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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.45 no.1 Porto Alegre  2022  Epub 17-Jul-2023

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2022.1.41780 

Outros Temas

Educadoras na educação infantil: intersecções do trabalho de educação-cuidado

Educators in Kindergartens: intersections between education and care work

Educadoras en los jardines de infancia: intersecciones del trabajo de educación-cuidado

Andrea Gabriela Ferrari1 

Andrea Gabriela Ferrari Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil; mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil. ferrari.ag@hotmail.com


http://orcid.org/0000-0002-4262-3033

Marcela Graef do Couto1 

Marcela Graef do Couto Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil. marcelagraef@gmail.com


http://orcid.org/0000-0002-9198-3000

Júlia Avila Kessler1 

Júlia Avila Kessler Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil. juliaakessler@hotmail.com


http://orcid.org/0000-0003-1239-1160

Milena da Rosa Silva1 

Milena da Rosa Silva Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil; mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil. milenarsilva@hotmail.com


http://orcid.org/0000-0003-1063-4149

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.


Resumo:

Este escrito é um desdobramento de um projeto de pesquisa-extensão desenvolvido pelo Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias (NEPIs) junto a berçários de escolas de educação infantil municipais e conveniadas de Porto Alegre. A partir dessa experiência, tomamos como questão o trabalho de educação-cuidado desenvolvido nas instituições de educação infantil e alguns atravessamentos de gênero, raça e classe que marcam essa profissão no Brasil. Para tanto, por meio de uma revisão narrativa de literatura, traçamos uma breve retomada histórica acerca da constituição da educação infantil nos contextos europeu e brasileiro e apresentamos trechos dos diários clínicos – materiais de registro adotados pelas pesquisadoras –extensionistas – que se articulam às questões discutidas. A partir desse processo de escrita, mostrou-se evidente a importância de considerar o trabalho das educadoras das escolas de educação infantil como uma confluência de aspectos históricos e sociais e como um panorama interseccional, permeado por atravessamentos de gênero, raça e classe, e por processos de desvalorização de diversas ordens.

Palavras-chave: educação infantil; trabalho; gênero

Abstract:

This article is an appendix to a research-extension project developed by the Nucleus of Studies in Psychoanalysis and Infancies with municipal nurseries from Porto Alegre. Based on this experience, we decided to investigate the education care work developed in kindergarten institutions and also how social markers such as gender, race and class can mark this profession in Brazil. For this purpose, we have done a brief historical summary of the constitution of the European and Brazilian kindergartens through a narrative revision of literature; furthermore, we have selected a few excerpts from clinicals diaries – registration materials adopted by the ones involved in the research-extension project – which relate with our investigation. Throughout that process, it has been shown the significance of considering the work done by nursery educators as a confluence of historical and social aspects and an intersectional panorama, permeated by gender, race, class and devaluation processes of diverse natures.

Keywords: kindergarten; work; gender

Resumen:

Este escrito es un despliegue de un proyecto de investigación-extensión desarrollado por el Núcleo de Estudios en Psicoanálisis y Infancias con guarderías del Município de Porto Alegre. A partir de esta experiencia, surge especial interés sobre el trabajo de cuidado-educación desarrollado en las instituciones de educación infantil y algunas intersecciones entre género, raza y clase que marcan esta profesión en Brasil. Por este motivo y a través de una revisión narrativa de literatura, presentamos una breve revisión histórica sobre el surgimiento de la educación infantil en los contextos europeo y brasileño y seleccionamos fragmentos de diarios clínicos – materiales de registro adoptados por las investigadoras-extensionistas – los cuales tienen relación con los asuntos discutidos. A partir de este proceso de redacción, se hace evidente la importancia de considerar el trabajo de las educadoras de guardería como una confluencia de aspectos históricos y sociales, así como también un panorama interseccional permeado por cruces de género, raza y clase y por procesos de desvalorización de diversos tipos.

Palabras clave: educación infantil; trabajo; género

Este escrito é um desdobramento do projeto “O impacto da Metodologia IRDI na prevenção de risco psíquico em crianças que frequentam a creche no seu primeiro ano e meio de vida”2 (Ferrari et al., 2013), desenvolvido pelo Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias (NEPIs) no contexto de suas investigações junto a berçários de escolas municipais e conveniadas de Porto Alegre. Constituímos um grupo de pesquisa-extensão do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e realizamos o projeto em questão desde 2014. Ao longo do tempo, contamos com a participação de diferentes pesquisadoras-extensionistas até que, em 2020 e 2021, o trabalho nas instituições foi interrompido devido à pandemia de coronavírus, enquanto as discussões coletivas seguiram acontecendo e sustentando produções como essa.

Por meio de um acompanhamento semanal, nosso trabalho consistia em brincar com os bebês e conversar com as educadoras (Ferrari et al., 2017), compondo um diálogo que requeria, necessariamente, uma escuta. Temos a psicanálise como referencial teórico para nossas intervenções e tomamos os Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), apontados pela pesquisa de Kupfer et al. (2010), como ferramentas de leitura do que observamos na relação educadora-bebê. Já como formas de registro e elaboração dessa experiência, operamos por meio da escrita de diários clínicos (Silva et al., no prelo) e de momentos de discussão semanal com o grupo.

Em nossos diários clínicos, percebemos serem preponderantes as anotações focadas no acompanhamento dos bebês, principalmente daqueles que preocupavam as pesquisadoras de alguma forma; enquanto isso, as anotações sobre as educadoras apareciam, na maioria das vezes, de forma secundária. Contudo, pelo menos dois aspectos indicaram-nos a necessidade de pensar certos pontos referentes ao trabalho de educação-cuidado desempenhado nos berçários. Em primeiro lugar, a escuta de relatos das educadoras, compartilhados espontaneamente conosco, a respeito de sua vida pessoal e profissional, das particularidades do seu convívio com crianças pequenas e das relações que se estabelecem com os bebês e suas famílias. E, em segundo lugar, alguns episódios envolvendo questões administrativas das escolas – tais como as recorrentes substituições das professoras da educação infantil – juntamente das impressões evocadas por essas dinâmicas.

Cabe ressaltar que desenvolvemos essas considerações em um momento posterior ao das visitas às creches, a partir da necessidade de aprofundar as indagações construídas coletivamente sobre pontos dessa experiência que, embora tenham mobilizado afetos e sido pontuados nos momentos de discussão com o grupo, não estiveram tão presentes no material de registro formal adotado pelas pesquisadoras-extensionistas do projeto. Em consonância com tais aspectos, nas discussões do NEPIs, temos destacado a importância de trabalhar a partir de uma psicanálise implicada (Rosa, 2018) e de localizar nossos saberes (Haraway, 1995) e “objetos de estudo”. Para tal, temos buscado orientar nossa prática e pesquisa considerando atravessamentos como gênero, raça e classe que, em nossa sociedade, marcam os sujeitos de formas diferentes.

Portanto, nesse artigo, buscaremos nos ater às experiências de pesquisa-extensão desenvolvidas no decorrer do ano de 2019, tendo em vista a participação de uma de nós no trabalho realizado nas escolas nesse período. Para fins de contextualização, alguns dados parecem importantes. Em 2019, contamos com a participação de oito pesquisadoras-extensionistas (sete mulheres e um homem, todos brancos) que, em duplas, acompanharam turmas de berçário 1 (B1) e 2 (B2) de duas escolas conveniadas à Prefeitura de Porto Alegre, sendo que cada turma era acompanhada por uma dupla. Uma das escolas localiza-se em uma região mais central da cidade e recebe crianças de 0 a 15 anos. Já a outra, localiza-se em uma região afastada da zona central e atende apenas a educação infantil (crianças de 0 a seis anos). Em ambas as instituições, as turmas de berçário são compostas, em média, por 10 bebês e costumam ficar sob a responsabilidade de uma dupla de professoras ou estudantes em formação.

Devido a decisões administrativas de uma das escolas, houve uma troca de educadoras em uma turma naquele ano e, por isso, consideraremos o total de nove professoras3 para fins de reflexão. A fim de manter suas identidades em sigilo, nesse artigo, iremos chamá-las de Alice, Ana, Denise, Eduarda, Maria, Marina, Paula, Sofia e Vitória. Dentre essas educadoras – todas mulheres – percebemos que seis eram mães e donas de casa, seis eram não brancas e quatro eram estudantes. Trazemos esses dados, heterodeterminados a partir da escuta e do convívio com essas profissionais, não no intuito de retratar as singularidades de cada uma delas, mas porque acreditamos que podem representar indícios da forma como a educação infantil brasileira se estrutura.

Assim, buscamos tomar como questão de pesquisa o trabalho de educação-cuidado desenvolvido nas instituições de educação infantil e as particularidades que essa profissão apresenta no Brasil. Nesse empenho, acreditamos que seria fundamental traçar, inicialmente, uma breve retomada histórica sobre a constituição da educação infantil e da profissão de educadora nesse âmbito, com o intuito de analisar em que medida a configuração do trabalho que se apresenta hoje se relaciona com aspectos do seu passado. Para isso, realizamos uma revisão narrativa de literatura (Rother, 2007) em busca de títulos que tratam do surgimento da educação infantil, focando no percurso histórico do estabelecimento das creches e no trabalho desenvolvido nesses espaços.

Delineada essa contextualização, exploramos os diários clínicos dos acompanhamentos realizados nas escolas. E, com o auxílio de vinhetas retiradas desse material, abordamos alguns temas que nos parecem importantes tensionar, relacionados ao trabalho de educação-cuidado desenvolvido nessas instituições, considerando, principalmente, como ele é atravessado por questões de gênero, raça e classe.

História eurocentrada da educação infantil

Segundo Sacristán (2005), datam da Roma Antiga registros da existência de uma figura referida como preceptora, cuja função situava-se entre o serviço doméstico e a atividade profissional e dizia respeito à missão de cuidar, ensinar, instruir, relacionar-se afetivamente e formar o caráter das crianças. Dessa forma, tal ofício poderia ser apontado como um embrião da docência antes mesmo da existência da escola enquanto instituição. Nóvoa (1995), todavia, propõe que a gênese da profissão de professor está no interior de algumas congregações religiosas (jesuítas especialmente), as quais, como dito por Louro (1997), contavam com a presença hegemônica de homens – pastores, padres ou irmãos. Nesse contexto, “o trabalho de ensinar se confunde com a ‘missão’ de catequizar, mediada pela ‘vocação’ revelada pelos desígnios divinos” (Silva, 2006, p. 127) e tal ideia de vocação, como veremos, ecoa até hoje na profissão docente, principalmente, tratando-se de profissionais mulheres.

O cenário protagonizado pela Igreja veio a se modificar a partir do final do século XVIII com a estruturação do capitalismo e com a expansão dos processos de urbanização e de industrialização (Kuhlmann, 2001; Saviani, 2000). Nesse período, conforme Nóvoa (1991), a educação passou a ser objeto de intervenção estatal e, como acrescentam Kuhlmann (2001) e Saviani (2000), tornou-se a forma hegemônica de socialização das futuras gerações. Já a partir do final do século XIX, essa configuração foi afetada por um processo de feminização – tornou-se um lócus de trabalho quase exclusivamente feminino – e, concomitantemente, sofreu um processo econômico e profissional de precarização, fragmentação, desvalorização e desqualificação (Silva, 2006). Não por acaso, data do mesmo período o surgimento das instituições de educação infantil. Segundo Silva (2006), essa etapa do ensino tem sido composta basicamente por educadoras mulheres desde sua origem e não sofreu o mesmo processo de feminização observado nas demais categorias do magistério, haja vista que sempre foi uma categoria profissional marcadamente sexualizada.

Nesse contexto ocidental europeu, a primeira creche foi criada na França em 1844 (Kuhlmann, 2000). Conforme aponta Faria (2002), a história dessas instituições se confunde com a história da mulher operária e da socialização das crianças das classes populares em função das necessidades de uma sociedade dividida em classes. As creches surgiram, assim, para viabilizar uma maior inserção das mulheres na economia industrial capitalista, servindo, principalmente, como um lugar para que operárias mães deixassem seus filhos durante a jornada de trabalho; para prestar atendimento aos filhos das mães consideradas incompetentes, tidas assim por cuidarem dos seus filhos de uma maneira basicamente inconveniente aos moldes capitalistas e urbanos dependentes da força de trabalho futura; e, por fim, para institucionalizar a infância – principalmente a pobre – nesse sistema (Adorni, 2005; Cataldi, 1992; Silva, 2006).

Esses espaços, portanto, não foram originalmente idealizados para atender às necessidades básicas das crianças (Cataldi, 1992). Segundo Mariotto (2003), prestavam um atendimento de caráter basicamente custodial e assistencial. Visavam assumir um papel de extensão do lar e/ou de “substituição” da família em uma relação de favor para com elas (Silva, 2006); de maneira que, como pontua Haddad (1991), promoviam uma ideologia familiar ao mesmo tempo em que salientavam a incompetência daquelas que se utilizavam desses espaços. Para tanto, as creches foram inicialmente conduzidas por mulheres organizadas em associações sociais, religiosas ou filantrópicas e orientadas por preceitos da caridade religiosa (principalmente cristã) e da filantropia (Adorni, 2005; Silva, 2006).

História da educação infantil no Brasil

Provenientes das experiências europeias, as creches que foram sendo estabelecidas no Brasil também se caracterizavam pela prestação de um serviço de custódia e assistência destinado, em especial, aos filhos de mulheres trabalhadoras oriundas das classes populares (Silva & Peixoto, 2015). De acordo com Kuhlmann (2000), as primeiras instituições em solo brasileiro foram criadas no período republicano, embora a ideia da creche já circulasse pelo país desde o período imperial. Como indicadores disso, destacamos a revista A Mãi de Familia, destinada às senhoras da sociedade carioca do fim do século XIX, e o processo de criação da Associação Protetora da Infância Desamparada, uma organização que buscava acolher as crianças que viviam na rua – especialmente as negras não escravizadas nascidas após a Lei n. 2.040 (1871), conhecida como Lei do Ventre Livre (Kuhlmann, 2000; Batista & Rocha, 2018).

Essas crianças – muitas delas filhas de pais que permaneciam sendo escravizados – dizem de uma nação constituída por meio de violentos processos de colonização e escravização de povos não brancos, processos esses que seguem refletindo significativamente nos modos como as crianças pequenas são cuidadas em nosso país. A respeito desse contexto, Segato (2006) assinala a necessidade de pensar os processos de maternidade transferida, indicados por Costa (2002), os quais se mostram “presentes na vida social desde os primórdios coloniais” (p. 305) e que, inicialmente, davam-se através da oferta e da procura dos serviços de amas de leite. De acordo com Sandre-Pereira (2003), a prática de transferência do aleitamento dos bebês foi trazida de Portugal para o Brasil durante a colonização e, apesar de ser originalmente adotada pelas classes altas da época, passou a ser também uma demanda da classe média.

Assim, coube às escravizadas negras (muitas delas mães daquelas crianças “libertas” que vagavam pelas ruas) o serviço de amas de leite de maneira tão recorrente que a figura da “mãe preta” passou a ser um estereótipo presente na literatura brasileira (Sandre-Pereira, 2003). Ao mesmo tempo, Segato (2006) indica que, devido à notoriedade dos discursos higienistas do século XX, as amas de leite brancas passaram a ser preferidas em relação às negras e que, com o tempo, os serviços prestados por essas mulheres foram se transformando e “restringindo-se lentamente aos de amas-secas ou babás” (p. 3). A autora ressalta, ainda, que “o racismo e a misoginia, no Brasil, estão entrelaçados num gesto psíquico só” (Segato, 2006, p. 15).

Sobre o racismo no Brasil, Almeida (2018) aponta que ele sempre se apresentou como uma parte da estrutura social brasileira, e, desde a implantação da república, os projetos nacionais caminham no sentido de institucionalizá-lo e torna-lo parte do imaginário social. Ainda segundo o autor, o racismo molda o inconsciente e constitui subjetividades, pois perpassa a vida “‘normal’, os afetos e as ‘verdades’” (Almeida, 2018, p. 50) de forma inexorável, existindo sem depender de quaisquer ações conscientes. Essas colocações parecem estabelecer hipóteses para pensar como se articulam as práticas de cuidado das crianças, as pessoas que as desempenham em nosso país e os motivos pelos quais essa profissão é tão desvalorizada em nossa sociedade.

Adorni (2005) acrescenta que as instituições de educação infantil, por muito tempo, tomaram como modelo de funcionamento os padrões de família e de maternidade propostos por especialistas – médicos-higienistas, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, pedagogos, entre outros. Paralelamente, Kuhlmann (2000) indica que a puericultura foi um saber médico-pediátrico que passou a fazer parte do currículo de escolas normais, as quais formavam professoras e educavam mulheres, preparando-as para se tornaram “mães-modelo”. Ao buscar “ensinar as mães a serem mães” (Silva, 2006, p. 83), a puericultura teve importante papel na institucionalização da maternidade e contribuiu com o caráter compensatório que foi assumido pelas instituições de educação infantil em relação à família (Silva, 2006), além de, segundo Kuhlmann (2000), ter sido um saber que adotou pressupostos eugênicos e racistas em prol do “revigoramento da raça” (p. 14).

Já no final do século XX, a educação brasileira passou por intensas transformações (Kuhlmann, 2000). Essas, iniciadas ainda nos anos 1960, com o despertar de movimentos populares – a destacar, o movimento de luta por creches – reivindicavam o fornecimento estatal e gratuito de serviços sociais urbanos básicos (Mariotto, 2003). A organização política e sindical de mulheres, das próprias trabalhadoras da educação e de outros grupos sociais convergia na defesa de um caráter educacional para as creches, de um “projeto popular de educação pública, estatal, gratuita e de qualidade para todos” (Silva, 2006, p. 138) e da existência desses espaços não mais como um “mal necessário” (p. 85), mas sim como um direito das mães trabalhadoras e das próprias crianças.

Nesse contexto, em 1988, foi promulgada a nova Constituição Federal (2020), que determinou que a educação infantil passaria a ser direito da criança e dever do Estado (Silva & Peixoto, 2015). Assim, as creches e pré-escolas – que até esse momento permaneciam, em sua maioria, vinculadas exclusivamente aos órgãos de assistência social do Estado (Silva, 2006) – foram incluídas no sistema escolar e passaram a ser referência para a educação de crianças de 0 a seis anos (Adorni, 2005). Já em 1996, como indicam Ferreira e Pereira (2012), com a implantação da Lei de Diretrizes e Bases Educacionais (LDB), a creche, juntamente da pré-escola, passou a constituir a primeira etapa da educação básica. Tal mudança, segundo Mariotto (2003), representou um importante marco de transição do entendimento da creche enquanto um espaço apenas assistencial para o reconhecimento de seu caráter educativo e pedagógico. Além disso, a LDB (1996) estipulou que o profissional adequado para a atuação junto às crianças é o professor (Ferreira, 2012), o que, de acordo com Silva (2006), estabeleceu novas exigências de formação para sua atuação e deu início a um processo de profissionalização das trabalhadoras da educação infantil. Afinal, conforme Silva e Peixoto (2015), antes da promulgação da LDB (1996), praticamente inexistiam critérios para a contratação das profissionais da educação infantil, o que, muitas vezes, acabava sendo usado como justificativa para a baixa remuneração dessas profissionais.

Intersecções do trabalho de educação-cuidado

Delineado o contexto histórico da educação infantil no Brasil, reafirma-se a necessidade de explorarmos a estruturação da docência nacional e se apresentam mais elementos para pensarmos a realidade encontrada nas turmas de berçário acompanhadas pelo projeto em 2019. Acreditamos que a composição apresentada pela equipe de educadoras envolvidas com a pesquisa em 2019, em articulação com o passado dessa profissão e do cuidado das crianças em nosso país, demonstra a necessidade de pensarmos esse trabalho como indissociável de questões de gênero, raça e classe. Portanto, consideramos imprescindível tomar essa discussão a partir da leitura de Akotirene (2019) a respeito da existência de uma “inseparabilidade estrutural” (p. 14) entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado nas sociedades ocidentais.

O cisheteropatriarcado é um “sistema sociopolítico sustentado pela supremacia do gênero masculino, da heterosexualidade como norma e da cisnorma sobre o resto dos sexos, gêneros e identidades” (Gallego, 2020, p. 9, tradução nossa). Assim, esse sistema, além de estar totalmente vinculado à sexualização da profissão na educação infantil – como apontamos em nossa retomada histórica – também reflete a naturalização da cisgeneridade como característica comum às mulheres educadoras. Acreditamos que pontuar esse fato é importante pois, por mais que não objetivemos aprofundá-lo, ele perpassa toda nossa escrita.

Posto isso, em 2018, segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica (Todos Pela Educação e Editora Moderna, 2019), trabalharam 2.226.423 professoras e professores na educação básica nacional, sendo que cerca de 80% desses profissionais eram mulheres. Tal porcentagem ganha ainda mais importância ao ser detalhada, pois na educação infantil, 97% eram mulheres; no ensino fundamental, 89% nos anos iniciais e 68% nos anos finais; e, no ensino médio, 59% (Todos Pela Educação e Editora Moderna, 2019). Ou seja, quanto mais elementar a etapa de ensino, mais significativa a presença feminina na composição do corpo docente, o que demonstra a manutenção dessa configuração – inclusive nas escolas por nós acompanhadas.

Para além desse fato, percebemos, nesses locais, a maternidade como um atravessamento recorrente para as educadoras, posto que, das nove profissionais consideradas, as seis que eram mães haviam matriculado seus filhos na escola em que trabalhavam. Isso permitia o convívio familiar dentro do ambiente profissional e gerava diversas questões a esse respeito, visto que essas mulheres eram mães e, ao mesmo tempo, colegas de trabalho daquelas que acompanhavam seus filhos. Assim, nesses casos, era comum que houvesse uma sobreposição das relações familiares com as profissionais e que os discursos sobre maternidade se mostrassem ainda mais presentes na educação infantil. Para ilustrar tal questão, selecionamos algumas vinhetas de nosso material de registro, os diários clínicos redigidos pelas pesquisadoras:

Pedro estava doentinho, com febre (…). Lembrei-me do que comentamos em reunião, sobre a mãe dele ser educadora da escola, e talvez, por isso, as educadoras do B1 não se ‘preocupem’ muito com ele. (…) A mãe dele, inclusive, foi na sala do B1 duas vezes durante a manhã, uma para ver como ele estava e outra para amamentá-lo no peito, na hora do almoço. (Diário clínico Kellen)

Maria uma hora falou ‘eu não sei o que acontece que ela é grudada em mim, já pensei várias coisas’, eu pergunto no que ela já pensou. Maria diz que pode ser o cheiro do leite, pois ela ainda amamenta seu filho, ‘porque eu não sou parecida com a mãe dela, não sei o que que é’. (Diário clínico Kellen)

Depois, Ana falou do seu mal estar e ciúme quando uma educadora da sua filha, que está no jardim, barrou a menina de dizer ‘mãe’ para ela, pois ali na escola Ana é educadora. (Diário clínico Dóris)

Neste momento, as educadoras falaram que Henrique foi desligado da escola porque a mãe dele foi demitida e era professora da escola, então decidiu tirá-lo dali. As professoras falam que ficaram chateadas com o desligamento do bebê, colocaram que sentem falta dele. (Diário clínico Elisa)

A partir de tais relatos, no intuito de pensar intersecções entre as práticas de maternagem e a educação infantil, utilizaremos os apontamentos de Fraser (2020) a respeito do modo como as sociedades capitalistas separam o trabalho em duas categorias: de reprodução social e de produção econômica. Segundo a autora, o primeiro concerne a atividades de “prover, cuidar e interagir” (Fraser, 2020, p. 264), envolve a socialização das crianças, a manutenção de lares e a sustentação de sentidos compartilhados. Tais processos têm sido historicamente representados como trabalho das mulheres e, apesar de serem indispensáveis para a sociedade, geralmente não são remunerados com dinheiro, mas sim na “moeda do amor e da virtude” (Fraser, 2020, p. 265). Nesse sentido, Fraser (2020) assinala, ainda, que a existência do trabalho remunerado – e, portanto, da produção econômica – só é possível devido às atividades sociorreprodutivas, ainda que a economia capitalista não lhes confira qualquer valor monetizado e as trate como se custassem nada.

Tais marcas do trabalho considerado de reprodução social parecem ser compartilhadas com o trabalho doméstico, que é caracterizado por ser desempenhado majoritariamente por mulheres; pela rotina diária; pelo acúmulo de funções; pela inseparabilidade entre público e privado nas atividades; por não exigir preparo prévio ou qualquer qualificação formal; por, naturalmente, incluir o cuidado de crianças; e por ser, muitas vezes, desempenhado de forma profissional por mulheres pobres, geralmente com poucos anos de escolarização (Silva, 2006; Silva & Peixoto, 2015) – e, no Brasil, majoritariamente não brancas. Tais aspectos, de uma forma ou de outra, parecem caracterizar também o trabalho desenvolvido nas creches e evidenciam um ponto em comum entre os trabalhos de reprodução social, domésticos e a docência na educação infantil: a preponderância da mão de obra feminina e, conforme destacaremos, negra.

Essas noções – culturalmente construídas e incomumente relativizadas – parecem vincular, majoritariamente, os sujeitos mulheres às práticas de reprodução social, e fornecer sustentação para o pressuposto de que, sendo mulheres, as profissionais da educação infantil precisariam apenas transpor para a creche as atividades que já realizariam em suas casas. Assim, não seria necessária formação específica nem aprofundada para exercer a profissão docente na educação infantil (Silva & Peixoto, 2015), uma vez que bastaria ser uma mulher “de boa vontade” (Silva, 2006, p. 86) e apenas fazer “da escola um prolongamento do lar” (Dhein & Pino, 2010, p. 3) para desempenhar essa ocupação. Em suma, tal concepção acaba por desqualificar e desvalorizar esse trabalho, pois é como se qualquer mulher pudesse assumir o cargo de professora da educação infantil (Ferreira, 2012; Ferreira & Guedes, 2020).

Em nossa experiência, essa realidade se manifestava no fato de que algumas educadoras foram inicialmente contratadas para trabalharem em outros cargos das escolas e depois foram realocadas para educação infantil com a principal justificativa de que tinham “jeito” com as crianças. Além disso, também presenciamos várias trocas de educadoras entre turmas, realizadas pela coordenação das escolas, sem que houvesse motivações pedagógicas, como se todas pudessem atuar indiscriminadamente nas turmas. A fim de exemplificar, trouxemos mais alguns trechos retirados dos nossos diários clínicos:

Maria (…) disse que fez o estágio dela na escola e continuou (…) como voluntária. ‘Aí acho que viram meu interesse, boa vontade, e me contrataram’. (Diário clínico Kellen)

(…) vamos conversando também com Paula. Ela conta que começou a trabalhar como educadora por incentivo de alguém da escola (não lembro quem), pois ela trabalhava com serviços gerais e as pessoas falavam que ela tinha jeito com criança. (Diário clínico Elisa)

Descobrimos, nesse dia, que houve (de novo) um remanejo das professoras, sendo que a Eduarda foi transferida para o B1 e a educadora do B1, Vitória, passou para o B2. Tentamos falar um pouco com a Eduarda sobre isso quando a encontramos, mas ela respondia a tudo (…) como quem está descontente, mas não pode reclamar da situação. Depois a Antônia [pesquisadora-extensionista] conversou melhor com a Alice sobre isso e o pouco que pude ouvir sobre o assunto foi algo como ‘foram ordens da direção’. (Diário clínico Marcela)

Marina está no B1 faz uma semana e não tinha experiência como educadora, somente ‘como mãe’, está gostando da experiência. (Diário clínico Elisa)

A partir desses fragmentos, considerando todas as questões expostas até o momento, acreditamos que o trabalho de educação-cuidado de crianças pequenas é influenciado pelo que Arce (2001) denomina de “mito da mãe/mulher como educadora nata” (p. 174), bem como pelos marcadores sociais que atravessam as vidas dessas profissionais e, conforme acrescenta Diniz (1998), por suas concepções do que é pedagógico. As práticas educativo-pedagógicas, entretanto, sempre foram mais valorizadas que as práticas de cuidado e raramente são reconhecidas como integradas no cotidiano das creches (Batista & Rocha, 2018).

Esse cenário, então, parece apontar mais um motivo pelo qual o trabalho das docentes da educação infantil tende a não apresentar a mesma legitimidade que a alcançada pelas trabalhadoras das séries superiores (Batista & Rocha, 2018; Ferreira & Guedes, 2020), visto que as práticas educativo-pedagógicas costumam estar mais atreladas ao trabalho destas do que daquelas. Nessa disparidade, houve algum início de avanço apenas a partir dos anos 1990, quando os aspectos de educação e de cuidado passaram a ser enfatizados como inseparáveis no âmbito da educação infantil (Campos, 1994; Rosemberg & Campos, 1994). Alguns recortes dos diários clínicos parecem ilustrar essa discussão:

Isto abriu para que a Maria, do B1, falasse da importância de dar colo aos bebês que antes não sabia se podia, pois ouviu em uma formação que não era pedagógico. (Diário clínico Dóris)

Mais tarde, ela [Maria] falava para a colega: ‘não dá pra dar colo sempre pro Pedro não. Na minha carteira diz assistente de educação infantil, não babá’. (Diário clínico Paola)

Apesar desses recortes de gênero terem aparecido de forma praticamente unânime em nossa revisão de literatura – tal como indicações de questões de classe –, as relações étnico raciais ainda parecem ser pouco abordadas pelos estudos acerca da temática da educação-cuidado. Assim, tendo em mente a orientação de Schucman (2012) de que “a raça, como categoria sociológica, é fundamental para a compreensão das relações sociais cotidianas” (p. 13) e o que Segato (2006) indica acerca do fato do passado escravocrata de nosso país ainda produzir reflexos no modo como se dá o cuidado das crianças brasileiras e como o valorizamos, acreditamos que a raça e o racismo são importantes atravessamentos do trabalho de educação-cuidado no Brasil.

Em nossa experiência prática, a presença de educadoras negras destacou-se por sua sobressalência, visto que, em Porto Alegre – cidade sede de nossa pesquisa-extensão –, cerca de 20% dos habitantes se autodeclaram negros(as) (Prefeitura de Porto Alegre e Secretaria Municipal de Saúde, 2017). Das nove educadoras acompanhadas pelo projeto, cinco foram consideradas por nós como mulheres negras, três como brancas e uma como parda. O uso da denominação “parda” parece articular-se com o entendimento de Schucman (2012) a respeito das colocações de Miles (1996) sobre a racialização como processo simbólico de categorização social a partir de traços fenotípicos de distintividade racial. Ademais, pelo fato de sermos todas pesquisadoras-extensionistas brancas, reconhecemos a branquitude como um atravessamento de nossa pesquisa, considerando o indicado por Frankenberg (2004) sobre como essa posição caracteriza “um ‘ponto de vista’, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros” (p. 312).

Acreditamos, portanto, que o trabalho das educadoras e a desvalorização a ele atribuída devam ser compreendidos como práticas atravessadas por questões subjetivas, sociais e históricas. Uma das repercussões desse cenário no cotidiano das escolas parece ser o que Diniz (1998) chama de “discurso da queixa”, o qual, segundo ela, vem sendo uma marca das mulheres-professoras, particularmente, das que atuam nas séries iniciais. Esse discurso demonstraria que a relação delas com o trabalho é bastante complexa e insatisfeita (Diniz, 1998) e, articulando com o que indica Kilomba (2019), as queixas dessas mulheres, muitas vezes, não são escutadas nem encontram um espaço para serem articuladas, pois as estruturas de opressão não permitem. Em nossos diários clínicos, entendemos que essas questões se mostram presentes nos seguintes trechos:

Percebi, pela conversa dela [Maria] com Ana, que ela estava bastante incomodada com isso, dizendo que é sempre no berçário que deixam com só uma educadora quando alguma falta. No dia, teriam faltado 4 professoras na escola. (Diário clínico Kellen)

A educadora coloca o quanto o trabalho é cansativo e o quanto envolve emocionalmente. Ela fala que não se desliga emocionalmente do berçário e dos bebês quando sai dali, sonhando com os bebês e pensando neles em outros momentos, preocupando-se se eles estão doentes ou faltando. Em casa, ela diz que as preocupações seguem, pois tem dois (ou três) filhos que brigam muito entre si e demandam muito da atenção dela. Ela fala que dorme cerca de 4 horas por dia, tendo ansiedade e insônia, acordando diversas vezes durante a noite por pesadelos, até que em algum momento, não dorme mais. (Diário clínico Elisa)

Começamos falando sobre como ela [Paula] está se sentindo em relação ao trabalho. Ela falou que está ‘bem louca’, pois os bebês estão bastante agitados ultimamente, mordendo e brigando com frequência. Ela atribui que isso acontece pelas condições das educadoras e do ambiente, remete à dificuldade e à sobrecarga que sente por conta das trocas de educadoras, que se dão constantemente. Ela acaba ficando como referência principal para os bebês, para a coordenação, para as outras educadoras e para os pais, o que gera uma angústia muito grande, uma sobrecarga, que resulta em não dar conta do trabalho da forma como é previsto pela coordenação ou tendo em vista o que ela coloca de metas ou exigências em relação ao próprio trabalho. (Diário clínico Elisa)

Por fim, consideramos interessante ao campo da educação infantil e aos futuros estudos nessa área apontar algumas particularidades que observamos no vínculo estabelecido entre as educadoras e os bebês. Geralmente, essas profissionais trabalham com seus alunos durante um ano, o que proporciona um tempo de convívio e cuidado significativo em que era comum que elas acompanhassem momentos muito importantes do desenvolvimento dos bebês e fossem, até mesmo, chamadas de mãe por alguns deles. Além disso, vale mencionar que também tomamos conhecimento de casos em que as educadoras tinham contato com os bebês fora da escola, pois, às vezes, eram vizinhas ou amigas da família e, até mesmo, levavam-nos para a creche ou cuidavam deles nos finais de semana. Acerca desses pontos, percebemos serem frequentes anotações relacionadas ao exposto, dentre elas:

[Educadora] me contou que é tia dele, quase mãe. Eles moram juntos, e João inclusive dorme com ela. Aponta que deve ser difícil para ele, porque na escola ela não pode ser tia. Eu pergunto como é para ela, ela diz que é tranquilo, mas para ele deve ser ruim. (Diário clínico Kellen)

Também entra em questão o fato dos bebês chamarem elas de mãe. Maria diz que sempre fala que ela não é mãe, mas sim professora. Diz fazer isso por se colocar no lugar das mães, que é ruim ver seu filho chamando outra mulher de mãe. (…) Já Sofia, diz sempre deixar eles chamarem de mãe, por achar que elas são meio mães deles. (Diário clínico Kellen)

A professora falava que morava na casa aos fundos da do aluno e ouvia a criança apanhar, além disso, falava que de madrugada a mãe saia na rua e deixava a criança sozinha (o pai não está presente). (Diário clínico Jean)

Em suma, tais situações se mostram como mais algumas das nuances do tema educação-cuidado no Brasil e indicam o quão protagonistas essas mulheres são no cuidado das crianças, mesmo fora do âmbito profissional.

Considerações finais

Esse escrito foi construído a partir do desejo de compartilhar alguns dos desdobramentos do projeto IRDI na Creche (Ferrari et al., 2013) e foi uma forma de iniciar um processo de elaboração do incômodo evocado no encontro das pesquisadoras-extensionistas com o cotidiano das escolas. Diante de nossas vivências e do percurso que percorremos nessa pesquisa, nos parece evidente a importância de considerar o trabalho das educadoras das creches como um panorama interseccional, resultante da confluência de aspectos históricos e sociais que repercutem na configuração atual da educação infantil e que refletem, ainda, o modo como essas instituições foram formalmente constituídas.

A partir de nossa retomada histórica, verificamos que o trabalho de cuidado das crianças é uma atividade milenar e que é considerado uma das práticas de reprodução social das quais dependem a economia e a manutenção de sociedades capitalistas. Entretanto, mesmo sendo muito importante, e mesmo considerando os avanços normativos legais nesse âmbito, essa profissão ainda é bastante desvalorizada, o que se faz evidente em muitos aspectos contemporaneamente, especialmente, econômicos e sociais. Além disso, acreditamos que é imprescindível considerar como essa desvalorização se relaciona com os atravessamentos de gênero, de raça e de classe, levando em conta que vivemos em uma sociedade cissexista, racista, classista e desigual.

Assim, considerando as colocações feitas, entendemos que ainda há muito a avançar nas reflexões acerca do trabalho de educação-cuidado oferecido às crianças pelas profissionais da educação infantil. Apesar de haver um crescimento no número de estudos referentes à educação infantil, segundo Duque & Moreira (2020), a temática do educar-cuidar ainda é pouco abordada. Além disso, nas leituras que basearam a construção desse artigo, nos deparamos com uma escassez de produções acerca das questões subjetivas dessas profissionais. Isso tudo parece condizer com o fato de que, em nosso material de registro, as anotações acerca da evolução dos bebês superavam aquelas referentes aos diálogos com as educadoras. Dessa forma, entendemos que acabávamos reproduzindo, em alguma medida, a invisibilização e a desvalorização que essas mulheres costumam receber da sociedade, o que suspeitamos ter relação também com o lugar de escuta branco e acadêmico ocupado pelas pesquisadoras-extensionistas envolvidas com o projeto.

Esperamos, apesar disso, ter conseguido contemplar minimamente algumas das facetas do trabalho nos berçários e de como ele se articula com temas como gênero, raça e classe. Acreditamos, enfim, que os estudos contemporâneos em educação infantil devem ser construídos em diálogo com marcadores sociais importantes para o nosso tempo, como os que mencionamos, visto que se relacionam diretamente com distintas desigualdades brasileiras e se apresentam como atravessamentos importantes no cuidado das crianças pequenas. Finalmente, destacamos que esse escrito não se propôs a trazer respostas definitivas que encerassem a discussão, pelo contrário; nosso intuito é indicar pontos que julgamos capazes de ampliar os debates e as reflexões a respeito das intersecções do trabalho desempenhado pelas professoras da educação infantil.

2Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, CAAE número 22411213.9.0000.5334.

3Todas as educadoras participantes da pesquisa assinaram um Termo de Compromisso Livre e Esclarecido, bem como os familiares responsáveis pelos bebês.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer às pesquisadoras-extensionistas Antônia Madeira Rodrigues, Dorisnei Jornada da Rosa, Elisa Scolmeister Consiglio, Jean Jacques Scherer Peres, Kellen Evaldt Arrosi, Luísa Barros Torres, Marcela Graef do Couto e Paola Pujol Manzoli envolvidas com o projeto no ano de 2019, visto que essa produção foi possível devido as suas contribuições.

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Recebido: 17 de Setembro de 2021; Aceito: 11 de Julho de 2022; Publicado: 16 de Setembro de 2022

Endereço para correspondência Andrea Gabriela Ferrari; Milena da Rosa Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 234 Santa Cecília, 90035-003 Porto Alegre, RS, Brasil

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