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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.45 no.1 Porto Alegre  2022  Epub 17-Jul-2023

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2022.1.34535 

Outros Temas

“A gente quer inteiro e não pela metade”: paradigmas estéticos para a educação pública brasileira

“We want whole, not half”: aesthetic paradigms for the Brazilian public education

“Queremos entero y no a la mitad”: paradigmas estéticos para la educación pública brasileña

Clóvis Trezzi1 

Clóvis Trezzi

Doutor em Educação pela Universidade La Salle (UNILASALLE), em Canoas, RS, Brasil; mestre em Educação pela Universidade Cidade de São Paulo (UNICID), em São Paulo, SP, Brasil. Professor na Universidade La Salle (UNILASALLE), em Canoas, RS, Brasil. clovis.trezzi@lasalle.org.br


http://orcid.org/0000-0002-5682-6579

Evaldo Luis Pauly1 

Evaldo Luis Pauly

Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil; mestre em Teologia pelas Faculdades EST, em São Leopoldo, RS, Brasil. Professor emérito e pesquisador na Universidade La Salle, em Canoas, RS, Brasil. profevaldopauly@gmail.com


http://orcid.org/0000-0002-7139-2027

João Virgílio Tagliavini2 

João Virgílio Tagliavini

Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), em São Carlos, São Paulo, Brasil; mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em Campinas, SP, Brasil. Professor Associado na Universidade Federal de São Carlos, em São Carlos, SP, Brasil. joaofederal@gmail.com


http://orcid.org/0000-0001-5495-1520

1Universidade La Salle (UNILASALLE), Canoas, RS, Brasil.

2Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), São Carlos, SP, Brasil.


Resumo:

Este estudo, de caráter bibliográfico e documental, tem por objetivo fazer uma relação entre a pedagogia de João Batista La Salle (1651-1719), desenvolvida entre os séculos XVII e XVIII, e a educação brasileira do século XXI na perspectiva da ética de inclusão. Discute-se a contribuição do modelo pedagógico da Escola Cristã, nome dado por La Salle às suas escolas, para a educação brasileira contemporânea. O principal texto de referência para esta pesquisa é o Guia das Escolas Cristãs, obra pedagógica de La Salle. A partir dele, são analisados relatórios que mostram a realidade educacional do Brasil na última década. Realizando uma crítica às políticas educacionais brasileiras, busca-se uma saída para garantir o real e integral direito à educação de qualidade, preconizado pela legislação brasileira. Conclui-se que esta saída passa pela compreensão, já existente de maneira intuitiva na pedagogia de La Salle, de que universalizar o acesso à educação é mais do que apenas oferecer vagas para todos nas escolas, mas garantir uma escola na qual todos os elementos que a compõem estejam em íntima relação com o ser humano que nela está.

Palavras-chave: experiência estética; la salle; inclusão; exclusão; universalização da educação

Abstract:

This bibliographical and documentary aims to establish a relationship between the pedagogy of John the Baptist La Salle (1651-1719), developed between the 17th and 18th centuries, and the Brazilian education of the 21st century in the perspective of the etics of inclusion. We discuss the contribution of the pedagogical model of the Christian School, the name given by La Salle to its schools, for contemporary Brazilian education. The main reference text for this research is The Conduct of Christian Schoools, a pedagogical work written by La Salle. From it, reports that show the educational reality of Brazil in the last decade are analyzed. Critical to Brazilian educational policies, we seek a way out to guarantee the real and integral right to quality education, as recommended by Brazilian legislation. It is concluded that this way out passes through the understanding, already existing in an intuitive way in the pedagogy of La Salle, that to universalize the access to the education is more than just to offer vacancies for all in the schools, but to guarantee a school in which all the elements that the make up are in close relation with the human being that is in it.

Keywords: aesthetic experience; la salle; inclusion; exclusion; universalization of education

Resumen:

Este estudio, de carácter bibliográfico y documental, tiene por objetivo establecer una relación entre la pedagogía de Juan Bautista La Salle (1651-1719), desarrollada entre los siglos XVII y XVIII, y la educación brasileña del siglo XXI en la perspectiva de la ética de inclusión. Se discute la contribución del modelo pedagógico de la Escuela Cristiana, nombre dado por La Salle a sus escuelas, para la educación brasileña contemporánea. El principal texto de referencia para esta investigación es la Guía de las Escuelas Cristianas, obra pedagógica de La Salle. A partir de él, se analizan informes que muestran la realidad educativa de Brasil en la última década. Realizando una crítica a las políticas educativas brasileñas, se busca una salida para garantizar el real e integral derecho a la educación de calidad, preconizado por la legislación brasileña. Se concluye que esta salida pasa por la comprensión, ya existente de manera intuitiva en la pedagogía de La Salle, de que universalizar el acceso a la educación es más que apenas ofrecer plazas para todos en las escuelas, pero garantizar una escuela en la que todos los elementos que la componen estén en íntima relación con el ser humano que en ella está.

Palabras clave: experiencia estética; la salle; inclusión; la exclusión; universalización de la educación

Introdução

Os autores desejam celebrar, nas limitações deste artigo, os 300 anos da morte de João Batista de La Salle, ocorrida em 7 de abril de 1719. O fundador do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, antes da República francesa, conseguiu articular um grupo de professores que formaram a primeira rede de escolas elementares da pedagogia moderna. A rede das Escolas Cristãs era atendida por docentes remunerados, com dedicação exclusiva e profissionalizados pela formação pedagógica. As salas de aula eram mobiliadas e decoradas de forma padronizada; adotavam uma postura didática baseada na seriação do aprendizado, no ensino simultâneo da turma e na permanente reflexão coletiva do corpo docente sobre os processos de ensino e aprendizagem. Adotavam o inflexível princípio da gratuidade da educação elementar de qualquer menino, preferentemente das famílias de artesãos e pobres urbanos.

Ainda que não sejam discutidos suficientemente nos livros de história da educação, como foi detectado por Tagliavini e Piantkoski (2013) e, posteriormente, detalhado por Pauly et al. (2018), a organização administrativa e pedagógica das Escolas Cristãs por La Salle e os primeiros Irmãos se tornou referência para a posteridade.

Dedica-se este artigo a trabalhar a dimensão estética da escola, o que supõe compreendê-la por inteiro como um ambiente estético, e não considerar apenas a questão do belo presente na sua estrutura física. Este pensamento é inspirado na obra pedagógica de La Salle (2012) em decorrência da leitura de autores clássicos e contemporâneos, desde o século XVII, a partir de Comenius (2016) até Freire (2003). A frase do título é retirada de Antunes Filho et al. (1987).

O objetivo do artigo é fazer uma relação entre a pedagogia de João Batista de La Salle (1651-1719), desenvolvida entre os séculos XVII e XVIII, e a educação brasileira do século XXI na perspectiva da ética de inclusão. Olha-se para a obra pedagógica máxima de La Salle, intitulada de Guia das Escolas Cristãs, como texto básico para compreender a importância da Escola Cristã face às situações de pobreza vivenciadas na França naqueles séculos. Em paralelo, é feita uma busca em relatórios que mostram a realidade do Brasil na última década. A pesquisa classifica-se como bibliográfica e documental.

A análise dos dados é hermenêutica. O artigo faz uma crítica ao modelo educacional brasileiro que, por sua fragilidade, não atende às necessidades de parte da população. A análise permite ver que a realidade social e educacional do século XVII está replicada, dentro das características específicas de cada tempo, no século XXI. Por isso mesmo, há uma demanda de um olhar crítico para a história e para a realidade atual.

A estética da escola pública e as faces da pobreza

Embora a humanidade tenha visto nascer no século XVIII um novo conceito de estética, tornado científico por Baumgarten (1993) em 1750, já há pelo menos um século pensava-se neste conceito do ponto de vista dos sentidos e não mais das sensações, o que também se estendia à escola. “Didática Magna”, de 1649, projeta um ambiente escolar adequado que seja “um lugar bonito, que ofereça, dentro e fora, agradável espetáculo para a vista” (Comenius, 2016, p. 169). Completa o autor: “Se a escola for assim, pode-se supor que para lá as crianças não irão com menos alegria do que sentem quando vão ao mercado, onde sempre esperam ver e ouvir algo novo” (Comenius, 2016, p. 170).

O presente artigo parte de uma crítica ao modelo educacional brasileiro, que é fragmentado e, por isso, não consegue estruturar-se como um todo estético. Esta fragmentação, mencionada por Saviani (2010) na defesa do Sistema Nacional de Educação, não permite que a legislação educacional brasileira seja cumprida em sua plenitude, a começar pelo direito de permanência na escola que não é assegurado às crianças, especialmente daquelas oriundas de famílias da classe trabalhadora. Dessa realidade, surgiu a possibilidade teórica de confrontar duas estéticas distintas: uma dos pobres e outra dos ricos (Libâneo, 2012). Ambas são fundamentais na construção do processo de desigualdade crescente que constitui o Brasil e da escola moderna que visa, pelo contrário, reduzi-la pela escolarização de todas as crianças.

Para compreender este confronto teórico é preciso considerar a desigualdade social presente no sistema educacional brasileiro. A intenção, ao descrever esta escola dualista, é demonstrar que a escola dos pobres e a escola dos ricos coexistem no Brasil, como um problema já diagnosticado em 1932, no “Manifesto dos pioneiros da educação nova” que critica o “dualismo dos sistemas escolares” (Azevedo et al., 2010, p. 54) que se contrapõe ao “princípio da escola para todos, ‘escola comum ou única’” (2010, p. 44) adotado pelas sociedades democráticas industrializadas.

Hoje essa incongruência se apresenta de forma mais objetiva na relação entre os investimentos em educação e os resultados. De acordo com a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), os investimentos em educação no Brasil estão entre os maiores do mundo em proporção com o PIB, e os resultados entre os menores do mundo. Enquanto a média de investimento em educação dos países membros da OCDE é de aproximadamente 4,5% do PIB, o Brasil investiu em 2018 cerca de 5%, o que o coloca entre os seis países que mais investem. Por outro lado, os resultados são pífios: no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), o Brasil ocupa o antepenúltimo lugar entre os países avaliados (OCDE, 2018, p. 31). O cálculo do valor investido por aluno explica esta disparidade: enquanto o Brasil investe cerca de US$ 3,8 mil por aluno/ano, a média da OCDE é de US$ 9,4 mil por aluno/ano.

Além do baixo investimento por aluno, há distorções no sistema que reduzem ainda mais o valor gasto com melhorias educacionais. De acordo com o mesmo relatório (OCDE, 2018, p. 34), “a eliminação da ineficiência nos ensinos fundamental e médio, bem como nas instituições federais de educação superior” resultaria em uma economia de 1,5% do PIB nacional. Um valor considerável, já que o PIB nacional de 2021 foi de oito trilhões e setecentos bilhões de reais, segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).2 O gasto médio do Brasil com educação básica em 2018 foi de aproximadamente 5% do PIB, sendo que o Plano Nacional de Educação, pela Lei n. 13.005/2014, prevê a ampliação desse investimento para, no mínimo, 10% até 2024 (Brasil, 2014). Pela mesma lei, no ano de 2018 o investimento mínimo deveria ser de 6%.

De acordo com o Parecer CNE/CEB 08/2010, não homologado pelo Ministério da Educação, o salário médio de um professor está entre os menores na categoria dos que exigem ensino superior. O estabelecimento de padrões mínimos de qualidade seria suficiente para uma maior equidade escolar? O que se entende por qualidade e quanto custa? O parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) tenta ser claro nessa definição, mas parece ingênuo supor que a gestão democrática garantiria a qualidade da educação, que se traduz em resultados. Mais uma vez, são os resultados acadêmicos que aparecem como indicadores de qualidade. O referido parecer descreve como deveriam ser as escolas em cada nível e/ou modalidade de ensino, em termos de espaço físico, insumos e equipamentos, calculados pelo CAQi (Custo Aluno Qualidade inicial) e demonstra que quanto menor a idade da criança maior deveria ser o investimento. Este parecer exarado pelo Conselho Nacional de Educação em 2008 é o mais avançado disponível para definir a qualidade da educação de qualquer criança ou adolescente brasileiro, mas não foi homologado por nenhum dos onze ministros que passaram pela pasta desde 2008 até 2019. Recentemente, o Parecer CNE/CEB 08/2010 foi reexaminado pelo Parecer CNE/CEB 3/2019 que concluiu pela negativa de o CNE “definir o valor financeiro e a precificação do Custo Aluno Qualidade Inicial”, este último Parecer foi homologado pelo MEC e publicado no Diário Oficial da União de 29 de abril de 2019.

Percebe-se assim que os desafios se tornam ainda mais sensíveis, especialmente quando as políticas públicas não são suficientes para superá-los. Contudo, este não é o único limitador. O PIB nacional – 2 trilhões de dólares em 2021, aproximadamente – é pequeno para um país com as dimensões do Brasil e aumentar o investimento por aluno significaria um impacto muito grande nas contas públicas. A solução para este impasse é também uma decisão política da cidadania que, nas democracias, estabelece as prioridades dos governos locais e nacional.

O que podemos aprender com a Escola Cristã de La Salle

Os livros de história da educação pouco trazem acerca da Escola Cristã de La Salle. Isso já fora apontado no presente artigo e não impede a sua contribuição para a escola contemporânea. Para Pauly et al. (2018), a história da educação é marcada por omissão e desconhecimento em relação a La Salle. Os autores do estudo apontam como possíveis causas: a tolerância antirreligiosa, uma interpretação crítica parcial feita por Foucault em Vigiar e punir e a compreensão secularizada da educação que se desenvolveu a partir de Durkheim.

Charlot (2020) reforça a ideia de que a escola tradicional tem os dois pés na educação religiosa proposta, principalmente, pela Igreja Católica nos séculos XVII e XVIII. Embora naqueles séculos estivesse nascendo um conceito de infância, esta etapa da vida ainda era vista com uma certa resistência como um período no qual a pessoa ainda não é plenamente humana. Mesmo as mudanças nessa compreensão trazidas por La Salle e outros educadores da sua época, como Batencour, Roland e Démia, que defenderam uma nova antropologia na qual as crianças eram necessitadas de salvação, e não apenas salvação da alma, mas também dos males do mundo, foram capazes de superar a rejeição sofrida pela educação tradicional religiosa, que foi excluída dos livros de história da educação.

Elencamos a seguir alguns elementos que podem ser considerados vitais para que a escola possa ser um lugar que garanta a todos o direito não apenas ao acesso à escola, mas também à permanência prazerosa e à conclusão com a qualidade necessária à vida digna no século XXI. Sabedores de que não há receitas prontas, apenas apontamos para a experiência e as ideias da Escola Cristã que, desde o século XVII, demonstrou o quanto se pode avançar quando se leva a sério a missão de bem educar crianças, especialmente, as pobres.

A estética do espaço físico escolar

Um dos pilares para uma experiência significativa do estar na escola passa pelo espaço escolar. Embora esta percepção já estivesse presente pelo menos desde o século XVII, como visto anteriormente, no Brasil existem sérios problemas nesse sentido. Os dados que podem ser encontrados nos últimos Censos Escolares demonstram que existem diversas fragilidades na estrutura das escolas brasileiras. A qualidade do edifício escolar interfere diretamente sobre a experiência de aprendizagem que nela é feita, como mencionado por Alonso-Sanz e Zariquiey (2018, p. 230):

En la convivencia con las construcciones, en el uso arquitectónico del ambiente escolar, se desarrollan los vínculos identitarios que se establecen con la institución. Suponemos que de esta relación entre arquitectura y sujetos surgen emociones asociadas al entorno educativo y sus elementos constitutivos, que tienen que ver con los sucesos que allí acontecen pero también con el confort o incomodidad que genera en cada individuo.

A influência da estética do espaço físico escolar sobre o indivíduo afeta não apenas a sua capacidade de sentir-se bem na escola, mas também a sua aprendizagem, que se relaciona com os sentimentos que emergem do fato de estar na escola. Na pesquisa supracitada, Alonso-Sanz e Zariquiey (2018) concluem que os alunos devem ter papel ativo até mesmo nas intervenções que se faz no prédio escolar. Normalmente, esses acabam sendo passivos, ou seja, não são ouvidos nem lhes é pedido que contribuam com a estética da escola. O senso de pertencimento à instituição acaba se deteriorando, bem como as relações que nela se estabelecem. “Experiencias altamente significativas que generan recuerdos perdurables, procesos mediante los cuales las emociones se proyectan sobre los objetos y entornos reales o imaginados, generando asociaciones” (Alonso-Sanz & Zariquiey, 2018, p. 231).

No Brasil, a ideia de que é preciso uma escola de qualidade em todos os sentidos para acolher uma experiência estética positiva remonta a pelo menos o começo do século passado, quando Anísio Teixeira idealizou as Escolas-Parque, em Salvador. Leonel Brizola, quando governador do Rio Grande do Sul no começo da década de 1960, criou o projeto “nenhuma criança sem escola”, projeto que demonstrava o oposto das Escolas-Parque: é possível fazer escolas de boa qualidade gastando pouco. Criaram-se as chamadas Brizoletas, escolas que resistiram ao tempo – várias funcionam até hoje – e eram, além de bonitas, funcionais e bem-organizadas. Brizola, quando governador do Rio de Janeiro (1983–1987 e 1991–1994), desenvolveu os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública), cujo projeto era assinado por Oscar Niemeyer. Como escolas de turno integral, mostravam que, a começar pela arquitetura, é possível formar a criança através de uma experiência estética positiva. O mesmo projeto inspirou o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes (2009) a pensar as Escolas do Amanhã e o presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) a criar os CAICs (Centros de Atenção Integral à Criança). Marta Suplicy, quando prefeita de São Paulo (2001), implementou os CEUs (Centros de Ensino Unificados), escolas de alto padrão, geridas pela prefeitura, localizadas nas periferias da Capital.

Quase todas estas instituições resistiram ao tempo e ainda hoje são um exemplo de como se pode construir uma escola que seja, ao mesmo tempo, um espaço aprazível e bem equipado. Embora isso represente um elevado custo ao Estado, os resultados tendem a ser compensadores.

Vale ressaltar que estas iniciativas são recentes, mas não foram exatamente pioneiras. Tagliavini e Tagliavini (2016) mostram que a Reforma Republicana da Educação, a partir da década de 1890, introduziu o conceito de escola boa e bela. Os projetos arquitetônicos dos grupos escolares geralmente eram muito bem-feitos e as escolas dispunham de boa estrutura. Vindo de um período em que havia um descaso com a educação, esta mudança era bem-vinda:

Como resultado desse descaso total pela educação do povo, segundo a primeira coleta censitária feita no Brasil, em 1872, 83% dos brasileiros eram analfabetos. Um país escravocrata, monocultor, agrícola, não precisava de escolas para o povo. Só com a Proclamação da República, 1889, no apagar das luzes do século XIX é que o Brasil se preocupa com uma educação básica pública, e, mesmo assim, para formar partes de suas elites, mais preocupadas com distinção social que as letras e os diplomas conferiam aos seus nobres decadentes e à burguesia nascente, do que com a produção de riquezas para todo o país. Era a reforma republicana da educação que construía belos colégios, projetados por arquitetos famosos [ênfase adicionada]. Eram escolas na cidade, para poucos, enquanto a grande população do campo ainda era totalmente esquecida e os pobres da cidade continuavam abandonados. (Tagliavini & Tagliavini, 2016, p. 20)

Segundo os autores, a primeira metade do século XX seguiu este padrão. Havia poucas escolas, de tal forma que em 1950 quase metade da população era analfabeta. As poucas escolas que existiam eram de boa qualidade, mas destinavam-se a uma elite. O ensino superior era um sonho inalcançável para a imensa maioria da população. Seguem os autores:

Só na segunda metade do século XX é que a escola de ensino fundamental (antigos grupo primário e ginasial) se massificou e foram construídos prédios, bem mais pobres, feios, em geral mal acabados, cobertos de telhas de cimento amianto, para os filhos dos trabalhadores da cidade e dos trabalhadores do campo que acabaram de migrar para as regiões urbanas. Chegamos ao final do século XX com um Ensino Fundamental de 8 anos praticamente massificado e um ensino médio que ainda não atingiu a todos os brasileiros. Em 2000, no ensino superior estavam matriculados cerca de 12% dos jovens em idade universitária. (Tagliavini & Tagliavini, 2016, p. 21)

Voltando ao século XVII da França aristocrática, as Escolas Cristãs de La Salle já viam o espaço escolar como um elemento fundamental da experiência estética. O Guia das Escolas Cristãs apresenta um capítulo especial sobre o aspecto físico da escola, estudado nos seus detalhes. Este estudo é importante para que se possa conhecer como foi pensada a escola nos primeiros anos do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs e para que se tenha uma ideia de como se concebia a relação pedagógica que deveria ser estabelecida nesse espaço escolar especializado na educação de crianças filhas de artesãos e de pobres urbanos.

Mais do que atender às necessidades educativas, como o aumento no número de crianças nas cidades e de necessitados de escola, começava-se a propor um modelo educacional que fizesse isso de maneira que as crianças não apenas fossem à escola para aprender, mas desejassem estar na escola. Para isso, era necessário que o espaço escolar e os docentes conquistassem a sensibilidade das crianças. La Salle (2012) chama isso de tocar os corações.

Manacorda (2010), ao descrever a escola e a pedagogia de La Salle, recorda que “com a prudência de suas prescrições, ele descreve um edifício escolar que lembra aquele idealizado por Boncompagno de Signa, mas com a vantagem de representar um edifício real, o moderno edifício escolar com seus aspectos positivos e negativos” (Manacorda, 2010, p. 286).

Enquanto no Brasil do século XXI, pelos dados do Censo Escolar do INEP de 2017, não havia instalação sanitária em 17% das escolas, as Escolas Cristãs dispunham de banheiro rudimentar (La Salle, 2012, p. 235). É curioso que o palácio de Versalhes, ícone da ostentação de Luis XIV, apesar de “sofisticados sistemas hidráulicos não tenha sido prevista nenhuma instalação sanitária nas dependências” (Gomes, 2008, p. 42). Isso mostra a importância dada por La Salle à formação integral das crianças.

Igualdade de atendimento para todos

Como princípio republicano, a igualdade é proclamada pelas mais diversas correntes políticas e econômicas das nações democráticas. Da mesma forma, a crença na igualdade, um dos pilares da Revolução Francesa, propagou-se pelo mundo moderno em oposição ao mundo aristocrático. Este princípio levou as crianças, incluindo as pobres, a receberem espaço nas escolas. Mesmo garantida a permanência, não se assegura a igualdade de atendimento. Relatório da Oxfam Internacional dá conta de que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, no qual 5% dos mais ricos detêm a mesma renda dos outros 95%. Uma pessoa que ganha um salário mínimo precisa trabalhar 19 anos para receber o mesmo que uma pessoa das mais ricas ganha em um mês (Oxfam Brasil, 2017, p. 6). O relatório indica que a Emenda Constitucional 95/2016, que congelou os gastos federais sociais por 20 anos, teve como efeito o aumento da desigualdade e inviabilizou a implementação do Plano Nacional de Educação.

O relatório dessa organização cristã da Universidade de Oxford, mostra a dificuldade de o Brasil superar a desigualdade social e, consequentemente, a desigualdade educacional. Se, por um lado, é verdade que o alto investimento em educação, desde que feito com consciência e boa gestão, a médio e longo prazo muda a sociedade, é também verdade que o baixo investimento nas políticas de redução das desigualdades sociais aumenta a desigualdade educacional.

O citado relatório mostra que quando se investe em programas de distribuição de renda, como foi o caso do Brasil desde 2001, quando foram criados os programas de renda mínima, depois transformado no Programa Bolsa Família, ocorreu uma redução da desigualdade social e, especialmente, uma diminuição da pobreza – sem reduzir os altos lucros de quem estava no topo da pirâmide econômica. Por outro lado, o mesmo relatório mostra que esses programas, sozinhos, pouco ou nada fizeram para reduzir a desigualdade educacional, o que reduziu a eficácia deles.

Outra relação feita pela Oxfam Brasil que ajuda a explicar a desigualdade escolar, é a estrutura tributária brasileira: os mais ricos pagam muito menos impostos que os mais pobres. Os 10% mais pobres gastam 32% de sua renda em impostos, enquanto os 10% mais ricos gastam apenas 21%. O mesmo se dá em relação ao Imposto de Renda: “Pessoas que ganham 320 salários mínimos mensais pagam uma alíquota efetiva de imposto similar à de quem ganha cinco salários mínimos mensais” (Oxfam Brasil, 2017, p. 45). Por outro lado, as pessoas mais ricas têm mais facilidade em beneficiar-se com uma escola de qualidade, perpetuando o círculo vicioso da injustiça e da desigualdade.

As Escolas Cristãs de La Salle colocavam, em primeiro lugar, a justa e necessária igualdade de acesso à escola. Bédel (1998) mostra que, embora as Escolas Cristãs tivessem um público-alvo, que eram as crianças filhas de artesãos e de pobres, abriam suas portas para quem delas precisasse, ainda que fosse necessário criar uma escola específica para esse público, como foi o caso do primeiro internato especializado para jovens delinquentes e da escola destinada aos jovens irlandeses filhos de nobres exilados na França. Pelo que parece, a eficiência do ensino ministrado nas Escolas Cristãs, convenceu algumas famílias ricas a matricularem suas crianças nas escolas dos Irmãos.

No modelo de escola desenvolvido por La Salle e os primeiros Irmãos, em uma mesma classe estudavam crianças pobres e menos pobres. As escolas de caridade, mantidas pelas Paróquias e autorizadas pela Corte, matriculavam somente os pobres que possuíam atestado de pobreza, conforme previsto na legislação aristocrática. La Salle não exigia atestado de pobreza. O Guia das Escolas Cristãs apresenta um capítulo específico sobre a admissão dos alunos (La Salle, 2012, p. 251), mas nenhuma das exigências refere-se à condição financeira. Fiévet (2001) afirma que as Escolas Cristãs não exigiam essa contrapartida, o que, logicamente, gerou conflito com escolas pagas, especialmente as dos Mestres-Calígrafos, corporação que detinha o monopólio – por privilégio legal – da formação desses profissionais na França.

Foco nos resultados

Quanto à qualidade da aprendizagem, os dados do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), que avalia o aprendizado de língua portuguesa e matemática desde 1995, mostram que não houve melhora, mas uma queda de rendimento no período de 1995 a 2015. Estes dados são citados no relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (Brasil, 2018). O mesmo relatório, intitulado Desafios da Nação, traz dados do Pisa 2015 que mostram que alunos brasileiros “aprendem muito menos que os europeus, canadenses ou coreanos, e estão atrasados quatro ou cinco anos em relação a colegas de países industrializados”. (Brasil, 2018, p. 66). Traduzindo em números, “só 30% dos brasileiros tiveram desempenho satisfatório em matemática, abaixo dos 70% dos estadunidenses, mais de 40% dos mexicanos e quase 40% dos costa-riquenhos” (Brasil, 2018, p. 66).

O Plano Nacional de Educação – PNE (Brasil, 2014), ao colocar como vigésima meta “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de sete por cento do Produto Interno Bruto do país no quinto ano de vigência desta lei e, no mínimo, o equivalente a dez por cento do PIB ao final do decênio” mostra que os 4,9% do PIB investidos em educação pelo Brasil em 2017 (OCDE, 2018) não foram suficientes. Este relatório mostra que enquanto outros países membros da OCDE gastam 50% a mais com ensino superior em relação à educação básica, o Brasil investe cerca de três vezes mais por aluno do ensino superior: na educação básica o gasto é de R$ 3,8 mil dólares por aluno/ano, enquanto no ensino superior é de R$ 11,6 mil dólares por aluno/ano. Porém, este investimento é plenamente justificado, pois praticamente toda a pesquisa no Brasil é feita nas universidades públicas. Segundo relatório da Clarivate Analitics apresentado à CAPES (Cross et al., 2018), este índice chega a 99%, o que eleva em muito o custo por aluno nas universidades.

É importante manter o foco nos resultados, embora pareça clara a necessidade de ele vir acompanhado de um olhar humanizante e humanizador. Nos últimos anos o Brasil passou por várias reformas educacionais, em geral focadas no currículo, mas que não alteraram significativamente os resultados nas avaliações nacionais e internacionais. Isso indica que tampouco as reformas, como a criação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), parecem suficientes.

A manutenção de equipes multidisciplinares que estudem os casos de não aprendizagem e atuem sobre eles é uma das formas de amenizar a curto e médio prazo os efeitos dos diversos problemas que a educação enfrenta. A ação coordenada e integrada entre as diversas áreas resulta na possibilidade de focar diretamente onde está a dificuldade. Como elemento inspirador, existe o Guia das Escolas Cristãs, no qual La Salle (2012) enfrenta os problemas de forma individual, focando na dupla professor/aluno e nas suas necessidades. O resultado da aprendizagem do aluno é relacionado com a capacidade de ensino do docente. Os Irmãos focavam a formação do professor nos resultados de aprendizagem dos alunos. Relacionavam, dialeticamente, bom aprendizado com bom ensino e vice-versa.

Merece crítica o olhar puramente quantitativo que, muitas vezes, tem sido usado para avaliar a escola brasileira: a falta de professores é, frequentemente, compensada com o fechamento de salas de aula e colocação de 40 ou 50 alunos na mesma sala; o baixo resultado nas avaliações é compensado inserindo-se mais conteúdos na matriz curricular. Embora o Brasil seja muito grande e com diferenças enormes, e exatamente por causa disso, programas de educação que prevejam as mesmas competências e habilidades para todos os alunos também merecem críticas, justamente porque não veem o aluno enquanto indivíduo.

Nas Escolas Cristãs, os inspetores deviam estar atentos a que todos estivessem aptos a mudar de lição, não promovendo nenhum que não tivesse aprendido o suficiente, “porque fazer o contrário seria expô-lo a nunca aprender coisa alguma e ao perigo de permanecer ignorante toda a vida” (La Salle, 2012, p. 271). Por isso, ninguém deve ser promovido sem conhecer muito bem e perfeitamente o conteúdo da lição (La Salle, 2012, p. 45). La Salle usa várias vezes a expressão “correta” ou “perfeita” para se referir à postura, à aprendizagem ou à compreensão.

O foco nos resultados tinha um objetivo que não a avaliação da escola. O objetivo central era bem preparar para a vida. Além disso, o Guia das Escolas Cristãs trabalha na perspectiva da motivação. Para La Salle, os alunos desmotivados “desistem facilmente” (La Salle, 2012, p. 40). A motivação que se dava aos que não eram considerados aptos à promoção era através de algum ofício importante (“primeiro do banco”) “fazendo-os compreender que é melhor ser o primeiro ou dos primeiros numa lição inferior do que dos últimos em outra mais adiantada” (La Salle, 2012, p. 41), fazendo “com que estes alunos estejam contentes por continuarem na lição ou na ordem da lição na qual se encontram” (La Salle, 2012, p. 41).

Essa psicologia da motivação, surpreendente para a época, mostra que já havia avanços significativos na construção de teorias educacionais, que passaram a ser amplamente utilizadas pelos Irmãos das Escolas Cristãs a partir do século XVIII, conforme foram sendo descobertas e desenvolvidas à luz da sua experiência letiva e religiosa que foram acumulando. Nesse momento da história, porém, mostravam-se mais como conhecimentos intuitivos e práticos que tinham o objetivo de compreender o aluno e seu processo de aprendizagem para direcioná-lo ao “bem viver” tanto na sociedade aristocrática, quanto na cultura da cristandade, então, vigentes.

Preparação para a vida

É necessário retomar o que significa preparação para a vida no século XXI. Aqui tem-se em vista toda e qualquer ação educativa que tenha por objetivo ajudar o aluno a desenvolver-se não apenas academicamente, mas a transformar conteúdos em vivências pessoal, comunitária e socialmente viáveis e relevantes na propalada sociedade do conhecimento.

A escola no Brasil não parece equipada para responsabilizar-se para o completo processo de socialização. O ensino profissionalizante, por sua vez, desenvolveu-se com mais intensidade no Brasil a partir do começo dos anos 1970, mais especificamente com a aprovação de nossa segunda Lei de Diretrizes e Bases, a Lei n. 5692/71. Esta lei, que marcou a educação em parte do governo militar, reforçou as duas perspectivas: civismo e profissionalização, duas necessidades para a época: o civismo para promover o nacionalismo típico do governo militar e a profissionalização para atender às demandas de uma forte industrialização e do desenvolvimentismo adotado para o Brasil. Eram duas realidades atendidas, porém descontextualizadas da vida dos estudantes: adolescentes das escolas rurais estudavam técnicas industriais e comerciais, por exemplo. Já o ensino médio, à época chamado segundo grau, tinha um enfoque basicamente profissionalizante: com o escasso acesso ao ensino superior, era o ensino médio que preparava para o mercado de trabalho.

Esta situação começou a mudar em 1982, com a Lei n. 7.044, que revogou a obrigatoriedade do caráter profissionalizante do ensino médio. A partir de 1996, com a aprovação da atual LDB, a Lei n. 9394/96, foi ampliada a oferta do ensino superior e, gradativamente, reduziu-se a oferta dos cursos técnicos de nível médio. Os temas cívicos e de preparação para a vida passaram a ser vistos de maneira transversal, deixando espaço na matriz curricular para os diversos conteúdos acadêmicos, que seriam necessários para o ensino superior e para a posterior profissionalização. Em 2008, na gestão do Ministro da Educação Fernando Haddad, houve a reestruturação do ensino técnico com a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, o que deu nova vida ao ensino técnico e profissionalizante de nível médio. Este movimento fortaleceu-se em 2017, com a Lei n. 13.415, chamada Lei da Reforma do Ensino Médio, que estabeleceu como um dos itinerários formativos, o ensino profissionalizante, com os termos “formação técnica e profissional” (Art. 36, V).

A preparação para a vida é um elemento importante na pedagogia moderna e que está no núcleo da pedagogia de La Salle. A escola tem como principal função retirar os alunos da condição de criança pobre e devolvê-los à sociedade preparados para ascender socialmente. A maioria dos filhos dos artesãos e dos pobres precisava trabalhar desde muito cedo para colaborar com a renda da família. Para estes flexibilizava-se alguns horários das aulas (La Salle, 2012, p. 193). Além disso, a própria dinâmica da escola privilegiava o protagonismo dos estudantes através de 14 ofícios que exerciam na escola.

A ética da inclusão da Escola Cristã traduz-se no esforço para que os alunos, independentemente de sua condição, tivessem acesso à escola de qualidade, fossem tratados com igualdade e estimulados a permanecerem na escola. Em La Salle, essa estética não separa a escola da vida. A escola é uma extensão da vida na família e a família é uma extensão da vida na escola (La Salle, 2012, p. 252).

Abrir uma escola é fechar uma prisão?

No século XVII começou-se a pensar em uma função social para a escola. Precursor dessa linha de pensamento, Charles Démia afirmava que “abrir uma escola era fechar uma prisão” (Démia citado por Gauthier, 2014, p. 111). Esse pensamento era decorrente da realidade da época, que, segundo Fiévet (2001) era terrível em termos de delinquência juvenil, pelo excesso de vítimas do desastre econômico que tirou moradores do campo, jogando-os nas cidades. A escola era vista como uma das principais possibilidades para superar essa situação, como atesta esta observação acerca da escola lassalista destinada aos infratores:

Esse internato ganhou notoriedade adicional pela eficiência com que conseguiu transformar jovens de comportamento rebelde em piedosos e ordeiros adultos, num departamento especialmente destinado a esse fim. O prestígio conseguido por esse departamento levou certas autoridades a solicitarem aos irmãos que passassem a aceitar jovens delinqüentes condenados à prisão. Novas dependências foram construídas para esse propósito, com subsídio do Estado. Inicialmente, os jovens delinqüentes eram aí mantidos em celas isoladas, recebendo visitas periódicas dos colegas e do médico. Na medida em que se mostravam dóceis, eram reunidos nas horas das refeições e, depois disso, passavam a receber ensino de geometria, de desenho, de arquitetura, além do ensino primário. Paralelamente, freqüentavam oficinas, interiorizavam a disciplina do trabalho e aprendiam um ofício artesanal ou manufatureiro. (Cunha, 2000, p. 49)

Para La Salle (2012), um dos papeis do mestre era, além da bondade que fazia os alunos perceberem o bem, agir com firmeza para afastá-los do mal. Inseridas na cristandade francesa, as Escolas Cristãs pretendiam levar as crianças à salvação de suas almas. Essa pretensão, dialeticamente, significava também sua “salvação” social, ou seja, a ascensão social traduzia o amor de Cristo do mundo espiritual para o mundo material. La Salle, fervoroso defensor do Concílio de Trento, no entanto, foi muito além da educação imaginada pela Contrarreforma que, de acordo com Manacorda (2010), tinha como foco a volta às tradições, a assunção do currículo dos jesuítas e o combate aos reformados. La Salle sintetiza essa mensagem na função da escola: ensinar a “bem viver” a salvação espiritual e social.

A ideia da escola com uma função social continuou existindo posteriormente. Tornou-se uma das grandes plataformas políticas da república de todos os tempos, especialmente, no que se refere ao investimento em educação como forma de reduzir a violência e, consequentemente, esvaziar as prisões. Patto (2007) mostra como o assunto tornou-se programa de governo tanto de esquerda quanto de direita. Faz uma crítica a esse tipo de discurso político:

A cada crime chocante cometido por jovens destituídos de todos os direitos e vítimas da barbárie contra os pobres que atravessa a história do Brasil, contudo, o discurso dominante traz ao primeiro plano uma concepção de escola como instituição salvadora, cuja missão impossível é tirar das ruas crianças e jovens moradores nas áreas urbanas mais precárias das cidades e assim diminuir os índices de criminalidade, seja ensinando-lhes princípios de moral e bons costumes seja fornecendo-lhes um diploma ilusório que não lhes garantirá emprego em tempos de desemprego estrutural. (Patto, 2007, p. 244)

Objetivamente, um estudo do IPEA, coordenado por Cerqueira et al. (2016) faz uma relação entre educação e índices de homicídios, pautada pelo Pacto Nacional pela Redução de Homicídios (PNRH) de 2014. Nesse estudo, feito em zonas com alto índice de violência, conclui-se que há uma relação direta entre investimento em educação e redução na taxa de homicídios. Analisando outros estudos que fazem essa relação, e a partir da observação direta, os autores chegam à conclusão de que os investimentos públicos em educação são fundamentais nesse sentido. Dentre outras afirmações, está a de que a cada 1% a mais de jovens nas escolas, a taxa de homicídios cai 2% (Cerqueira et al., 2016, p. 13). Essa relação, porém, apesar de direta, não é uma relação necessária, ou seja, ela não ocorre por si só. Se a experiência educativa não for significativa ou, segundo La Salle (2012), não tocar o coração do aluno, ela pode ser parte do problema, ao invés de ser parte da solução. A escola pode ser perpetuadora da desigualdade social e da violência.

Conclusão: uma estética que mira o futuro

A escola não é apenas um lugar onde se aprendem conteúdos curriculares. Charlot (2020) defende a necessidade de se pensar a educação do ponto de vista antropológico, o que é fundamental para compreender e organizar a gestão da escola e dos processos pedagógicos, pois o Brasil possui uma peculiar organização dos sistemas públicos de ensino (federal, art. 16; estaduais, art. 17 e municipais, art. 18 da LDB) que articulam a ação educativa de quase 200 mil escolas mantidas pela iniciativa estatal, por empresas lucrativas (as “particulares em sentido estrito”), por entidades sem fins lucrativos como as comunitárias e/ou filantrópicas (LDB, art. 20).

Os problemas na educação brasileira se intensificaram nos últimos anos como um resultado do acúmulo de dificuldades que se ampliaram a partir da exigência legal de universalizar a educação básica para atender à proposta educacional republicana de universalizar a educação necessária ao efetivo exercício da cidadania de cada pessoa brasileira que fundamenta, individual e coletivamente, o poder político do país porque todo “o poder emana do povo” conforme o art. 1°, parágrafo único da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Acredita-se que as dificuldades apresentadas pela educação no Brasil não começaram nesta fase da história, mas intensificaram-se no atual século. Uma das causas para esta intensificação foi a lenta ampliação da obrigatoriedade da educação, iniciada em 1988, e plenamente garantida para todas as etapas da educação básica, finalmente, pela Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013. A universalização trouxe como consequência um aumento expressivo no número de escolas e uma ampliação da rede pública e privada de ensino e, aparentemente, os sistemas de ensino não estavam preparados para isso. As políticas de governo, tanto de investimentos quanto de qualidade, não seguiram na mesma direção do lento aperfeiçoamento da legislação educacional. Por outro lado, essa legislação não prevê punições específicas para o seu não cumprimento. A Lei de Responsabilidade Educacional tramita lentamente no Parlamento. Esta lei poderia dar aos cidadãos o direito ao “Habeas Educationen” (Martins, 2008), ou seja, de exigir, pela lei, que o Estado cumpra sua obrigação em relação ao direito subjetivo à educação. Há um hiato que foi aumentando com o passar dos anos e hoje torna-se quase insuperável. Diante de um desafio desta envergadura, parece salutar inspirar-se na Escola Cristã que conseguiu, a partir de um pequeno grupo organizado e combativo de docentes, transpor o que aparentava ser intransponível: universalizar a educação de todas as crianças a partir dos filhos de artesãos e pobres, inclusive, lutando contra a legislação vigente no reinado de Luís XIV e na hierarquia católica francesa vinculada àquela Corte.

O problema da estética da escola é relacional. Isso depreende-se desde a escola de La Salle, descrita nos seus escritos pedagógicos. Naquele modelo de escola, tudo deveria estar em harmoniosa relação: o projeto político-pedagógico, a gestão, a construção do edifício, as relações, os conteúdos e os processos, a formação permanente dos docentes a partir da metodologia dialética de ação-reflexão-ação, bem como a identidade cristã movida pela espiritualidade encarnada na realidade de uma escola com pretensões de promover a ascensão social de seus egressos. Se por um lado, isso torna a escola bonita no seu conjunto (e não apenas na estrutura física), por outro lado potencializa a experiência do estar na escola, pois a própria aprendizagem é inserida nesse contexto relacional. Ao mesmo tempo em que o aluno era protagonista da própria educação, ele recebia a ação pedagógica e deixava-se influenciar pelo objeto estético proposto pela Escola Cristã e seus docentes.

A estética da exclusão da escola pública brasileira, aliás, não está ligada apenas ao fato de que muitas crianças e jovens, por não aprenderem, preferem abandonar a escola, mas também ao fato de que as desigualdades sociais do Brasil são reforçadas na escola, agravadas ainda pela cultura popular brasileira que diz que escola pública é escola dos pobres. Chega-se a uma lógica excludente que se transforma em uma experiência estética de exclusão: estar na escola é algo que não é bom, fora dela parece ser bem melhor.

O novo olhar que a Escola Cristã inspira é pensar uma escola que tenha como lógica a ética da inclusão, como queria La Salle (2012) ou seja, uma escola que se esforça para oferecer espaço para todos porque se importa com todos. Nela, seus docentes trabalham de forma cooperada para, da melhor forma possível, fazer com que as crianças queiram estar na escola e, mais do que isso, dela saiam apenas quando nela aprenderam a bem viver. E, caso a abandonem por algum outro motivo que não o sucesso da aprendizagem que, nesse caso, tenham aprendido o mínimo para enfrentar o mundo com a dignidade de cristãos.

É necessário, pois, mudar o olhar. A educação hoje transformou-se em um problema de nação e não apenas de gestão. A instituição escola perdeu credibilidade e está deixando de ser prioridade na vida de muitas pessoas, especialmente, entre aquelas que mais se beneficiariam com uma boa escolarização. Há uma premente necessidade de se voltar o olhar para a educação enquanto processo relacional e não como produtora de resultados obtidos em testes padronizados. O atual sistema escolar mostra-se ineficiente, a ponto de o Brasil situar-se entre os piores no ranking internacional, embora tenha uma legislação relativamente consolidada e processos de avaliação de excelência. O problema é que estes processos estão preocupados com o resultado ao final de cada ciclo de ensino e esquecem que estes resultados provêm de todo o processo estético que ocorre antes do final do ciclo.

Urge pensar uma escola que tenha a dimensão relacional como eixo principal; que volte a ser pensada desde o ponto de vista da experiência estética profunda do educando e dos educadores; que o Magistério se forme adequadamente para assumir responsabilidade ética, política, estética e pedagógica pelo aprendizado de cada educando. Uma escola que seja pensada a partir do modelo de ser humano que a sociedade democrática e o estado de direito devem formar.

2Dados coletados de Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica. (s.d.). Produto Interno Bruto. Recuperado em 17 de maio de 2022, de https://www.ibge.gov.br/explica/pib.php.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

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Recebido: 01 de Julho de 2019; Aceito: 16 de Maio de 2022; Publicado: 11 de Agosto de 2022

Endereço para correspondência Clóvis Trezzi, Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade La Salle Av. Victor Barreto, 2288 Centro, 92010-000 Canoas, RS, Brasil

Evaldo Luis Pauly, Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade La Salle Av. Victor Barreto, 2288 Centro, 92010-000 Canoas, RS, Brasil

João Virgilio Tagliavini, Universidade Federal de São Carlos Rod. Washington Luiz, s/n Monjolinho, 13565-905 São Carlos, SP, Brasil

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