Introdução
Nas últimas décadas, houve significativo avanço dos direitos infantis em escala global, sobretudo, em contextos educacionais que buscam retirar as crianças da condição de anomia e de invisibilidade social, reconhecendo-as como sujeitos competentes para pensar e agir sobre si em seus mundos de vida (TOMÁS, 2017). No Brasil, desde a Constituição Cidadã (BRASIL, 1988), legislações e políticas públicas,1 em especial, no campo educacional, objetivam assegurar os direitos infantis, enxergando as crianças em suas alteridades em relação aos adultos e não pelas suas faltas e incompletudes, ou seja, por aquilo que elas ainda não são (SARMENTO, 2013).
Contudo, se no plano legal e das políticas públicas os direitos infantis estão se consolidando, nas práticas sociais ainda prevalecem representações e ações sobre as crianças que as mantêm na condição de subalternidade em relação aos adultos. Portanto, há um “abismo” entre o que está no campo das intenções e o que realmente ocorre nos cotidianos das diferentes infâncias. Muitas variáveis contribuem para a não efetivação dos direitos infantis em sua plenitude, indo desde questões socioeconômicas mais amplas até as diferentes concepções de infância que circulam em nossa sociedade (KOHAN, 2020; DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003).
No campo educacional, especialmente no contexto da Educação Infantil, um dos principais desafios para a efetivação dos direitos infantis e para o reconhecimento da criança como sujeito do seu próprio desenvolvimento é de natureza metodológica e está circunscrito à dimensão do como fazer (MARCHIORI, 2022; EWALD, 2021; MELLO et al., 2020; BARBOSA, 2018; GUIMARÃES, 2018). Como reconhecer e valorizar as agências, as práticas autorais e as produções culturais de crianças tão pequenas, que, em muitos casos, ainda não possuem uma linguagem verbal articulada? Como superar o olhar adultocêntrico que incide sobre as crianças nas instituições infantis e enxergar as formas singulares delas se apropriarem e ressignificarem a cultura?
A fim de responder a essas indagações, desde 2017, o Núcleo de Aprendizagens com as Infâncias e seus Fazeres (Naif)2, vem operando com o conceito de prática, nos termos de Michel de Certeau (2014, 1985), para compreender os usos e as apropriações que as crianças fazem dos bens culturais que lhes são ofertados e, assim, dar visibilidade às suas agências em seus processos de aprendizagem, de desenvolvimento e de socialização que ocorrem na primeira etapa da Educação Básica. Apesar de ser um grupo de pesquisa relativamente novo, o Naif vem se afirmando no cenário nacional pelo volume e qualidade de suas produções sobre as práticas pedagógicas e de pesquisa da Educação Física com a Educação Infantil (DUARTE; NEIRA, 2021; FARIAS et al., 2019).
Diante do exposto, este artigo tem como objetivo discutir o conceito de prática em Certeau (2014; 1985) e, com base nas produções do Naif, a sua aplicabilidade em pesquisas com as crianças nos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI) de Vitória/ES.
Percurso teórico-metodológico
O presente artigo trata-se de um estudo bibliográfico, com foco nas pesquisas do Naif, que operam com o conceito de prática, nos termos de Michel de Certeau (2014, 1985), para compreender as produções culturais das crianças no contexto da Educação Infantil. O recorte temporal dos trabalhos analisados é de 2012 a 2022, abrangendo, portanto, um período embrionário, anterior à fundação do Naif, que se deu em 2017, assim como o período posterior à fundação do referido Ggrupo. Os trabalhos produzidos em formato de teses, dissertações e artigos nessa última década foram conduzidos e orientados pelos membros que atualmente compõem o grupo.
O historiador francês Michel de Certeau, associado ao campo da História Cultural, nasceu em 1925 e faleceu em 1986, aos 61 anos. Para o autor, a cultura só faz sentido em seus usos, ao conceber que os praticantes do cotidiano não assimilam passivamente os bens culturais que lhes são ofertados, pois sempre há uma estética da recepção, que denota formas singulares de apropriação cultural. Em sentido oposto à Teoria da Reprodução, formulada por Bourdieu e Passeron (1982), que preconiza uma assimilação passiva dos valores e padrões culturais dominantes, Certeau (2014) focaliza o consumo produtivo que os homens ordinários fazem da cultura em seus cotidianos, o que demarca as suas artes de fazer.
Em sua obra, Certeau (1985) atribui centralidade às práticas cotidianas,3 que são signatárias de três dimensões indissociáveis: a ética, a polêmica e a estética. A dimensão ética se refere à necessidade histórica de existir. Por mais cooptadas e coibidas que as crianças sejam nas instituições infantis, elas agirão para satisfazer os seus interesses e necessidades. De acordo com Finco e Oliveira (2011), as crianças pequenas, com os seus corpos e espontaneidades, questionam os modelos pedagógicos centrados nos adultos. Para Certeau (2014, p. 88), “Uma criança ainda rabisca e suja o livro escolar; mesmo que receba um castigo por esse crime, a criança ganha um espaço, assina aí a sua existência de autor”.
Já a dimensão polêmica das práticas, diz respeito às relações assimétricas de poder existentes entre distintos grupos sociais. No caso das crianças, refere-se à condição de subalternidade que elas se encontram em relação aos adultos e à vontade de afirmarem as suas lógicas em contextos nos quais prevalece a racionalidade adultocêntrica.
Por fim, a dimensão estética refere-se às artes de fazer, ou seja, à maneira peculiar e autoral que as crianças imprimem às suas práticas para satisfazerem suas necessidades e expectativas, que, nas relações assimétricas com os adultos, em que elas gozam de menor poder, precisam agir de maneira astuciosa e, por vezes, subversiva para fazerem valer os seus interesses.
Embora Michel de Certeau seja um autor vinculado à História Cultural, os seus pressupostos têm sido utilizados por diferentes áreas do conhecimento, incluindo o campo da Educação (FERRAÇO; SOARES; ALVES, 2018; ALVES, 2010; GARCIA, 2003; OLIVEIRA, 2012) e o da Educação Física (MARCHIORI, 2022; EWALD, 2021; MELLO et al., 2020). Nesse processo, os trabalhos têm dado visibilidade aos usos e às apropriações que os praticantes do cotidiano (professores/as, crianças, profissionais, famílias) fazem da cultura em diferentes contextos escolares.
No escopo deste artigo, a fim de compreender as práticas infantis, mobilizamos as seguintes categorias propostas por Certeau (2014): consumo produtivo; estratégia e tática; lugar e espaço; e enunciação. Todos os trabalhos produzidos pelo Naif e aqui analisados fizeram uma longa imersão no campo, seja pelo viés etnográfico ou na perspectiva da pesquisa-ação, que, em processos de coprodução com as crianças, buscaram transformar a realidade de determinados contextos educacionais, no sentido de reconhecer e de valorizar a participação dos infantis na efetivação de suas práticas curriculares.
No processo de produção dos dados, os trabalhos realizados pelo Naif seguiram a orientação de beber em todas as fontes (ALVES, 2008, p. 42), a fim de evitar que a unilateralidade de um dado não se sobreponha à complexidade da realidade. Nesse sentido, diferentes instrumentos foram utilizados: diário de campo, imagens iconográficas paradas e em movimento, desenhos, enunciações de crianças e adultos, brinquedos construídos, dentre outros artefatos pedagógicos. Para Bloch (2001), tudo aquilo que o homem toca, fabrica, fala ou escreve pode dizer algo sobre ele, contudo, cabe ao pesquisador fazer as suas fontes falarem. Entretanto, ao considerarmos os limites deste artigo, mobilizamos apenas os registros escritos para fornecer evidências às nossas afirmações.
Consumo produtivo
Ao deslocar o foco do emissor para o receptor, Certeau (2014) se interessa pelos usos e apropriações que os praticantes do cotidiano fazem da cultura. Para isso, opera com o conceito de consumo produtivo, pois, segundo o autor:
[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como características suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois ela, quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar aqueles que lhes são impostos (CERTEAU, 2014, p. 89).
Martins (2015) e Zandominegue, Barbosa e Mello (2020), ao observarem as transformações que as crianças imprimiram às brincadeiras apresentadas pelos professores/as, verificaram o consumo produtivo que elas empreenderam sobre as atividades lúdicas. A todo momento e de forma autônoma em relação aos professores/as, elas negociaram o modo como as brincadeiras foram realizadas, considerando os seus interesses e subjetividades na reconstrução das atividades propostas:
As crianças, a cada instante, modificavam a sua condição na brincadeira de acordo com os seus interesses. A partir de suas motivações, entre elas próprias, negociavam em que momentos assumiam a função de pegar e de serem pegas, não partilhando com o adulto esse tipo de decisão (MARTINS, 2015, p. 118).
Ao chegar no pátio, dispostas em círculo, um menino disse que queria brincar da brincadeira ‘do vizinho’, que ele iria ensinar. A professora o ouviu, mas continuou a brincadeira que já fazia com as crianças. Então, o menino veio até mim [pesquisadora], que estava no canto do pátio registrando a aula e disse: ‘Tia, eu posso ir na sala guardar o meu agasalho?’. Eu disse que poderia segurá-lo, mas ele não quis e saiu. Em seguida, o mesmo menino voltou e me pediu para ir até a sala guardar o seu chinelo. Percebi que o menino insistia em ir até a sala e perguntei-lhe: ‘Conta pra tia, o que você quer fazer na sala?’. Ele me respondeu: ‘Eu preciso de um papel e de um lápis’. ‘Ah, mas isso eu posso te dar. O que você quer escrever?’, perguntei. ‘A brincadeira pra tia falar e eles fazerem’, respondeu o menino. ‘Você quer que eu escreva pra você?’, perguntei. O menino então ditou, a seu modo, a brincadeira e eu a anotei num pedaço de papel que ele, imediatamente, entregou à professora. Ao receber o papel, a professora logo ‘captou’ a situação, chamou as crianças e, junto com elas, tentou compreender a brincadeira do menino. Vimos que, pelo desejo de brincar de novo, o menino reinventou a brincadeira ‘galinha com pintinhos’ ensinada por uma menina na aula anterior [...]. Os personagens, que eram raposas, milho e pintinhos, agora são vizinhos, pipoca e as crianças (ZANDOMINEGUE; BARBOSA; MELLO, 2020, p. e06973758).
Mesmo os bebês, que majoritariamente são vistos pelos adultos apenas pelas suas faltas e incompletudes, exercem o consumo produtivo sobre os artefatos culturais que lhes são ofertados. Por meio de suas práticas, é possível perceber usos e apropriações singulares, que denotam formas autorais e criativas de se relacionarem com a cultura. Em sua pesquisa com bebês, Rosa (2014) verificou processos ativos de socialização, em que as eles foram autores de suas próprias experiências: “Outras maneiras de brincar com os móbiles, inventadas pelas crianças, foi subir o escorregador engatinhando, escorregar de peito e descer do escorregador andando pela escada, segurando na minha mão [pesquisadora] e na do professor” (ROSA, 2014, p. 72).
As crianças possuem um estatuto pré-social, pois não são consideradas como sujeitos ontologicamente completos. Nessa perspectiva, a infância é concebida como uma fase de transição para a vida adulta e as crianças como homúnculos, ou seja, como adultos em miniaturas (SARMENTO, 2013). Para retirá-las dessa condição de invisibilidade social, torna-se necessário superar o olhar adultocêntrico que historicamente incide sobre as crianças e compreender as formas peculiares pelas quais elas produzem cultura e as suas práticas autorais, que demarcam processos ativos de socialização.
Um dos caminhos trilhados pelo Naif para compreender as crianças a partir das suas próprias realidades, considerando-as como sujeitos competentes para assumir práticas e discursos sobre si, é focalizar o consumo produtivo que elas fazem da cultura. Para isso, é preciso desenvolver um olhar atento e uma escuta sensível para os indícios deixados por elas em suas práticas cotidianas, que se manifestam por meio de diferentes linguagens, em especial pela corporal. Como recomenda Pires (2008, p. 51), para romper com o olhar cristalizado sobre as crianças, que só enxerga nelas limites e impossibilidades, é preciso “[...] tornar visível aquilo que se tornou invisível por excesso de visibilidade”.
Estratégia e tática
Outra potente categoria analítica proposta por Certeau (2014) e que contribui para enxergarmos as produções infantis está subjacente ao binômio estratégia e tática. Esses conceitos foram extraídos da polemologia, ou seja, da arte da guerra, e referem-se a polos opostos presentes nas relações assimétricas de poder. A estratégia é de onde emana o poder, é o lugar das decisões, das prescrições, daquilo que regula a vida social. Já a tática é a arte do mais fraco, daquele que, em relações desiguais, goza de menos força e, por isso, precisa agir de maneira astuciosa e subversiva para fazer valer os seus interesses. Quanto mais apertadas são as estratégias, menos visíveis são as táticas. Nas palavras do próprio autor:
Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações de uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc.) (CERTEAU, 2014, p. 93).
[...] chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. [...] a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo” [...] (CERTEAU, 2014, p. 94).
Barbosa (2018), ao realizar pesquisa etnográfica no cotidiano de um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) de Vitória/ES, percebeu que as brincadeiras de lutinha4 eram constantemente coibidas pelas professoras, sob o argumento de que as crianças iriam se machucar ou que esse tipo de brincadeira estimulava a violência. Apesar disso, as crianças agiam taticamente e brincavam de lutinha longe dos olhares das professoras, como na casa de boneca, que ficava no pátio, ou, quando algum adulto se aproximava, fingiam que estavam brincando de outra coisa, como se observa no seguinte relato extraído do diário de campo:
Em um momento de pátio, iniciei uma conversa com as crianças sobre a casinha: Como vocês brincam na casinha? Um menino respondeu prontamente: De guerra e de luta. Questionei: Vocês não se machucam? E outro menino respondeu: Não, a gente brinca de pegar os bandidos e luta com eles... eu quero ser fortão... Eu perguntei: Mas pode brincar de lutinha em outro lugar? E o mesmo menino respondeu: Só pode brincar de lutinha na casinha, porque a tia não pode ver. Eu falei: E se ela ver, o que acontece? Ele respondeu: Ela bota de castigo... porque não pode brincar de lutinha, aí a gente vai lá para a casinha para brincar, entendeu? Em busca de saber mais sobre o assunto, fiz outra pergunta: E eu posso ver vocês brincando assim lá, na casinha? Eles me responderam: Sim, pode, porque você só gosta de gravar (BARBOSA, 2018, p. 238).
Ao escovar a contrapelo (BENJAMIN, 1996) e olhar essas brincadeiras a partir das lógicas infantis, a pesquisadora constatou a importância dessas manifestações lúdicas no processo de socialização das crianças. Ao contrário do que pressupõe o olhar adultocêntrico, as brincadeiras de lutinha se configuraram como um fator de desaceleração da violência. Para brincar desse tipo de brincadeira, que ocorre no plano simbólico, do faz de conta, em que as crianças simulam super-heróis e personagens, é preciso autocontrole e uma ética interna à prática para respeitar o que vale e o que não vale. Diante dessa compreensão, as brincadeiras de lutinha foram potencializadas na Educação Física desse CMEI.
Na pesquisa de Martins (2015), as atividades propostas pelo professor de Educação Física para trabalhar pedagogicamente a capoeira foram a todo instante atravessadas pelas ações táticas das crianças, que, assim, manifestaram os seus desejos de reconfiguração dessa prática corporal a fim de satisfazer os seus desejos.
As crianças agem taticamente e, à margem do planejamento formal da aula, experimentam alternativas. Foram nos momentos fugidios do olhar adulto que as crianças se aproveitaram para estabelecer relações instituintes de negociação, jogo de papéis e regras acerca das formas de brincar e de operar com os objetos, espaços-tempos e com as atividades que mais lhes interessam (MARTINS, 2015, p. 124).
Nessa mesma direção, Klippel (2013) identificou que as ações táticas se constituíram como uma forma particular de as crianças afirmarem os seus interesses e se manifestaram majoritariamente nos ambientes amplos e abertos em que as atividades pedagógicas ocorreram, pois esse tipo de ambiente favorece a dispersão do olhar controlador do adulto. Com efeito, as crianças conseguiram empreender o que o autor chamou de organizações improvisadas da atividade brincante proposta pela professora.
Lugar e Espaço
Nas pesquisas-ação desenvolvidas pelo Naif, que buscam reconhecer e valorizar a participação das crianças na construção das práticas pedagógicas com a Educação Infantil, os conceitos de lugar e de espaço têm contribuído para compreender como elas, em seus cotidianos, operam nos ambientes de diferentes culturas escolares.
O lugar é o ambiente institucionalizado, em que as suas funções e os seus usos já estão definidos a priori. Já o espaço é o lugar praticado, aquele em que os sentidos são construídos nas relações subjetivas que os sujeitos estabelecem com o ambiente físico, ressignificando as suas finalidades originais. Para Michel de Certeau, “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência [...]. Um lugar é, portanto, uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade’ (CERTEAU, 2014, p. 184). Por sua vez, “O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam [...]” (CERTEAU, 2014, p. 184).
Na pesquisa-ação desenvolvida por Zandominegue (2018), a autora compreende que o ambiente escolar é um lugar controlado por estratégias definidas pelos adultos, a partir de seus valores e perspectivas de enxergar o processo educativo - portanto, um lugar de poder. Por outro lado, a pesquisadora constatou que as crianças costumam assombrar esse lugar ao imprimirem as suas marcas identitárias por meio de ações astuciosas (táticas), que transformaram o lugar em espaço.
A autora narra um episódio em que a sala de vídeo, concebida para projetar filmes escolhidos pelas docentes com base em suas intencionalidades pedagógicas, foi constantemente tensionada pelas crianças, que informavam sobre os seus filmes prediletos e buscavam o convencimento das professoras para assisti-los de acordo com os seus desejos, subvertendo os espaços e tempos previamente estabelecidos pelos planejamentos dos adultos, transformando aquele ambiente pedagógico formal em uma espécie de cinema infantil, moldado de acordo com os seus interesses.
Nas observações participantes que precederam as suas mediações pedagógicas, Klippel (2013) verificou que as crianças se apropriavam dos ambientes do CMEI de maneira peculiar, deslocando as funções previamente estabelecidas para usos autorais, permeados pelos enredos simbólicos que elas criavam: as guias que margeavam os jardins, por exemplo, transformaram-se em perigosas pontes de equilíbrio; os bancos de alvenaria foram ressignificados em obstáculos a serem superados na aventura imaginária; o barranco de grama, situado em frente ao CMEI, foi utilizado para o skibunda, proporcionando adrenalina e excitação nas atividades de risco controlado.
Essas observações foram fundamentais para que o professor-pesquisador levasse as Práticas Corporais de Aventura (PCA) para os encontros da Educação Física com a Educação Infantil, ressignificando, naquele contexto, o modo de operar com essa área do conhecimento. Assim, o parkur, a escalada e a tirolesa, dentre outras atividades de aventura, foram adaptados à realidade do CMEI, transformado os lugares em espaços praticados pelo professor e pelas crianças.
De maneira similar, Guimarães (2018) demonstra como a professora-pesquisadora e as crianças transformaram os lugares de um CMEI em espaços. Essa instituição, de dois pavimentos, possui uma rampa de acesso para o segundo piso. Ao observar os modos específicos como as crianças trafegavam por aquele lugar (correndo, deslizando, saltando), a professora, em codecisão com os infantis, construiu algumas aventuras radicais na rampa: correr e lançar aviãozinho de papel; corrida de papelão com o colega empurrando; e matraca (espécie de helicóptero de papel puxado pelo barbante).
A transformação dos lugares em espaços praticados precisa ir além dos limites físicos das instituições educacionais e se materializar também na polis, nos espaços públicos da cidade, para que os direitos infantis e, consequentemente, a cidadania das crianças não fiquem restritos a redomas sociais. Para Tomás (2017, p. 17),:
[...] a exigência de uma ação pedagógica ampla, espacial e materialmente, não apenas centrada nas salas de atividades. O direito à natureza e ao espaço público assume-se não apenas como necessidade, mas como direito das crianças pequenas.
As cidades são majoritariamente inóspitas às crianças, pois não foram pensadas e concebidas para e com elas. Contudo, ao ocuparem esse lugar, os infantis constroem uma espacialidade antropológica, ressignificando a arquitetura de suas ruas e construções, atribuindo-lhes outros sentidos, produzidos com olhos de crianças (TONUCCI, 2003). Como diz o poeta moçambicano Mia Couto:
A cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida. A moldura à procura de retrato, é isso que eu vejo quando revisito o meu lugar de nascimento. Não são ruas, não são casas. O que revejo é um tempo, o que escuto é a fala desse tempo. Um dialeto chamado memória, numa nação chamada infância (COUTO, 2005, p. 145).
Enunciação
A ideia de prática, em Michel de Certeau, é ampla e abrange diversas ações que os indivíduos empreendem em seus cotidianos sociointeracionais. Nesse sentido, a enunciação, que é a fala em ato, também se configura como prática. Diferentemente da linguagem, que se refere às regras de um determinado sistema simbólico, a enunciação diz respeito à fala enquanto prática social, que só tem sentido quando inserida em seu contexto de produção. A expressão o meu carro quebrou!, por exemplo, refere-se a um problema mecânico, mas, quando dita pelo funcionário para o patrão ao chegar tarde na empresa, tem a intenção de justificar o seu atraso, ou seja, esse sentido só pode ser inferido nessa circunstância específica. De acordo com Certeau (2014, p. 91): “Indissociável do instante presente, de circunstâncias particulares e de um fazer (produzir língua e modificar a dinâmica de uma relação), o ato de falar é um uso da língua e uma operação sobre ela”.
Para Certeau (2014), no plano das relações sociais e das interações comunicativas, a enunciação revela as artes de fazer dos praticantes do cotidiano, denotando as suas operações sobre a cultura. Ao distinguir a língua da fala, o autor “[...] comparava a primeira a um capital e a segunda às operações que ele permite de um lado um estoque, de outro, negócios e usos” (CERTEAU, 2014, p. 90).
Nas pesquisas empreendidas pelo Naif, as enunciações das crianças ocupam um lugar de destaque (FRANCO, 2022; FÁVERO, 2022; ZANDOMÍNEGUE; BARBOSA; MELLO, 2020; EWALD; MARTINS; MELLO, 2020; BARBOSA; MARTINS; MELLO, 2017; BARBOSA; CAMARGO; MELLO, 2020; SCOTTÁ et al., 2020; ZANDOMÍNEGUE; MELLO, 2019). Cada frase, cada palavra, pequenas e grandes enunciações, interjeições, interpelações, dentre outras formas de manifestações verbais, são valorizadas para a compreensão das crianças e de suas formas particulares de interpretar as suas realidades.
Em sua pesquisa-ação, Franco (2022) relata um episódio em que a enunciação de uma criança transformou o encaminhamento pedagógico da aula de Educação Física com a Educação Infantil, em que era trabalhada a história da dança Congo:
A fala de um menino também nos fez acrescentar uma nova brincadeira. No momento em que realizávamos a dramatização da história do Congo, levamos para a sala um barco grande para compor o cenário. Na cena em que os “africanos” que foram escravizados estavam na embarcação vindo para o Brasil, Marcelo disse: ‘tia, a gente tem que balançar o barco por causa da chuva e da onda’. As outras crianças concordaram e começaram a balançar o barco e, no momento da tempestade, fizeram onomatopeias de trovão (FRANCO, 2022, p. 131-132).
Barbosa (2018), ao investigar as brincadeiras na Educação Infantil, percebeu que, no início de sua pesquisa, as brincadeiras realizadas pelas professoras eram orientadas para determinado fim ou para o desenvolvimento de alguma habilidade, levando ao entendimento do jogo como um meio. No entanto, a presença da pesquisadora, as observações e os registros captados durante a pesquisa no cotidiano dos espaçostempos da Educação Física e os olhares atentos para as enunciações com e entre as crianças influenciaram direta e indiretamente a modificação do trabalho pedagógico das professoras pesquisadas. Desse modo, o jogo se tornou um objeto de ensino, no sentido de apropriação do capital cultural lúdico infantil e do reconhecimento da contribuição e da produção de cultura da criança. O resultado foi interações contextualizadas e a visibilidade da racionalidade das crianças com brincadeiras historiadas:
Pensando em juntar os desejos infantis às atividades pedagógicas, a professora criou uma história de um pato no sítio e falou que ele conheceu outro pato: o pato-borracha! As crianças riam e prestavam atenção em tudo que a professora falava. Na brincadeira, ela explicou que o pato ganhava forma e poderia fazer o que eles quisessem. Sem imaginar o que poderia surgir, perguntou o que o pato poderia fazer? Um menino falou: “Um tubarão chegou e comeu o pato!” A professora respondeu: “Um tubarão comeu o pato? E agora?” Uma menina acrescentou: “Era um tubarão nervoso!”. A professora perguntou: “Qual era o nome do tubarão?” A mesma menina respondeu: “Tubarão nervoso! Ele foi brigar com o pato, mas o pato saiu correndo!” A professora, entusiasmada com a história, falou: “Então, o tubarão vai pegar o pato!”. As crianças saíram correndo com a professora atrás delas, encarnando o tubarão. Em seguida, uma das crianças gritou: “Tia, agora chegou o jacaré!” E a professora começou a cantarolar: “Sou um jacaré...” E as crianças se envolveram mais uma vez com a atividade. A professora conseguiu captar as vozes e as vontades das crianças na brincadeira e a aula fluiu (BARBOSA, 2018, p. 283).
Escutar as vozes das crianças, perceber, dar atenção e compreender os interesses infantis, suas lógicas, tessituras e inventividades é valorizar as práticas culturais microbianas, singulares e plurais do cotidiano, com destaque para as narrativas e enunciações dos sujeitos ordinários (CERTEAU, 2014).
Fávero (2022) relata que, ao introduzir a temática capoeira em sua pesquisa-ação, muitas crianças se manifestaram espontaneamente, revelando as suas experiências anteriores com essa manifestação cultural: “Tia, eu faço capoeira com o meu pai” (criança 10); “Tia, eu já joguei capoeira perto da minha casa” (criança 9); “Eu já vi uma roda de capoeira lá na pracinha” (criança 3) (FÁVERO, 2022, p. 98). As enunciações das crianças foram determinantes para a construção de um planejamento que valorizasse essas experiências, não concebendo-as como uma folha em branco, mas como sujeitos que, apesar de muitos novos, já possuem uma bagagem sociocultural que precisa ser reconhecida. Sobre o papel das enunciações infantis no cotidiano das instituições infantis, as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil de Vitória/ES afirmam:
Assim, no acontecimento da docência, o currículo se materializa em meio às enunciações infantis, consideradas produções discursivas das crianças que expressam suas relações diferenciais com o mundo. Considerar como ponto de partida as inquietações, curiosidades, proposições, desassossegos, problematizações que são produzidas nas interações com as crianças possibilita outros modos de organização das práticas pedagógicas (VITÓRIA, 2020, p. 55).
Sem negar os instrumentos tradicionais para a produção discursiva (entrevistas, rodas de conversas, grupo focal, dentre outros), apostamos na potência da enunciação pela sua validade ecológica, em que as narrativas infantis são provenientes de situações espontâneas, evitando, dessa forma, um certo grau de artificialidade dos métodos em que os sujeitos são incentivados a falar sobre determinado tema. Além disso, as crianças que estão na Educação Infantil, sobretudo aquelas na faixa etária de zero a três anos, ainda não possuem um capital discursivo que permita a elas transitar com desenvoltura em situações mediadas pela conversa.
Sarmento (2013) problematiza a expressão crianças como sujeitos de direitos, ao questionar que os infantis são alijados dos direitos clássicos preconizados por Marshall (civis, políticos e sociais). As crianças, por exemplo, não votam e nem podem ser votadas, não têm o direito à propriedade e não podem ir e vir livremente. Por isso, o autor sugere novas categorias de direitos, que contemplem as alteridades das crianças, dentre elas, destaca o direito cognitivo, ou seja, o direito de as crianças serem levadas à sério em suas maneiras próprias de interpretar e de ressignificar as suas realidades. Nesse sentido, as enunciações ganham relevo, pois denotam as operações que as crianças realizam sobre a cultura, mediadas pela fala, fornecendo importantes indícios para as práticas curriculares que se preocupam com a participação dos infantis em sua construção.
Considerações finais
Expressões como protagonismo infantil, crianças como sujeitos de direitos, dar voz às crianças, dentre outras, estão presentes nas legislações educacionais, diretrizes curriculares e pressupostos acadêmico-científicos que orientam as práticas pedagógicas e de pesquisa com a Educação Infantil. Apesar do grande avanço em relação à concepção de infância preconizada por esses documentos que valorizam as agências, as práticas autorais e as produções culturais das crianças, a concretização dessas intenções ainda está longe de se efetivar nos cotidianos das instituições infantis.
Um dos entraves para essa efetivação é de natureza metodológica e está circunscrito à dimensão do como fazer. Como conceber crianças tão pequenas, que frequentam as instituições infantis, como informantes competentes para falar sobre si? Uma das alternativas encontradas pelo Naif é considerá-las como praticantes do cotidiano, que, por meio dos usos e das apropriações que fazem da cultura, demarcam as suas alteridades em relação aos adultos, revelando formas singulares de afirmarem as suas existências.
Para isso, o foco das pesquisas desenvolvidas pelo grupo incide sobre as práticas infantis, pois as crianças, por meio de suas ações, de suas espontaneidades e de suas enunciações, problematizam, permanentemente, o olhar adultocêntrico que recai sobre elas e que as colocam em situação de subalternidade em relação aos mais velhos. A chave de leitura das práticas cotidianas, nos termos de Michael de Certeau, oferece instrumental teórico-metodológico para enxergar as produções infantis e as suas práticas autorais, superando os olhares que as veem apenas pelas suas ausências e incompletudes.
Dentre os conceitos elaborados pelo autor, as ideias de consumo produtivo, de estratégias e tática, de lugar e espaço e de enunciação, têm ajudado a reconhecer e dar visibilidade às agencias infantis, contribuindo para retirar as crianças da condição de invisibilidade e de anomia social. Considerá-las a partir de suas próprias lógicas e de sua maneira singular de apreender e de ressignificar a realidade é o desafio posto para compreender os infantis como verdadeiros entes sociais. Para isso, é necessário olhar para as práticas e para as operações que as crianças empreendem sobre a cultura.