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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.45 no.1 Porto Alegre  2022  Epub 17-Jul-2023

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2022.1.33320 

Outros Temas

Preparar para adotar? Reflexões a respeito da orientação de famílias na prática da adoção

To prepare to adopt? Reflections on the orientation of families in the practice of adoption

¿Prepararse para adoptar? Reflexiones sobre la orientación de las familias en la práctica de la adopción

Lívia Anicet Zanini1 

Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil. Psicóloga pelo Instituto de Psicologia da USP. liviaanicet@gmail.com


http://orcid.org/0000-0003-0593-7137

Adriana Marcondes Machado1 

Doutora e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Livre-Docente em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil. adrimarcon@uol.com.br


http://orcid.org/0000-0002-5513-8723

1Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil.


Resumo:

O objetivo deste artigo é analisar, a partir do contexto jurídico da adoção no Brasil, alguns elementos presentes nas forças em jogo na prática de preparar as famílias que pretendem adotar, dando relevo às atividades de orientação realizadas por psicólogos a esses pretendentes. Na pesquisa de mestrado que embasa este artigo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com membras de um grupo de apoio à adoção e com profissionais de escolas públicas e particulares em uma cidade do interior paulista. Também houve participações em reuniões de preparação de pretendentes à adoção promovidas por esse grupo de apoio. Ressaltamos, na análise deste trabalho, o perigo de algumas práticas que, mesmo buscando combater estereótipos, podem fortalecê-los, exigindo, em relação às intervenções realizadas enquanto psicólogos, a constante necessidade de revisitar suas estratégias e seus efeitos. Defendemos a direção ética de um trabalho que fortaleça rupturas na concepção de família ideal contida na prática da adoção.

Palavras-chave: adoção; preparação; prevenção; formação do psicólogo

Abstract:

The objective of this article is to analyze, from the legal context of adoption in Brazil, some elements present in the forces at play in which the practice of preparing the families that intend to adopt is built, giving prominence to the orientation activities made by psychologists to these suitors. In the master's research that bases this article, semi-structured interviews were conducted with members of a support group for adoption and with professionals from public and private schools in a city in the interior of São Paulo. There were also participations in meetings of preparation of adoption suitors promoted by this support group. We emphasize in the analysis of this work the dangers of some practices that, even seeking to combat stereotypes, can strengthen them, requiring, in relation to the interventions performed as psychologists, the constant need to revisit their strategies and their effects. We defend the ethical direction of a work that strengthens ruptures in the ideal family conception contained in the practice of adoption.

Keywords: adoption; preparation; prevention; psychologist formation

Resumen:

El objetivo de este artículo es analizar, desde el contexto legal de la adopción en Brasil, algunos elementos presentes en las fuerzas en juego en las cuales se construye la práctica de preparar a las familias que pretenden adoptar, destacando las actividades de orientación establecidas por los psicólogos de estos pretendientes. En la investigación de maestría que basa este artículo, se realizaron entrevistas semiestructuradas con miembros de un grupo de apoyo para la adopción y con profesionales de escuelas públicas y privadas en una ciudad del interior de São Paulo. También hubo participaciones en reuniones de preparación de demandantes de adopción promovidas por este grupo de apoyo. En el análisis de este trabajo, destacamos el peligro de algunas prácticas que, buscando combatir los estereotipos, pueden fortalecerlos, requiriendo, en relación con las intervenciones realizadas como psicólogos, la necesidad constante de revisar sus estrategias y sus efectos. Defendemos la dirección ética de un trabajo que fortalece las rupturas en la concepción ideal de la familia contenida en la práctica de la adopción.

Palabras clave: adopción; preparación; prevención; formación de psicólogos

Este trabalho é decorrente de uma dissertação de mestrado (Zanini, 2016), que teve como objetivo analisar alguns elementos presentes nas forças em jogo na prática de preparar as famílias que pretendem adotar. Para isso, levou em conta algumas mudanças legislativas em torno da adoção, bem como as discussões a respeito das ideias de família e de adoção de membras de um Grupo de Apoio à Adoção (GAA) que realizavam o trabalho de preparação para adoção e de profissionais de instituições educacionais.

Atualmente, a adoção é caracterizada, em termos da legislação brasileira, como uma das medidas de colocação em família substituta de crianças e adolescentes cujas famílias de origem foram destituídas de seu poder familiar. A adoção é uma medida excepcional, pois supõe que se esgotem todas as possibilidades de retorno das crianças e dos adolescentes às suas famílias biológicas antes da adoção. Por motivos históricos e sociais, algumas crianças e adolescentes são afastados de suas famílias de origem ou essas próprias famílias, que não puderam criar seus filhos, levam ao conhecimento do poder Judiciário a necessidade de colocar os filhos para adoção. A adoção requer que se prescinda da ideia de que a vinculação se dá exclusivamente a partir de uma relação biológica, sanguínea, hereditária e que se fortaleça a concepção de uma vinculação afetiva.

As decisões referentes à adoção e as formas de compreender o afastamento de crianças e adolescentes de suas famílias de origem são território de disputa em relações de poder e saber. Uma direção ética inspirada em Foucault anima este trabalho: as relações de poder não são ruins ou boas em si, dizem respeito a correlações de forças, ao exercício de uma força sobre a outra. Na entrevista “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”, Foucault, perguntado sobre sua posição em relação à ideia de poder, responde:

Tomemos algo que foi objeto de críticas frequentemente justificadas: a instituição pedagógica. Não vejo onde está o mal na prática de alguém que, em um dado jogo de verdade, sabendo mais do que um outro, lhe diz o que é preciso fazer, ensina-lhe, transmite-lhe um saber, comunica-lhe técnicas; o problema é, de preferência, saber como será possível evitar nessas práticas — nas quais o poder não pode deixar de ser exercido e não é ruim em si mesmo — os efeitos de dominação que farão com que um garoto seja submetido à autoridade arbitrária e inútil de um professor primário, um estudante, à tutela de um professor autoritário etc. (Foucault, 2012, p. 278)

Essa postura — de que passar um conhecimento, um saber, não poderia ser considerado ruim em si mesmo, mas que seus efeitos de dominação deveriam ser avaliados — nos servirá de pista para a problematização sobre as práticas de orientação de famílias que pretendem adotar.

Neste artigo, ressaltaremos alguns movimentos presentes na legislação referente à prática de adoção que permitem compreendermos linhas constitutivas dessa prática. Daremos ênfase às mudanças operadas entre duas leis — a Lei n.° 12.010 (2009) e a Lei n.° 13.509 (2017) — devido à importância delas em relação à implementação de práticas de orientação à família substituta por intermédio de equipe técnica. Visando discutir essas práticas de orientação, realizadas com intensa presença da psicologia, utilizaremos como material de análise os registros realizados a partir da participação em encontros preparatórios para pretendentes à adoção, organizados por um GAA de uma cidade do interior paulista, durante a pesquisa de mestrado.

Movimentos na legislação sobre adoção e a necessidade de avaliar os pretendentes

Percorreremos alguns movimentos presentes na legislação brasileira referentes à prática da adoção, resgatando, dessa forma, certos elementos históricos e sociais que constituem nossas compreensões e práticas a respeito da adoção. Consideramos, com Foucault (2003), que práticas de objetivação produzem práticas de subjetivação: “as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento” (p. 8). Nesse sentido, damos ênfase a uma mudança de forma: a adoção passou de uma solução para resolver os problemas das famílias adotantes para se tornar uma prática de assistência à criança e ao adolescente que havia sido afastado de sua família de origem. Foi nesse percurso que a preparação de famílias que pretendem adotar crianças e jovens se constituiu como proposta.

A adoção apareceu no Código Civil brasileiro no ano de 1916, impondo diversas restrições, entre elas: o casal não poderia ter filhos biológicos, deveria ter idade maior que 50 anos e haver diferença de 18 anos dos adotantes em relação ao adotado. A adoção era vista como algo que pretendia suprir a necessidade dos adotantes, sendo uma maneira de constituir família para casais que não podiam ter filhos biológicos legítimos ou legitimados — apenas esses casais poderiam adotar (Ferreira, 2010). Também se previa que o vínculo da adoção poderia ser dissolvido caso fosse do interesse dos adotantes.

Os debates a respeito das instituições que acolhiam as crianças por parte de médicos e juristas culminou, em 1923, na criação do Primeiro Juizado de Menores e, em 1927, na criação do Código de Menores, primeiro documento a legislar a respeito da criança e do adolescente no Brasil (Oishi, 2013). Por meio do Código de Menores (1927), duas infâncias foram definidas: “(…) os denominados ‘menores’ — crianças pobres, carentes, abandonadas e delinquentes, alvo das preocupações de juristas e médicos higienistas — e as chamadas ‘crianças’ — filhos das classes média e alta, os quais não se enquadravam no perfil da clientela do Código de Menores” (Oishi, 2013, p. 29).

Essa divisão entre “menores” e “crianças” insere um elemento de diferenciação negativo para crianças “pobres, carentes, abandonadas e delinquentes” (Oishi, 2013). Ainda, com relação ao Código de Menores (1927), o fator pobreza justificava o abrigamento de crianças e adolescentes e era algo introjetado pelas próprias famílias pobres, que consideravam a institucionalização de seus filhos uma opção melhor do que viver em condições de pobreza. Assim, as próprias famílias eram subjetivadas a partir da crença de que, ao internar seus filhos, estariam protegendo-os (Nascimento, 2012; Lemos et al., 2021). Relacionamos esse efeito de produção de subjetivação com a concepção de que existiria uma forma correta de educar que, como veremos, se faz presente, atualmente, nas orientações dadas às famílias pelas áreas psi.

Uma modificação no ano de 1957 (Ferreira, 2010) destacou o caráter assistencial: o casal passou a poder adotar mesmo tendo filhos biológicos. Dessa forma, não se tratava somente de uma solução para a esterilidade do casal, mas para dar assistência a crianças e a adolescentes separados de suas famílias biológicas (Ghirardi, 2015). Houve, também, a permissão de mudar o nome do adotado: tornou-se possível adicionar o nome da família adotiva ou mesmo retirar o nome da família biológica:

Contudo, apesar de a criança ganhar certa proteção com a lei, ela continuava em situação desfavorável em relação àquela legítima, pois havia a determinação [de] que, na existência de um filho biológico nascido posteriormente à adoção, o adotado herdaria metade daquilo que coubesse ao filho legítimo. Caso houvesse um filho biológico antes de legitimar a adoção, o adotado não teria direito à herança. (Ghirardi, 2015, p. 26)

Em 1965, houve outra modificação, por meio da Lei n.° 4.665, quando surgiu o que se denomina como “legitimação adotiva” (Ferreira, 2010). Por intermédio dessa lei, a adoção de crianças, associada ao desamparo ou ao abandono, reforçou o caráter de medida de proteção e assistência à infância (Oishi, 2013). O parentesco do filho adotivo passou a ser o mesmo que o do filho biológico, excluindo-se, no entanto, a questão sucessória. Ferreira (2010) aponta que a legislação se manteve “tímida”, pois a restrição de idade em até sete anos para a adoção se conservou e, para que a adoção se efetivasse, eram necessários três anos de guarda anterior pelos pais adotivos. Nesse momento, a adoção saiu do âmbito de um acordo familiar e passou para o de intervenção jurídica (Oishi, 2013): ressalta-se a inserção do Judiciário nessas decisões, na medida em que o juiz poderia, para garantir o futuro e o bem-estar do menor, requisitar que se investigasse a pertinência de se deferir a adoção: “A adoção transformou-se em sentença, que, ancorada no discurso de proteção da criança, deveria ser avaliada e julgada” (Oishi, 2013, p. 31).

Com a alteração realizada pela Lei n.° 6.697, de 1979, referente ao Código de Menores, ocorreu a substituição da legitimação adotiva pela adoção plena, que trouxe modificações importantes pelo seu caráter de irrevogabilidade, extinguindo-se os vínculos legais do adotado com a família biológica (Ferreira, 2010). Para além disso, um processo de seleção dos pretendentes à adoção começou a se constituir:

os requisitos de estabilidade conjugal e a adequação da família passaram a ser analisados pela apresentação de documentos de qualificação, comprovação de idoneidade moral, atestado de sanidade física e mental. A avaliação de tais quesitos, portanto, poderia levar à aprovação ou à reprovação dos candidatos a pais, tornando-se esses documentos critérios avaliativos. Instaurou-se, assim, como um procedimento jurídico a seleção dos interessados em adotar. (Oishi, 2013, pp. 32-33)

As mudanças que ocorreram no Código de Menores, portanto, possuíam outros interesses políticos além de garantir a assistência à infância, na medida em que ocorreram durante um regime ditatorial e centralizador (Oishi, 2013). Em 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código de Menores foi revogado e grandes mudanças foram estabelecidas. O ECA (Lei n.° 8.069, 1990) apresentou uma nova definição de infância ao considerar as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos e deveres, e não mais como “objetos de tutela”, como na legislação anterior (Siqueira et al., 2019). A defesa do ECA — de que crianças e adolescentes são “sujeitos em desenvolvimento” — se deu em um campo de disputa com discussões internacionais em que parte da sociedade brasileira não compartilhava dessa posição na época em que a legislação foi promulgada (Siqueira et al., 2019).

Por meio do ECA (Lei n.° 8.069, 1990), incluíram-se as seguintes modificações referentes à adoção: acabou-se com a discriminação entre filhos adotivos e biológicos; diminuiu-se a idade mínima para adotar (21 anos) sem dependência do estado civil; estabeleceu-se que a adoção também é possível para concubinos, separados judicialmente, divorciados e viúvos; proibiu-se a adoção por parte dos ascendentes e irmãos; instituiu-se que era necessário ouvir o adotando maior de 12 anos; estabeleceram-se critérios para adoções internacionais, mesmo com relação ao cadastro de pretendentes; e manteve-se a adoção como sendo irrevogável (Ferreira, 2010). Ressaltamos o fato de que

as modernas leis de adoção, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, colocam no centro desse instituto o interesse maior da criança, daquela criança que, “esgotados os recursos de manutenção na própria família de origem”, (art. 92/Princípio II) deve ser integrada em uma família substituta. O interesse da criança torna-se, assim, a preocupação primeira, mais importante que o desejo dos pais adotivos, mais importante do que os direitos dos pais biológicos. (Freire, 1994, p. 7)

Essa citação de Fernando Freire, um dos autores responsáveis pela divulgação dos trabalhos sobre adoção no Brasil, ressalta o fato de o ECA colocar o interesse da criança em primeiro lugar. Além disso, Oishi (2013; Leão & Oishi, 2017) deu relevo a como o instituto da adoção passou a ser monopólio do Judiciário, na medida em que as famílias pretendentes à adoção, as crianças disponíveis para adoção e as instituições de acolhimento passaram a ser avaliadas e aprovadas por ele.

Outras modificações no processo da adoção aconteceram no ano de 2002, por meio do Código Civil, que se alinhou com o que era determinado pelo ECA (Lei n.° 8.069, 1990), revogando, por exemplo, a adoção simples2 (Ferreira, 2010; Oishi, 2013). Em 2006, com o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, reforçou-se a busca pelos direitos das crianças e adolescentes, centralizando-se a atenção na família, propondo “formular políticas de fortalecimento das famílias que possibilitem a crianças e adolescentes ter assegurados, no interior da família, os elementos necessários para seu desenvolvimento integral” (Silva & Arpini, 2013, p. 126). Para Silva e Arpini (2013), as modificações da nova Lei de Adoção (Lei n.° 12.010, 2009) se inseriram na esteira dessas mudanças que resgatariam a centralidade da família e do Estado para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.

No ano de 2009, foi aprovada a Lei n.° 12.010, que trouxe modificações importantes na área da adoção, como a necessidade de realização do Plano de Atendimento Individual (PIA) e a reavaliação da situação da criança em instituição de acolhimento, impondo prazos para essa reavaliação e para o tempo na instituição. Também foi em 2009 que ficou definida a necessidade de preparar os pretendentes à adoção. No ano de 2017, outras alterações foram estabelecidas por meio da Lei n.° 13.509 (2017).3 Elaboramos uma quadro-síntese com alterações propostas por essas duas últimas leis, por meio da consulta a trabalhos que analisaram a Lei n° 12.010 (Ferreira, 2010; Oliveira & Schwartz, 2013; Oishi, 2013) e da nossa própria análise da Lei n° 13.509 (Quadro 1).

Quadro 1 Resumo de alterações realizadas por meio das Leis n.° 12.010 e 13.509 

Lei n.° 12.010, de 2009 Lei n.° 13.509, de 2017
A modificação das expressões “pátrio poder” para “poder familiar” e da designação “abrigo” para “acolhimento institucional”, bem como a criação da denominação de “acolhimento familiar”. Manteve essas alterações e incluiu a designação “família adotiva” em alguns artigos que falavam da “família substituta”.
A definição de “família extensa ou ampliada” como: “aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade” (Lei n.° 12.010, 2009). Mantém essa alteração e inclui os programas de “apadrinhamento”: “o apadrinhamento consiste em estabelecer e proporcionar à criança e ao adolescente vínculos externos à instituição para fins de convivência familiar e comunitária e colaboração com o seu desenvolvimento nos aspectos social, moral, físico, cognitivo, educacional e financeiro” (Lei n.° 13.509, 2017).
A colocação da necessidade de proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe no período antes e depois do nascimento, bem como para aquelas que tivessem interesse em entregar o filho para adoção. Inclui assistência especializada multidisciplinar para a mãe adolescente, bem como especifica a necessidade de encaminhamento das gestantes com interesse de entrega do filho para adoção para a Justiça da Infância e da Juventude, com obrigatoriedade de escuta por equipe interprofissional e apresentação de relatório à autoridade judiciária.
A definição de que as crianças e os adolescentes em acolhimento institucional ou familiar deverão ter sua situação reavaliada a cada 6 meses, no máximo, pela equipe interprofissional ou multidisciplinar; também estabeleceu o prazo máximo de 2 anos de permanência em acolhimento institucional, que pode ser maior caso seja do superior interesse da criança e do adolescente. Alterou os prazos: a situação das crianças e dos adolescentes em acolhimento institucional deve ser reavaliada a cada 3 meses, pela equipe interprofissional ou multidisciplinar; também alterou o prazo máximo para 18 meses em programa de acolhimento institucional, salvo a situação que atenda ao maior interesse da criança e do adolescente.
A priorização da manutenção ou reintegração da criança e do adolescente à sua família de origem, tendo preferência sobre as formas de colocação da criança em família substituta (guarda, tutela ou adoção). Inclui um prazo para busca da família extensa de 90 dias, prorrogáveis por igual período. Também inclui um prazo para cadastro de crianças recém-nascidas e de crianças acolhidas não procuradas por suas famílias por 30 dias, após a data de acolhimento.
A necessidade de que uma equipe interprofissional escute a criança ou o adolescente antes da colocação em família substituta, sendo que, no caso de adolescente, deverá ter o seu consentimento, em audiência, perante a autoridade judiciária. Inclui que a família natural e a família substituta deverão receber a devida orientação por intermédio da equipe técnica interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude. Recomenda a preparação das crianças e dos adolescentes acolhidos por equipe interprofissional antes de inclusão em família adotiva.
A não separação de grupos de irmãos (que na prática judiciária já era algo procurado) quando colocados em família substituta, com exceção de casos em que se justifique a sua necessidade. Inclui a prioridade de cadastro de pessoas interessadas em adotar criança ou adolescente com deficiência, com doença crônica ou com necessidades específicas de saúde, além de grupo de irmãos.
O Cadastro Nacional da Adoção (CNA) e um cadastro em esfera estadual passam a ser alimentados, obrigatoriamente, pela autoridade judiciária, devendo ser preenchidos em até 48h, sob pena de multa; estabelecia que a reavaliação dos postulantes seria realizada em situação de recusas sistemáticas por parte deles à adoção de crianças e adolescentes dentro do perfil. Estabelece que a habilitação à adoção deverá ser renovada, no mínimo, a cada três anos mediante avaliação por equipe interprofissional. Também inclui o limite de três recusas injustificadas à adoção de crianças e adolescentes dentro do perfil colocado pelo postulante para reavaliação da habilitação concedida.
A criação do Plano Individual de Atendimento (PIA) pelas instituições de acolhimento, que vise à reintegração da criança no convívio familiar: “constará deste plano o resultado da avaliação interdisciplinar, compromissos assumidos pelos pais e previsão das atividades a serem desenvolvidas” (Ferreira, 2010, p. 44). Inclui prazo para o período de estágio de convivência de, no máximo, 90 dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades do caso, que pode ser prorrogado por igual período. Em situação de adoção internacional, impõe o prazo de, no mínimo, 30 dias e, no máximo, 45, prorrogáveis por igual período. Inclui o prazo máximo de 120 dias, prorrogáveis por igual período uma única vez, para a conclusão da adoção.
E, finalmente, a obrigatoriedade da preparação das crianças ou dos adolescentes para a colocação em família substituta e acompanhamento posterior pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, bem como uma preparação psicossocial e jurídica, orientada pela equipe técnica do Juízo da Infância e da Juventude, para os pretendentes à adoção. Inclui a intervenção dos grupos de apoio à adoção: “É obrigatória a participação dos postulantes em programa oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar e dos grupos de apoio à adoção devidamente habilitados perante a Justiça da Infância e da Juventude, que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças ou de adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos” (Lei n.° 13.509, 2017).

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Muitos trabalhos de preparação de pretendentes à adoção promovidos pelos denominados GAA4 e pelos próprios Tribunais de Justiça da Infância e da Adolescência existiam antes da Lei n.° 12.010 (2009). O movimento da legislação no sentido de considerar a criança como o principal interesse nos processos de adoção e a maior interferência do Judiciário nessas avaliações fizeram com que o preparo dessas famílias pretendentes à adoção tivesse como foco a criança e o adolescente. De fato, a Lei n.° 13.509, de 2017, especifica: “em caso de conflito entre direitos e interesses do adotando e de outras pessoas, inclusive seus pais biológicos, devem prevalecer os direitos e os interesses do adotando” (Lei n.° 13.509, 2017). Assim, essas preparações passaram a ter como objetivo prevenir possíveis problemas com essas crianças para que as adoções fossem bem-sucedidas e para que essas crianças e adolescentes não tivessem novas situações de afastamento familiar, como em casos em que retornam à situação de acolhimento institucional — situações chamadas de devolução. Como nos explica Ghirardi (2015):

A devolução da criança adotada instaura o rompimento da relação afetiva existente entre pais e filhos. No âmbito do Judiciário, refere-se ao fracasso daquela adoção, uma vez que falha a possibilidade de continuidade do vínculo anteriormente estabelecido. A literatura direcionada à compreensão de seus motivos é escassa no que tange à nomeação da devolução como o ápice de uma relação que é constituída por conflitos (…) Em uma rara reportagem sobre o tema, realizada pela Revista Época e intitulada “Rejeitados”, a Juíza Matos Rocha (2003) explica que a devolução é consequência de uma adoção mal construída desde o início e que a sua prevenção se daria a partir de uma melhor preparação das crianças e candidatos a pais adotivos. (Ghirardi, 2015, p. 34, grifos nossos)

A Lei n.° 13.509 (2017) inclui uma consequência para as situações em que ocorrem as chamadas devoluções, especificando que “a desistência do pretendente em relação à guarda para fins de adoção ou a devolução da criança ou do adolescente depois do trânsito em julgado da sentença de adoção importará na sua exclusão dos cadastros de adoção”. Associando essa nova redação da lei à citação de Ghirardi (2015), evidencia-se algo presente nas participações em preparações de pretendentes à adoção: o objetivo de prevenir a devolução.

Método

Provocadas pelo interesse de problematizar a construção da prática de prevenir, preparar e orientar famílias no cotidiano do trabalho com as famílias pretendentes à adoção, utilizaremos trabalhos e experiências específicas de determinados fóruns, com os quais entramos em contato a partir de estudos produzidos na área da adoção (Ferreira, 2010; Paiva, 2004), e o material construído na pesquisa de mestrado.

O trabalho do mestrado desenvolveu um método qualitativo de pesquisa e análise em que participamos de sete encontros abertos para pretendentes à adoção, organizados pelo GAA de uma cidade do interior paulista, e realizamos entrevistas com seis membras, muitas das quais possuíam famílias constituídas pela adoção. Também foram realizadas entrevistas com profissionais de duas escolas particulares e duas escolas públicas dessa cidade com o intuito de colecionar cenas e situações disparadoras de problematizações sobre esse tema na vida escolar. A realização do estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética de uma universidade pública (CAAE 41747515.0.0000.5561).

Vale ressaltar que as inspirações discutidas em trabalhos de pesquisa-intervenção (Aguiar & Rocha, 2007; Machado, 2021a) subsidiaram a direção ético-política das entrevistas (Oliveira & Machado, 2021), da participação nos grupos de preparação e das análises escritas: romper com automatismos e naturalizações em nossas práticas com o rastreamento das tramas, das relações de força, em que elas se engendram (Machado, 2021a). Este artigo, ao dar ênfase, em sua discussão, à prática de preparação de famílias para adotarem crianças e adolescentes, focou o material colhido na participação dos encontros de preparação promovidos pelo GAA.

Resultados: questionamentos a respeito de orientações e preparação das famílias pretendentes à adoção

Como apresentado, no movimento da legislação brasileira a respeito da adoção, estabeleceu-se a necessidade de avaliar e analisar a pertinência de uma determinada adoção e, por meio da Lei n.° 12.010 (2009), foi formalizada a prática de preparar os pretendentes à adoção antes de sua efetuação. Preparar para quê? As motivações para uma família desejar ter um filho são diversas, assim como as expectativas em relação aos filhos (Schmitt et al., 2020). Ao longo de nosso trabalho, destacaremos um dos objetivos presentes na ação de preparar os pretendentes à adoção: a crença de que seria possível prevenir frustrações em relação a algumas dessas expectativas ao considerar que essas frustrações seriam a causa do retorno da criança e do adolescente ao serviço de acolhimento, as chamadas devoluções.

As preparações dos pretendentes à adoção, com os quais entramos em contato por meio das entrevistas, vivências e estudos sobre o tema, tinham, portanto, a chamada devolução como um dos problemas que deveria ser evitado. O trabalho de preparação dos pretendentes à adoção nem sempre é bem-recebido pelos interessados a adotar, muitos questionam a necessidade desse processo, já que na filiação biológica não é preciso passar por um processo avaliativo, assistir a palestras e outros processos. Alguns autores da área explicam a necessidade de

se criar um espaço de discussão e orientação referente aos questionamentos e temores envolvidos na adoção. Crianças e adolescentes adotivos com problemas de adaptação familiar e social e com um histórico de vida, somado ao despreparo das famílias ou pretendentes que, muitas vezes, buscam na adoção a solução de carências e conflitos pessoais, com total desconhecimento das questões legais, dificultam a possibilidade do estabelecimento de um vínculo afetivo capaz de dar conta dessa nova relação que se origina com a adoção, garantindo, de forma plena, o direito à convivência familiar. (Ferreira, 2010, p. 110)

As escolhas das famílias que querem adotar se engendram na relação com a interferência do poder Judiciário nos processos de decisão, avaliação e preparação dos pretendentes (Oishi, 2013). Pretendentes que tentaram durante muitos anos ter um filho biológico colocam, muitas vezes, em um primeiro momento, a intenção de somente adotar bebês. No entanto, ao entrarem em contato com a informação de que pretendentes que desejam bebês permanecem mais tempo na fila de espera da adoção (as estatísticas dos Cadastros Nacionais mostram que o número de bebês para adoção é muito menor do que o de crianças mais velhas), mudam as informações sobre as características das crianças que desejam adotar: alguns pretendentes aumentam o limite de idade. No trabalho de preparação para adoção, os técnicos consideram e analisam a relação entre as escolhas das famílias pretendentes e as regras estabelecidas, como o tempo de espera. No estudo de Schmitt et al. (2020), por exemplo, os pretendentes que participavam de um GAA relataram que teriam preenchido os perfis das crianças a serem adotadas de maneira diferente se já estivessem participando do GAA antes de seu preenchimento.

Durante o processo de preparação, discutem-se noções de desenvolvimento da criança e do adolescente, com vistas a agir no mito de que as crianças adotadas viveriam uma adolescência necessariamente mais problemática do que os adolescentes não adotados (Ferreira, 2010). O determinismo na ideia de que ser adotado é causa de problemas é tema presente no trabalho das equipes que fazem essa preparação:

Schettini considera um fato universal os pais encontrarem dificuldades com a educação dos filhos, mas nas filiações por adoção, muitas vezes, tais dificuldades são percebidas de forma exagerada. Dificuldades inerentes ao desenvolvimento infantil são atribuídas à adoção. Para ilustrar a ideia desenvolvida por Schettini, trazemos o caso de Elisa, mãe de um adolescente de treze anos que procurou atendimento para o filho que não queria tomar banho quando chegava da escola ou do futebol (…) Acha que ele é assim porque está revoltado, pois é adotivo. (Veloso, 2015, p. 69)

Nessa citação, Veloso (2015) exemplifica uma situação que estava sendo compreendida da seguinte maneira: a recusa a uma ordem (tomar banho) seria decorrente, no ponto de vista da mãe, de uma revolta causada por ser adotado. Dessa forma, ser adotado justificaria de forma totalizadora os acontecimentos.

Autores e trabalhadores da área da adoção (Ferreira, 2010; Paiva, 2004) defendem a importância de um espaço para os pretendentes refletirem sobre a adoção antes de adotarem uma criança, considerando a possibilidade de prevenção de problemas posteriores. Os encontros preparatórios funcionam de maneira que, muitas vezes, pessoas que já adotaram participam narrando situações vividas (Schmitt et al., 2020). Durante o processo de nossa participação em reuniões de um GAA, uma família contou, preocupada, sobre o fato de seu filho adotivo ter começado a mentir e a pegar coisas de um colega. Ao mesmo tempo em que se visava romper com a relação de causa e consequência entre ser filho adotivo e agir de maneira inadequada, o relato dessas histórias em um grupo de preparação de pretendentes intensifica a ideia de que crianças e adolescentes mentem e pegam coisas dos outros por serem adotivos. Ao mesmo tempo, é expressão que exige o constante questionamento das estratégias criadas no processo de preparação e de seus efeitos.

Destacar determinadas cenas de crianças e adolescentes adotados para um grupo de pretendentes à adoção que, muitas vezes, ainda não preencheram suas fichas para o Cadastro Nacional de Adoção, gera inquietudes: a sensação de que essas famílias não estariam preparadas para agir caso seus filhos e filhas adotivos viessem a ter comportamentos semelhantes aos daquelas situações — tais como mentiras, furtos e mau desempenho escolar — e que essa preparação é possível. Na sustentação da necessidade de preparação, circulam concepções de família e de filhos ideais.

Essas famílias, desde o início, estão sendo avaliadas e orientadas por especialistas da saúde e do Judiciário. Nas conversas com os pretendentes à adoção, é comum haver a indicação da possibilidade de haver acompanhamento com especialistas, muitas vezes, com psicólogos. A produção dessa prática de preparação pode gerar empecilhos para que a família desenvolva de forma autônoma suas maneiras de viver e ser família, como se, no caso da adoção, tivéssemos de fato receitas a serem seguidas — receitas que têm estado presentes na literatura de “autoajuda familiar” (Sayão & Aquino, 2006) para todas as famílias.

Um dos efeitos dessa engrenagem em que a orientação ocorre é a sensação de que, com as leituras de textos e as participações em palestras e em cursos sobre adoção, finalmente, quando o filho chegar, as ações corretas serão conhecidas e possíveis. É como se o processo de preparação ritualizasse, nas famílias que adotam crianças e jovens, a concepção presente nas famílias biológica de que os filhos e as filhas são espelhos em que os pais se refletem.

Esse novo modelo de família alarga de forma intensa a responsabilidade parental em relação aos filhos. Estes últimos funcionam como um espelho em que os pais vêem refletidos os acertos e erros de suas concepções e práticas educativas — os quais costumam se fazer acompanhar de sentimentos de orgulho ou, ao contrário, de culpa. (…) Os pais tornam-se, assim, os responsáveis pelos êxitos e fracassos (escolares, profissionais) dos filhos, tomando para si a tarefa de instalá-los da melhor forma possível na sociedade. (Nogueira, 2005, pp. 160-161)

Ou seja, um caminho com percalços, um filho com mau desempenho escolar ou que desobedece traria a sensação de que haveria procedimentos que não foram seguidos — procedimentos, receitas e prescrições também presentes nos diagnósticos e na intensa medicalização de crianças e adolescentes na atualidade (Lemos et al., 2021). Assim, esses discursos de orientação podem, ao transmitir um saber visando colaborar com a educação dessas famílias, produzir culpa e arrependimento, tornando-se, então, discursos com os efeitos de dominação de que falávamos no início deste trabalho.

Considerações finais

Foucault (2010), em seu curso “Os anormais”, no Collège de France, proferido nos anos de 1974-1975, destaca um movimento da psiquiatria relacionado à concepção de prevenção. Trata-se do movimento psiquiátrico de tratar estados, hereditários, possíveis de se tornarem patológicos, que devem ser prevenidos. Ou seja, na concepção de prevenção, existe a ideia de um estado anterior que pode levar a um desvio do normal, a um desvio da regra:

A psiquiatria deixa então de ser uma técnica e um saber da doença, ou é só secundariamente que ela pode se tornar — e como que no limite — técnica e saber da doença (…). O que ela assume agora é o comportamento, são seus desvios, suas anomalias; ela toma sua referência num desenvolvimento normativo. (Foucault, 2010, p. 270)

O campo da psiquiatrização do anormal está intimamente relacionado à prevenção na medida em que, ao definir as regras do que é considerado normal, também se define como alcançá-lo: “A partir dessa medicalização do anormal, a partir dessa desconsideração do doentio e, portanto, do terapêutico, a psiquiatria vai poder se dar efetivamente uma função que será simplesmente uma função de proteção e de ordem” (Foucault, 2010, p. 277).

A prática cotidiana da psicologia de avaliação e de orientação às famílias sobre determinadas maneiras de agir com seus filhos é uma construção histórica. A função da psicologia em práticas de formação delineia o outro, como indica Rocha (2011), pelas carências:

é importante ter claro que oferta e demanda de trabalho se constroem juntas, o que significa que, quando nos chega um pedido, ele é efeito de um entre-nós educadores e psicólogos nas expectativas de papéis uns dos outros, nas relações estabelecidas. O sofrimento produzido nas situações que resistem à ordem, que escapam à rotina, que não cabem nas condições em que se realiza o ensino, articula a demanda de normalização para o psicólogo atuar (…). A ordem médico-assistencial imprimida no diagnóstico — olhar clínico compartilhado por educadores e psicólogos que funciona desde o primeiro dia de aula — delineia o outro pelas carências. (Rocha, 2011, p. 211)

Essa citação ressalta tanto a concepção de que as demandas educacionais são construídas sempre em relações, no caso, na relação entre psicologia e educação, quanto na função de normalização, em que o outro é definido pelas carências e faltas em relação a uma certa norma. Contornadas como faltas, elas são tomadas como equívocos e tratadas como acidentais, como aquilo que não deveria existir. O enfretamento desse mecanismo implica colocar em análise o jogo de forças em que as interpretações se constituem, situando-as como produções datadas de verdades (Machado, 2021b), e compreender o pedido e a oferta de orientações às famílias como questões que se criam no bojo de processos de normalização.

Dessa forma, destacamos como pontos principais neste trabalho: o cuidado exigido para se falar/escrever sobre determinadas situações que podem fortalecer estereótipos que buscamos combater com essas mesmas práticas e a constante necessidade de revisitar as concepções e os efeitos de nossas intervenções enquanto psicólogos.

Ao discutirmos a preparação dos pretendentes à adoção, associamos essa ação a uma prática de prevenção: prevenção de situações de devolução, prevenção de situações difíceis para a família adotiva e de obstáculos de vida para a criança e ao adolescente. Nessa discussão, reforçamos a existência de determinados estereótipos em relação às crianças e aos adolescentes adotados, no território mesmo em que se visa a um espaço comum de reflexão sobre o dispositivo da adoção. Em um dos encontros de preparação que participamos, surgiu a questão referente à indagação de crianças e adolescentes adotados sobre sua família biológica: uma mãe adotiva contou que seu filho perguntou muitas vezes sobre sua mãe biológica. Essa situação gerou efeitos intensos e diversos: havia a sensação de fracasso e traição; havia a ideia de que essa pergunta teria menos chance de ser feita se um bebê fosse adotado; havia socialização de questões que não se reduzem a uma produção contornada a uma individualidade; havia medo de que a existência de família biológica impedisse a vinculação com a família adotiva; havia busca de métodos para agir nessas situações etc. Entre esses tantos possíveis, ressaltamos a necessidade de fortalecer a compreensão da produção da concepção de família ideal — e, portanto, de família não ideal —, que pode estar contida em um gesto de adoção.

Transmitir e debater sobre a experiência da adoção é território complexo. Por isso, a necessidade de constante análise do percurso social em que essa proposta de preparação se constitui. A apresentação dos movimentos legais nas definições sobre a prática da adoção é uma forma de combater o domínio de uma construção que naturaliza a existência de crianças e adolescentes a serem adotados, nega a negligência do estado na construção dessas histórias e deposita, nos filhos adotados e nas famílias que adotam, a responsabilidade por um processo que não termine na chamada devolução.

Salientamos o trabalho de psicólogos que, muitas vezes, focam o olhar sobre acontecimentos anteriores, precoces, nas vidas dos indivíduos, deixando de analisar a constituição desses problemas no campo de relações em que a própria psicologia é também protagonista. A partir da análise do material da pesquisa, podemos afirmar que, embora a adoção não se configure, para as profissionais com as quais conversamos, como causa de problemas de comportamento ou aprendizagem, essa verdade se cria. Situações de rejeição e de abandono que acontecem na vida dessas crianças são frequentemente apontadas nas conversas como fatores importantes para compreender seu sofrimento e suas dificuldades. O desafio de nosso trabalho está justamente na maneira como significamos, compreendemos e relacionamos essas situações: se compreendemos e significamos o comportamento agressivo de um aluno como efeito de uma rejeição na infância contornada como uma experiência totalizada, dificilmente criaremos mudanças no cotidiano familiar e escolar em que esse comportamento se constitui.

Retornando à nossa posição inicial, inspirada na citação de Foucault: a dúvida sobre orientar ou não orientar não é tomada como problema neste artigo — muitas vezes, algumas orientações colaboram com as formas de inventar famílias. O problema está em quando essas orientações impedem a criação de diferentes formas de educar, quando trazem no seu íntimo um ideal de educação (inatingível) com efeitos de culpabilização e de normalização.

2A adoção simples unia o adotado aos pais adotivos por meio de escritura e averbação no registro de nascimento da criança, não excluindo do documento do adotado, portanto, as suas informações da família de origem (Oishi, 2013).

3A análise da Lei n.° 13.509 (2017) foi acrescentada para este artigo, pois o trabalho de mestrado foi defendido anteriormente à sua implementação.

4Os Grupos de Apoio à Adoção (GAA) realizam seus trabalhos de maneira voluntária, priorizando o direito ao convívio familiar, muitas vezes, agindo em parceria com fóruns (Schmitt et al., 2020). Dessa forma, os GAA (que podem também ser originados em centros de pesquisa e universidades) podem ou não ter um trabalho conjunto com os fóruns das cidades em que se estabelecem.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

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Recebido: 11 de Fevereiro de 2019; Aceito: 05 de Maio de 2022; Publicado: 25 de Agosto de 2022

Endereço para correspondência Adriana Marcondes Machado, Universidade de São Paulo Av. Professor Mello Moraes, 1721 Butantã, 05508-030 São Paulo, SP, Brasil.

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