SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número1PSICOLOGÍA DE LA EDUCACIÓN: TENDENCIAS DE LAS INVESTIGACIONES EN ANPED NORDESTE (2016/2022)Producción de GT 20 Psicología de la Educación de la ANPEd: expresión de la ciencia, educación escolar y sociedad contemporânea índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação

versión impresa ISSN 0101-465Xversión On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.46 no.1 Porto Alegre ene./dic 2023  Epub 10-Nov-2023

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2023.1.43680 

Outros Temas

A pandemia e a crise estrutural do capital: implicações no trabalho dos professores

The pandemic and the structural crisis of capital: implications for teachers’ work

La pandemia y la crisis estructural del capital: implicaciones para el trabajo docente

Gislei José Scapin1 

Gislei José Scapin

Doutorando em Educação (UFSM), licenciando e mestre em Educação Física (UFSM), especialista em Educação Física Escolar (UFSM), membro-pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Educação e Políticas Públicas (KAIRÓS/UFSM) e professor de Educação Física pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Panambi (SMEC/Panambi-RS).


http://orcid.org/0000-0002-6996-2158

Liliana Soares Ferreira1 

Liliana Soares Ferreira

Doutora em Educação (UFRGS), professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFSM), pesquisadora-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Educação e Políticas Educacionais (KAIRÓS/UFSM).


http://orcid.org/0000-0002-9717-1476

1Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil


Resumo:

O corrente texto tematiza, contextualiza e problematiza a situação do trabalho dos professores – entendido como pedagógico – no contexto da crise pandêmica, situado no quadro de crise capitalista e de reestruturação do mundo do trabalho. De cunho teórico-descritivo, apresenta elementos para apropriação do tema, organizando-se em momentos distintos, mas interconectados, a saber: compreende-se o conceito de “crise” em sua forma genérica; situa-se a crise pandêmica na centralidade da crise capitalista, como uma de suas expressões, desnaturalizando as causas dos fenômenos; e, por fim, aborda-se a reestruturação do mundo do trabalho, agravada pelas circunstâncias da pandemia e discute-se sobre o trabalho dos professores nessa conjuntura, com ênfase na problematização sobre as implicações em sua dimensão pedagógica.

Palavras-chave: trabalho; pedagógico; professores; crise; covid-19

Abstract:

The current text thematizes, contextualizes and problematizes the situation of teachers’ work – understood as pedagogical – in the context of the pandemic crisis, situated in the context of capitalist crisis and restructuring of the world of work. Of a theoretical-descriptive nature, it presents elements for the appropriation of the theme, organized in different but interconnected moments, namely: the concept of “crisis” is understood in its generic form; the pandemic crisis is placed at the center of the capitalist crisis, as one of its expressions, denaturalizing the causes of the phenomena; and, finally, the restructuring of the world of work, aggravated by the circumstances of the pandemic, is presented and the work of teachers at this juncture is discussed, with an emphasis on problematizing the implications in its pedagogical dimension.

Keywords: work; pedagogical; teachers; crisis; Covid-19

Resumen:

El presente texto tematiza, contextualiza y problematiza la situación del trabajo docente – entendido como pedagógico – en el contexto de la crisis de la pandemia, situado en el contexto de crisis capitalista y reestructuración del mundo del trabajo. De carácter teórico-descriptivo, presenta elementos para la apropiación del tema, organizados en momentos diferentes pero interconectados, a saber: el concepto de “crisis” es entendido en su forma genérica; la crisis de la pandemia se sitúa en el centro de la crisis capitalista, como una de sus expresiones, desnaturalizando las causas de los fenómenos; y, finalmente, se presenta la reestructuración del mundo del trabajo, agravada por las circunstancias de la pandemia, y se discute el trabajo de los docentes en esta coyuntura, con énfasis en problematizar las implicaciones en su dimensión pedagógica.

Palabras-clave: trabajo; pedagógico; maestros; crisis; COVID-19

A pandemia e a crise estrutural do capital: implicações no trabalho dos professores

O corrente texto tematiza o trabalho dos professores2 no quadro de crise pandêmica e estrutural do capital. Sua redação caracteriza-se e constitui-se com graus de autonomia e liberdade, no intuito de proporcionar a reflexão sobre e a partir da escrita, ou seja, escreve-se para pensar, registra-se para refletir, anota-se para cotejar. Nas palavras de Marques (2006): “escrever é preciso”, “o ato de escrever é o ato inaugural, cujo maior desafio é começá-lo, no todo e em suas partes. (…) Escreve-se para pensar e para saber o que ler” (s.p.).

Presume-se que, ao escrever para pensar, tanto a atividade intelectiva quanto o produto intelectual – ação e obra – não pressupõem rótulos, estereótipos ou tipificações nos moldes acadêmicos, ou seja, neste processo de escrita livre e autônoma, pouco importa a adjetivação ou a alcunha que o texto irá receber. Importa-se, aqui, recorrendo novamente às palavras de Marques (2006), “entender o ato de escrever como impulso vital por onde se libertam as forças do espírito e chegar a fazê-lo expressivo de minha singularidade criativa” (p. 20).

Em outros termos, o texto ora escrito sobre o trabalho dos professores, em contextos de crise, assume a forma analítica, crítica e reflexiva dada por seus interlocutores, ou seja, ao ser reproduzido linguisticamente em tons Times New Roman, tamanho 12, em laudas outrora em branco, as ideias aqui expressas como síntese e fundamento reflexivo do mundo objetivo, apropriado pelo pensamento e transposto, em formato de texto/escrita, pelo prolongamento das terminações nervoso-neuronais e musculares, adquirem formas de ser e existir próprias, de acordo com o diálogo e com as interpretações estabelecidas com os interlocutores, elevando-se de conceitos a categorias3. Além disso, inspira-se em pensamentos de outros autores que contribuem para fomentar o debate e o processo de reflexão.

Isso posto, considera-se a pandemia de Covid-19, causada pelo SARS-CoV-2, com números (Coronavírus Brasil, 2022) que, no Brasil, extrapolam a casa das 600 mil mortes e dos 32 milhões de casos confirmados, sem considerar os índices de subnotificação. Destaca-se, ainda, que os números poderiam ser agravados, considerando a ineficiência (Fiocruz, 2022; Instituto Alana, 2022) das ações do Governo Federal que, alinhado aos interesses empresariais, preconizou a não interrupção das atividades laborais e endossou o discurso sobre a necessidade econômica em detrimento da vida e das iniciativas para promover os cuidados sanitários indispensáveis para a proteção da população. Ademais, em meio ao caos pandêmico e sanitário, os respaldos atenuantes dos efeitos da pandemia foram subsidiados pelo aparato público do Sistema Único de Saúde (SUS), orientando-se sobre as causas e formas de prevenir a propagação do coronavírus, assim como o suporte financeiro do Auxílio Emergencial aprovado pelo Congresso Federal, com valores superiores ao proposto pela própria Presidência da República (Costa, 2020).

Nesse contexto, aqui denominado, por pressupostos teóricos, de crise pandêmica, os efeitos incidiram sobre a organização e a produção da vida e da existência, sobre a dinâmica do trabalho e das formas de produzir material e objetivamente as relações sociais em seus diferentes âmbitos de desenvolvimento. Situa-se, nesse quadro, a educação, mas, principalmente, a educação escolar e o trabalho do professor, que, de modo imediato, foram acometidos pelas implicações da pandemia sob a postulação do isolamento social, das aulas remotas e do trabalho mediado por plataformas digitais (as tecnologias de informação e comunicação, conhecidas como TICs). Isso tudo foi permeado por uma crise no modo de produção e acumulação capitalista, com suas implicações nos parâmetros de proteção, organização e estruturação do trabalho (mundo do trabalho) e de brutalização da vida, desvelados e apressados com a crise pandêmica.

Este texto contextualiza e problematiza4, portanto, a situação do trabalho dos professores – entendido como pedagógico – no contexto da crise pandêmica, situado no quadro de crise capitalista e de reestruturação5 do mundo do trabalho. Este estudo de base teórico-descritiva, a fim de proporcionar elementos para refletir e pensar sobre o tema, organiza-se em momentos distintos, mas interconectados, a saber: compreende-se o conceito de “crise” em sua forma genérica, ampla; situa-se a crise pandêmica na centralidade da crise capitalista, como uma de suas expressões, desnaturalizando as causas dos fenômenos; e, por fim, aborda-se a reestruturação do mundo do trabalho, agravada pelas circunstâncias da pandemia, e discute-se sobre o trabalho dos professores nessa conjuntura, com ênfase na problematização das implicações acerca da dimensão pedagógica.

Crise: o que se entende?

Fala-se em expressões, delineamentos, representações e conjecturas da crise: crise estrutural (Mészáros, 2011), crise da racionalidade moderna (Habermas, 1987), crise na credulidade das grandes narrativas (Lyotard, 2018), crise do marxismo (Anderson, 1985), crise pandêmica (Mascaro, 2020), crise da sociedade do trabalho (Antunes, 2005). Em outras palavras,

Ao abordarmos a conjuntura atual, a palavra que vem à tona na tentativa de sua caracterização é crise. Daí a consideração de que estamos vivendo uma crise de grandes proporções que se manifesta como crise política, econômica, social e sanitária. Numa palavra, trata-se de uma crise geral, que diz respeito à forma social atual como um todo, ou seja, trata-se de uma crise da sociedade capitalista. (Saviani, 2020, p. 2)

Vivemos em uma era de crises? Crise objetiva e subjetiva? Crise discursiva? Crise da coisa ou do dito? Qual o teor da crise? Qual seu fundamento e seu significado? Considerando os objetivos estabelecidos para este estudo, neste momento direciona-se o foco para a compreensão da crise em termos gerais, em seu sentido lato, genérico.

Em uma descrição objetiva, “crise” – substantivo feminino, do latim crisis,is (momento de mudança súbita) e do grego krísis,eõs (ação ou faculdade de distinguir, decisão, momento difícil) (Veschi, 2020) – decorre aparentemente das áreas médicas, das atividades em saúde (Bastien, 1989), que em seus sentidos anuncia determinada “Mudança brusca produzida no estado de um doente, causada pela luta entre o agente agressor e os mecanismos de defesa. (…) Período de manifestação aguda de uma doença: crise de apendicite. (…) Manifestação violenta, repentina e breve de;” (7Graus, n.d., para. 1–3, ênfase nossa) ou “6. Período de transformação ou conturbação” (Cegalla, 2005, p. 255). É, entretanto, um conceito que flutua das áreas médicas às sociais por volta do século XVII:

Importada, ao que parece, das ciências médicas, a ideia de crise começa a generalizar-se no âmbito das análises do social nos séculos XVII e XVIII, período em que surge pela primeira vez a expressão crise económica. É contudo no século XIX, com o apurar do sentido histórico e com o progresso das ciências sociais, assinalado sobretudo pela rotura epistemológica operada por Marx neste terreno, que a noção de crise adquire maior significado. (Bastien, 1989, p. 11, ênfase do autor)

Para Medina (2013), os momentos de crise configuram a possibilidade de questionar criticamente os valores sociais dados, historicamente, como “certezas monolíticas” (p. 38). Sobre os significados de “crise”, o autor ressalta três:

No seu sentido mais popular, a crise é sempre entendida como uma perturbação que altera o curso ordinário das coisas: crise econômica, crise política, crise existencial etc. A sociologia a entende como uma situação social decorrente da mudança de padrões culturais, que se supera na elaboração de novos hábitos por parte do grupo. É a fase de transição em que, abaladas as antigas tradições, não foram ainda substituídas por novas. No seu sentido médico-psiquiátrico ou psicológico, não só representa uma mutação de valores, do conceito filosófico do mundo ou da atitude perante a vida, mas também a eleição ou a mudança da profissão, uma orientação no modo de viver. (Medina, 2013, pp. 38–39)

Entende-se, por ora, que “crise” apresenta uma forma de ser e de existir em constante dinâmica e movimento, ou mudança, tal como mostra a definição do dicionário on-line. Pressupõe, portanto, determinada incidência sobre a inércia conjuntural de um corpo, de uma organização, de uma relação (natural-social) preservada incólume ao longo do tempo. “Crise” tem suas determinações e suas diferentes formas de manifestação, mas evidencia aspectos que coincidem:

Tal noção assume correntemente um significado aberto e mesmo ambíguo, tendendo normalmente a designar uma súbita, acidental e mais ou menos passageira rotura de harmonias e de equilíbrios mecânicos, a designar uma quebra de estabilidade e de uma certa normalidade que o senso comum atribui aos diversos objectos sociais. (Bastien, 1989, p. 11, ênfase nossa)

Destacam-se, no âmbito da crise, os sentidos de ruptura de harmonia e quebra de estabilidade para reiterar a afirmativa acerca da suspensão da constância formativa que constituía/constitui os fatos e os fenômenos do objeto em seu permanente movimento de existência, constituição, expressão e manifestação. Uma compreensão de “crise” engloba a necessidade de transformação, superação, renovação e reestruturação do objeto ou do fenômeno que, em tese, não apresenta correspondência com as novas demandas e reivindicações postas em contato e em relação, considerando a complexa dinâmica social e as intensas transformações históricas com graus de universalidade.

As crises são reflexos da incidência da matéria, seja natural, seja social, sobre a normalidade da vida, sobre a estabilidade da existência, considerando suas contradições, mas também atua sobre as ideias, sobre as formas de pensamento, sobre os discursos acerca do real e do objeto. Entretanto, a necessidade de mudança e transformação, característica dos momentos de crise, incorre sobre/na matéria como resultado da recíproca relação entre objetividade e subjetividade, no âmbito da dialética matéria-ideia.

Entretanto, há momentos em que as crises assumem graus de excepcionalidade, contrapondo o entendimento sobre a ocorrência de sua superação e inibindo seus níveis de efemeridade. Manifesta-se como fato incomum, como determinação excepcional atuando na normalidade e de forma regular. Essa situação configura um quadro de crise permanente, um oxímoro, conforme caracteriza Santos (2020). O autor descreve as duas expressões da “crise” enfatizando suas particularidades:

(…) o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma situação duplamente anómala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um oximoro, já que, no sentido etimológico, a crise é, por natureza, excepcional e passageira, e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos factores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a crise transforma-se na causa que explica tudo o resto. Por exemplo, a crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas sociais (saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos salários. E assim obsta a que se pergunte pelas verdadeiras causas da crise. O objectivo da crise permanente é não ser resolvida. (Santos, 2020, p. 5)

Isso posto, entende-se que “crise” estabelece uma relação causa-efeito mediada pelas circunstâncias históricas e sociais e pela atividade humana que incide sobre o momento crítico, seja passageiro, seja permanente. As crises efêmeras são compreendidas e superadas uma vez analisadas suas causas. As crises permanentes assumem, elas próprias, a figuração das causas que suscitam outros momentos de rupturas, tensões e desequilíbrios. A direção deste trabalho, diante disso, é fundamentar a materialidade da crise no contexto pandêmico situada na concretude da crise estrutural do capital, a fim de desnaturalizar as causas dos fenômenos e argumentar sobre os aspectos que situam e caracterizam a crise pandêmica – passageira – como consequência da crise capitalista – permanente.

A crise pandêmica: expressão da crise capitalista?

Apresentado o conceito de crise em seu sentido genérico e em suas formas de manifestação, esta seção destina-se à tarefa de situar a crise pandêmica na centralidade da crise estrutural do capital, como um de seus desdobramentos, argumentando sobre a necessidade de desmistificação e desnaturalização do quadro pandêmico que assolou a existência humana, a organização da vida e a estruturação do trabalho.

Destaca-se a tese sobre a ocorrência da pandemia estabelecida como crise passageira, como efeito do processo de tensão na/sobre a estrutura do capital, em sua forma contemporânea, entendida como crise permanente. Argumenta-se que a dinâmica sociometabólica e histórica do capital supera, por incorporação, as formas naturais de manifestação e desenvolvimento de quaisquer corpo, objeto, matéria ou fenômeno.

A crise pandêmica é caracterizada, de acordo com Saviani (2020), com proporções conjunturais e não estruturais, evidenciando seu caráter transitório:

(…) uma primeira diferenciação a ser feita é que, tratando da conjuntura atual, devemos observar que, se a crise sanitária representada pela pandemia do coronavírus é uma crise conjuntural, ou seja, própria do momento atual e que deve passar, permitindo a continuidade da vida humana, a crise que afeta a sociedade capitalista é de outro teor. (p. 2)

Se a crise pandêmica é um fato circunstancial, ou seja, produzido na casualidade de expansão e proliferação de um vírus em escala mundial, de forma veloz e destrutiva, a crise estrutural do capital, por sua vez, tem graus de sustentação e reprodução em sentido autofágico6, ao passo que o capital busca se expandir com acentuado nível de destrutividade (Antunes, 2022). O fato é que o capital se alimenta das crises para se renovar, autoalimentar, autodestruir e continuar sua escalada de acumulação.

Com efeito, as crises são inerentes ao capitalismo. Mas as crises com as quais o capitalismo convive são crises parciais, conjunturais, relativas a determinados aspectos que podem ser controlados, sem chegar a colocar em questão a totalidade da forma social capitalista. Tais crises configuram momentos de aguçamento das contradições que movem o próprio desenvolvimento capitalista e que, ao afetar, ainda que severamente, aspectos determinados do conjunto, não chegam a ameaçar sua sobrevivência, pois o sistema dispõe de mecanismos que lhe permitem deslocar as contradições contornando a crise e prosseguindo em sua marcha. (Saviani, 2020, p. 2)

O aspecto estrutural da crise do capital constitui-se, enquanto sistema de metabolismo social, pela articulação entre capital, trabalho assalariado e Estado, em seu movimento incontrolável de destruição e expansão, pois,

(…) tendo em vista o seu caráter universal, seu alcance global, sua escala de tempo contínua ou permanente e seu modo de desdobrar-se rastejante, isto é, mesmo sem negar possíveis manifestações mais espetaculares, a crise vai persistentemente se insinuando nas várias dimensões da estrutura, minando-a progressivamente. Hoje os sinais da crise estrutural estão bem mais visíveis. Tendo se estendido por toda a Terra, o capitalismo não tem mais para onde se expandir e passa a obter uma sobrevida por meio da “produção destrutiva”. (Saviani, 2020, p. 3)

Como desdobramentos do estado de crise estrutural, consolidados a partir do fim do welfare state (Estado de bem-estar social) e da entrada em um período adjetivado de depressed continuunm (Antunes, 2022), com destaques aos anos 1968/1973 e 2008/2009 e com determinada predominância do capitalismo financeiro, decorrem:

(…) ritmos estonteantes de corrosão do trabalho; destruição ilimitada da natureza; degradação do mundo rural, convertido em agrobusiness e em zonas de extrativismo predatório; segregação urbana e social etc. Acrescente-se ainda a forte eugenia social, a exacerbação do racismo, a opressão de gênero, a xenofobia, a homofobia, o sexismo, além da propagação do culto aberrante da ignorância, do desprezo à ciência, dentre tantos outros traços destrutivos que se desenvolvem neste era de exasperação da razão instrumental e de contrarrevolução preventiva. (Antunes, 2022, p. 17, ênfase do autor).

Do ponto de vista da dinâmica estrutural da crise do capital, seu modus operandi atua na miríade ampliada e deletéria da taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias, expressa na diminuição crescente do tempo de vida útil dos produtos (Mészáros, 2011), “ (…) pois quanto menor for a sua durabilidade, maior será a necessidade de reproduzi-los, independente das reais necessidade humanas, visando aumentar a intensidade e o ritmo do processo de valorização do valor” (Antunes, 2022, p. 19).

Essa é a expressão do caráter destrutivo do sistema metabólico do capital em seu estado de crise permanente, forjando a necessidade de criação de mais e novas mercadorias, ao passo que a aniquilação do valor útil e concreto das mercadorias é incorporado como sua forma de ser. Nisso situa-se a força humana de trabalho, na centralidade das forças produtivas, pois, uma vez concebida como mercadoria, também é vilipendiada pelo moinho satânico do capital, como diria Antunes (2022) inspirado em Karl Polanyi.

Dito isso, compreende-se o movimento de transposição da incidência do coronavírus sobre um contexto social específico elevado ao patamar de pandemia mundial e, sobretudo, como expressão da crise estrutural, pois:

A produção social, que deveria atender às necessidades humano-sociais, subordinou-se integralmente aos imperativos da autorreprodução do capital. Entre outras consequências devastadoras para a humanidade, podemos citar o desemprego monumental, a destruição ambiental, a mercantilização da vida e o incentivo diário a novas guerras e conflitos armados. Isso tudo nos trouxe a um quadro pandêmico que amplifica ainda mais o sentido letal do sistema de capital. (Antunes, 2022, p. 18, ênfase do autor)

Por conseguinte, retoma-se o argumento desta seção para indicar a consonância de uma crise pandêmica no desenvolvimento da reestruturação do capital na tentativa de renovar sua forma de ser destrutiva e universalizante, atenuando suas fissuras cíclicas que, de tempos em tempos, oxigenam sua dinâmica de produção e acumulação. Isso, de modo algum, decorre de uma determinação natural, mas possui como causa primeira o fundamento do capital como relação social e histórica que, no âmbito capitalista, hegemoniza e torna dominante o desenvolvimento e, do mesmo modo, a destruição das forças produtivas em escala mundial. Uma pandemia de coronavírus, nesse contexto, acelera o processo de reestruturação produtiva do capital que estavam/estão em curso, desencadeando consequências no plano político, social, educacional, tecnológico, do mundo do trabalho etc. “O flagelo do desemprego, as habitações precárias para suportar quarentenas, as contaminações em transportes públicos lotados e a fragilidade do sistema de saúde são, exata e necessariamente, condições históricas de um modo de produção específico, o capitalismo” (Mascaro, 2020, p. 7).

Na próxima seção, o debate tratará do mundo do trabalho assumindo uma expressão singular no contexto de crise pandêmica como agravante das ações de reestruturação produtiva que estavam em curso antes da pandemia, sobretudo acerca da mudança no estado de flexibilização do processo de trabalho e das relações trabalhistas, incidindo sobre a proteção do trabalho e a implementação da maquinaria digital-informacional na centralidade produtiva em situação pandêmica. Abordará, por fim, o trabalho dos professores e a problematização do/sobre o pedagógico.

O mundo do trabalho dos professores em contexto de pandemia: quais as implicações para o aspecto pedagógico?

Se a crise pandêmica, como exposto, representa determinado desdobramento da crise estrutural do capital em escala global, as consequências desse movimento de rupturas e mudanças afetam o mundo do trabalho, a dinâmica produtiva e as relações trabalhistas. Ressalta-se, entretanto, que as crises, em suas diferentes formas de expressão e manifestação (conjuntural e estrutural), têm seus condicionantes e delineamentos políticos, econômicos e ideológicos, ou seja, do ponto de vista da luta de classes, observa-se que:

(…) mesmo as crises conjunturais são encaradas em perspectivas opostas pelas classes em confronto. Enquanto a classe dominante tende a encarar as crises como simples disfunções que apenas exigem rearranjos (reformas), a classe dominada tenderá a encarar as crises conjunturais como expressão das contradições de estrutura, buscando explorar a crise de conjuntura para mudar a correlação de forças tendo em vista a transformação estrutural da sociedade. É o que está ocorrendo com a crise sanitária que tende a ser utilizada pelos setores dominantes da sociedade para aprofundar as formas de dominação enquanto as classes dominadas constatam que se escancara a incapacidade da (des)ordem social dominante de resolver os problemas agravados pela pandemia impondo-se a necessidade de sua superação pela construção de uma nova sociedade em que a apropriação dos meios de produção e dos produtos do trabalho seja socializada em consonância com os processos de produção já socializados pelo próprio capitalismo. (Saviani, 2020, p. 5)

Isso posto, pressupõe-se a necessidade de compreensão do processo de mudanças no mundo do trabalho, intensificado e acelerado pelo quadro pandêmico, sob a perspectiva de classe, da classe trabalhadora, destacando o professor como trabalhador e o pedagógico como expressão singular de seu trabalho, a fim de produzir conhecimento em aula (Ferreira, 2018).

O processo de reestruturação do mundo do trabalho lança mão dos fundamentos da lógica toyotista de produção e acumulação, incorporando hegemonicamente os atributos da flexibilidade, da polivalência e da produção por demanda (Pinto, 2013). Indicam-se os anos 1970 como marco histórico de expansão desse nexo produtivo, ao passo que o neoliberalismo enquanto vertente ideológica da nova economia-política extrapolava as fronteiras dos diferentes povos-nações.

A acumulação e a regulação de perfil pós-fordista – neoliberal no que se denominam seus termos políticos imediatos – é uma das margens naturais do leito do rio do capitalismo, e não uma excrescência que se possa isolar mantendo o rio preservado. O movimento histórico do capital leva a plataformas de proteção flexível e conjugada em vários espaços internacionais, tornando a fragilização das políticas nacionais mais patentes. (Mascaro, 2020, p. 9)

As manifestações do quadro de internacionalização capitalista em consonância com um Estado neoliberal, com políticas que minimizam a atuação do setor público sobre as necessidades coletivas e sociais, acarretam formas cada vez mais precárias de exploração do trabalho e expropriação de mais-valia. Esse contexto, conforme explica Antunes (2022), estava em voga no período pré-pandêmico:

No Brasil, onde vivenciamos desde sempre formas intensas de exploração do trabalho e de precarização ilimitada, as consequências são ainda mais perversas do ponto de vista social. Ao fim de 2010, ainda antes da pandemia, mais de 40% da classe trabalhadora brasileira encontrava-se na informalidade. No mesmo período, uma massa – em constante expansão – de mais de cinco milhões de trabalhadores e trabalhadoras experimentava as condições de uberização do trabalho em aplicativos e plataformas digitais, algo até recentemente saudado como parte do “maravilhoso” mundo do trabalho digital, com suas “novas modalidades” de trabalho on-line recepcionando seus novos “empreendedores”. Sem falar da enormidade do desemprego e da crescente massa subutilizada, terceirizada, intermitente e precarizada em praticamente todos os espaços de trabalho. (p. 17, ênfase do autor)

A pandemia, enquanto crise conjuntural de matiz passageira, “apenas” encurtou o processo de mudança e reestruturação do trabalho em sua subsunção real ao capital, sobretudo ao que se refere às formas ou modalidades de trabalho mediadas pelas TICs, uma vez que as demandas acerca dos cuidados com a escalada de contaminação e mortes, causada pela pandemia, suscitaram o isolamento social e a necessidade de aprimoramento e/ou inovações no plano das forças produtivas e no desenvolvimento da técnica-tecnologia para atividades em home office ou teletrabalho.

Nesse panorama atual do mundo do trabalho informacional-digital, apresenta-se o desenvolvimento “(…) da era informacional, das plataformas digitais e dos aplicativos” (Antunes, 2022, p. 20), constituindo o fenômeno da uberização do trabalho que incide, como explica Antunes (2020), sobre as formas de produção (processo interno de produção e organização do trabalho em suas diferentes expressões) e sobre as relações de trabalho (proteção e legislação do trabalho e do trabalhador). Lançando-se mão da categoria da contradição, esse fato, situado sob a perspectiva da luta de classes, resulta,

Por um lado, [na] exuberância das corporações globais que concentram quase totalidade da riqueza mundial. Na outra ponta, [na] proliferação de uma miríade de trabalhos humanos vilipendiados, um vale-tudo: trabalho análogo à escravidão, superexploração (por exemplo, dos e das imigrantes), generalização da terceirização em todas as esferas laborativas, informalidade e intermitência. (Antunes, 2020, p. 20)

A magistral prevalência do empresariado com o desenvolvimento e a expansão das TICs, ou seja, com o salto tecnológico que foi denominado, a partir de 2011, de Indústria 4.07, já estava, paulatinamente, sendo gestada nos porões do capitalismo e, mesmo antes da pandemia, já recebia graus de legitimidade e legalidade no âmbito da prática social e produtiva a partir das reformas de Estado8.

Entretanto, destaca-se que, embora o capital, pelo prisma da Indústria 4.0, tenha ampliado seu contingente de trabalho morto (a maquinaria informacional digital), ele não abre mão da totalidade da força humana de trabalho, do trabalho vivo empregado à produção. O trabalho vivo – único produtor de mais-valor, uma vez que a maquinaria “apenas” reproduz o valor – torna-se residual, elevando os níveis de exploração, ao passo que a taxa de desemprego também se eleva. Como alternativa, sugere-se a inculcação ideológica do empreendedorismo e da conversão do trabalhador em prestador de serviços (Antunes, 2020).

Nesse contexto, o trabalho dos professores mediado pela tecnologia e em formato remoto – home office – aparece como alternativa para o desenvolvimento formal do processo educativo:

O advento da pandemia do coronavírus provocou a necessidade do isolamento social com a recomendação da permanência em casa. Em consequência, no início do período letivo de 2020 as escolas foram fechadas e as aulas suspensas. Surgiu, então, a proposta do “Ensino Remoto” para suprir a ausência das aulas. Essa expressão “ensino remoto” vem sendo usada como alternativa à Educação a Distância, pois a EaD já tem existência regulamentada coexistindo com a educação presencial como uma modalidade distinta oferecida regularmente. Então, o “ensino remoto” é posto como um substituto do ensino presencial excepcionalmente nesse período da pandemia em que a educação presencial se encontra interditada. (Saviani, 2020, p. 5)

Para os professores, o ensino remoto assume determinada expressão do trabalho em home office. Embora não se caracterize como uma modalidade educativa, pois não possui elementos e dispositivos legais que o configurem como tal, apresentou-se, no contexto da crise pandêmica, como alternativa à educação a distância (EAD) e, em caráter de excepcionalidade, substituto do ensino presencial (Galvão & Saviani, 2021; Saviani, 2020). Como “alternativa” e “substituto”, o ensino remoto incorporou o compromisso de atender as demandas e necessidades de uma crise provisória, gerada em grandes proporções. Contudo, precisou preencher alguns requisitos, tais como:

a) o acesso de todos os alunos ao ambiente virtual propiciado pela aparelhagem representada por computadores, celulares e similares; b) considerando que alunos e professores devam estar confinados nas suas residências, estas deverão estar todas equipadas com acesso à internet; c) é preciso que todos os estudantes preencham os requisitos mínimos para acompanharem, com proveito, o ensino remoto. Ou seja, é preciso que todos estejam não apenas alfabetizados em sentido estrito, mas também em sentido funcional e, mais do que isso, não sejam analfabetos digitais. (Saviani, 2020, p. 6)

Considerando o quadro de crise estrutural do capital e os desdobramentos socioeconômicos que afetam as periferias das cidades brasileiras, a viabilidade e a exequibilidade dos pressupostos e dos fundamentos necessários para o pleno desenvolvimento das atividades escolares e, principalmente, do trabalho dos professores, em regime remoto, são questionáveis. Estudos e pesquisas, tais como de Araújo et al. (2021) e de Clementino et al. (2021), apresentam, respectivamente, dados sobre as políticas de educação no Brasil desde o início da pandemia e alguns resultados acerca dos efeitos preliminares do quadro pandêmico sobre o trabalho docente no âmbito da América Latina a partir de uma análise comparativa de 12 países.

Ademais, o trabalho dos professores em home office, entendido como prática de trabalho que “(…) oblitera a separação entre tempo de trabalho e tempo de vida, pois o espaço laborativo se confunde e se mescla com o universo microcósmico familiar, privado” (Antunes, 2022, p. 38), com a extrema necessidade de mediação dos aparatos tecnológicos e informacionais, conforme estudos mencionados, indicam a carência e a precarização das condições materiais e tecnológicas tanto para alunos quanto para professores. Diante disso, problematiza-se: no contexto da crise pandêmica como desdobramento da crise estrutural do capital, quais as implicações acerca da dimensão pedagógica do trabalho dos professores?

Dado que a educação é uma atividade estritamente humana, de natureza imaterial e produzida pela inseparabilidade entre produção-consumo, objetivação e apropriação dos bens científicos e culturais (Saviani, 2013) e o trabalho dos professores descrito como pedagógico (Ferreira, 2018), a dimensão pedagógica

(…) é a que incorpora ao trabalho os aspectos teóricos e filosóficos, alinhando-os e articulando-os com foco na sua finalidade específica, ou seja, na produção do conhecimento. É a que promove a fluidez, aponta a direção e dissipa as tensões relativas à especificidade do trabalho em educação. Por isso, é a dimensão que demarca e caracteriza o trabalho quanto aos seus aspectos intencionais na produção do conhecimento. Não é prática pedagógica, por estar imbricada em um projeto pedagógico, individual e coletivo; ou didática, pois envolve a Pedagogia como um todo. Vai além, portanto, objetiva intencional e prioritariamente a superação da dicotomia entre teoria e prática. É o trabalho pedagógico fundamentado e fundamentando uma teoria pedagógica. Trata-se do meio e do modo pelo qual sistematicamente é organizado o trabalho pedagógico com a intencionalidade de produzir autonomia intelectual. (Ferreira & Fuentes, 2017, p. 727)

Para fins deste texto, evidenciam-se, no caso da dimensão pedagógica, os aspectos relacionados à produção e à apropriação de conhecimento em aula, situados, aqui, em relevo para cotejar com as circunstâncias pandêmicas e em regime de aula remota. Recorre-se aos estudos de Galvão e Saviani (2021) para identificar, resumidamente, as implicações pedagógicas do ensino remoto, considerando a tríade que articula destinatário, “o elemento ao qual se dirige o trabalho educativo” (p. 40), ao ser humano em processo de humanização; conteúdo, “elementos culturais fundamentais para a humanização dos indivíduos” (p. 40); e forma, “os meios através dos quais se proporcione a cada indivíduo singular a apropriação dos conhecimentos produzidos pela humanidade” (p. 41).

Diante disso, para os referidos autores, as implicações que incidem sobre a dimensão pedagógica do trabalho dos professores, a partir do contexto de pandemia e de aulas remotas, apresentam um caráter “empobrecido”, pois, além da “frieza” entre os sujeitos do pedagógico em atividade, as questões tecnológicas inviabilizam outras formas de abordagem e “que tenham professores e alunos com os mesmos espaços, tempos e compartilhamentos de educação presencial”. Há inviabilidade direta da relação com o outro, comprometendo as atividades interpsíquica e intrapsíquica, minimizando a função do professor e responsabilizando o aluno pela tarefa de compensar os limites oferecidos ou ofertados pela atividade remota. Ademais, os professores recebem determinada sobrecarga de trabalho, correções de atividades e avaliações, “mensagens de e-mails e aplicativos, fóruns de ambientes virtuais” etc. (Galvão & Saviani, 2021, p. 43), acarretando a confusão entre tempo destinado ao trabalho (emprego) e o tempo do não trabalho.

Em suma, o que ocorre é “conteúdo esvaziado, forma empobrecida e destinatário excluído a priori ou ludibriado sobre sua aprendizagem” (Galvão & Saviani, 2021, p. 43), comprometendo – no sentido de prejudicar – o processo de produção de conhecimento em aula e, por conseguinte, o processo de humanização, embora se considere toda a diligência e todo o empreendimento tecnológico empregado ao trabalho dos professores em contexto de crise(s).

Considerações finais: novas sínteses e novas reflexões?

Ao tratar da educação, a presencialidade é imprescindível, visto que pressupõe a necessidade de uma atividade relacional entre sujeitos com a intencionalidade de produzir conhecimento e com a finalidade de humanização. O quadro pandêmico, situado como crise temporária e fomentado pelo atual grau de desenvolvimento do capitalismo, sendo este entendido como crise permanente, desencadeou a necessidade de elaboração de outras formas de trabalho com a educação escolar. Como alternativa, o home office e as aulas remotas assumiram tal compromisso, gerando implicações no trabalho do professor, pois sua atuação passou a ser mediada pelas TICs e acontecer em condições de precarização do trabalho. Isso causou determinado comprometimento à dimensão pedagógica do processo de escolarização.

O trabalho dos professores, em contexto de crise pandêmica situada na crise estrutural do capital, independentemente da etapa ou da rede de ensino e do âmbito econômico (público-privado), reflete os efeitos das transformações no mundo do trabalho em sua totalidade, tal como ocorre com os trabalhadores de outras categorias laborativas. A razão disso é que, embora exerça uma ocupação profissional repleta de maquinaria e com vasto aparato tecnológico e informacional para mediar as relações interpessoais e produtivas (pedagógicas, no caso dos professores), há a incidência de formas vilipendiadas de trabalho.

A tarefa de contextualizar e problematizar o trabalho dos professores em contexto de crise(s), evidenciando as implicações no aspecto pedagógico, ou seja, na produção-apropriação de conhecimento em aula (remota), apresenta graus de complexidade. Consideram-se as múltiplas nuances de sua manifestação no âmbito da prática social global, ou seja, na relação entre as partes e o todo, o todo e as partes. A compreensão da “crise”, em suas diferentes formas de expressão, a fim de desnaturalizar a relação causa-efeito e os níveis de seu desenvolvimento e de sua existência, assim como a análise dos desdobramentos no mundo do trabalho e na organização da vida, implica o não esgotamento da problemática e a necessidade de ampliação das pesquisas relacionadas ao tema.

Diversas questões surgem: (i) quais efeitos da crise pandêmica e das aulas remotas sob a perspectiva dos estudantes?; (ii) qual será o futuro do trabalho dos professores?; (iii) qual relação se estabelece entre o trabalho vivo (e intelectual) dos professores com o trabalho morto fixado/objetivado na maquinaria digital-informacional disponível para o desenvolvimento doravante das aulas?; (iv) qual a dimensão ou os limites da mediação tecnológica na atividade pedagógica dos professores a fim de produzir conhecimento em aula? Entre outros, esses questionamentos fomentam a problematização e direcionam o debate para a elaboração de novas sínteses.

2Destaca-se o indistinto tratamento dado ao trabalho dos professores em seus diferentes contextos (escola, universidade, setor público, setor privado), pois entende-se que, em sua totalidade, o conjunto dos professores estabeleceu relação, cada um ao seu modo, com as causas e os efeitos da pandemia. Reconhece-se, entretanto, as particularidades de cada âmbito nas diferentes formas de atenuar as adversidades do período pandêmico.

3A título de complemento, “conceito” refere-se a uma descrição ou explicação sobre o objeto, expressando suas manifestações simples e imediatas, enquanto “categoria” expressa a forma de ser do objeto, considerando suas múltiplas determinações e seus graus de materialidade e concretude, conforme explicação de Marx (2008).

4Sobre problematização, tratar-se-á dos pressupostos de Saviani (2012), considerando e detectando as questões que decorrem da prática social e são evidenciadas no/pelo movimento de mudança e articulação dos fatos e fenômenos. Não há, entretanto, a pretensão de esgotar os elementos ora em contesto, mas sim de promover o debate e estimular o pensamento a partir dos elementos descritos e fundamentados.

5A reestruturação produtiva e no mundo do trabalho rompeu com o equilíbrio produtivo que perdurou até os anos 1970. Na esfera macroeconômica, esse fato ocorreu com as “variações nas taxas de câmbio das economias nacionais, acentuando a internacionalização e o já crescente volume de investimentos em capitais financeiros, que, por meio da tecnologia microeletrônica aplicada à informação, passaram a especular sobre essas flutuações cambiais” (Pinto, 2013, p. 44).

6Sobre autofagia: “que se nutre com sua própria substância” (Cegalla, 2005, p. 103).

7Sobre a Indústria 4.0, sabe-se que “(…) nasceu na Alemanha, em 2011, concebida para gerar um novo e profundo salto tecnológico no mundo produtivo (em sentido amplo), estruturado a partir das novas tecnologias da informação e comunicação (TIC), que se desenvolvem de modo célere. Sua expansão significará a ampliação dos processos produtivos ainda mais automatizados e robotizados em toda a cadeia de valor, de modo que a logística empresarial será toda controlada digitalmente” (Antunes, 2020, p. 13–14).

8Vide reforma da terceirização, Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017 (2017a), e reforma trabalhista, Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017 (2017b). Ambas, à época, tinham aval do governo de Michel Temer.

Os textos deste artigo foram revisados pela Texto Certo Assessoria Linguística e submetidos para validação dos autores antes da publicação.

Referências

Anderson, P. (1985). A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. Brasiliense. [ Links ]

Antunes, R. (2005). O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. Boitempo. [ Links ]

Antunes, R. (2020). Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria 4.0. In R. Antunes, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (pp. 11–22). Boitempo. [ Links ]

Antunes, R. (2022). Capitalismo pandêmico. Boitempo. [ Links ]

Araújo, O., Ferreira, L., & Fortunato, I. (2021). La pandemia del covid-19 y las políticas del Ministerio de Educación de Brasil. In N. Aguilar & M. Mireles (Orgs.). Reto y desafíos de las universidades ante la pandemia de COVID-19 (pp. 41–61). Labýrinthos. [ Links ]

Bastien, C. (1989). A noção de crise no senso comum e nas ciências sociais. Vértice, 2(14), 11–19. [ Links ]

Cegalla, D. (2005). Dicionário escolar de língua portuguesa. Companhia Editorial Nacional. [ Links ]

Clementino, A., Oliveira, D., & Pereira, E., Jr. (Orgs.). (2021). Trabajo docente en tiempos de pandemia en América Latina: análisis comparado. Criatus Design e Editora. [ Links ]

Coronavírus Brasil. (2022). Painel Coronavírus. https://covid.saude.gov.br/Links ]

Costa, J. (2020). Sobre o auxílio emergencial aprovado no Congresso Nacional. Brasil de Fato. https://www.brasildefators.com.br/2020/03/31/sobre-o-auxilio-emergencial-aprovado-no-congresso-nacionalLinks ]

Ferreira, L. S. (2018). Trabalho pedagógico na escola: o que se fala? Revista Educação e Realidade, 43(2), 591–608. [ Links ]

Ferreira, L. S., & Fuentes, R. (2017). Trabalho pedagógico: dimensões e possibilidades de práxis pedagógica. Perspectiva, 35(3), 722–737. [ Links ]

Fiocruz. (2022). Observatório Covid-19. https://portal.fiocruz.br/observatorio-covid-19Links ]

Galvão, A., & Saviani, D. (2021). Educação na pandemia: a falácia do “ensino” remoto. Universidade e Sociedade, (67), 36–49. [ Links ]

Habermas, J. (1987). Teoria del agir comunicativo. Tauros. [ Links ]

Instituto Alana. (2022). Dossiê aponta descaso do governo federal na pandemia com direitos à saúde e educação de crianças e adolescentes. Bori Agência. https://abori.com.br/direito/dossie-aponta-descaso-do-governo-federal-na-pandemia-com-direitos-a-saude-e-educacao-de-criancas-e-adolescentes/Links ]

Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017. (2017a). https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htmLinks ]

Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017. (2017b). https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htmLinks ]

Lyotard, J. F. (2018). A condição pós-moderna. 17. ed. José Olympio. [ Links ]

Marques, M. (2006). Escrever é preciso: o princípio da pesquisa. 5. ed. Unijuí. [ Links ]

Marx, K. (2008). Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. Expressão Popular. [ Links ]

Mascaro, A. (2020). Crise e pandemia. Boitempo. [ Links ]

Medina, J. P. S. (2013). A Educação Física cuida do corpo… e “mente”: novas contradições e desafios do século XXI. 26. ed. Papirus. [ Links ]

Mészáros, I. (2011). A crise estrutural do capital. 2. ed. Boitempo. [ Links ]

Pinto, G. (2013). Organização do trabalho no século XX: taylorismo, fordismo e toyotismo. 3. ed. Expressão Popular. [ Links ]

Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Almedina. [ Links ]

Saviani, D. (2012). Escola e Democracia. 42. ed. Autores Associados. [ Links ]

Saviani, D. (2013). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. Autores Associados. [ Links ]

Saviani, D. (2020). Estrutural, conjuntura nacional, coronavírus e educação: o desmonte da educação nacional. Revista Exitus, 10(e020063), 1–25. [ Links ]

7Graus. (n.d.). Crise. In Dicio, Dicionário Online de Português. Acesso em Julho 11, 2022, de https://www.dicio.com.br/crise/Links ]

Veschi, B. (2020). Crise. In Etimologia. Acesso em Julho 11, 2022, de https://etimologia.com.br/crise/Links ]

Recebido: 15 de Agosto de 2022; Aceito: 17 de Março de 2023; Publicado: 23 de Outubro de 2023

Endereço para correspondência Gislei José Scapin/Liliana Soares Ferreira Av. Roraima, n. 1000 Cidade Universitária Bairro Camobi, 97105-900. Santa Maria, RS, Brasil. gjscapin@gmail.com, anaililferreira@yahoo.com.br

Creative Commons License This is an article published in open access under a Creative Commons license