os desafios da educação superior para promover a ECG

A UNESCO (2015) destaca que, como um meio do processo transformador, a ECG promove o uso de diversos métodos ativos e participativos de aprendizagem, que engajam o estudante em pensamento crítico sobre questões globais complexas e no desenvolvimento de habilidades, tais como a comunicação, a cooperação e a solução de conflitos, tendo por finalidade resolver essas questões. Isto pode se tornar um desafio para os sistemas formais de educação, devido ao fato de apresentarem modelos de ensino e ambientes de aprendizagem hierárquicos. Além disso, em certas situações, as instituições educacionais podem enfrentar limitações financeiras e/ou de recursos humanos e outros desafios contextuais, os quais podem dificultar a implementação de reformas em todo o sistema e de programas de ECG (UNESCO, 2016).

Também o processo de desagregação das universidades é um desafio. A partir do argumento de propiciar a expansão do ensino superior com uma base de financiamento sustentável, muitas instituições de educação superior têm centrado suas ações no ensino pragmático, com uma série de implicações relacionadas, entre elas o empobrecimento de concepções de aprendizagem em modelos de instrução reduzidos e a perda de sinergias entre ensino, pesquisa e extensão (McCowan, 2018).

Além disso, McCowan (2018) relata que é errôneo defender a universidade tradicional meramente por sua existência e longevidade, assim como existem várias razões para ser cético acerca dos benefícios propostos na desagregação, visto que esta dinâmica representa uma ameaça para a universidade promover a compreensão humana. Desta forma, entende-se que cabe a todas as instituições educativas responderem a mudanças de circunstâncias externas, porém isso não quer dizer que as instituições educacionais devem aceitar todas as formas de mudança, independentemente de seu valor, e desconsiderar o seu papel enquanto agentes e formadores da sociedade. Assim, percebe-se que constituir uma resposta coerente ao desafio que representa a desagregação requer atentar, de maneira profunda e sustentada, com relação à natureza e ao propósito da instituição, e a uma deliberação em toda a sociedade no que concerne aos valores que devem orientá-la.

Em relação aos desafios enfrentados pelos professores da educação superior para preparar os estudantes para cidadania global, o Docente 2 destaca que “os desafios são inúmeros e de diversas ordens, desde questões econômicas, políticas e sociais, até questões de reconhecimento”. Para promoção da cidadania global é preciso refletir sobre a realidade e as questões políticas, sociais e econômicas, exige a capacidade de discutir sobre a humanidade e seus desafios: desigualdade social, pobreza, guerras, mudanças climáticas, saúde, entre outros. Isso exige cidadãos reflexivos, questionadores e conscientes capazes de buscar soluções e alternativas para os problemas, porém o atual contexto do país faz com que essa discussão se torne um desafio, conforme fala do Docente 2, pois existe uma forte polarização no país o que tem tornado as pessoas intolerantes em relação a discussões destes contextos.

Além da falta de reconhecimento, cabe destacar a defasagem na formação de professores, a falta de tempo de planejamento e a desconexão entre os professores. De acordo com o Docente 5, um dos maiores desafios “é a coerência, muitas vezes temos um discurso diferente da prática, infelizmente muito se fala, mas ainda não se sabe como fazer”, o Docente 3 corrobora afirmando que “estamos falando de uma mudança de cultura e para isso, inicialmente temos que mudar as pessoas, professores mais abertos ao diálogo”.

Além da questão dos professores, os Docentes 3 e 4 ainda ressaltam a importância dos estudantes estarem dispostos a diferentes vivências de sala de aula, eles necessitam perceber a sala de aula como um espaço de interação e de trocas, destacando que

(…) A educação para a cidadania global é um tema importante para ser discutido por todos, mas dependendo da sua posição política, se você promove essa discussão por um viés diferente, ainda que válido e respaldado em teorias humanitárias e educativas, há um boicote por parte do grande grupo e até mesmo de estudantes que não ‘concordam’ com esta posição/modo de trabalho do professor. (Docente 4)

A fala do Docente 4 remete ao medo existente ao abordar questões polêmicas, principalmente relacionadas à política. Infelizmente os extremos ideológicos fazem com que as pessoas não consigam respeitar opiniões divergentes às suas, levando muitas vezes a agressões e boicotes. De acordo com Rodenbusch (2019, p. 81) “a compreensão do atual contexto mundial passa necessariamente pelo diálogo com a diversidade e com a compreensão do outro e das relações que ligam o ser humano ao seu meio ambiente”, destacando a importância do desenvolvimento das habilidades relacionadas às dimensões conceituais da Educação para Cidadania Global, incluindo as socioemocionais e as comportamentais.

Para os professores da educação superior os desafios também podem ser enfrentados através da organização de mais trabalhos em equipes interdisciplinares, “com formação continuada, com espaços de interação nas instituições que possibilitem a aprendizagem entre todos. Criando espaços mais democráticos de trocas de saberes” (Docente 3). Para o Docente 2

os professores da Educação Superior constituem um conjunto articulado que deve iniciar esse processo pela percepção de que eles não preparam os estudantes, mas participam ativamente desse processo de ensino e conhecimento dos desafios para uma cidadania global e de reconhecimento de todos como agentes potentes de exercer essa cidadania global. O planejamento e a mediação de atividades pedagógicas orientadas para a discussão e sensibilização por vias de uma didática da sensibilidade (e não da utilidade) que potencialize no aprendente o reconhecimento para a mudança e transformação social local e global me parece um dos tantos percursos possíveis para ser trilhado pelos professores da educação superior.

Outro aspecto importante destacado pelo Docente 4 para enfrentar os desafios de uma ECG é o desenvolvimento da resiliência, indo ao encontro de Sousa (2010, p. 166) que afirma que “podemos educar o humano no sentido de aumentar o nível de resiliência, proporcionando diretamente um aumento de sucesso educacional, do estado de saúde, do bem-estar psicológico em toda a sua dimensão”, destacando que “(…) a capacidade de resiliência pode ser ensinada, adquirida através da educação”. A Docente 4 afirma acreditar que a resistência aos desafios a serem enfrentados,

não seja o caminho, pois isso nos distancia mais ainda, porém ao se adaptar ao contexto e transformar o entorno de maneira ética, acredito que com isso já estamos promovendo uma educação para a cidadania global, pois também são conhecimentos humanos e plurais.

Sendo assim, é possível sugerir que a educação superior pode promover uma educação capaz de preparar os estudantes para os desafios dos contextos local e global em que está inserido. As instituições educativas têm a responsabilidade de propor práticas pedagógicas inovadoras, visando a formação do estudante de maneira holística, considerando o diálogo, o pensamento crítico e a formação de valores como ferramentas deste processo.

Considerações finais

As instituições de educação superior estão sendo desafiadas a buscarem alternativas frente aos desafios apresentados pela sociedade atual. Passando por um momento de contínuas mudanças, visando ampliar o seu papel em busca de promover a formação humanizada e integral dos estudantes, levando em consideração a ECG. Por outro lado, convém destacar que este tipo de educação não tem sido promovida em todas as instituições educacionais, e isto pode acontecer por diversos motivos, dentre os quais a não priorização da educação humanizada frente aos processos de desagregação da educação superior.

Nesta perspectiva, compreendemos que discutir sobre o atual contexto da educação superior envolve analisar a percepção dos docentes sobre a ECG, seus fundamentos e importância em um mundo hiperconectado e interdependente, bem como as aprendizagens necessárias a serem desenvolvidas pelos estudantes na atual conjuntura. Ademais, consideramos relevante ouvir o discente, afinal, espera-se que um sujeito formado pela ECG seja capaz de posicionar-se e debater criticamente a própria formação.

Conforme os resultados apresentados neste estudo, foi possível perceber que os docentes participantes da pesquisa compreendem a temática da ECG, sobretudo pelas questões ambientais, de desigualdade social, de direitos humanos e da paz que se relacionam em diferentes regiões do nosso planeta. As culturas se diferenciam entre as nações e os diversos aspectos conflitantes devem ser discutidos e mediados pelo professor para a formação integral de um cidadão global, inteirado com a tolerância e a compreensão do que o rodeia, visando a construção de uma sociedade mais justa, solidária e empática, tanto a nível local quanto a nível global.

Portanto, espera-se que este estudo possa servir como ponto de partida para novas pesquisas, buscando mais conhecimentos neste campo que ainda requer aprofundamento teórico e prático, além de possibilitar aos estudantes e aos docentes uma reflexão sobre suas ações pedagógicas frente ao desenvolvimento da Educação para a Cidadania Global.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação das autoras antes da publicação.autor(es) antes da publicação.

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Recebido: 03 de Fevereiro de 2020; Aceito: 25 de Janeiro de 2022; Publicado: 02 de Maio de 2022

Endereço para correspondência Adriana Justin Cerveira Kampff, Pontifícia Universidade católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681, prédio 1, 3° andar Partenon, 90619-900 Porto Alegre, RS, Brasil adriana.kampff@pucrs.br karengraziela@gmail.com camila.rodenbusch@acad.pucrs.br

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