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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.19 no.61 Curitiba abr./jun 2019  Epub 31-Jan-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.19.061.ao08 

Artigos

O sentido de uma vida examinada: a importância da pedagogia socrática na educação contemporânea

The meaning of an examined life: the importance of “Socratic Pedagogy” in contemporary education

El sentido de una vida examinada: la importancia de la “pedagogía socrática” en la educación contemporánea

Eldon Henrique Mühla 
http://orcid.org/0000-0002-8025-1680

Rosana Cristina Kohlsb 

a Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, RS, Brasil. Doutor em Educação, e-mail: eldon@upf.br

b Universidade do Contestado (UNC), Mafra, SC, Brasil. Mestre em Educação, e-mail: rosana@unc.br


Resumo

O artigo tem como referência as reflexões de Martha Nussbaum relativas ao tema do sentido de uma vida examinada na educação contemporânea. A análise centra-se no seguinte questionamento: qual a importância de uma vida examinada e quais as implicações dessa condição para a formação do sujeito na atual sociedade complexa e plural? Partindo do diagnóstico de Nussbaum sobre a tendência mundial de se reduzir a educação a um processo de capacitação para o mercado, procura-se avaliar a importância e as exigências das reflexões da pensadora americana ao propor uma educação na perspectiva socrática, apontando a necessidade da reflexão e o desenvolvimento da capacidade de argumentação como bases da formação pedagógica. Considera-se que a retomada da pedagogia socrática proposta pela autora apresenta-se como importante referência para o desenvolvimento de uma formação humanística de cada indivíduo e a construção de uma sociedade democrática.

Palavras-chave: Argumentação; Autoexame; Humanização; Democracia

Abstract

The following article is based on Martha Nussbaum’s thoughts about the meaning of an examined life in contemporary education. The analysis focuses on the following questions: what is the importance of an examined life and what are the implications of this condition for the formation of individuals in today's complex and plural society? Starting from Nussbaum's diagnosis of the worldwide tendency of reducing education to a process of market empowerment, the aim here is to evaluate Nussbaum’s importance and demands in proposing an education under the Socratic perspective, by pointing out the need for reflection and the development of the capacity of argumentation as bases of the pedagogical formation. It is considered that the Socratic pedagogy, as proposed by the author, is an important reference for the development of a humanistic formation of each individual and the construction of a democratic society.

Keywords: Argumentation; Self-exam; Humanization; Democracy

Resumen

El artículo tiene como referencia las reflexiones de Martha Nussbaum relativas al tema del sentido de una vida examinada en la educación contemporánea. El análisis se centra en el siguiente cuestionamiento: ¿cuál es la importancia de una vida examinada y cuáles las implicaciones de esa condición para la formación del sujeto en la actual sociedad compleja y plural? A partir del diagnóstico de Nussbaum sobre la tendencia mundial de reducir la educación a un proceso de capacitación para el mercado, se busca evaluar la importancia y las exigencias de las reflexiones de la pensadora estadounidense al proponer una educación desde la perspectiva socrática, apuntando la necesidad de la reflexión y el desarrollo de la capacidad de argumentación como bases de la formación pedagógica. Se considera que la reanudación de la pedagogía socrática propuesta por la autora se presenta como importante referencia para el desarrollo de una formación humanista de cada individuo y la construcción de una sociedad democrática.

Palabras-clave: Argumento; Autoexamen; Humanización; Democracia

Introdução

Se están produciendo cambios drásticos en aquello que las sociedades democráticas enseñan a sus jóvenes, pero se trata de cambios que aún no se sometieron a un análisis profundo. Sedientos de dinero, los estados nacionales y sus sistemas de educación están descartando sin advertirlo ciertas aptitudes que son necesarias para mantener viva la democracia. Si esta tendencia se prolonga, las naciones de todo el mundo en breve producirán generaciones enteras de máquinas utilitarias, en lugar de ciudadanos cabales con la capacidad de pensar por sí mismos, poseer una mirada crítica sobre las tradiciones y comprender la importancia de los logros y los sufrimientos ajenos (NUSSBAUM, 2010, p. 20).

A imposição crescente da visão tecnicista e mercadológica na educação atual tem negligenciado alguns dos elementos fundamentais das práticas formativas, causando problemas no desenvolvimento intelectual, social, cultural, moral e estético dos educandos. Estamos em risco de formar gerações inteiras de “máquinas utilitaristas” em lugar de cidadãos com capacidade de pensar por si mesmos, de terem uma visão crítica sobre a realidade e sobre a própria tradição. Trata-se, fundamentalmente, do esquecimento da tarefa de pensarmos a vida que levamos e as consequências das posições que assumimos. Ao não examinarmos a vida cotidiana, esquecemos não só de pensar o sentido da nossa própria existência, mas colocamos em xeque o mundo das novas gerações e o próprio futuro da humanidade. Em síntese, colocamos em risco a própria possibilidade de um futuro humano da sociedade.

Diante de tal quadro, consideramos que a proposta de uma educação pelas humanidades e da retomada da pedagogia socrática, feita por Nussbaum, pode se constituir em uma referência capaz de nos auxiliar na tarefa de rever o sentido da educação e, também, da nossa própria existência. Afinal, para educar, precisamos acreditar sempre de novo em uma sociedade cada vez mais justa e democrática e em um mundo cada vez mais decente e humano.

A Antiga Grécia foi o berço no qual as grandes questões da existência humana se tornaram, inicialmente, temas de debates no pensamento ocidental. Como fonte de inúmeras reflexões de toda ordem, nela podemos encontrar referenciais que consideram a formação pelo pensar um procedimento importante e necessário para a construção do sentido da vida e a formação social e política dos indivíduos. No tempo atual, marcado por uma visão reducionista de formação e pela predominância de concepções unidimensionais de vida, em grande parte determinadas pelo mercado, retomar tal referencial pode parecer ingenuidade. Em um contexto em que se fala de habilidades e competências técnico-científicas, torna-se difícil argumentar sobre a importância de uma habilidade muito elementar e que faz parte da formação da nossa subjetividade: o exame de nossa própria vida, envolvendo emoções, sentimentos, valores, virtudes, comportamentos, limitações, fracassos, erros, contradições. Para muitos, esta volta ao modo de pensar e agir dos antepassados soa como um pedantismo arcaico, já superado pelos atrativos de uma modernidade que constantemente se renova e oferece encantamentos sedutores, com promessas de soluções práticas, de felicidade e alegrias programáveis, fáceis e imediatas. Porém, a vida não parece ser tão programável e, por isso, continuamos sentindo a necessidade de pensá-la e de a envolvermos com questões cuja origem remonta ao passado, especialmente ao passado que deixou marcas profundas em nossa cultura, como a experiência dos gregos e as reflexões que seus pensadores desenvolveram.

Segundo Nussbaum (2012a), os pensadores gregos nos revelam que é no campo dos princípios, das virtudes e da formação humana refletida que reside o sentido da vida. Eles consideram que é no exame da vida que os indivíduos encontram o significado para a existência humana e podem construir alternativas capazes de realizar uma vida bem-sucedida. Afinal, um ser humano que não sabe de si mesmo não pode ser considerado um ser humano. Por isso, retomar o papel da reflexão e a pedagogia socrática é, para a autora, uma tarefa que se constitui em contraponto à ênfase irrefletida que predomina na sociedade atual sob a lógica da racionalidade econômica, instrumental e de uma concepção reducionista de formação.

Neste texto, buscamos analisar, inicialmente, o que se entende por “vida examinada” e qual é sua necessidade para a formação humana e para o desenvolvimento de uma sociedade democrática, além de esclarecer quais são as atitudes necessárias para tanto. Em um segundo momento, desenvolvemos algumas reflexões sobre possíveis consequências de uma vida sem exame, assim como as perspectivas e as possibilidades do desenvolvimento da ideia socrática do exame da vida no campo da Educação. Por fim, apontamos algumas alternativas que Nussbaum apresenta e que podem auxiliar no desenvolvimento de uma educação reflexiva, destinada a uma vida justa e ao desenvolvimento da democracia.

A vida examinada: necessidade de reflexão e de argumentação

Nussbaum inicia o capítulo primeiro da obra El cultivo de la humanidad (2012a) apresentando, em epígrafe, a célebre afirmação de Sócrates em que ele declara que uma vida não examinada não é digna de ser vivida:

Si os dijera que el mayor bien para un hombre resulta ser el hecho de pasar todo el día razonando acerca de la virtud e de los otros argumentos de que me habéis oído hablar cuando me examino yo mismo y examino a los demás; y si os dijera que una vida sin examen no es digna de ser vivida por un hombre, creeréis aún menos lo que digo. Sin embargo, es así, como os lo digo, aunque no es fácil persuadiros de ello (2012a, p. 35).

É a partir dessa ideia do exame da vida e das implicações formativas que esta pode acarretar que a autora revela e analisa o que chama de uma “pedagogia socrática”. Trata-se de uma tentativa de refletir sobre a importância que adquire a maiêutica socrática, baseada na reflexão e na argumentação, quando se deseja formar pessoas críticas, participativas, responsáveis, em contraposição à indiferença, à apatia e ao egoísmo, decorrentes de uma vida não refletida.

A autora procura esclarecer a importância da vida examinada, reconstruindo a argumentação socrática na defesa de sua pedagogia. Ela considera a prática da argumentação socrática fundamental para o desenvolvimento humano e para o estabelecimento da democracia:

La capacidad de argumentar de este modo constituye, como lo proclama Sócrates, un valor para la democracia. No obstante, ese ideal socrático se encuentra en graves dificultades dentro de un mundo decidido a maximizar el crecimiento económico (NUSSBAUM, 2010, p. 76, grifo dos autores).

A argumentação socrática envolve o exercício da competência argumentativa do indivíduo de defender suas posições nos debates públicos. A capacidade de argumentação é a condição necessária para que o indivíduo possa participar nas decisões da cidade grega, e essa capacidade decorre do exame da vida de cada cidadão. Como arte da retórica, ela compreende a memória, a improvisação, a crítica e a exposição das justificativas. A memória compreende a capacidade de trazer à tona leituras, textos e relatos de importância pública. Conhecer as narrativas e as mitologias e saber narrar eram exigências da prática da argumentação. A improvisação consiste na arte de inventar cenas, de imitar formas de falas, de criar representações, de mimetizar (arte mimética). A crítica implica saber apontar os limites e as contradições dos concorrentes, problematizar as compreensões e indicar as consequências de certas visões expostas no debate. A argumentação propriamente dita compreende a arte de esclarecer as ideias, de apresentar relações de causalidade, de fazer perguntas e desenvolver interrogatórios capazes de expor as contradições dos concorrentes. A argumentação é, portanto, a arte dialética exercida no debate público da cidade grega.

Examinar a vida significa, portanto, desenvolver a capacidade de reflexão e de argumentação, ou seja, aprender a ser criativo e ativo diante do mundo. Pensar e argumentar publicamente são exigências complementares entre si e fundamentais para a humanização e o desenvolvimento da democracia. Sem essas duas práticas na nossa formação, corremos o risco de destruir as condições que tornam possível a construção de uma humanidade solidária, fraterna e feliz.

Em sua análise da conjuntura atual, a pensadora norte-americana constata que uma das características dos meios sociais e educacionais da atualidade é a ausência da reflexão, ou seja, da capacidade de refletir e de argumentar ou de refletir para argumentar. Escreve a autora: “Muchas personas consideran que se puede prescindir de la capacidad de pensar y argumentar por uno mismo si se busca un resultado comercializable que pueda cuantificarse” (NUSSBAUM, 2010, p. 76). As pessoas têm se posicionado diante de situações de extrema importância para a vida política, econômica e cultural movidas pela mera “opinião”, sem apresentar argumentos e sem refletir sobre o sentido e o fundamento de sua posição. Com isso, os indivíduos tornam-se meras peças das gigantescas máquinas de produção e reprodução de uma vida alienada. Opinam sem pensar, sem refletir. Emitem julgamentos precipitados, imediatos, sem avaliar a real situação dos acontecimentos. Sustentam-se em “achismos”, geralmente revestidos de preconceitos e/ou compreensões equivocadas ou parciais. Consideram a discussão como uma oportunidade de imposição de sua opinião e de sua concepção ideológica. Falam, mas não conseguem dialogar.

Neste contexto, a argumentação torna-se uma prática improdutiva, pouco eficaz, pois o que importa é a eficiência técnica e a simplificação funcional das interações humanas e da própria comunicação. A ausência de práticas de argumentação traz, porém, consequências graves para a formação do indivíduo e para o desenvolvimento da educação. Anomia, apatia, indiferença, individualismo, competição e ódio são algumas de suas consequências. No entendimento de Nussbaum (2010), ela coloca em risco a realização humana e o futuro da democracia, uma vez que limita a nossa capacidade de levar em consideração o outro, impedindo que ele se coloque em conversação, expondo seus argumentos. Em situação extrema, o outro passa a ser considerado alguém que não merece nosso reconhecimento, um ser não racional, não humano, incapaz para o diálogo, sem dignidade e sem direitos.

A emissão de um parecer e o desenvolvimento de um argumento exigem a capacidade de se colocar no lugar do outro e de examinar a própria atitude diante dos outros. Trata-se da capacidade de se autoexaminar, de se colocar em julgamento diante dos outros, de apresentar argumentos e de avaliar os próprios juízos na interação. Em consequência, pondera Nussbaum (2010), é preciso criar uma cultura corporativa em que as opiniões críticas não sejam silenciadas, mas tornadas públicas e avaliadas com responsabilidade e respeito. O desenvolvimento desta cultura é condição para a superação da repugnância e do ocultamento dos outros (cf. NUSSBAUM, 2012b), para a construção de uma cidadania mundial (cf. NUSSBAUM, 2012c) e para o estabelecimento da justiça social (cf. NUSSBAUM, 2014)1.

No entender de Nussbaum (2010), Sócrates nos oferece elementos importantes para repensarmos o papel da educação atual. Sócrates perdeu a vida por defender o direito de refletir, de realizar o exercício da maiêutica com os jovens e seus interlocutores. Vivendo em meio a uma sociedade marcada pela retórica e pelo ceticismo, ele defendeu o exercício do pensar e revelou a necessidade da filosofia. O custo dessa posição foi sua condenação e morte.

Depois de mais de 25 séculos, o contexto que levou Sócrates à morte parece se repetir. Trata-se de um tempo marcado por superficialidade, apatia política, indiferença e desprezo pelas questões sociais, ambientais, étnicas, de gênero, culturais e religiosas. Um tempo de reflorescimento de visões autoritárias, fascistas, xenofóbicas, machistas, que intensificam o preconceito e a discriminação de toda ordem. Nesse contexto, “matar todos os que não prestam”, acabar com as resistências dos que tentam evitar a destruição da natureza e do meio ambiente, eliminar todos os que não se enquadram no modelo de desenvolvimento mercantil capitalista, etc., essas são propostas enunciadas como uma saída para o restabelecimento da lei e da ordem. A condenação de Sócrates se repete a cada momento, assim como sua morte.

Diante desse quadro, Nussbaum (2010) apresenta como solução a necessidade de que cada ser humano examine a sua vida e avalie suas concepções de mundo. Um sujeito com capacidade argumentativa é, antes e acima de tudo, um sujeito dotado da capacidade de pensar, de refletir criticamente. A reflexão é que nos torna capazes de justificar nossos atos e de colocar a argumentação em lugar da mera opinião. Para tanto, porém, é preciso não só um esforço consciente e voluntário de cada indivíduo, mas o desenvolvimento de práticas formativas que valorizem a dimensões da vida em sociedade, a humanização e a democracia.

As consequências de uma vida sem o autoexame crítico

Nussbaum trata das consequências advindas da ausência de um pensamento crítico e da falta da capacidade argumentativa que impede o autoexame crítico. Como veremos, são ausências que têm significados importantes e, normalmente, fragilizam o ser humano em relação à sua própria existência, tanto em termos pessoais como sociais e profissionais. Nos meios educacionais, essas ausências repercutem de forma intensa e deixam lacunas na formação dos sujeitos. Nussbaum aponta três consequências principais, que passamos a analisar.

A falta de clareza com relação aos objetivos e à finalidade da educação

A ausência do autoexame leva a objetivos pouco claros, especialmente diante de situações complexas e difíceis. Nussbaum (2010) utiliza o diálogo Laques, de Platão (1985), apresentando o exemplo de dois generais (Laques e Nícias) que, segundo o pensador grego, por não realizarem o autoexame2, não sabiam explicar o que era valentia, embora ambos acreditassem possuí-la. Entender e explicar a valentia, pelo autoexame, implicaria encontrar sentido para o seu uso, pois, “[…] los generales no saben bien si la valentía requiere o no pensar en cuáles son los intereses de la ciudad, o cuáles son las causas por las que vale la pena luchar” (NUSSBAUM, 2010, p. 77). Em síntese, para saber o que é valentia era preciso avaliar o propósito social e político de sua utilização.

Estabelecendo uma analogia deste relato platônico com as questões educacionais, pode-se dizer que a ausência de autoexame pode ser comparada ao professor que não tem clareza de seu papel e não consegue encontrar uma resposta coerente e concreta para a pergunta mais elementar da educação: por que e para que ensinar? O que me faz ser professor? Quais são os fins que pretendo atingir com o meu agir pedagógico? A falta do esclarecimento dessas questões pode levar a uma ação pedagógica espontânea e sem compromisso com os princípios formativos e humanizadores da educação, que possibilitam o pensar autônomo, reflexivo e crítico e que conduzem à emancipação humana.

Para Nussbaum (2010), a confusão ou a falta de clareza com relação a um “sentido consciente” em nossas vidas pode ser inofensiva em um contexto em que a tomada de decisões é fácil, sem maiores consequências. No entanto, quando as situações são difíceis e complexas, alerta a autora, é bom saber com clareza o que se quer e o que importa. Em educação, de modo especial, esta responsabilidade com a finalidade da ação é de extrema importância, pois se trata do futuro das novas gerações.

A educação tem reflexos profundos na vida pessoal, social e profissional dos sujeitos e nos destinos de uma nação. Por isso, a pensadora americana defende a ideia de uma cidadania cosmopolita, para a qual se faz necessário formar cidadãos preparados para viver democraticamente. Isso significa formar pessoas questionadoras, críticas, não somente opinativas. Para tanto são necessárias as humanidades. Bons argumentos somente podem ser construídos em bases históricas, sociológicas, filosóficas e científicas. De modo contrário, são banalidades, achismos ideológicos que invertem, mascaram e desfiguram a verdade, confundindo o pensamento, destruindo verdades. Tais manifestações podem trazer consequências de muito risco, especialmente no campo da política, levando pessoas a adotarem posições perigosas e decisões equivocadas, que poderão repercutir negativamente sobre toda a população. Ciente desses riscos, Nussbaum escreve, em forma de advertência:

No es bueno para la democracia que la gente vote basándose en los sentimientos que han absorbido de los medios de comunicación y que nunca han cuestionado. Esta falta de pensamiento crítico produce una democracia en que la gente habla entre sí pelo nunca mantiene un diálogo genuino. En semejante clima, los malos argumentos pasan por buenos, y el prejuicio puede fácilmente confundirse con la razón. Para desenmascarar el prejuicio y para asegurar la justicia, necesitamos la argumentación, una herramienta esencial de la libertad cívica (2012a, p. 40).

O desenvolvimento da argumentação socrática é importante para a vida democrática e, por isso, é visto por alguns como um problema. Os detentores do poder temem o surgimento de uma geração de pessoas posicionadas, pensantes, críticas e, portanto, menos domináveis. Por isso, tentam empobrecer a educação, reduzindo a seu papel a um mero treinamento técnico e científico para atendimento dos interesses do mercado e do capital.

Quando se almeja uma sociedade composta de seres humanos pensantes, autênticos, participativos e humanizados, a argumentação socrática é fundamental, pois conduz ao autoexame, o que se traduz na capacidade de refletir sobre as crenças individuais em prol “do” melhor modo de viver e “da” melhor forma de perceber a si mesmo. Ao compreendermos de forma reflexiva nossa própria existência e a complexidade do todo que nos cerca, as mudanças se tornam possíveis. Vislumbra-se, então, a possibilidade de construir-se o que a pensadora americana chama de uma democracia reflexiva e deliberante, pautada no senso de justiça:

De hecho, tal como Sócrates sabía, es esencial para una sólida democracia y para cualquier búsqueda permanente de justicia. Con el fin de fomentar una democracia que sea reflexiva y deliberante, y no un mero mundo mercantil de grupos de interés en competencia, una democracia que verdaderamente tome en consideración el bien común, debemos producir ciudadanos que tengan la capacidad socrática de razonar acerca de sus creencias (NUSSBAUM, 2012a, p. 39-40).

A educação socrática pode contribuir, ainda, para preparar pessoas que se engajam na busca da superação das mazelas sociais existentes e de todas as formas de discriminação predominantes em nossa época, seja étnica, cultural, de gênero, religiosa ou social. Contra uma educação reprodutora de valores, costumes e modos de vida tradicionais e conservadores, de modelos sociais etnocêntricos e discriminadores, a filósofa indica a pedagogia socrática como meio para a busca da vida democrática:

A pesar de nuestra lealtad a la familia y la tradición, a pesar de los diversos intereses que, como nación, tenemos en la corrección de las injusticias con las minorías, podemos y deberíamos razonar juntos a la manera socrática, y la educación debería prepararnos para ello. Al considerar este objetivo de una comunidad en la razón, según surge del pensamiento de Sócrates y los estoicos griegos, podemos señalar su excelsitud y su importancia para lograr la autonomía democrática (NUSSBAUM, 2012a, p. 40).

Como podemos perceber, a educação socrática defendida pela autora tem como objetivo a formação de pessoas livres de preconceitos e de visões discriminadoras de qualquer ordem. A finalidade da vida examinada é a educação de si mesmo e o desenvolvimento da democracia e da justiça social. Para ela, uma educação transformadora é aquela em que, primeiramente, o próprio ser humano é transformado pelo desenvolvimento da capacidade de discernir as falácias dos discursos dominantes e antidemocráticos. Em segundo lugar, é a educação capaz de estabelecer formas de convívio pautadas na empatia, na honestidade, na generosidade, no respeito a si mesmo e aos outros, na autonomia de pensamento e na cultura da solidariedade entre diferentes culturas.

O risco de tornar-se demasiadamente influenciável pelos outros

Sabe-se que todos nós somos, de certa forma, influenciáveis e influenciadores. A questão levantada por Nussbaum se refere a uma forma de influência na qual o sujeito é conduzido a pensar e agir sem que isso represente uma escolha sua, caracterizada pela ausência de autonomia de pensamento e argumentação coerente, tanto no sentido de concordância, justificando por que concorda, quanto de discordância, justificando por que discorda.

Na Antiga Grécia, os oradores eram os formadores de opinião. O poder de argumentação se tornava a ferramenta capaz de levar ao convencimento, e, com isso, os cidadãos, por vezes, permaneciam sem opinião própria e decidiam conforme a emoção e a circunstância do momento. Outro elemento levantado pela autora se refere à pressão exercida pelos pares e pela autoridade. No primeiro caso, as pessoas são levadas a tomar decisões coletivas, normalmente motivadas a manter o sentimento de pertencimento a um determinado grupo, ou mesmo, pela falta de conhecimento, deixam-se levar pela opinião da maioria. Atitudes e decisões pessoais, neste caso, sucumbem à pressão exercida pelo grupo. No segundo caso, muitas vezes, a submissão ocorre por conveniência na manutenção de determinadas condições de favorecimento, pela cultura da subserviência ou até mesmo pelo comodismo de não ter que pensar, não ter que se posicionar e, assim, assumir a responsabilidade pela decisão tomada. É, de certa forma, uma maneira de “esconder-se”, abdicando do direito de participar:

Como hemos visto, la irresolución suele estar compuesta por cierto grado de sumisión ante la autoridad y ante la presión de los pares, problema éste que resulta endémico en todas las sociedades humanas. Cuando se pierden de vista los argumentos, las personas se dejan llevar con facilidad por la fama o el prestigio del orador, o por el consenso de la cultura de pares (NUSSBAUM, 2010, p. 79).

Em oposição a essa atitude, a pensadora norte-americana destaca a importância da argumentação para a tomada de decisões e para o desenvolvimento da democracia:

La persona capaz de argumentar según el método socrático sostiene su proprio disenso con firmeza, porque entiende que sólo cabe batallar contra los argumentos propios en foro interno. Cuál sea el número de personas que piensen una u otra cosa no cambia nada. Un ser humano capacitado para seguir los argumentos en lugar de seguir al rebaño es un ser valioso para la democracia […] (NUSSBAUM, 2010, p. 79).

Fama, status e prestígio pouco contam; o que realmente importa é a argumentação pessoal no confronto com as argumentações dos demais participantes. Nos meios educacionais da atualidade, atitudes como deixar-se influenciar, agir sem pensar, não se autoexaminar, não argumentar criticamente têm estado muito presentes, produzindo um espírito de submissão de muitas crianças, jovens e adultos. Nota-se, inclusive, que tal atitude tem se tornado comum entre os professores. Tal fato é ameaçador à democracia, pois, sem a resistência crítica de educadores e educandos, a subserviência poderá se impor com muita rapidez e intensidade.

Podemos nos perguntar: por que as pessoas se submetem e por que não se permitem pensar e resistir a tal situação? Por que as pessoas não realizam o exercício pessoal de examinarem a vida que levam, especialmente diante das mazelas que a vida atual apresenta? Por que as pessoas não buscam ser autônomas, livres? Por que resistem a desenvolver atitudes emancipadoras, a leitura, a escrita, o desenvolvimento da argumentação e da crítica ao status quo? Por que não querem participar, ser ativas, investigadoras, questionadoras?

Encontrar respostas a estas questões é um grande desafio na educação atual. Mais difícil ainda é encontrar formas de enfrentar tais problemas. Os indivíduos não querem ser provocados para a reflexão; querem soluções práticas e de fácil assimilação. Isso faz com que os cursos de formação, ao invés de serem espaços de provocação para a reflexão crítica, para a criatividade e o desenvolvimento da autonomia, resumam-se, na maioria das vezes, a oficinas de “repasse de receitas”. A falta da prática da argumentação e do autoexame faz com que os indivíduos não consigam perceber quais são os objetivos de sua formação e da sua própria existência. Isso é fatal para a dignidade da vida humana e para a democracia.

Sem autoexame as pessoas tendem a não ser respeitosas

Se há um comportamento desprezível e chocante presente em nossa sociedade é a naturalização e a banalização de formas desrespeitosas e grosseiras no tratamento entre as pessoas. Desprovidas do autoexame, as pessoas tendem a ser egoístas e egocêntricas. A ausência de reflexão sobre o que pensam e por que pensam desta ou daquela forma cria um tipo de comportamento individualista, agressivo e cínico em relação ao outro. Isso significa não só desrespeito ao outro, mas implica a transformação do outro em mero objeto ou em concorrente que precisa ser derrotado. Nessa situação, dificilmente o outro será ouvido e respeitado como indivíduo e como cidadão. Seus argumentos não serão levados em consideração ou, quando muito, podem ser usados para levá-lo à morte, como ocorreu com Sócrates.

Carecemos, hoje, de boa vontade para ouvir, dialogar e aceitar as diferentes formas de ser e pensar. Temos visto que, cada vez mais, instala-se a cultura do combate, da competição, do choque, da rivalidade. Em síntese, vemos a estreiteza do espírito, a violência e a desumanização que Nussbaum denuncia:

Si el verdadero choque de las civilizaciones reside, como pienso, en el alma de cada individuo, donde la codicia y el narcisismo combaten contra el respeto y el amor, todas las sociedades modernas están perdiendo la batalla a ritmo acelerado, pues están alimentando las fuerzas que impulsan la violencia y la deshumanización, en lugar de alimentar las fuerzas que impulsan la cultura de la igualdad y el respeto (2010, p. 189).

Para enfrentar tal situação, é preciso promover a atitude crítica, desenvolver uma formação para e pelas humanidades. A atitude crítica é muito importante por revelar a estrutura da posição que cada um adota, ao mesmo tempo que revela os preconceitos comuns e os pontos de interseção que podem ajudar os cidadãos a avançarem para uma compreensão comum de vida e de mundo. Isso significa aprender a argumentar inclusive sobre algo com que não concordamos e a colocar-nos no lugar do outro, respeitando as posições contrárias e sentindo curiosidade pelos argumentos de diferentes grupos, identificando diferenças e pontos em comum.

Perspectivas de desenvolvimento dos valores socráticos pela educação: algumas possibilidades

A educação é, sem dúvida, um poderoso meio que contém as possibilidades para que a “pedagogia socrática” seja desenvolvida com e pelas novas gerações. Essa pode ser uma “ferramenta” muito útil no atual contexto de indiferença, apatia, descaso e desamor presente em grande parte da população, de modo especial nos jovens. Há situações que se constituíram mundialmente e que necessitam, para sua solução, de gerações mais conscientes.

Para dar conta dessas questões, faz-se necessária uma educação que apresente as diversidades do mundo às novas gerações, reflita sobre os diferentes processos de exclusão e discriminação, defenda a dignidade humana e desenvolva formas de organização social e políticas mais democráticas e humanizadoras. Juntamente com o desenvolvimento da capacidade de argumentação, é preciso educar para a cooperação, a amizade, a compaixão, o respeito, a tolerância, o respeito à diversidade. Nos termos de Nussbaum, “[…] los programas curriculares deberían planificarse con cuidado desde las primeras etapas para impartir un conocimiento cada vez más nutrido y diversificado del mundo, sus historias y sus culturas” (2010, p. 118).

Em um mundo globalizado, conviver e respeitar o diferente tornaram-se desafios cotidianos. Compreender as diferentes formas de viver, as diferentes religiões, a diversidade de gostos, costumes e culturas, é uma exigência para a paz no mundo e para uma vida mais justa e equilibrada. Nesse aspecto, os currículos escolares precisam ser mais bem estruturados e mais sensíveis à dinâmica do mundo contemporâneo. Há novas demandas, há novas necessidades latentes no presente e no futuro:

Por lo tanto, las instituciones educativas del mundo tienen una tarea importante y urgente: inculcar en los alumnos la capacidad de concebirse como integrantes de una nación heterogénea (como lo son todas las naciones modernas) y de un mundo aún más heterogéneo, así como la facultad de comprender, al menos en parte, la historia y las características de los diversos grupos que habitan este planeta (NUSSBAUM, 2010, p. 114-115).

Educar num mundo cada vez mais globalizado exige o desenvolvimento de conhecimentos não só oriundos do mundo científico e acadêmico, mas das diferentes realidades que configuram a sociedade complexa e plural da atualidade, suas diferentes culturas, formas de vida, valores, concepções religiosas, formas de produção, etc. Trata-se de abarcar uma visão sistemática sobre as principais regiões e nações do mundo, dando-lhes igual importância. Ainda que tais conhecimentos não garantam uma conduta mais respeitosa com os diferentes países e as diversas culturas, sabe-se que a ignorância dessas diferentes realidades e culturas acaba, geralmente, dando sustentação a visões preconceituosas e discriminadoras.

Neste contexto, o autocultivo é indispensável. Começar por compreender a si mesmo, autoexaminando-se, parece ser o primeiro passo para um bom e frutífero “(re)começo”, pois, como já afirmara John Dewey, “[...] o fim da educação é a formação da capacidade de domínio de si mesmo” (1979c, p. 64). Auxiliar o sujeito a pensar por si só, pensar sobre si mesmo, refletir sobre o seu pensar, bem como sobre seu falar e seu agir, parece ser, atualmente, a atitude mais importante.

O não desenvolvimento da capacidade de pensar é uma das grandes limitações da educação contemporânea. Sobre tal fato, Nussbaum reconhece o acertado diagnóstico de Dewey quando critica a exagerada preocupação em “repassar” muitos conteúdos e informações às crianças e aos jovens e de transformar a educação em um treinamento para o mundo do mercado e para a competição, limitando o exercício do pensar (cf. Dewey, 1979c, p. 90). O acúmulo de informações por si só não significa nada em termos de formação de caráter, de mudança ou busca de novas posturas, de desenvolvimento de argumentos e de tomada de posicionamentos mais conscientes e críticos. Ou seja, não é pelo acúmulo de conhecimentos que o pensamento crítico e reflexivo será desenvolvido. Para que algo de diferente aconteça, Nussbaum propõe a retomada do método socrático ou a pedagogia socrática.

A questão que se coloca, então, é o que deve ser feito para que os sistemas de ensino incorporem os valores socráticos? Quais seriam as práticas possíveis de serem realizadas e que conduziriam os processos de ensino a desenvolver tais valores?

Na perspectiva que aponta Nussbaum (2012a), a resposta é óbvia: incorporar o pensamento reflexivo na metodologia pedagógica dos diferentes cursos, desafiando cada estudante a indagar, a avaliar as provas, a escrever seus próprios textos, a desenvolver seus argumentos bem estruturados e a avaliar os argumentos que são expostos em outros textos. Por fim, desafiar o aluno a estabelecer uma relação construtiva com as coisas, os saberes, os textos.

A autora sugere que se utilizem alguns textos filosóficos como ponto de partida. Os diálogos de Platão seriam os melhores. Outra possibilidade seria a lógica formal, muito útil por ajudar a fornecer um modelo de pensamento que se pode aplicar a distintos tipos de textos ou, ainda, colocar em prática o aprendizado mediante a realização de debates em classe e a redação de trabalhos escritos com acompanhamento do docente, permitindo aos alunos internalizar e manusear com destreza o aprendizado. Todo estudante deveria realizar tais atividades na sua graduação, a fim de desenvolver, de modo mais completo, sua capacidade para o exercício da cidadania e a interação política respeitosa.

A incorporação do método socrático não é complexa e não requer técnicas difíceis para ser concretizada na prática. As práticas são muito simples, embora desafiadoras. Os empecilhos que impedem a educação socrática relacionam-se ao fato de que esse modelo exige uma presença diferente do professor e requer classes com um número limitado de alunos. O predominante são classes numerosas, em que o aluno é um mero espectador e o conhecimento se reproduz mecanicamente através de processos sistêmicos e métodos padronizados de memorização e reprodução. Isso faz com que seja difícil encontrar experiências socráticas de educação entre professores e alunos universitários, inclusive nos países europeus e asiáticos.

Nussbaum (2010) esclarece que a pedagogia socrática já teve um reconhecimento maior no passado. No século XVIII ela representou um marco importante na educação. Foi especialmente nesse período que pensadores europeus, norte-americanos e indianos começaram a distanciar-se do modelo de aprendizagem baseado na memorização e no autoritarismo. Nesses movimentos pela reforma educativa, a maiêutica socrática foi a principal fonte de inspiração. Naquele tempo, os pensadores constataram que, nos modelos educativos, imperava a frieza, a passividade, a subserviência e a memorização, práticas que não podiam ser positivas para a vida dos educandos nem para o desenvolvimento da cidadania. Constata que, a partir de então, surgiram propostas que não só retomaram princípios da maiêutica socrática, como também encontraram na democracia grega elementos importantes para refletir sobre temas da democracia moderna, da cidadania, do poder e, sobretudo, do papel da reflexão, das artes e do jogo na formação humana. Rousseau, Pestalozzi e Froebel são alguns destes educadores indicados pela pensadora americana.

No século XX outras experiências importantes surgiram com inspiração da pedagogia socrática, sustentadas na educação pelas artes e pelas humanidades. Nussbaum ressalta que neste período assume destaque a teoria do educador norte-americano John Dewey (1869-1952), considerado pela autora como o mais influente e distinto promotor da educação socrática nos Estados Unidos. Dewey propõe uma nova escola em que os alunos passam a assumir a responsabilidade por seus próprios pensamentos e a participar do desenvolvimento de um novo mundo com espírito crítico, curiosidade e liberdade.

Dewey (1979b; 1979c) avalia que o problema central da educação tradicional encontra-se na passividade que gera nos alunos. A escola se reduz a um espaço de escuta e absorção, não oportunizando a análise, a investigação e a resolução dos problemas. Para transformar os alunos em pessoas ativas e criativas, as escolas devem se tornar espaços de continuidade do mundo real, em que são debatidos os problemas da vida em confronto com os conhecimentos historicamente acumulados. Assim, o socratismo presente em Dewey implica uma prática de compartilhamento de experiências reais na busca de respostas para as questões do mundo concreto cotidiano e a solução de problemas comuns. Sua pedagogia é, aos moldes de Sócrates, dialógica, participativa e democrática, sem imposição de uma autoridade externa. Não se trata de uma técnica de formação intelectual, mas uma formação que envolve a reflexão sobre a vida prática, a experiência, o contexto social e político e a própria democracia. Para Dewey, “educação como crescimento ou conquista da maturidade deve ser um processo contínuo e sempre presente” (1979a, p. 44). Para tanto, é preciso possibilitar ao educando o pensar. Sem o pensar, não ocorre o desenvolvimento intelectual e ético do aluno. Em outros termos, sem reflexão não existe educação nem democracia.

Um segundo projeto reformista do século XX identificado por Nussbaum como sustentado na retomada da pedagogia socrática, é o movimento de Rabindranath Tagore3. Indiano e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1913, Tagore, por seu talento formidável, propôs uma pedagogia inovadora sustentada na formação por poemas, novelas, dramaturgia e pintura. Ele sustentava que a humanidade só avançaria se fosse cultivada a capacidade de compreensão e integração por meio da educação e por uma aprendizagem global com base nas artes e na autocrítica proposta por Sócrates.

A crítica principal de Tagore à educação tradicional relaciona-se ao fato de ela transformar os alunos em meros receptores passivos dos conhecimentos e dos valores culturais herdados. Em contraposição, ele criou a Escola Santiniketan, de orientação socrática. Nesta escola, as aulas, além de dialógicas, eram desenvolvidas, na maioria das vezes, ao ar livre e o programa curricular era atravessado pelas artes e por disciplinas humanísticas. Na prática, estabelecia-se um vínculo estreito entre o método socrático e a imaginação empática, levando cada um a compreender a posição do outro e a avaliar a sua própria existência.

Nestas experiências, Nussbaum ressalta a importância que as humanidades e os valores da pedagogia socrática apresentam, contribuindo para a formação de um cidadão crítico, ativo, curioso, capaz de se opor ao autoritarismo e à opressão de seus pares.

Considerações finais

Nussbaum entende que a crise atual, mais que econômica e política, é uma crise planetária da educação. Ela constata que, ávidos pelo sucesso econômico, os países e os seus sistemas educativos renunciam imprudentemente ao desenvolvimento de competências que são indispensáveis à sobrevivência das democracias. As reformas se reduzem à introdução de novas técnicas de ensino e de novas metodologias que possibilitem tornar as aulas mais atrativas, envolventes e agradáveis, sob a perspectiva do mercado e dos interesses imediatos dos seus alunos. Esquecendo que a função mais abrangente da educação é a de desenvolver a formação integral dos alunos, tais propostas sugerem a supressão de disciplinas de humanidades e a introdução de disciplinas com conteúdos mais apropriados aos interesses de mercado e aos desafios meramente tecnológicos.

Diante desse quadro, cabe refletir sobre o sentido da formação que desenvolvemos com os educandos e o quanto ela os está tornando livres, solidários, humanos, felizes. Para que tal ocorra, a pensadora norte-americana, baseada nas experiências de Tagore, defende uma educação humanista sustentada no desenvolvimento de três capacidades fundamentais ao aperfeiçoamento da formação democrática: i) “a capacidade de autocrítica, que compreende a crítica sobre si mesmo e sobre as próprias tradições, para que possa ser vivida, segundo Sócrates, aquilo que poderia designar-se por uma vida examinada (NUSSBAUM, 2014, p. 76); ii) a capacidade de “ver-se a si próprios não só como cidadãos que fazem parte de um determinado grupo ou região, mas como seres humanos que se encontram ligados a todos os outros por laços de reconhecimento e interesses” (NUSSBAUM, 2014, p. 79); e iii) a capacidade da imaginação narrativa que “equivale à capacidade de se ser capaz de pensar como será estar na situação de outra pessoa, de avaliar inteligentemente a sua história, de ser capaz de compreender os sentimentos, os desejos e as esperanças de alguém [...]”(NUSSBAUM, 2014, p. 81). Infelizmente, essas três dimensões fundamentais da educação não estão sendo levadas em consideração nas mudanças propostas nas reformas atuais da educação.

Liberdade e reflexão são as fontes fundamentais da pedagogia proposta por Nussbaum. São estas as qualidades principais que mais nos aproximam de um ideal humano e de uma forma de vida significativa. São qualidades, porém, que precisam ser alimentadas na formação integral de cada ser humano e na luta pela democratização do mundo. Para tanto, a vida precisa ser examinada, pensada, pois ela somente vale a pena ser vivida quando examinada no diálogo com os outros. A práxis dialógica, socrática, é a condição necessária para a construção de sociedades solidárias e o fortalecimento da democracia.

Referências

DEWEY, J. Como pensamos. São Paulo: Nacional, 1979a. [ Links ]

DEWEY, J. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. São Paulo: Nacional, 1979b. [ Links ]

DEWEY, J. Experiência e educação. São Paulo: Nacional, 1979c. [ Links ]

NUSSBAUM, M. C. Sin fines de lucro: Por qué la democracia necesita de las humanidades. Buenos Aires: Katz, 2010. [ Links ]

NUSSBAUM, M. El cultivo de la humanidad: una defesa clásica de la reforma en la educación liberal. Barcelona: Paidós, 2012a. [ Links ]

NUSSBAUM, M. El ocultamiento de lo humano, repugnancia, vergüenza y ley. Buenos Aires: Katz Editores, 2012b. [ Links ]

NUSSBAUM, M. Los límites del patriotismo: identidad, pertenencia y ciudadanía mundial. Barcelona: Paidós, 2012c. [ Links ]

NUSSBAUM, M. Educação e justiça social. Lisboa: Edições Pedagogo, 2014. [ Links ]

PLATÓN. Diálogos. Madrid: Gráficas Cóndor, 1985. [ Links ]

RODRIGUES, J. P. Tagore, un precursor de la nueva educación en la India. Revista Recrearte, n. 3, jun. 2005. Disponível em: <http://www.iacat.com/revista/recrearte/recrearte03.htm>. Acesso em: 02 jan. 2019. [ Links ]

1Não será possível desenvolvermos neste artigo, considerando seus limites, uma análise destas três obras de Nussbaum. No entanto, cabe ressaltar que nelas a autora desenvolve com profundidade suas críticas às visões reducionistas de formação e de ação política decorrentes da predominância da racionalidade utilitarista na maior parte dos países do mundo e aponta as alternativas possíveis de enfrentamento, pela formação reflexiva e pelo desenvolvimento das humanidades.

2Sobre o sentido do autoexame neste diálogo de Platão (1985), é importante esclarecer que ele não é, por si só, a garantia de realização de objetivos em que prevaleçam a bondade, o bom senso, o bem comum e a justiça, mas assegura que o indivíduo não se deixe levar pelo mero acaso, como bem refere Nussbaum: “Si bien, ese autoexamen permanente que propone Sócrates no garantiza que los objetivos sean buenos, al menos garantiza que serán comprendidos con claridad en sí mismos y en su interrelación, y que no se pasarán por alto cuestiones fundamentales debido a la prisa o por accidente” (2010, p. 78).

3Embora pouco citado e conhecido pelos educadores brasileiros, existe uma vasta publicação das obras do autor disponível em diferentes línguas, especialmente inglês, francês e espanhol. Indicamos como uma referência para o conhecimento inicial o artigo de Rodrigues (2005), que se encontra citado nas referências.

Recebido: 22 de Janeiro de 2019; Aceito: 08 de Abril de 2019

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