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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.72 Curitiba jan./mar 2022  Epub 19-Set-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.072.ao05 

Artigos

Ofício de professor/a: artesania da relação pedagógica escolar

The teaching profession: craftsmanship of the school pedagogical relationship

El trabajo del maestro: artesanía de la relación pedagógica escolar

Gilberto Oliaria 
http://orcid.org/0000-0003-3102-8383

Elisete Medianeira Tomazettib 
http://orcid.org/0000-0002-4979-7415

aUniversidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), Chapecó, SC, Brasil. Doutor em educação, e-mail: gilba@unochapeco.edu.br

bUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. Doutora em educação, e-mail: elisetem2@gmail.com


Resumo

O presente artigo apresenta uma discussão de caráter filosófico sobre a relação pedagógica escolar. Busca-se compreender e argumentar a possibilidade de considerar a produção dessa relação a partir dos princípios da artesania (oficina, professor/a artesão/ã, perícia artesanal, consciência material). Assim encontra-se dividido em subseções que buscam: apresentar uma leitura do cenário educacional brasileiro, fundamentado nas políticas públicas educacionais; relacionar os conceitos que definem uma oficina artesanal às considerações sobre a definição do espaço escolar, ampliando a compreensão da escola como oficina; refletir sobre a possibilidade de compreender a relação humana como obra e a relação pedagógica como obra artesanal; e, apresentar o diálogo como meio para constituição desta relação pedagógica escolar. Utiliza-se de uma metodologia artesanal, caminhante, bibliográfica, com inspiração hermenêutica para relacionar os diferentes argumentos e expressões que fundamentam a tese. Considera-se que o/a professor/a pode desenvolver ações inspiradas na artesania para a constituição da relação pedagógica escolar embasado em algumas características que atribuem o adjetivo de ‘bom’ ao/a artesão: o reconhecimento da importância do esboço para a constituição de obras; o valor positivo das contingências; o evitar a busca inflexível da solução de problemas; o evitar o perfeccionismo; e, aprender a identificar o momento de parar.

Palavras-chave: Relação Pedagógica; Artesania; Escola; Diálogo

Abstract

This article presents a philosophical discussion on school pedagogical relationship. The aim is to understand and argue the possibility of considering the production of this relationship based on the principles of craftsmanship (workshop, teacher/artisan, craftsmanship, material awareness). Thus, it is divided into subsections that seek: to present a reading of the Brazilian educational scenario, based on educational public policies; relate the concepts that define a craft workshop to considerations about the definition of the school space, expanding the understanding of the school as a workshop; reflect on the possibility of understanding the human relationship as a work and the pedagogical relationship as a craft work; and, present the dialogue as a means to build this school pedagogical relationship. It uses an artisanal, walking, bibliographical methodology, with hermeneutic inspiration to relate the different arguments and expressions that support the thesis. It is considered that the teacher can develop actions inspired by craftsmanship for the constitution of the school pedagogical relationship based on some characteristic that attribute the adjective ‘good’ to the artisan: the recognition of the importance of the sketch for the constitution of works; the positive value of contingencies; o avoid relentless pursuit of problem solving; o avoid of perfectionism; and, learn to identify when to stop.

Keywords: Pedagogical Relationship; Craftsmanship; School; Dialogue

Resumen

Este artículo presenta una discusión filosófica sobre a relación pedagógica escolar. Busca comprender y argumentar la posibilidad de considerar la producción de esta relación desde los principios de la artesanía (taller, maestro/artesano, pericia artesanal, conciencia material). Se divide en subsecciones que buscan: presentar una lectura del escenario educativo brasileño, a partir de las políticas públicas de educación; relacionar los conceptos que definen un taller artesanal con consideraciones sobre la definición del espacio escolar, ampliando la comprensión de la escuela como taller; reflexionar sobre la posibilidad de entender la relación humana como un trabajo y la relación pedagógica como un oficio; y presentar el diálogo como medio para la constitución de esa relación pedagógica escolar. Se utiliza una metodología artesanal, andante, bibliográfica, de inspiración hermenéutica para relacionar los diferentes argumentos y expresiones que sustentan la tesis. Se considera que el profesor puede desarrollar acciones inspiradas en la artesanía para la constitución de la relación pedagógica escolar a partir de algunas características que atribuyen el adjetivo 'bueno' al artesano: el reconocimiento de la importancia del boceto para la constitución de los trabajos; el valor positivo de las contingencias; la evitación de la búsqueda inflexible de la solución de los problemas; la evitación del perfeccionismo; y, aprender a identificar el momento de detenerse.

Palabras clave: Relación pedagógica; Artesanía; Escuela; Diálogo

Introdução1

O presente artigo é fruto da pesquisa de doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria. Teve como objeto central de investigação a relação pedagógica escolar, sustentada em conceitos oriundos da Filosofia, como reconhecimento do outro (LÉVINAS, 2011), a relação como obra (LÉVINAS, 2012), o diálogo (LÉVINAS, 2011; FREIRE, 2005). Do campo da Educação, o conceito de artesania, de Richard Sennett (2012;2013), adquiriu centralidade na constituição de sua pergunta central, expressa da seguinte forma: como se estabelece uma relação pedagógica escolar, levando em consideração a responsabilidade docente pelo mundo comum e o reconhecimento do outro, em meio às mudanças do ato de ensinar para a facilitação da aprendizagem constatado a partir das políticas públicas educacionais brasileiras (produzidas a partir da LDBEN - 1996)? A hipótese que moveu a pesquisa afirma que o modo de fazer artesanal diz da constituição da relação pedagógica escolar, uma vez que esta é pautada em princípios éticos e filosóficos.

A análise da relação pedagógica escolar foi sustentada em conceitos do filósofo Emmanuel Lévinas (2011) em diálogo com pesquisadores/as contemporâneos/as, tornando possível realizar uma problematização de alguns aspectos do cenário educacional brasileiro do tempo presente. Desse modo, compreende-se (estabelecendo um recorte) a relação pedagógica como uma relação entre dois sujeitos escolares, professor/a e aluno/a e são indicados alguns elementos inerentes a essa relação: confiança (sem fundamento), violência (transcendental), responsabilidade (sem conhecimento) - (BIESTA, 2013); o saber, o espaço e o tempo, as atividades - (ESTRELA, 2002); o testemunho (FREIRE, 2017). A estes elementos foi agregada a compreensão acerca do modo de produção artesanal de Richard Sennett (2012; 2013), que sustentou a argumentação da relação pedagógica como uma produção artesanal.

A metodologia de produção da pesquisa foi denominada de artesanal, caminhante, bibliográfica, com inspiração hermenêutica. A dimensão artesanal foi embasada nas motivações produzidas pelas leituras, que acionaram um modo próprio e coletivo2 de pensar e escrever. A dimensão caminhante foi inspirada, principalmente, nas provocações de Jan Masschelein (2008, p. 37) acerca do caminhar, que segundo ele “[...] nos permite [...] uma visão além de toda a perspectiva, um olhar que nos transforma (e, é portanto, experiência)” e, por fim, bibliográfica, porque o caminhar da pesquisa aconteceu por entre obras diversas, que confluíram na construção de uma perspectiva filosófico-educacional acerca das questões que constituíram nosso objeto de investigação.

A inspiração hermenêutica tornou possível o questionamento e a busca de sentido de todo o material da pesquisa, bem como a estruturação das perguntas que a orientaram. A pergunta “[...] provoca a ruptura do aspecto dogmático inerente à experiência humana em suas formas mais variadas” e também “[...] não obedece à procedimentos calculados nem se sujeita ao que é determinado rigidamente de antemão” (DALBOSCO, 2014, p. 1048). Desse modo, a pesquisa acionou outros sentidos possíveis acerca de temas, conceitos e argumentos que a estruturaram.

É preciso destacar que as argumentações que sustentam a ideia de artesania foram desenvolvidas ao longo de todo o texto. Assim, as conceituações de oficina, curiosidade artesanal, consciência material, diálogo, etc. tornam-se inspirações artesanais e vão contribuindo na sustentação da tese.

Da relação pedagógica artesanal

Nessa seção do artigo busca-se apresentar as principais ideias desenvolvidas na tese supracitada. Nesse sentido, divide-se a exposição dos argumentos em quatro sub-seções para abordar cada um dos capítulos desenvolvidos.

Leitura do cenário educacional brasileiro

Nesta subseção apresentamos uma breve análise do cenário educacional brasileiro, que é produzido por um conjunto de políticas públicas educacionais, desde a LDBEN (Lei 9393/1996)3, as quais são responsáveis, em grande medida, pelo modo como a relação pedagógica escolar vem sendo nomeada nos discursos educacionais. Perseguimos a descrição e a problematização do processo de mudanças do ato de ensinar para o ato denominado de facilitação da aprendizagem presentes na legislação educacional. Também destacamos a forte presença na educação brasileira de ONGs - Organizações Não Governamentais. Perseguimos o entendimento do processo que tornou possível o uso da expressão “facilitação da aprendizagem” no discurso educacional, sem que tenha ocorrido o abandono da expressão - ato de ensinar.

Esses documentos normativos analisados foram produzidos em diferentes tempos e levam em consideração diferentes influências teóricas, nacionais e internacionais. Foram selecionados como corpus, pois delineiam currículos e modos de acionar relações pedagógicas nas escolas. Também, é preciso destacar, que essas políticas públicas educacionais tendem a indicar processos de renovação constante da educação escolar, de modo a estabelecer um alinhamento com “A nova sociedade, decorrente da revolução tecnológica e seus desdobramentos na produção e na área da informação” (MEC, SEMT, 1999, p. 23). Assim, dizem de modo cada vez mais assertivo, da necessidade de produzir rupturas com o modo tradicional de ensino ao sustentar que as atividades de aprendizagem devem ser planejadas para o desenvolvimento de habilidades e competências, conforme preceitos dos PCNs (BRASIL, 1997) e da BNCC (BRASIL, 2018). Ao mesmo tempo, é valorizada a pesquisa como princípio formativo, apontado na Resolução 2/2012 (BRASIL, MEC, 2012), através de redes de aprendizagem. A centralidade no aprendente (aluno/a), proposta nas DCNs (BRASIL, MEC, 2010), passa a indicar outros modos para o estabelecimento da relação pedagógica.

Por seu turno, ONGs educacionais como Instituto Ayrton Senna, Todos pela Educação e Fundação Lemann passaram a ter participação cada vez mais forte na produção das políticas públicas brasileiras; são formadas por parcerias com o terceiro setor (empresarial e industrial) e buscam, através de projetos, em parceria com os órgãos federativos, influenciar e definir o que se deve compreender por inovação educativa através de programas de formação para professores/as e alunos/as das redes de ensino4. No seu vocabulário estão palavras como: protagonismo; escola conectada; solução; foco e qualidade; impacto em grande escala; talentos, entre outras, que passam a constituir o discurso educacional. Segundo Laval (2019):

Na realidade, trata-se de tirar a educação da esfera pública, regida pela autoridade política, e entregá-la inteiramente ao mercado, no qual tanto quem oferece quanto quem procura age por conta própria, sem ter de se submeter às decisões de quem vence as eleições (p. 117).

Estamos, assim, diante de uma outra linguagem educacional (BIESTA, 2013) e o processo de aprendizagem passou a ser compreendido cada vez mais longe da escola, que ainda tem sua função reconhecida. Nessa nova linguagem educacional, novamente as ONGs educacionais se fazem presentes, uma vez que em seus projetos buscam apresentar “soluções” a partir dos avanços tecnológicos, inclusive utilizando da linguagem tecnológica do século XXI, a qual foi nascendo fora dos muros da escola e adentrou lentamente o discurso das políticas públicas em educação. Pode-se afirmar que as políticas públicas educacionais são de ordem macro, ou seja, indicam prelúdios à toda organização, curricularização e ideação do processo educacional. Talvez o que acontece na escola (ou pode acontecer), embora esteja seguindo a legislação, pode despertar para uma outra leitura do cenário. É o que se apresenta na sequência, assim aproximamos os elementos que mapeiam um ambiente escolar com os conceitos que nomeiam as oficinas artesanais, buscando apontar as proximidades dos dois ambientes.

Sobre a possibilidade de pensar a escola - sala de aula como oficina artesanal

Se o discurso das políticas educativas, atravessado pela nova linguagem das ONGs, tem produzido uma outra compreensão do ensino, da aprendizagem e, em especial da relação entre professor/a e aluno/a, o que nos cabe, depois de uma breve análise sobre tal fenômeno, é sobre o que pode, no espaço “menor” da sala de aula, instaurar modos de resistência. E, assim, o encontro com a obra de Sennett (2012; 2013) nos encaminhou a pensar sobre a sala de aula como uma oficina artesanal, cujos princípios definem e fortalecem a escola. Indagamos sobre o que da oficina ainda permanece na escola e na sala de aula, de modo a encontrar saídas possíveis ao avanço da relação entre educação e mercado.

É preciso lembrar que o ser humano não chega à escola vindo de um lugar etéreo, ou sem vida; ele se encontra em um mundo e é preciso que ele conheça/reconheça esse mundo. Nesse sentido, Lévinas (2011, p. 145), afirma que “[...] a consciência de um mundo é já consciência através desse mundo”. Sendo assim, conhecer/reconhecer o mundo é contemplá-lo através da consciência, desde dentro do próprio mundo, com os olhos e os pés fixos em um contexto. A escola é um meio essencial para essa visão do mundo macro. Desde seu interior, um espaço “menor”, micro, é possível a tomada de consciência do mundo maior, que abarca todos nós. A escola é, pois, um dos espaços que possibilita aos sujeitos o seu reconhecimento como seres humanos, fruidores desse mundo que, de algum modo, também é deles, visto que todos integram o mundo comum5.

É nesse sentido que destacamos a afirmação de Mário Osório Marques (2003, p. 151): “[...] na escola, o espaço-tempo mais significativo e decisivo é o da sala de aula, lugar próximo e imediato do encontro face a face, ou melhor, ouvido a ouvido”. É na sala de aula que ocorre o encontro entre professor/a e aluno/a e se estabelece a relação pedagógica. A sala de aula é o lugar privilegiado para a palavra que ensina e para o conhecimento e reconhecimento do mundo comum. Por isso, é preciso “Abandonar a linha de montagem de fábrica como modelo para a escola e, andando mais para trás, tomar o modelo medieval da oficina do artesão como modelo para a escola” (ALVES, 2012, p. 39). Para considerar outro modo de pensar, a escola exige o reconhecimento de que a “[...] escola é, igualmente o lugar onde os jovens (de acordo com um método específico) são abastecidos com tudo o que eles devem aprender para encontrar o seu lugar na sociedade” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 25). A escola oferta uma iniciação ao conhecimento e uma socialização dos sujeitos que ali se encontram. Segundo Masschelein e Simons (2017) a escola é uma invenção política, que na Grécia antiga, buscava democratizar o tempo livre através da “[...] suspensão de uma chamada ordem desigual natural” (p. 26). A escola ofertava a seu público um tempo não produtivo, um ócio criativo, um tempo de experimentação, de ensaio, de aprendizagens culturais e de formação humana, para além das prescrições mercadológicas. Essa noção de tempo livre é uma negação da escola como extensão da indústria ou da empresa.

Dar destaque aos elementos específicos que fazem de um prédio uma unidade escolar significa aceitar que a escola possui um vocabulário próprio, um modo próprio de nominar os objetos, acontecimentos e fenômenos que tomam forma dentro dela. De acordo com Larrosa (2018, p. 27), “[...] um vocabulário material da escola deveria fazer a escola falar, deveria ser capaz de fazer com que a escola diga alguma coisa sobre o que ela é”. Ou seja, afirmar os elementos que compõem a escola e associá-los ao modo de pensar uma oficina artesanal visa defender que os acontecimentos que se passam em seu interior possuem especificidade; não são de uma ordem empresarial. Assim pode ser possível afirmar que a relação pedagógica, constituída na escola, na sala de aula, seja artesanal, pois acontece em um ambiente que se assemelha a uma oficina.

De acordo com Sennett (2013, p. 136), “[...] a oficina é uma das mais antigas instituições da sociedade humana”; esse modo de produzir utensílios e artefatos contribuiu para o fim do nomadismo humano. Nas oficinas o trabalho com a argila era manual; se produziam incontáveis formas cerâmicas; se trabalhava com ouro na produção de objetos de valor; com a fusão de areia e metais para a produção de vidraçaria, etc. O mais pertinente é que as pessoas, de modo geral, recorriam às oficinas para encontrar ou solicitar ferramentas que pudessem facilitar o seu trabalho.

A retomada da compreensão do surgimento das oficinas medievais forneceu uma importante condição para pensar sobre o sedentarismo dos saberes e dos fazeres. Embora o mundo e os espaços de vivência/convivência dos seres humanos demandem a necessidade de ferramentas para o cultivo da terra ou mesmo a domesticação de animais, muitas delas eram produzidas em um local específico: na oficina. A oficina era o lugar no qual se produziam os objetos necessários para o trabalho que se desenvolvia além dela. A necessidade cotidiana e a curiosidade para “descobrir” soluções (conhecimentos) eram princípios centrais que se desenvolviam na oficina.

Ora, a escola ainda hoje pode assemelhar-se a uma oficina artesanal, pois tem/teria como um de seus pilares a curiosidade. Ao ser colocado em contato com as matérias do mundo6 o/a estudante pode ser despertado para a pergunta e para o manuseio constante dessas matérias dela no cotidiano das aprendizagens, pois “Fazer um bom trabalho significa ser curioso, investigar e aprender com a incerteza” (SENNETT, 2013, p. 61). Há uma zona fronteiriça entre o que se conhece, o desconhecido e o que se deseja conhecer, nesse sentido afirma-se que é justamente aquilo que ainda não é conhecido que desperta a atenção e conecta o/a estudante com o mundo comum, através das perguntas que são formuladas. A relação pedagógica que aí se estabelece requer do professor/a, como um artífice, a busca por “[...] se aperfeiçoar, a melhorar em vez de passar por cima” (SENNETT, 2013, p. 34) dos desafios. O/A professor/a artífice na escola oficina tem como tarefa focalizar a atenção do/a estudante na matéria que está sobre a mesa. Para isso, precisa desenvolver três habilidades de perícia artesanal: localizar, questionar e abrir (SENNETT, 2013).

Para Sennett (2013, p. 310), “A capacidade de localizar diz respeito à possibilidade de especificar onde está acontecendo algo importante”, ou seja, localizar é prestar atenção ao mundo. Ao localizar os materiais do mundo (um livro, uma ideia, uma prática, um acontecimento ou um problema, por exemplo) pode chamar atenção do/a aluno/a. Porém, talvez apenas isso não baste; é preciso questionar, pois o questionamento rompe com o mero movimento de localizar.

“A capacidade de questionar é nada mais nada menos que uma questão de investigar o ponto de localização” (SENNETT, 2013, p. 311). Esse movimento continua ligado ao movimento da atenção, pois exige-se compreensão dos elementos da localização para o questionamento, para a formulação de problemas mais complexos. Tornar a matéria do mundo um conjunto de problemas é abri-la e, “[...] depende dos saltos intuitivos, e especificamente de sua capacidade de aproximar domínios distintos e preservar o conhecimento tácito no salto entre eles” (SENNETT, 2013, p. 311). Essa habilidade amplia o conhecimento daqueles que estão em movimento de aprendizagem e para isso é preciso pensar nas formas ou tecnologias com as quais se pode desenvolver tais ações.

Assim, em um/a professor/a curioso/a, essa perícia artesanal, pode despertar em seus/as alunos/as a curiosidade de conhecer, fazer, sentir, aprender etc. Um/a professor/a artesão/ã propõe a eles/as o exercício da localização, da investigação e, assim, constitui uma relação pedagógica na sala de aula tomada como oficina artesanal.

Da relação pedagógica como uma obra artesanal

Ao longo do texto argumentamos acerca da possibilidade de concebermos a sala de aula como uma oficina artesanal e a relação pedagógica que nela acontece uma relação sustentada na artesania. Nos cabe, agora, sustentar nossa defesa da relação pedagógica como obra artesanal, identificando seus elementos constituintes. O destaque aqui é dado às noções de constituição de uma obra, nos termos de Levinas (2012), que pode se associar à relação de consciência material, apresentado por Sennett (2013). Afirmamos, a partir de Lévinas (2011), que a relação pedagógica é uma obra7, ou seja, é uma relação com o outro, que é atingido, mas não tem a obrigação de mostrar-se tocado. Essa relação, como obra, demanda um “quem” (sujeito) e um “o que” (conteúdo) e, torna-se, então, pressuposto do ensino e da aprendizagem. O papel do/a professor/a é propor intencionalmente a constituição dessa obra, por isso entendemos que na docência se exerce um ofício que não diz respeito aos mecanismos industriais ou empresariais.

Acerca da expressão relação pedagógica constatamos um vasto conjunto de produções. Entre elas destacamos aqui algumas reflexões de Mário Osório Marques (2003), que embora não trate especificamente da relação pedagógica, nos faz pensar sobre ela. Ele nos diz:

Dá-se a aprendizagem escolar no quadro de uma intersubjetividade específica, que supõe sujeitos diferenciados à busca de se entenderem sobre si mesmos e sobre seus mundos e que, desde situações desiguais, progridem na direção da igualdade da relação política, onde se constituem em cidadãos capazes de se conduzirem com autonomia exigida por suas co responsabilidades (MARQUES, 2003, p. 151).

O fenômeno da aprendizagem acontece através de uma relação entre “sujeitos diferenciados”, em que ambos buscam compreender o mundo e a si mesmos. Na relação pedagógica escolar o/a professor/a medeia o/a aluno/a com vistas a acercar o desconhecido, expondo-o/a um conjunto de aprendizados. Marques (2003) afirma que esse encontro com o Outro (que pode ser o/a professor/a, o/a aluno/a ou o conhecimento) possibilita que os sujeitos envolvidos busquem uma mesma progressão do conhecimento que leva a uma convivência social (política) para além daquela estabelecida na escola.

Por isso, a função da obra para Lévinas (2012) é reunir em um conjunto, os diferentes dados provenientes de objetos ou fenômenos e impregná-los de um significado, pois as obras “[...] reúnem em totalidades a dispersão dos seres amontoados” (2012, p. 29). A obra, nesse sentido, permite estabelecer conhecimentos que vão para além dos meros objetos (pessoa ou acontecimento) isolados e caminham na direção dos sentidos e significados comuns em um sentido amplo, próprios da humanidade.

Portanto, é possível tomar o ensino como uma obra que possui uma orientação, “[...] como um movimento que vai para fora do idêntico, para um Outro que é absolutamente outro” (LÉVINAS, 2012, p. 44). “A obra é, pois, uma relação com o Outro, o qual é atingido sem se mostrar tocado” (Ibid., p. 45); é uma relação de movimento que se direciona livremente de um Ser a Outro e àquele/a que o recebe não tem obrigação de mostrar-se tocado.

A produção de uma obra, no exercício do ofício8 de professor/a, requer uma reflexão sobre o modo como ela é produzida e quais materiais a tornam possível. Nos aproximamos, assim, do modo artesão de produção. A artesania carrega um conjunto de características que tendem a agregar em seu produto final a ideia do infinito (LÉVINAS, 2012)9, pois mantém as marcas daquele que o produziu (embora possa não revelar nitidamente). Nesse sentido, Sennett (2013) desenvolve seu pensamento dando maior visibilidade ao conceito de “perícia artesanal”, visto que, esse conceito, segundo o autor, direciona “[...] a um impulso humano básico e permanente, o desejo de um trabalho benfeito por si mesmo” (SENNETT, 2013, p. 19). Sennett (2013) visita o passado de diferentes ofícios (ourives, oleiro, vidraceiro, marceneiro etc.), a fim de destacar as características de cada um ao manusearem os materiais e imprimir neles a sua marca.

Ao retomarmos a noção de que o ser humano é um ser inacabado e que conforme vai avançando em seu tempo de vida, amplia as experiências que realiza e os aprendizados que adquire, podemos aceitar que as pessoas com as quais se relaciona deixam suas marcas impressas em cada um. Seria ingenuidade afirmar que a vida é marcada apenas por lembranças dos/as professores/as com os/as quais convivemos ao longo de nosso percurso formativo, especialmente na escola. Como seres humanos somos suscetíveis aos materiais utilizados pelo/a professor/a (artesão/ã) e torna-se necessário reconhecer que os esforços para “[...] realizar um trabalho de boa qualidade depende da curiosidade frente ao material de que se dispõe” (SENNETT, 2013, p. 138). Desse modo, a matéria que cada artesão/ã tem nas mãos deve despertar em si mesmo um pensamento, uma consciência material que, de acordo com Sennett (2013), gira em torno de três movimentos: metamorfose, presença e antropomorfose.

Relembramos aqui que os materiais que estão nas mãos do/a professor/a artesão/ã e podem despertar pensamentos: caneta, livro, caderno, computador, etc.; ou, ainda, os gestos, movimentos, olhares. No entanto, um dos elementos que potencializa todos os outros é palavra; o modo linguístico pelo qual o/a professor/a artesão/ã expressa sua interioridade (LÉVINAS, 2012) para os/as alunos/as e, também, o modo pelo qual ele/a recebe os pensamentos, a interioridade de cada um/a. Assim, avançamos para pensar o primeiro movimento da consciência material que é a metamorfose artesanal, que para Sennett (2013) é composta por três modalidades: a evolução interna de uma forma-tipo; avaliação entre a mistura e a síntese e a mudança de domínio. Na primeira modalidade de metamorfose, Sennet (2013) afirma que ela pode ocorrer, a passos lentos, em uma transformação na forma-tipo das obras produzidas pelos/as artesãos/ãs. É quando acontece uma mudança no modo (e até na composição do material) de produzir a obra e que pode gerar uma mudança de valor agregado ao produto final. Na segunda modalidade, Sennet (2013) trata das transformações advindas da mistura e da síntese de diferentes elementos (ou de elementos semelhantes) que produzem a obra; trata-se da união de elementos distintos onde “[...] o todo se torna diferente das partes” (SENNET, 2013, p. 145). Na terceira modalidade se trata da mudança de domínio, quando uma técnica que possibilitava um tipo de produção passa a exercer um papel importante em outra ação. Diz respeito “[...] à maneira como determinada ferramenta, utilizada inicialmente para certa finalidade, pode ser aplicada a outra atividade completamente diferente. [...] as mudanças de domínio atravessam fronteiras” (SENNETT, 2013, p. 146). Trata-se, portanto, do atravessamento de práticas, instrumentos e métodos que passam pelas fronteiras possíveis e chegam a outros domínios.

As palavras são fundamentais para a obra - relação pedagógica. Professores/as precisam ter consciência dessa materialidade e o movimento que podem instaurar nessa relação. As palavras podem, e talvez necessitem se metamorfosear para fazer sentido e significado na aula ou nas atividades que estão sendo desenvolvidas. Somente com muita segurança de seu ofício e das palavras que estão à sua disposição o/a professor/a consegue compreender essas nuances que a perícia artesanal exige.

Na relação pedagógica escolar as palavras são constantemente metamorfoseadas, pois se moldam às condições didáticas do momento. Em uma aula o/a professor/a retira as palavras de uma área científica ou mesmo do cotidiano e realiza uma transposição didática, de modo que produzam sentido aos/às estudantes que a recebem. As palavras, então, adquirem uma artificialidade escolar, pois são uma obra que faz sentido em um contexto.

Em todas essas modalidades de transformação do modo de relacionar-se com determinada matéria e transformá-la em obras, há uma profunda ligação entre as mãos e a cabeça, uma quase fusão entre experiência e razão. O/A artesão/ã ao pegar em suas mãos uma matéria precisa pensar sobre ela, decidir conscientemente, se o modo pelo qual lhe dá uma forma final se uma mistura ou se a mudança no domínio de técnica, vai satisfazer a sua produção final. É necessário, ainda, ter consciência da transformação que está acontecendo, mesmo que não saiba ao certo onde tudo vai acabar. O que o/a artesão/ã tem nas mãos é que vai estimular o seu pensamento e por isso Sennet (2013, p. 142) afirma que “[...] a metamorfose estimula a mente”.

Voltando a Sennett (2013), o segundo movimento, que diz respeito à consciência material, demanda o conceito de presença. Corresponde à percepção de detalhes, símbolos, assinaturas ou marcas impressas deixadas por tijoleiros em suas pequenas obras ao longo da história do seu ofício. Segundo Sennett (2013, p. 153), “[...] os artífices encontraram maneiras de deixar sua marca no trabalho” e, justamente essas marcas “[...] impressas pelo construtor [...] davam testemunho de sua presença” (SENNETT, 2013, p. 153). Essas marcas geralmente impressas em obras de argila apresentavam a identidade local, de matéria pura ou misturada, que era utilizada, ou o modo de cozimento do tijolo e poderiam ser tão densas que até criavam uma superfície decorativa.

No entanto, é preciso destacar que geralmente os/as artesãos/ãs que produziam tijolos eram artesãos/ãs escravizados/as, que viviam em um espaço anônimo de prestação de serviços. Mesmo assim, é preciso reconhecer que “[...] foi com esse material que o anônimo tijoleiro ou pedreiro escravizado tomou conhecimento de sua presença” (SENNETT, 2013, p. 154). Nas marcas deixadas nas obras artesanais o anonimato e a presença do/a artesão/ã se combinavam.

Embora uma obra arquitetônica possa demonstrar a presença do arquiteto ou do engenheiro que a projetou, a marca artesanal do tijoleiro “[...] estabelecia presença através de pequenos detalhes que ‘o’ marcavam; o próprio detalhe” (SENNETT, 2013, p. 154). Ou seja, através de pequenos detalhes o/a artesão/ã imprimia na obra a sua marca e tomava consciência de que sua presença, ali na obra, se tornaria durável enquanto ela existisse.

No que tange à presença da palavra do/a mestre/a (materialidade da relação pedagógica escolar), ela precisa se tornar de fato relevante na vida, precisa fazer sentido no contexto dos sujeitos envolvidos. Por outro lado, para que ela se torne marca na existência é preciso que ela habite o mundo humano, no qual se encontram os objetos e os acontecimentos e onde se tornam perceptíveis e conhecíveis. Nesse sentido, caminha-se para o terceiro movimento, pelo qual o/a artesão/ã toma consciência do material: a antropomorfose, apontada por Sennett (2013, p. 154), a qual trata de atribuir “[...] qualidades humanas nas coisas inanimadas”.

Nesse terceiro movimento, pensado por Sennett (2013), pode-se perceber a potência de uma linguagem humanizadora que se torna capaz de atribuir aos “objetos”, qualidades que, até então, eram utilizadas apenas para designar fenômenos e acontecimentos humanos. A antropomorfização impregnou de uma riqueza metafórica a linguagem dos ofícios artesãos/ãs, pois foi “na tentativa de avaliar a qualidade dos tijolos e sua utilização que começaram a se manifestar metáforas de caráter ético” (SENNETT, 2013, p. 157). Assim, considerando que na falta de palavras que pudessem designar as qualidades de objetos inanimados, atribui-se a eles uma linguagem capaz de avaliá-los com características humanas.

É nesse sentido que a antropomorfização torna-se um movimento que destaca a consciência do/a artesão/ã sobre o material. Mais do que isso, aponta as habilidades artesanais como sendo necessárias para estabelecer ligação entre o natural e o artificial e, assim, aumentar o valor consciente das obras (SENNETT, 2013). Ao caracterizar a obra pela presença das palavras, ela passa a habitar o mundo dos seres humanos, que é constituído por obras, palavras, sentimentos, sonhos, desejos, etc.

A relação pedagógica pode ser compreendida como uma obra, desde essa compreensão tecida por Sennett, pois ela é uma relação permeada por palavras, as quais demandam uma consciência material do/a professor/a, para que se transformem em diálogo na escola.

O diálogo como modo de constituição da relação pedagógica artesanal

Por fim, nesta última subseção, destacamos o diálogo como constituidor da relação pedagógica artesanal. Tomamos alguns elementos da filosofia de Lévinas (2011) para defini-lo no contexto da escola e da relação pedagógica.

O diálogo é uma ruptura e um começo. Ruptura de uma identidade totalizada em um eu que se expõe ao Outro, que mostra quem eu sou, que mostra o seu lugar no mundo. Começo de uma relação na qual é possível muito mais que conhecer, é o reconhecimento do Outro como singularmente Outro. Reconhecimento que interpela, que não se deixa dominar, que me desperta para o ofício, que chama o/a professor/a para a responsabilidade de ensinar, transmitir ou oferecer os conhecimentos infinitos do mundo aos/às alunos/as.

Afirmar a relação pedagógica como obra artesanal denota uma compreensão de que o exercício da ação pedagógica pode carregar em si um comprometimento com o fazer artesão/ã, a partir da consciência material. Um compromisso encarnado entre professor/a artesão/ã e a materialidade do mundo que é tomada nas mãos e, ao ser transformada em palavras pode tornar-se uma obra no mundo. Uma obra que transcende ao próprio tempo de sua constituição. É nesse intento que se dá ênfase, ao longo do texto, às palavras como materialidade; é com elas que o/a professor/a produz artesanalmente a relação com os/as estudantes.

Todos os dias inúmeros sujeitos se encontram na escola. Esse encontro é marcado pela necessidade do estabelecimento de relações, pois o fato de se encontrarem em uma instituição educativa supõe uma intencionalidade relacional de ensino e aprendizado. O mero encontro não supõe relação, afinal todos os dias os sujeitos encontram-se com inúmeras pessoas e nem por isso se estabelece uma proximidade com elas. O elemento potencializador dessa relação é a linguagem (diálogo, o discurso). Quando se conversa com alguém se fala e se ouve e, assim, se passa a conhecer sua subjetividade (sua interioridade de acordo com Lévinas 2010), seu modo de vida, seus saberes e outras características. Para Lévinas (2010), como manifestação de uma razão, a linguagem desperta em mim e em outrem o que nos é comum ao despertar o que é comum entre os seres; a linguagem estabelece relações.

Muito embora a relação pedagógica seja complexa e abarque inúmeros gestos, conteúdos, tecnologias e metodologias, “[...] a palavra falada e ouvida, pode ser repetida tanto por quem diz, como por quem ouve” (MARQUES, 2003, p. 57). E essa repetição pode ser da ordem da artesania se pensarmos a repetição como um dizer, redizer e um dizer novamente que desafia o pensamento a pensar a si mesmo e a se ressignificar, tal como uma ritualidade. No entanto, a palavra isolada pode tornar-se um eco vazio de sentido e de significado no mundo ou na escola; uma sala de aula vazia. Por isso, a palavra na relação pedagógica adquire um valor que transcende a mera mecanicidade do dizer através do diálogo. Segundo Lévinas (2002, p. 190), “Pode-se chamar diálogo esse encontro onde os interlocutores entram uns no pensamento dos outros, onde o diálogo conduz a melhores sentimentos”; o diálogo é esse encontro de interlocutores que palavreiam o pensamento (a interioridade) e o mundo que conhecem.

Através do diálogo podem ser estabelecidos sentidos múltiplos, pois “É pela multiplicidade empírica dos homens pensantes que circularia a linguagem que efetivamente se fala” (LÉVINAS, 2002, p. 189). E, nesses sentidos múltiplos, se pode encontrar o aprendizado, que demanda encontro entre diferentes sujeitos; entre professor/a e aluno/a que possuem diferentes experiências.

Visto que a relação pedagógica suplanta o mero encontro entre duas pessoas, pode-se afirmar que o diálogo é o elemento que potencializa a mediatização dos conhecimentos acerca do mundo entre os sujeitos que se relacionam. O diálogo não é mero dizer; é uma exposição do que se pensa e do que se conhece; é uma exteriorização da identidade pessoal a um outro que me escuta e que ao mesmo tempo tem direito de fala. Mais do que isso, “O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu - tu” (FREIRE, 2005, p. 91).

O diálogo extrapola a relação entre os dois sujeitos que se encontram inacabados, pois: abarcam em si a complexidade identitária dos sujeitos que estão dialogando e extrapolam a presentificação desse diálogo ao trazer para dentro dele os objetos, acontecimentos e fenômenos do mundo e atribuir sentidos e significados diversos a eles, através da exteriorização de conhecimentos e saberes. Essa exteriorização torna-se visível a outros sujeitos que podem estar fora desse diálogo inicial, mas serem tocados por aquilo que se produziu na discussão. Até porque os outros que estão fora desse diálogo inicial podem ser também o tema do mesmo e por isso deixar de ser meros objetos espectadores e passam a ser sujeitos do próprio processo.

Neste viés, sendo a aula um espaço de acontecimento da relação pedagógica escolar, o diálogo pode ser um exercício de criação de sentidos comuns, de palavras, de argumentos, de posicionamentos críticos, políticos, ideológicos e cognitivos. Nesse sentido, é preciso entender que o diálogo “[...] não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista do outro” (FREIRE, 2005, p. 91). Sendo assim, o diálogo precisa convocar o outro a assumir o seu espaço de fala também. Isso nos desafia a pensar que a relação pedagógica não é conquista do outro, invisibilização ou apagamento de sua identidade, pelo contrário, o que está em jogo, não é a identidade, mas o que está ao alcance de se conhecer.

Por isso, é que Freire (2005, p. 91), nos indica que “A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro”. Neste propósito, fica claro que o que está em jogo na relação pedagógica é o conhecimento, reconhecimento do mundo e não a conquista da identidade do outro. É a conquista do mundo, através dos conhecimentos que se podem estabelecer sobre ele.

É preciso frisar que, nesse diálogo deve acontecer uma mediação entre os sujeitos (o que conhecem ou desconhecem) e os objetos, fenômenos e acontecimentos do mundo e, não uma mediação entre necessidades e interesses de sistemas políticos, econômicos ou ideológicos que tendem a domesticar os conhecimentos ao desenvolvimento de habilidades e competências. Desenvolver uma educação embasada em habilidades e competências é interferir na identidade dos sujeitos, a fim de convencê-los a transformar suas ações, até porque, uma relação pedagógica dialógica torna o mundo comum e abre possibilidades para os sujeitos tornarem-se o que desejarem.

Considerações finais

Toda a artesania da relação pedagógica está permeada por uma série de elementos objetivos e subjetivos que podem ser assumidos pelos/as professores/as artesãos/ãs. Por isso, apresentamos abaixo um conjunto de cinco características que contribuem para a atribuição do adjetivo de “bom” ao/a artesão/ã:

  • 1 - Ele/a entende a importância do esboço, mesmo que não saiba exatamente o que vem pela frente ao começar - ou seja, planeja o que deseja fazer, para identificar os modos possíveis e os materiais necessários;

  • 2 - O/A bom/a artesão/ã atribui um valor positivo às contingências e limitações - pois o ajudam a perceber o seu próprio inacabamento e possibilita verificar que ainda há coisas a aprender;

  • 3 - Ele/a deve evitar a busca inflexível da solução de um problema - ou seja, deve ser flexível e maleável, buscando sempre entender que há acontecimentos e fenômenos que não podemos dominar e que sempre poderá haver incompletudes no produto final;

  • 4 - O/A bom/a artesão/ã evita perfeccionismo que pode se degradar numa demonstração muito autocentrada - como se o produto final fosse o início, meio e fim de tudo;

  • 5 - Ele/a aprende a identificar quando é o momento de parar - pois persistir no trabalho pode levar a uma degradação, por isso deve levar em consideração as características anteriores (SENNETT, 2013, p. 291-292).

Tais características não constituem receita; elas podem ser princípios que alimentam o pensar sobre o fazer cotidiano do/a professor/a artesão/ã na escola e na sala de aula. Cada professor/a precisa pensar nelas e, talvez a partir delas, exercitar o seu ofício.

Assim, pode-se concluir afirmando que foi possível atingir o objetivo principal proposto, sistematizando as principais ideias da pesquisa: os indicativos das mudanças que foram ocorrendo no cenário educativo brasileiro; a consideração da escola como oficina artesanal; o reconhecimento da relação pedagógica como obra artesanal; o destaque ao diálogo como meio de constituição da relação pedagógica artesanal. Apresentou-se os principais conceitos, expressões e argumentos referenciados nos principais autores que deram sustentação à pesquisa.

Considerar a relação pedagógica como artesania implica reconhecer que o ser humano é um ser inacabado; que tem amor pelo mundo e pelas pessoas que o habitam. Nunca o/a professor/a será substituído pela máquina, pelo espaço virtual, desde que ele/a recorde sempre de lembrar os outros que amor e inacabamento são condições humanas para nossas ações educativas.

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1Este artigo é resultado da tese de doutoramento em educação de Gilberto Oliari, desenvolvida na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), sob orientação de Elisete Medianeira Tomazetti

2Considera-se coletiva ao passo que as reflexões e escritos foram socializados no âmbito do Grupo de Pesquisa FILJEM - Filosofia, Cultura e Educação (UFSM).

3Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (BRASIL, Lei 9394, 1996); Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (BRASIL, MEC/SEF, 1997); Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio (BRASIL, MEC/SEMT, 1999); Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (CNE/CEB, 2010); Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN + (BRASIL, MEC/SEMT, 2000); RESOLUÇÃO 2/2012 - Define Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, CNE, 2012); LEI 13.145/2017 - Altera a LDB (BRASIL, 2017); DIRETRIZ 03/2018 - Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, MEC, CNE/CEB, 2018); Base Nacional Comum Curricular - Ensino Médio (BRASIL, 2018).

4Proposições do Instituto Ayrton Senna: Circuito Campeão; Educação e Tecnologia; Solução educacional para o Ensino Médio; Letramento em programação: a linguagem do Século 21. Da Fundação Lemann: Talentos da Educação; Apoio ao desenvolvimento de lideranças políticas. Todos pela Educação: Reduca; Movimento profissão docente.

5Hannah Arendt (2008, p. 31), afirma que “[...] todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos”, essa é a condição que jamais abandonamos ou transcendemos completamente. O fato de vivermos juntos estabelece um mundo comum, o qual “[...] adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida […]: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência” (ARENDT, 2008, p. 65). Constitui-se, pois, uma grande comunidade que estabelece relação entre os que já passaram, os que estão e os que virão ao mundo.

6Nas matérias do mundo podem ser considerados os diferentes objetos, fenômenos e acontecimentos do mundo comum apresentados, no caso da escola, nos diferentes currículos e proposições curriculares escolares.

7Vale afirmar que Lévinas (2011) trata do conceito de obra, como relativo a todas as relações humanas que se estabelecem no mundo. A aproximação com as noções de relação pedagógica é uma das fundamentações que a própria pesquisa aponta.

8A noção de ofício “[...] remete a uma artesania: à materialidade do trabalho, à tradição em se escreve, à pegada subjetiva do artesão que o realiza, a sua presença corporal, remete também a esse velho jeito de fazer as coisas bem” (LARROSA, RECHIA, 2018, p. 319). Assim, o/a professor/a é um/a artesão/ã, pois se utiliza das materialidades existentes em seu contexto, para a efetivação de sua ação pedagógica e as manipula com seu modo pessoal e subjetivo.

9Para Lévinas (2012, p. 45) a obra “Enquanto orientação absoluta em direção ao Outro - enquanto sentido - [...] só é possível como paciência, a qual, levada ao extremo significa, para o agente: renunciar a ser contemporâneo do resultado, agir sem entrar na Terra prometida”. Desse modo, a obra direciona-se para o infinito porque o sujeito produtor desta não vislumbra o seu valor final, ou mesmo suas consequências.

Recebido: 10 de Setembro de 2021; Aceito: 23 de Dezembro de 2021

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