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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.18 no.59 Curitiba oct./dic 2018  Epub 05-Feb-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.18.059.ao03 

Artigos

Observações acerca da origem da filosofia: a educação a partir da leitura histórica

Observations about the origin of philosophy: education from the historical reading

Observaciones acerca del origen de la filosofía: la educación a partir de la lectura histórica

Anita Helena Schlesener1  *

1Universidade Tuiuti do Paraná, (UTP), Curitiba, PR, Brasil


Resumo

O presente artigo tem como objetivo fazer algumas observações sobre a origem da filosofia e seu elo indissolúvel com a educação. A filosofia enquanto pergunta sobre a verdade está entendida em um contexto histórico. A filosofia nascida da experiência empírica e articulada com a astronomia, a física e a matemática. A filosofia como uma atividade do pensamento que também se constrói como educação: modo de vida e ensino do pensar crítico. Notas sobre a construção do pensamento até a crise política e social que levou a Grécia a perder a sua hegemonia para outros povos.

Palavras-chave: Filosofia; Educação; Origem; Pensamento grego

Abstract

This article aims to make a few observations about the origin of philosophy and its indissoluble link with education. Philosophy while a question about truth is understood in a historical context. The philosophy born of empirical experience and articulated with astronomy, physics, and mathematics. Philosophy as an activity of thought that is also constructed as education: the way of life and teaching of critical thinking. Notes about the thought ‘construction until the political and social crisis that led Greece to lose its hegemony to other peoples.

Keywords: Philosophy; Education; Origin; Greek thought

Resumem

El presente artículo tiene como objetivo hacer algunas observaciones sobre el origen de la filosofía y su eslabón indisoluble con la educación. La filosofía como pregunta sobre la verdad, esta entendida en un contexto histórico. La filosofía nacida de la experiencia empírica y articulada con la astronomía, la física y las matemáticas. La filosofía como una actividad del pensamiento que también se construye como educación: modo de vida y enseñanza del pensamiento crítico. Notas sobre la construcción del pensamiento hasta la crisis política y social que llevó a Grecia a perder su hegemonía hacia otros pueblos.

Keywords: Filosofía; Educación; Origen; Pensamiento griego

Introdução

“Se é verdade que o pensar lida com invisíveis, segue-se que ele está fora de ordem, porque normalmente nos movemos em um mundo de aparências, no qual a experiência mais radical de desaparecimento é a morte” (ARENDT, 1993, p. 151).

Qual a importância do ensino da filosofia para a formação dos jovens neste início de século? Qual a importância do pensamento crítico num momento em que a hegemonia se constrói pela consolidação do consenso passivo pela ação dos meios de Comunicação de massa? Ensinar filosofia ou instigar a pensar? O que se pode entender por pensamento crítico? Como integrar uma teoria filosófica com a prática e a ação educacional? Um ponto de partida para o estudo da filosofia é pressupor que não há uma única filosofia e nem se pode apresentá-la como um grande sistema. Conforme Gramsci (1978), temos várias filosofias e escolhemos entre elas, ou seja, a escolha de uma filosofia é sempre uma escolha política, visto que se trata de assumir a filosofia como concepção de mundo.

Cada época produz filosofias ao retomar perguntas sobre o ser, a verdade, o conhecimento, a ética, a política e propor respostas dentro dos limites das circunstâncias históricas. Cada época é moderna em relação às anteriores e interpreta a história do pensamento conforme parâmetros de seu tempo; desse modo, não podemos conhecer o pensamento antigo como de fato foi, mas o apreendemos a partir de nossa perspectiva contemporânea, isto é, nossa leitura sofre tanto os limites postos por nossa situação social e cultural quanto pelas alterações produzidas por várias transposições linguísticas e consequentes distorções pelas quais passaram os escritos antigos (GRAMSCI, 1978).

A pergunta sobre a origem da filosofia implica também observações sobre a sua definição: entre os gregos, costuma-se mencionar que o conceito da filosofia é Φιλοσοφία (philosophia), amor à sabedoria. Sabedoria, para os gregos, implicava tanto o saber verdadeiro quanto o comportamento reto, consequência deste saber (HELLER, 1983). E se tratava ainda de um processo de busca: o filósofo era aquele que cultivava o hábito da dúvida, na reflexão inacabada de busca da racionalidade, cuja expressão se faz na linguagem. Para Chatelet (1972, p. 96), o “primeiro ato filosófico consiste precisamente em tomar consciência da tragédia da existência histórica e recusar as soluções parciais até então satisfatórias”.

A pergunta sobre a filosofia é, também, a pergunta sobre a verdade. O pensamento moderno entende que a verdade é histórica, visto que em cada época predominam certas ideias que correspondem a determinadas relações de poder, as quais constituem a estrutura social e política. Cada filósofo, mesmo pertencendo a uma mesma escola ou corrente, elabora a sua resposta particular para o problema, de modo que temos várias teorias confrontando-se em defesa de concepções diversas de verdade. Cada problema singular, na sua complexidade e especificidade, precisa ser inserido no contexto e entendido na sua perspectiva histórica, a fim de ser explicado com base nas causas que o geraram. Estas causas que, algumas vezes, podem ser também gestadas no movimento que caracteriza uma sociedade (CHATELET, 1972; GRAMSCI, 1978).

Aristóteles (1973), nos dizia que a busca da verdade não é uma tarefa fácil, porque ninguém pode atingir completamente a verdade, ainda que não possamos nos afastar completamente dela. Uma busca permanente e sempre inacabada que, conforme Buck-Morss (2002, p. 266), Benjamin considerava um inventário necessário para tornar visível uma “imagem da verdade que as ficções escritas na história convencional encobriam”.

Para desvelar os escritos antigos, a fim de compreender as polêmicas que marcaram uma época, precisamos evidenciar discursos bipolares, como luz e sombra, visível e invisível, superfície e abismo, verso e reverso que se complementam, métodos que se contrapõe e se embatem, a fim de podermos formar uma nova configuração da história. É como se o pensamento de uma época se constituísse sempre por, ao menos, duas leituras da realidade: uma que se expressa em um discurso claro, explícito, e outra que se produz como discurso oculto, paralelo e velado, mas não menos importante; uma leitura que expressa a imagem produzida pela classe dominante e outra que permanece nas sombras, porque os vencidos não têm história.

Quando nos dispomos a estudar filosofia somos instigados a mergulhar no movimento do pensamento e a descobrir problemas implícitos, limites, desvios, isto é, a explicitar o embate de ideias por meio do qual uma razão se configura e se consolida como expressão da verdade, que deixa à margem saberes e verdades que não se enquadram na sua lógica, no seu universo de interpretação. O estudo filosófico é trabalho de investigação que procura conhecer o discurso do outro, do reprimido e oculto nas dobras de um pensamento coerente e, muitas vezes, com pretensão dogmática. Assim, o estudo da filosofia antiga não deve privilegiar esta ou aquela corrente filosófica mais conhecida, mas sim mostrar o contexto em que se desenvolveram as polêmicas, frutos da diversidade de pensamentos que geraram teorias diversas sobre a realidade.

O impulso germinador de um pensamento não está na sua capacidade de oferecer respostas, mas sim na sua força problematizadora e crítica capaz de despertar a reflexão. Embora seja mais fácil ancorar nas certezas apresentadas por um conhecimento instituído, é necessário seguir a senda árdua e árida do questionamento, trilhar os becos, as escarpas, os desvios à margem do método e da medida reconhecidos. Porque o saber não se apresenta como algo consolidado e a verdade ora se mostra, ora se esconde e não cessa de se reinventar naquilo que Walter Benjamin denominou bailado das ideias.

Platão (1973, p. 179) nos aconselha, no Sofista, a “recusar a doutrina da imobilidade universal [...] bem como não ouvir aos que fazem o ser mover-se em todos os sentidos”, ou seja, parece preparar para o enfrentamento do paradoxal, do ambíguo e do contraditório no movimento do pensamento. É preciso que o filosofo “imite as crianças que querem ambos ao mesmo tempo, admitindo tudo o que é imóvel e tudo o que se move, o ser e o Todo, ao mesmo tempo”.

A esta breve observação segue notas sobre as origens históricas do pensamento ocidental que, do berço grego floresceu no pensamento filosófico e científico renascentista da aurora do capitalismo. Um pensamento que nasce do mito, tenta superar as crenças religiosas e mitológicas e que desemboca, ao longo da história, em novos mitos que consolidam e reforçam as novas relações de poder.

Na sequência, aborda-se a atividade dos sofistas como os primeiros professores de filosofia e de política, que ensinavam a juventude a questionar valores e normas instituídas para a formação de um pensamento autônomo. A educação nasce, portanto, com a filosofia, tanto como modo de vida quanto como modo de ensinar a pensar. Fecha-se esta leitura com algumas observações sobre Aristóteles, assim como se fecham os anos de ouro da filosofia grega, expressão da crise política e social que leva a Grécia a perder sua hegemonia para outros povos. A educação também pode ser encontrada a grande importância que a filosofia grega atribui à linguagem.

Notas sobre as origens históricas do pensamento ocidental

A filosofia contrapõe à ambiguidade imaginosa da mitologia a univocidade do argumento racional (HELLER, 1983).

A Antiguidade Grega apresenta-se como uma época espacial e temporal que deu origem ao pensamento ocidental, embora as origens e os limites da filosofia não se apresentem de modo claro. A tradição que remonta a Aristóteles nos diz que a reflexão filosófica apareceu no século VI a.C., na região da Grécia e do Sul da Itália. O próprio estabelecimento das origens depende da definição de filosofia e de sua relação com a literatura e a religião da época.

A filosofia antiga parece ter nascido em Mileto, centro comercial e cultural da Jônia, no Mediterrâneo Oriental, entre os séculos VII e VI a.C. Os três grandes milesianos cujos nomes ficaram para a história foram: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. É importante esclarecer que deles sabemos por meio de pensadores posteriores como Platão, Aristóteles, Teofrasto, Simplício, Sexto Empírico, Sêneca, Diógenes Laércio, Orígenes, Marco Aurélio, entre outros, ou seja, sabemos geralmente por citações de documentos que se perderam. O cuidado que se deve ter com as citações é que elas são recortes que, inseridos em outros contextos, com outras intenções, podem mudar de sentido, isto é, não apresentam o sentido do autor originário, mas sim o novo sentido atribuído por quem cita.

Na região da Jônia também floresceram outras cidades (Cólofon, Éfeso, Clazômenas) das quais provieram alguns dos primeiros filósofos. Na mesma época, outra região da qual provieram grandes pensadores foi o Ocidente da Itália (Eléia, Agrigento, Crotona, Taranto). Regiões algumas vezes rivais, nas quais floresceram tradições e pensamentos diferentes. A análise e interpretação dos poucos fragmentos desses primeiros filósofos pode ser efetuada com o auxílio de pensadores como Hegel (1974), Nietzsche (1973) e Heidegger (1973).

Muitas noções desenvolvidas pela filosofia grega, principalmente as concepções de natureza, ordem cósmica, justiça, tinham raízes nas narrativas que eram de conhecimento coletivo, transmitidas na tradição oral popular. A filosofia nasceu com a escrita e procurou dar uma sustentação racional às confusas representações dessa tradição. Buscar as origens ou as influências recíprocas entre o pensamento Ocidental e o Oriental é tarefa difícil: por exemplo, qual a relação entre a teoria numérica de Pitágoras e as concepções religiosas primitivas ou a Cabala? Qual a herança que os egípcios legaram aos gregos? Como a filosofia se engendra no interior do mito e da literatura? Começar da Grécia Antiga não significa ignorar tais relações, mas simplesmente partir de um momento que nos legou uma quantidade maior de documentos.

A partir desses pressupostos, o primeiro problema a enfrentar é o da passagem do mito à razão, que pode ser lido de modos diversos. A segunda questão é a do nascimento da filosofia propriamente dita, desde os físicos, médicos, até Parmênides e Heráclito; Anaxágoras e Empédocles, os mais conhecidos; a terceira pergunta pode ser sobre a situação ambígua de Sócrates ante os sofistas, a ponto de ser transformado, na história da filosofia, no ponto central de referência e de fundação de um modo novo de pensar (tanto que tudo o que existiu antes, em termos de pensamento, é denominado pré-socrático); e, finalmente, a constituição do pensamento posterior a (e herdeiro de) Sócrates (Platão), Aristóteles e as três correntes helenistas posteriores (estóicos, epicuristas e céticos). As regras do jogo político na democracia nascente, a livre discussão e os embates no confronto das argumentações contrárias, mostram a efervescência intelectual de uma sociedade em construção.

Na origem da filosofia, o mito e a poesia: conforme Vernant (2001, p. 229), os mitos se apresentam como um “conjunto de narrativas que falam de deuses e heróis” cultuados na tradição popular. “Neste sentido, a mitologia está próxima da religião: ao lado dos rituais, de que os mitos às vezes tratam de forma muito direta, ora justificando-os”, ora assinalando seus motivos. Ou seja, Vernant (2001) nos esclarece a forma geral do mito: trata-se de uma forma de narrativa oral sobre os tempos primordiais, isto é, sobre a origem ou a criação; é o modo como as sociedades arcaicas representavam coletivamente a geração de todas as coisas, na forma da Teogonia, que podemos entender como a tentativa de explicação da geração dos deuses ou da Cosmogonia, que é a reflexão sobre a origem e formação do mundo.

Nos mitos, os personagens principais são os deuses, responsáveis pela ordem do cosmo e pelo destino dos homens, ou seja, nessa forma de explicação originária dos fenômenos naturais e da vida dos homens, tudo dependia dos desígnios dos deuses e do arbítrio de seus desejos e vontades. Os mitos são narrativas que apresentam um conteúdo moral, religioso e pedagógico, que orientam a formação da conduta e o relacionamento social.

Ao lado dos mitos, a filosofia tem como ponto de partida também a literatura, basicamente a poesia e a linguagem figurativa. A figuração era a forma mais comum de expressão antes da invenção da escrita, voltada a exprimir sentimentos religiosos, representar rituais, deuses, mortos, ou seja, a compreensão da sociedade do que constituía o sobrenatural ou, nas palavras de Vernant (2001), a personificação do invisível. A poesia, por sua vez, com expressão maior no teatro grego, expressava o trágico como elemento constitutivo do imaginário social.

A filosofia nasce destas raízes e, para os gregos, o conhecimento possuía um caráter universal, isto é, a ideia de verdade implicava tanto a inserção do indivíduo na coletividade e na ordem (cosmos) universal quanto a relação dos saberes num todo orgânico no qual se integravam religião, filosofia, ciência, literatura. Os chamados primeiros filósofos foram também astrônomos, geômetras, físicos ou artistas. As especializações e divisões do saber são modernas e não faziam parte do universo dos antigos. A distinção entre o que é filosofia e o que é poesia, física, etc. é herança platônica.

Nesse contexto, a questão da origem da filosofia permanece um problema para os historiadores: a versão mais conhecida é a da filosofia e a ciência terem nascido a partir do momento em que certos pensadores perceberam a possibilidade de explicar os fenômenos naturais de um modo racional, criando métodos de explicação desses fenômenos, no sentido de torná-los mensuráveis e previsíveis. Nessa leitura, a razão, na forma da ciência e da filosofia, engendra-se como um novo saber que se funda nas noções de medida, causalidade, previsão, verificabilidade, conceitos que foram importantes para o conhecimento antigo a partir da escola de Mileto e se consolidaram na filosofia de Aristóteles.

Nessa versão, no nascer da filosofia há oposição ao mito e o substitui, isto é, a filosofia grega constitui-se, no fundo, na raiz de uma razão que, no longo percurso da história ocidental engendra-se no pensamento moderno. Ora, esse entendimento da origem da filosofia apresenta alguns problemas, entre eles, o do próprio significado dos conceitos: medida, causalidade, natureza, para nós, implicam um distanciamento entre sujeito e objeto e uma abordagem linear dos fatos que é próprio da modernidade e que os gregos desconheciam.

Existem elementos históricos que permitem dizer que o rompimento com o mito não foi tão brusco e a religiosidade dos antigos permeou as formas de conhecimento filosófico pelo menos até Sócrates. O misticismo pitagórico não pode ser desvinculado da matemática e a física conviveu com especulações mágicas (o poder de figuras perfeitas) ou antropomórficas (como o “lugar natural”, em Aristóteles). É importante reconhecer também que essa nova racionalidade que, aos poucos, conquista seu lugar e poder no cenário social e político, continua a conviver com os saberes tradicionais no imaginário popular, na astrologia, na magia, na adivinhação, no presságio e na narrativa oral.

As mudanças no universo do conhecimento ocorreram concomitantemente com a consolidação da estrutura urbana e do estatuto político na instituição da lei como princípio básico a reger as relações entre os indivíduos na forma da democracia. O grande centro de florescimento da democracia e também do pensamento filosófico foi Atenas, onde a ordem política se constituiu como espaço efetivo, de direito e de fato, de participação dos cidadãos nas decisões que orientavam a vida coletiva. Tal espaço apresentou-se como campo fértil para o exercício da palavra e do pensamento, para a exposição de ideias e a defesa de interesses cívicos. Atenas tornou-se a referência privilegiada na Grécia por sua vida cultural e política, atraindo e acolhendo intelectuais de várias regiões vizinhas e o livre espaço público funcionou como estímulo a ideias inovadoras e também polêmicas; Atenas passou a ser conhecida na história como a Cidade na qual se criaram as condições políticas que possibilitaram a livre reflexão e a crítica rigorosa; à transparência das práticas públicas vincula-se a arte da palavra na defesa das mais diversas opiniões.

Vejamos o outro lado da questão: se privilegiarmos a situação política como condição de estruturação do pensamento estaremos, implicitamente, dizendo que o discurso filosófico nasceu com Sócrates. A pergunta é: podemos precisar em que momento ocorreu a ruptura com o mito? Com os físicos de Mileto, com o início do debate sobre o problema metafísico com Heráclito e Parmênides ou com a polêmica de Sócrates com os sofistas? Superou-se realmente o mito? Até que ponto uma leitura linear, progressiva e tranquila da formação do discurso filosófico específico, culminando nas teorias de Platão (1973) e Aristóteles (1973), é já uma forma de controle ordenado, fruto de um pensamento hegemônico que coloca na sombra outros pensamentos? Uma razão imperativa não pode ser uma nova forma de mito?

Para historiadores como Vernant (2001), trata-se de mostrar a filosofia como saber pautado por uma lógica dedutiva (ou indutiva) e elaborado nos embates e polêmicas da àgora (Sócrates) e, ao mesmo tempo, como cultivo de mistérios no segredo das seitas (Pitágoras). A filosofia apresenta-se, assim, como um saber que, longe de desvencilhar-se do mito, retoma suas estruturas e amplia visões de mundo que tinham raízes no pensamento religioso; o pensamento elabora-se aos poucos, num movimento que possui um lado luminoso, produzido no esplendor e na contradição do debate público, da clareza de ideias, e outro lado obscuro, ora alimentando-se da religiosidade, ora cercando a verdade na senda negativa, da solidão, da tragédia, da melancolia (Heráclito), dando asas à intuição, exprimindo impressões, imagens da experiência.

O devenir, conforme sua necessidade, tece os fios de tal maneira que nenhuma doxa pode impor-se como decisiva: cada um sente, em contanto com o acontecimento, sua limitação e sua particularidade, mas cada um logo a domina por uma afirmação furiosa que sempre encontra no acontecimento uma prova que lhe basta. O interesse de cada grupo social, de cada individualidade pode, em última análise, pretender a verdade, pois cada ação violenta, em seu tempo, soube triunfar ostentando argumentos da razão (CHATELET, 1972, p. 94-95).

Da perspectiva dos historiadores modernos, a filosofia nasceu com a escola de Mileto. Nos escritos de Hegel sobre a História da Filosofia, Tales é reconhecido como o primeiro filósofo por buscar o primeiro princípio e reconhecê-lo na água. Conforme Hegel, mesmo partindo do sensível, Tales distancia-se da percepção sensível e também da tradição mítica e literária; o que fez de Tales um filósofo foi a capacidade de reconhecer, no singular, o universal, acentuando que a realidade apresenta uma unidade.

Além disso, Nietzsche também se refere a Tales como o primeiro filósofo, principalmente por refletir sobre o princípio de tudo de forma metódica, a fim de explicitar o significado da unidade. A força do postulado metafísico formulado por Tales revela o vínculo da filosofia com as crenças místicas, mas também o salto de qualidade que se efetua na reflexão filosófica. A filosofia se constitui numa esfera de saber e numa intuição inovadora, à medida que vive, contempla, intui e expõe em conceitos.

O segundo milesiano foi Anaximandro (610-547 a.C.), discípulo e sucessor de Tales, que acabou por aprofundar suas teorias. Divergiu de Tales a respeito do que constituía a origem de todas as coisas. Para Anaximandro, tal elemento constitutivo não podia ser observável na natureza, visto que esta se compõe de elementos que se limitam entre si, embatem-se e se engendram no conflito e na mudança. O substrato de toda a realidade era designado por ele de o indeterminado, ilimitado (ápeiron), princípio de tudo. Anaxímenes, companheiro de Anaximandro, afirma também que a natureza subjacente é uma só, mas difere de Anaximandro ao dizer que tal substância é o ar. Para Hegel, a designação do ser originário na forma pensada por Anaxímenes (585-528/5 a.C.) possibilita a passagem da filosofia da natureza para a filosofia da consciência, cuja expressão mais determinada está em Anaxágoras, seu discípulo.

Uma das figuras mais instigantes e mais difíceis de interpretar é, certamente, Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.), que já era denominado “Obscuro” por seus contemporâneos. Opondo-se às tradições e costumes que aos poucos engendravam um pensamento analítico, Heráclito evidencia as contradições e as aprofunda, mostrando o avesso do pensar coerente fundado na não-contradição, a ponto de colocar em risco a própria possibilidade do conhecimento. Tudo é movimento e nasce da discórdia, confrontando medida e desmedida e convergindo a uma unidade harmoniosa e dinâmica que constitui o Cosmos. O elemento primordial é o fogo sempre vivo, que tem como seu oposto a água, que é também sua morte; fogo, água, terra, ar, contrários e opostos, do seu combate produz-se o movimento cósmico.

Essa unidade de determinações opostas evidencia, para Hegel, a elaboração de um pensamento dialético. Hegel (1974) atribui a Heráclito tanto a colocação do problema ontológico que motivou a existência da filosofia quanto a coragem de enunciar o movimento como o elemento constitutivo de todas as coisas e de elevar o conflito, a princípio lógico, de formulação do pensamento. Conhecer significa reconhecer as forças profundas que engendram o cosmos na luta permanente dos contrários. A razão reconhece a força criadora e propulsora do devir que se confunde com todas as coisas.

Também Nietzsche (1973) acentua a importância de Heráclito na explicitação do movimento, contrapondo a força da representação intuitiva ao pensamento analítico e vislumbra em Heráclito um pensamento intuitivo que se contrapõe a uma razão que se engendra como lógica dedutiva. A possibilidade dessa representação do mundo foi dada tanto pela produção mítica e poética da época (Hesíodo) quanto pela estrutura dos Estados gregos, que assumiram o conflito como a base de sua organização social e da livre reflexão.

Ao erigir o movimento e a contradição como leis universais, essa nova filosofia abre caminho para a manifestação da pluralidade sem deixar de pensar a unidade na relação de forças divergentes que, em determinados momentos, se equilibram. A grande contribuição de Heráclito foi entender que a tensão entre os contrários pode gerar harmonia, além de uma realidade contraditória se esconder sob uma aparência que, ao ser observada em profundidade, desvela suas tensões.

Outra corrente que floresceu na antiguidade foi a filosofia dos Eleatas. As reflexões sobre a origem também aparecem na Jônia, (570-528 a.C.): Parmênides de Eléia (530-460 a.C.), seguiu inicialmente o pensamento pitagórico e sabemos a seu respeito principalmente por meio de Platão, Aristóteles, Sexto Empírico e Simplício. Seu pensamento partiu de um fervor religioso para superar o místico e desenvolver-se num discurso claro. Escreveu em versos o texto Sobre a Natureza que, na primeira parte trata da verdade e, na segunda, da opinião.

A verdade, para Parmênides, é que o Ser é uno, eterno, imóvel. Do ponto de vista do conhecimento, tais conclusões resultam da aplicação rigorosa e coerente do princípio da não-contradição, regra que desvela as características do Ser e define a coincidência da lógica com a ontologia. Nesse princípio pode-se identificar ainda uma influência religiosa da esfera do mito.

Para Schopenhauer (2003) os eleatas foram os primeiros a reconhecerem a oposição entre pensado e intuído, o pensado da ordem do ser verdadeiro e o intuído da ordem do aparecer, do empiricamente dado. A pergunta sobre o lugar do sensível, de como explicar o movimento e a permanente mudança de todas as coisas, decorre da concepção do que é verdadeiro. O sensível, a ordem do fenômeno, corresponde a uma realidade menor, ilusória: o lugar da opinião, da aparência e do engano, ou seja, o mundo da perspectiva do senso comum. Essa questão é controversa, principalmente em relação ao momento em que tais ideias foram elaboradas.

O pensamento de Parmênides é desenvolvido por seu discípulo Zenão de Eleia (504/1-? a.C.) que, além de um grande pensador, atuou na política no combate à tirania, sendo preso, torturado e morto, em data desconhecida. Zenão desenvolveu o método de Parmênides, posto como argumento preciso e rigoroso que parte dos princípios do interlocutor para refutá-los sistematicamente. Neste sentido, Zenão criou a forma literária dos diálogos, desenvolvida mais tarde por Platão. O método consiste em admitir inicialmente a tese contrária para demonstrar suas contradições internas e a sua impossibilidade lógica, prática que Aristóteles designou como método dialético. O objetivo de Zenão era refutar tanto a tese pitagórica da identificação das coisas com números, quanto demostrar que o movimento e a pluralidade são impensáveis por serem contraditórios. Ao contrário de Parmênides, que afirmava o imóvel e imutável, Zenão admitia o movimento a fim de refutá-lo.

Hegel (1974) acentua que a determinação da dialética enquanto método vincula-se ao próprio movimento de constituição política da democracia grega, na abertura do espaço público ao debate e ao confronto, na geração de uma nova atitude teórica, que visa a construção do pensamento a partir da polêmica e do enfrentamento de opiniões diversas. A característica da dialética é, precisamente, a de confrontar duas verdades: supera-se a atitude de argumentar tomando como pressuposto verdadeiro um sistema para refutar o outro como falso, por não concordar com os paradigmas do primeiro, mas entende-se que o outro sistema tem o mesmo direito de afirmar-se como verdadeiro e devemos demonstrar sua falsidade a partir de sua estrutura interna, de suas possíveis contradições e não da comparação com o sistema que tomamos como verdade. Esta prática foi desenvolvida posteriormente por Sócrates e Platão nos diálogos.

O terceiro eleata foi Melisso de Samos, contemporâneo de Zenão, também conhecido como general que combateu e derrotou os atenienses em 441 a.C. Melisso retoma Parmênides ampliando a sua teoria ao afirmar que o ser, além de infinito no tempo, o é também no espaço, argumentando que o limite espacial dá lugar ao não-ser existente.

Do Sul da Itália, nos vem os ecos da filosofia de Empédocles de Agrigento (490-435 a.C.): Empédocles nasceu em Agrigento, na Sicília e tornou-se uma figura lendária, como cientista, filósofo e místico. De sua obra conservaram-se em torno de 450 versos, nos quais se vislumbra a sua relação com Parmênides, no sentido da compreensão do ser como pleno e na preocupação em firmar a unidade. Para ele, a questão que os eleatas deixaram em aberto, no âmbito do conhecimento e da lógica, foi a da natureza da multiplicidade e suas manifestações. Para resolvê-la, propõe uma unidade composta de quatro elementos primordiais: fogo, ar, água e terra, de cuja combinação resulta a ordem do mundo. São elementos permanentes que, movidos por forças que denomina Amor e Ódio, unem-se e separam-se formando todas as coisas.

Em Atenas também encontramos Anaxágoras de Clazômenas (cerca de 500-428 a.C.): amigo pessoal de Péricles, Anaxágoras viveu cerca de 30 anos em Atenas, onde fundou uma escola filosófica. Conforme Aristóteles, este pensador foi o primeiro a reconhecer o pensamento ou o entendimento como princípio e de todas as coisas, procurando resolver alguns problemas da filosofia de Parmênides, ou seja, entender como na unidade engendra-se o movimento, a mudança, o nascer e perecer de todas as coisas. Anaxágoras reconheceu o pensamento como essência do mundo, como universal e atividade que, enquanto produz o movimento, conserva-se como idêntico a si, inovando, dessa forma, tanto ante Parmênides quanto ante Heráclito.

Para Nietzsche (1973), a questão posta no debate filosófico era superar o paradoxo colocado entre imóvel e móvel e Anaxágoras tentou resolvê-lo na constatação de que as representações trazem em si a origem do movimento. Conforme Anaxágoras, a passagem do Caos à ordem cósmica foi consequência de um movimento de rotação, primeiro impulso circular, que aproximou e juntou os semelhantes (úmido, seco, claro, sombrio, pesado, leve, quente, frio), ordenando de modo inteligente todas as coisas. Para Nietzsche, esta é uma noção que, na sua simplicidade, procura estabelecer a origem da ordem cósmica no círculo em movimento, enquanto Parmênides a concebia em repouso.

Uma figura polemica foi Demócrito de Abdera (460-370 a.C.): Demócrito foi discípulo de Leocipo de Mileto, do qual restaram poucas informações. Diógenes Laércio nos diz que Demócrito deixou cerca de noventa obras, das quais nos chegaram alguns fragmentos. Embora seja denominado pré-socrático, viveu na mesma época de Sócrates e morreu muito depois deste, o que leva a concluir que a perda de sua vasta obra pode dever-se à indiferença ou até à hostilidade de sua época e das épocas posteriores por suas ideias.

A problemática de Demócrito continua sendo a de entender os fundamentos da relação entre unidade e diversidade, imóvel e sensível, sendo que lhe deu uma resposta inovadora que foi denominada atomismo. É importante esclarecer que a palavra átomo tinha um sentido diverso daquele que o termo assumiu na modernidade: apresentava, precisamente, o sentido de indivisível, significado que permitiu a Hegel traduzi-lo como absoluto, princípio que expressa o positivo, vinculado ao negativo, que é o vazio.

A referência de Hegel (1974) ao atomismo atribui a Leocipo o mérito de conceber, com rigor especulativo, a determinação universal do elemento corpóreo ou das coisas sensíveis, ou seja, em Leocipo e Demócrito o princípio, o absoluto, são buscados no mundo sensível; o átomo é um elemento abstrato do pensamento, não sensível. Nesse contexto, Leocipo e Demócrito aliaram o rigor e a precisão lógica, herança dos eleatas, com a filosofia da natureza, de tradição milesiana, para elaborar uma teoria completamente nova, designada ora por materialismo, ora por paganismo.

Nietzsche (1973) reconhece a consistência lógica da filosofia de Demócrito e acentua os ataques que tal pensamento sofreu já na sua época, principalmente por Platão, fato que direcionou a leitura histórica. Demócrito abriu a senda para o lado obscuro da razão, muitas vezes recusado e silenciado no curso da história da filosofia, que é o avesso, o estranho, o oculto, o nosso outro escondido, de um sujeito que se pensa e se descobre miserável. “A dor, que não é excessiva, rompe em vozes; a excessiva, emudece. Desta sorte a tristeza, se moderada, faz chorar, se excessiva, pode fazer rir” (VIEIRA, 2001, p. 25). Demócrito leva ao ápice a ironia: “O riso de Demócrito era ironia do pranto; ria, mas ironicamente, porque o seu riso era nascido da tristeza e também a significava” (VIEIRA, 2001, p. 25).

Do ponto de vista histórico, a filosofia reinterpreta as ideias produzidas em determinadas épocas, desfazendo equívocos ou evidenciando a justa importância de cada filosofia. É o que salienta Nietzsche (1973, p. 43) em sua leitura de Heráclito e a sua feliz teorização do vir-a-ser, como “uma representação terrível e atordoante” que, em sua “influência aparenta-se muito de perto com a sensação de alguém, em um terremoto, ao perder a confiança em terra firme”.

Constantemente uma qualidade entra em discórdia consigo mesma e separa-se em seus contrários: constantemente esses contrários lutam outra vez um em direção ao outro. O povo pensa, por certo, conhecer algo rígido, pronto, permanente; na verdade, há a cada instante luz e escuro, amargo e doce lado a lado e presos um ao outro, como dois contendores dos quais, ora um, ora outro, tem a supremacia. O mel, segundo Heráclito, é a um tempo amargo e doce e o próprio mundo é um cadinho que tem de ser constantemente agitado. Da guerra dos opostos nasce todo vir-a-ser. [...]. Tudo ocorre na medida desse conflito e é precisamente esse conflito que revela a eterna justiça (NIETZSCHE, 1973, p. 43-44).

O mundo como movimento, fogo eternamente vivo, os aforismas sibilinos na forma oracular fazem de Heráclito uma figura enigmática, obscura, que os poucos documentos que restaram não permitem esclarecer. O que ficou foi a sua afirmação do caráter mutável da realidade na simbologia do rio e seu movimento, aparência que esconde a unidade profunda de todas as coisas e que o Logos pretende desvelar.

A filosofia pré-socrática se constitui de muitos mistérios, mas também de belas revelações: o caso de Demócrito é emblemático. Perseguido, injuriado por Platão, designado como expoente do paganismo pelo cristianismo nascente, pouco se sabe de seus escritos. Irônico no seu modo de ver o mundo, Demócrito ri da miséria humana, riso que Vieira define como o verdadeiro pranto porque é a expressão da mais extrema dor. Demócrito, contemporâneo de Sócrates, alia o atomismo físico, de raiz mecanicista, a uma ética normativa; instaura um paradigma de filosofar oposto ao socrático, fundado na decifração dos signos da natureza que se constitui como parte do humano, o qual se quer diverso porque é racional.

Os sofistas e a arte de ensinar

Já os sofistas, primeiros professores de filosofia, que ensinavam a arte da dúvida, do questionamento das tradições, eram criticados por Platão na sábia palavra de Sócrates.

Os chamados sofistas não defendiam sistemas ou ideias, mas sim uma atitude ou modo de ensinar. Foram professores que iam de cidade em cidade oferecendo seu trabalho e cobrando por seus cursos. Seu objetivo, portanto, não era a pesquisa da verdade, mas o exercício de práticas de convencimento e persuasão, isto é, a arte da retórica. O método possuía uma característica essencialmente técnica para formar habilidades no domínio da palavra, a fim de persuadir um público. Para tanto, tornavam-se eruditos, conhecedores de vários assuntos e capazes de apresentar os mais variados temas, predominando a moral e a política. Os mais conhecidos entre eles foram Protágoras de Abdera, Hípias de Élis, Górgias de Leontino, citados por Sócrates e Platão em seus diálogos.

Sócrates (470-399) foi uma figura ambígua, conhecida por meio dos vários escritos de Platão e da sátira de Aristófanes denominada As Nuvens. Após a sua morte, Xenofonte escreveu a apologia Memoráveis e surgiram vários outros escritos de discípulos menos conhecidos. Sócrates dizia não ter nenhuma doutrina a propor e que recebera dos deuses a função de exortar as pessoas a fim de despertar nelas o interesse pela busca da verdade. Nesse contexto, sua função não era muito diferente daquela que os sofistas exerciam, ou seja, Sócrates também ensinava, mas não a convencer ou persuadir outros para conquistar algum poder, mas ensinava a conquistar a autonomia do pensamento, a exercitar-se na busca da sabedoria. Seu método, que dizia ter aprendido com sua mãe, parteira, denominava-se maiêutica, parto de ideias.

A maiêutica vinha precedida da ironia, isto é, da crítica e desconstrução do dado, para dar à luz, por meio do discurso, a verdade escondida. Esta forma de abordagem dos problemas também se chama dialética, no sentido de arte do diálogo, da negação e da afirmação no confronto de argumentos opostos para alcançar um conhecimento verdadeiro. A diferença de Sócrates em relação aos sofistas quanto à essência do discurso estava na aplicação do método para descobrir o verdadeiro, distinguindo-o do falso. O percurso do diálogo distingue o pensamento da opinião e da imaginação, evidenciando o pensamento no discurso.

A diferença de Sócrates em relação aos sofistas está na concepção e aplicação do método: se para os sofistas a questão não era a verdade, mas a arte da retórica, para Sócrates a investigação acerca da verdade punha-se como objetivo central de sua vida, um modo de ser que, em certos momentos, parece até algo obsessivo, uma missão, esta que ele estava condenado. Esta mania tinha como motivação o oráculo de Delfos, ou seja, a investigação socrática foi motivada pelo mito, como a proposição de um jogo que visa validar a crença ou que exige o confronto e a permanente constatação de sua verdade.

Na época de Sócrates e Platão delineiam-se dois caminhos distintos de pesquisa que implicam duas atitudes diferentes ante a ideia de verdade: enquanto Demócrito volta-se para a natureza sensível a fim de desvelar-lhe os mistérios, Sócrates ressalta a consciência na busca de verdades inscritas na alma, inaugurando o caminho da razão purificada de sensações, paixões e sensível; a comparação também pode ser feita com os sofistas: enquanto estes concentram-se nas relações sociais e políticas, Sócrates desqualifica a retórica e acentua o “conhecer-se a si mesmo” como caminho para a verdade.

A sistematização da filosofia grega encontra o seu grande expoente em Aristóteles: uma figura emblemática no pensamento grego, cujo trabalho pode ser considerado uma primeira História da Filosofia e da Ciência da época. Aristóteles foi responsável pela primeira formulação sistemática da filosofia, com a passagem da dialética platônica para a lógica formal como instrumento de organização do pensamento.

A opinião de Schopenhauer a respeito de Aristóteles expressa, em linhas gerais, a crítica moderna ao sistema aristotélico: Schopenhauer (2003, p. 37-38) reconhece que Aristóteles tinha o dom da observação e uma grande versatilidade, mas aliada a uma falta de profundidade; o autor demonstra indignação ante uma filosofia que ele denomina “rasa” e que simplesmente julga e nega as teorias anteriores que, embora mais avançadas, são contrárias à sua visão de mundo, “ele descobre problemas por toda parte, porém só toca neles e passa logo para outro assunto, sem resolvê-los ou discuti-los profundamente” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 38).

É necessário salientar que cada época faz uma leitura nova dos autores clássicos e Aristóteles não foge à regra: tendo sido uma das bases de referência da filosofia medieval, Aristóteles foi alvo de várias críticas dos modernos, que precisavam marcar sua diferença com sua teoria para construir um pensamento novo. Schopenhauer é um desses críticos, mas foi precedido por pensadores como Galileu Galilei, Francis Bacon e outros. Ao considerar a teoria aristotélica sobre a ordem dos céus, a fixidez das estrelas e a imobilidade da Terra, Schopenhauer não pode conter sua indignação, dizendo que Aristóteles retoma corretamente as ideias pitagóricas sobre a forma, a posição e o movimento da Terra, mas apenas para condená-las. Esta indignação aumenta quando se entende o modo como ele polemiza com Empédocles, Heráclito e Demócrito, distorcendo suas ideias corretas com sua tagarelice fútil, que se apoia no senso comum.

Empédocles já tinha até mesmo falado de uma força tangencial que surge da rotação e que é contrária à gravidade (2, 1 e 13, escólios, p. 491). Longe de poder estimar essas coisas devidamente, Aristóteles nem por uma vez aceita as ideias daqueles antigos sobre o verdadeiro significado do alto e do baixo, mas adere nisso à opinião do vulgo que segue a aparência superficial (4, 2). Mas o importante é que suas ideias tiveram reconhecimento e divulgação, recalcando tudo o que era anterior e melhor, tendo-se tornado mais tarde o fundamento do sistema de mundo de Hiparco e depois de Ptolomeu, que a humanidade teve de arrastar até o começo do século XVI, certamente para grande vantagem das doutrinas religiosas judaico-cristãs as quais, no fundo, são incompatíveis com o sistema de mundo de Copérnico. Pois como pode haver um Deus no céu, se não existe céu? (SCHOPENHAUER, 2003, p. 41).

A questão de fundo de Schopenhauer é que o elo entre filosofia e mito ou a forma como o teísmo interfere na visão de mundo de Aristóteles, tem-se a necessidade de dividir o mundo em céu e terra, negando as grandes conquistas que os gregos fizeram no campo da astronomia, da física e da matemática. Além disso, Schopenhauer coloca uma observação importante sobre o teísmo: todo deus é pessoal, ou seja, “não tem nenhum lugar, mas estaria em toda a parte e em nenhuma”, podendo-se, portanto, apenas “nomear, mas não imaginar”, o que torna difícil a crença. Portanto, “na medida em que a astronomia for popularizada, o teísmo tem de desaparecer, por mais firmemente que esteja gravado nos homens por meio de pregações contínuas e solenes” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 41).

Para concluir:

"Toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica (GRAMSCI, 1978)."

As observações aqui levantadas, apresentadas como breves notas sobre as origens da filosofia, podem nos servir para pensar a educação tanto como modo de vida quanto como ensino (ainda não sistemático), visto que a atividade dos sofistas nos leva a entender que a tarefa da filosofia é a formação de um pensamento autônomo, crítico, dialético, como entendido por estes primeiros professores. A sistematização da filosofia gerou um outro tipo de ensino mais adequado aos objetivos de civilização. Estes objetivos, que se organizaram em estruturas econômicas e políticas ao longo da história ocidental. Mas temos que afirmar, com Chatelet (1972, p. 103), que “não há ‘torre de marfim’ para o filósofo: é um daímon que o impele a lutar contra as visões parciais e errôneas e contra a violência”, porque a filosofia só pode ser exercida onde existir liberdade de pensamento. Para o filósofo, a “alternativa não está entre a palavra e o silêncio, mas entre a palavra e a corrupção, entre o risco da morte e a imoralidade”. Este foi o exemplo que nos chegou de Sócrates e que nos mostrou que existe uma implicação necessária entre “o exercício da filosofia e o ato pedagógico e político”.

O objetivo que nos orientou foi o de mostrar a importância da filosofia crítica para a formação integral do aluno, como disciplina curricular que possibilita formar um pensamento autônomo sobre a realidade e, consequentemente, formar opinião e contribuir para uma ação política efetiva, no sentido gramsciano de que tudo é política e, portanto, qualquer opinião manifesta uma tomada de posição ante o social.

Na medida em que a Grécia se organiza politicamente e Atenas assume a hegemonia política, a filosofia também se organiza como o pensamento que justifica a ordem e define a totalidade que se esboça naquele momento histórico. A nossa leitura se firmou em fragmentos de Hegel, Nietzsche e Schopenhauer, mas o caminho a ser percorrido fica em aberto, sendo que a filosofia da praxis teria muito a dizer sobre este assunto. A observação de Schopenhauer, por exemplo, de que a astronomia, se popularizada, poria fim ao teísmo, nos parece muito pertinente e atual, podendo se concretizar se a ciência não se tornasse instrumento de poder nas mãos limitadas das classes dominantes. Mas este assunto fica em aberto, para novas reflexões.

Referências

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Recebido: 30 de Julho de 2018; Aceito: 10 de Setembro de 2018

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AHS: Doutora em História, e-mail: anitahelena1917@gmail.com

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