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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.17 no.54 Curitiba jul./sept 2017  Epub 26-Feb-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.17.054.en01 

Entrevistas

Educação como processo de iniciação: por uma didática raciovitalista no contexto da pós-modernidade - entrevista com o sociólogo Michel Maffesoli

Education as a process of initiation: a raciovitalist didactics in the context of postmodernity - interview with Michel Maffesoli

L'éducation en tant que processus d'initiation : vers une didactique dans le contexte de la postmodernité - entretien avec le sociologue Michel Maffesoli

Cristina d'Ávila1  *

1Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil


Resumo

Entrevista realizada em abril de 2016, no contexto do pós-doutoramento por mim realizado, cuja pesquisa intitulou-se “Razão e sensibilidade na pedagogia universitária” (2015-2016), desenvolvido na Universidade Paris Sorbonne Cité (Descartes) no seio do CEAQ (Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano), com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob supervisão do professor doutor Michel Maffesoli.

Palavras-chave: Raciovitalismo; Razão sensível; Pedagogia do acompanhamento; Didática raciovitalista

Résumé

Interview réalisée en Avril 2016, dans le cadre d'un stage post-doctoral, dont la recherche a été intitulé "Raison et sensibilité dans la pédagogie universitaire" (2015-2016), développé à l'Université Sorbonne Paris Cité (Descartes) dans le CEAQ ( Centre d'études sur l'actuel et la vie quotidienne), grâce à une bourse du Conseil national de développement scientifique et technologique (CNPq), sous la direction du Prof. Dr. Michel Maffesoli.

Mots-clés: Ratiovitalism; Raison sensible; Didactique ratiovitaliste

Abstract

Interview conducted in April 2016, in the context of my post-doctoral program research entitled: “Reason and sensitivity in the university pedagogy" (2015-2016). It was developed at Paris Sorbonne Cité (Descartes) University, in the heart of the CEAQ (Center of Studies on the current and the Daily Life), and supported by a scholarship granted from the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq), under the supervision of professor Michel Maffesoli.

Keyword: Sensible reason; Pedagogy of accompaniment; Didactic

Cristina d'Ávila1 (CD) - Minha primeira pergunta vai abordar, sobretudo, a sua ideia sobre o raciovitalismo. Trata-se de uma teoria concebida pelo senhor desenvolvida em seu livro “Elogio da razão sensível”. Segundo sua visão, o raciovitalismo reúne os dois polos - a razão e a sensibilidade - que a racionalidade instrumental separou. Como compreender então a realidade educacional através dessa ótica. O senhor acredita em uma educação pós-moderna?

Michel Maffesoli (MM)2 - Pois bem! Pergunta difícil! Primeiro, em relação à ideia do raciovitalismo que devemos situar numa perspectiva. Eu mostro que existem várias épocas. Isto é, grandes períodos que duram três séculos, três séculos e meio. E quando há uma época, retomo uma ideia de Michel Foucault, há uma episteme dominante, ou seja, um conhecimento. Outro historiador americano, um historiador das ciências e das técnicas, Thomas Kuhn, diz a mesma coisa. Ele diz que há um paradigma que vai caracterizar uma determinada época. Então, para resumir, considero que aquilo que chamamos modernidade, a época moderna, que começa com o século XVII, e que na minha opinião acaba nos meados do século XX, nessa época moderna, o que foi importante, ou, como dizer, o elemento importante foi o racionalismo. Isto, no final das contas, entre todos os parâmetros humanos - o festivo, o lúdico, o onírico, etc. - o elemento privilegiado foi a razão. E fez-se, de certa forma, um sistema, uma sistematização. Este é o racionalismo. E, eu remeto ao trabalho, ao livro clássico de Max Weber, “Ética protestante e espírito do capitalismo”, que mostra que o que será o grande vetor, a grande tendência daquela época moderna, do capitalismo, é o que ele chama a racionalização generalizada da existência. Tudo fica submetido à razão. Tudo deve apresentar suas razões. E todas as grandes instituições sociais que vão ser construídas ao longo do século XIX serão dominadas por esse racionalismo: os partidos políticos, os sindicatos, - Michel Foucault o mostrou muito bem, a saúde, a prisão -, e, evidentemente, também a educação. Isto é, todas as grandes instituições vão ser dominadas por aquilo que é um princípio diretor, um princípio gerador, um princípio organizador. Este é o aspecto importante dessa modernidade. Então, sejamos claros, isto funcionou a contento, e permitiu a constituição de todas as grandes instituições modernas, inclusive da educação, da vida familiar, etc. Portanto, essa ideia de grande racionalismo cujo início é o cartesianismo, Descartes é quem vai, de certa forma, se assim posso me expressar, contaminar o conjunto da vida social, e portanto, vai excluir todos os outros aspectos. Então, minha hipótese consiste em dizer: essa época está acabando, estamos experimentando outra maneira de ser, que não podemos nomear ainda e que chamamos pós-modernidade, na falta de outro termo, e nesta outra época, então, vai haver, em minha opinião, um outro princípio organizador, regulador. E, portanto, não é uma negação da razão, não é o irracionalismo. É por isso que em meu livro “Elogio da razão sensível” mostrei que era uma complementação da razão. Algo que fazia compreender, de certa forma, como ao mesmo tempo a racionalidade só era pertinente, legítima quando se acomodava na essência do sensível, da sensualidade. E é a isso que chamo de raciovitalismo. Isto é, ao mesmo tempo a razão, estou dizendo ao mesmo tempo, a razão e todos estes outros aspectos da vida social, que são os da sensibilidade.

Então, eu dizia um momento, termina uma época, e o que me parece estar em jogo é uma conjunção da razão e dos sentidos. É a isto que dou o nome de razão sensível ou raciovitalismo. Então, é evidente que todas as instituições vão ser “contaminadas”, se assim posso dizer, por esse raciovitalismo, inclusive a educação. Eu não conheço bem a educação no Brasil, mas eu vejo que na França ela era muito racionalista, ela eliminava as imagens, a imaginação. E percebe-se bem, cada vez mais, como é necessário integrar essa imaginação. Por exemplo, o papel das imagens está presente na Internet. Portanto, é preciso saber fazer uso dos videogames, é preciso saber utilizar aquilo que chamei “a rebelião do imaginário”. O imaginário se vinga. Vê-se bem como, para o melhor e para o pior, evidentemente, há um retorno dessas formas da imagem, da imaginação. Vou lhes dar um exemplo. Quando vimos o sucesso enorme de Harry Potter, os livros e os filmes, percebe-se que não se pode continuar a pensar a educação de uma forma puramente racional. É preciso integrar nela esses mitos, esses sonhos, esse aspecto lúdico, e o exemplo de Harry Potter é um bom exemplo, quando se vê o sucesso enorme que ele teve junto à juventude. Isto, por exemplo, parece-me algo que dá importância ao raciovitalismo. Pelo menos na pós-modernidade.

CD - O senhor afirmou uma vez que as jovens gerações são raciovitalistas. Por quê?

MM - Insisto nessa história, volto a utilizar a palavra que eu disse antes, princípio organizador, princípio gerador, princípio diretor. Ou seja, para compreender de forma adequada uma época é necessário compreender bem o princípio. Em latim, gosto muito das etimologias latinas, o princípio principium, quer dizer fundamento. E o princípio é aquilo que funda a autoridade. Essas são as duas significações da palavra princípio, fundamento, fundação e autoridade. Quando há um novo princípio que se elabora, pouco a pouco, como dizer, mais do que pensado ele é vivido. Em primeiro lugar ele é vivenciado. E percebe-se bem como essas jovens gerações, em especial, precisamente vivem desse princípio de raciovitalismo, embora não o teorizem. Este é nosso trabalho, nosso trabalho de intelectuais, em especial universitários, de conseguir dizer, encontrar as palavras. Mas se tomarmos exemplos muito simples. A importância dos encontros musicais. Esta é uma expressão do raciovitalismo.

CD - Encontros musicais? Por exemplo, uma orquestra?

MM - Não, não. O que chamamos de encontros musicais são os grandes concertos populares, os grandes concertos tecno, nos encontros as pessoas se reúnem, as parties, a música gótica. Este é um exemplo muito simples que mostra bem que há a expressão dessas emoções, dessas paixões coletivas. E isto é cada vez mais experimentado pelas jovens gerações que precisam disto, que se encontram cada sábado à noite para fazer a festa, como se diz. Falo do que conheço na França. No Brasil penso que é a mesma coisa.

CD - Não é diferente.

MM - Parece-me que é a mesma coisa. Sou prudente, falo do que conheço na França que é relativamente grande. Falo desses grandes encontros musicais que são profundamente raciovitalistas. É uma coisa que é tipicamente uma conjunção da razão e dos sentidos pela música.

CD - Na Bahia, poderíamos dizer o Carnaval.

MM - O Carnaval, evidentemente, não posso falar dele, porque não o conheço bastante, mas é um exemplo extraordinário. Da mesma forma, até mesmo os grandes encontros religiosos.

CD - O candomblé também.

MM - O candomblé, certamente, é uma expressão disso. Proíbo-me de me manifestar a respeito porque não conheço bastante, mas esse encontro religioso que é o candomblé é certamente uma expressão disso, uma manifestação. Quando eu digo expressão, eu falo no sentido etimológico do termo, como quando se espreme o suco de uma laranja, aquilo que sai de certa forma.

Essas jovens gerações não têm os bloqueios racionalistas que nós temos, que as instituições ainda têm. E, de novo, acredito que o problema para a educação é que isto vai ter que ser integrado. Vai ser necessário refletir. Eu disse exatamente: encontros musicais, religiosos, esportivos. Ver como o esporte suscita também emoções e paixões coletivas, etc. Minha ideia é que é algo mais vivenciado do que pensado.

CD - É muito importante.

MM - E isto é sempre a mesma coisa nos períodos intermediários. Quando algo nasce, primeiro é vivenciado e depois pensado.

CD- Podemos dizer que o raciovitalismo é uma epistemologia, é uma forma de compreender e explicar o conhecimento?

MM - Sim é uma maneira, como explicar isto. Sempre é delicado dizer epistemologia, mas finalmente, eu diria, mais do que uma epistemologia é uma metodologia. Por que é que digo metodologia? Voltemos ao início da modernidade quando Descartes elabora “O discurso do método”, seu problema consiste em dizer: faço uma metodologia para compreender o mundo contemporâneo.

CD - Pensei em epistemologia para compreender o mundo...

Eu digo que, em primeiro lugar, é uma metodologia. Em grego meta hodos, metodologia, quer dizer busca de um caminho. Portanto é a metodologia pós-moderna e, evidentemente, é preciso conseguir formalizar isto em epistemologia. É por isso que digo, primeiro é vivenciado antes de ser pensado. O método é algo vivenciado, a busca do caminho, no sentido etimológico, anda-se. E depois, evidentemente, é preciso pensar isto. É preciso que isto se torne uma epistemologia. Mas isso é outro trabalho.

CD - O senhor é professor na Sorbonne. É uma universidade parisiense renomada. Gostaria de saber sua opinião sobre o sentido da educação universitária em nossa época. Como você pensa a universidade. Existe uma oposição entre uma energia racionalista e uma visão raciovitalista?

MM - Existe daquilo que conheço da educação na França, da educação universitária na França, a Sorbonne é um excelente exemplo mas há muitas outras universidades, eu diria que há uma grande defasagem entre o que chamo de universidade oficial, os professores, e a universidade oficiosa, os estudantes. Então, os professores se mantêm em parâmetros muito racionalistas, os estudantes e os jovens pesquisadores, acredito que devemos integrar também os jovens pesquisadores.

CD - Sim. É verdade.

MM - Os jovens pesquisadores têm uma concepção muito menos sectária, muito mais aberta, e no campo que conheço bem, a sociologia, evidentemente, eles integram a fenomenologia, a descrição, o imaginário da vida social, etc. Há uma grande defasagem entre aquilo que é um pouco instituído, eu digo oficial, e depois instituinte, o que está chegando, as gerações que estão chegando. Porém, até o oficial, até os professores, o establishment, é forçado cada vez mais, vejo isto na pequena década que acaba de decorrer, eles são cada vez mais obrigados a integrar dimensões muito mais imaginárias. Fiz em Paris na Sorbonne, e na Bahia, não sei mais, há 3 ou 4 anos, uma conferência na aula inaugural da Universidade Federal da Bahia. O título de minha conferência na Bahia era “Reencantar a universidade” e nesta conferência eu mostrava a necessidade de reintroduzir na pedagogia universitária certas dimensões da emoção, das paixões. Mesmo de uma maneira metodológica, a utilização das metáforas, a utilização da analogia, etc. Para mim, essas são maneiras de reencantar a universidade, isto é, de reconstruir um consenso entre os professores e os jovens pesquisadores, entre os professores e os estudantes. Se quisermos desenvolver a contento nosso verdadeiro papel que é de acompanhar essas jovens gerações é preciso captar o espírito da época.

CD - É exatamente sobre isto que vou perguntar agora. Em seu livro “O tesouro escondido”, o senhor estabelece uma diferença entre educação e iniciação. A iniciação seria uma alternativa para substituir o processo educativo?

MM - Eu penso e vou explicar. A ideia é muito simples. Existem duas formas de socialização e eu diria que essas duas formas de socialização nós as encontramos em todas as espécies animais, todas. E na nossa, a espécie humana, é a mesma coisa. O que é? A primeira socialização quer dizer o que? Quer dizer integrar os jovens, integrar a energia, sem castrá-la demasiadamente, sem cortá-la demasiadamente, de certa forma. Então, uma das formas que funcionou bem foi a educação. A educação, encontramos a sua filosofia, se assim posso dizer, na filosofia do Iluminismo, no século XVIII, e, em especial, em um grande romance de educação que se chama, “O Emílio”, de Jean-Jacques Rousseau. E o princípio, o princípio diretor, mais uma vez da educação, em latim, educare, quer dizer puxar. Portanto, o princípio diretor da educação repousa na ideia que a criancinha nada sabe e que o adulto vai puxá-lo. Ele é um bárbaro, vamos civilizá-lo. É um animal, vamos humanizá-lo. Grosso modo, este é o parâmetro ideológico, de maneira muito simples, da educação. Funcionou, constituiu a filosofia da educação moderna. É nessa base que foi elaborada toda a educação, todas as instituições educativas no século XIX, na Europa, e depois em todos os cantos do mundo. Funcionou e penso que não funciona mais. Simplesmente porque há um cansaço, um desgaste, como uma maquinaria que funcionou bem e que não é mais pertinente, que não é mais eficaz. Então, neste momento há a segunda forma de socialização que é a iniciação. A iniciação não repousa sobra a ideia que existe ali um vazio que eu devo preencher. O cérebro da criança é um vazio e eu vou preenchê-lo. Mas a iniciação consiste em dizer: é preciso fazer aflorar o tesouro que está ali presente. É a isto que dou o nome de tesouro escondido. Há um tesouro na criança, no estudante, nos outros, e, portanto, todo o trabalho, de certa forma, consiste não unicamente em puxar, mas em fazer aflorar, acompanhar um processo. Eu penso que a educação funcionou muito bem, agora estamos no fim do percurso e vemos voltar a segunda forma, a iniciação. Por que digo isto? É porquê... vou lhes dar um exemplo muito singelo. Uma de minhas hipóteses a respeito da pós-modernidade é o que chamo da sinergia do arcaico e do desenvolvimento tecnológico, isto é o desenvolvimento da Internet, a horizontalidade de Wikipédia, por exemplo. E, portanto, isto quer dizer que esses jovens, eles têm acesso a formas, a fontes de informação extraordinárias. Portanto, não posso lhes impor algo, é preciso lhes ensinar a fazer uma triagem, isto é, a discernir, a guardar o que deve ser guardado na multiplicidade das formas de informação que eles encontram nas redes sociais, nos sites comunitários, na Wikipédia, nos foros Wiki múltiplos. E, portanto, não posso mais me dar por satisfeito com uma maneira vertical, é isto a educação, vertical, com a imposição de algo, mas eu sou forçado, de uma maneira horizontal, a acompanhar. É isto a iniciação. É o paradoxo em que estamos atualmente.

CD - Excelente. E agora vamos entrar no que é meu estudo. O senhor acha que tem espaço para o desenvolvimento de práticas pedagógicas raciovitalistas?

MM - Sim, se soubermos, de um ponto de vista pedagógico, integrar todas essas dimensões sensíveis e quase sensuais. Se soubermos que a experiência é importante. A experiência, não algo que é meramente racional, o cérebro, mas a experiência daquilo que vivencio com outros, as experiências que compartilho justamente nas comunidades, nos sites comunitários, nos grandes eventos sobre os quais falei há pouco tempo, eventos musicais, esportivos, encontros de jovens na rua, no bar, pouco importa o que. Esta é a experiência. E há uma informação que passa, portanto, é necessário conseguir integrar essa dimensão da experiência. A experiência não é somente racional. A experiência é emocional. É o compartilhamento das paixões. Então, eu diria que a dimensão pedagógica só poderá funcionar se ela souber integrar todos estes elementos da vida cotidiana. Este é o raciovitalismo. Isto é, a razão e a vida. Não é o mero racionalismo que era puramente a razão, mas esta conjunção, esta espécie de multiplicação dos efeitos entre, mais uma vez, as capacidades sensatas, racionais e ao mesmo tempo todos os aspectos da experiência cotidiana.

CD - Como o lúdico poderia integrar o saber sensível?

MM - Na minha opinião, como dizê-lo, a palavra que utilizo, não sei como se traduz em português: esta ideia de inteireza do ser. A inteireza é justamente a conjunção de tudo - é expressamente que digo os parâmetros humanos, a razão é um parâmetro humano, o festivo (a festa) é um parâmetro humano, o lúdico é também um parâmetro humano.

CD - Homo ludens?

MM - Homo ludens. É de Huizinga. O onírico é também um elemento coletivo, os mitos. Penso aliás, e disse que o Brasil era o laboratório da pós-modernidade porque precisamente o festivo é importante, o lúdico é importante, as fantasias, os sonhos coletivos são importantes. Portanto, é a mesma coisa, é unicamente se soubermos integrar essa dimensão que recupera força e vigor na vida social que a pedagogia poderá desempenhar o seu papel.

CD - Porque podemos acrescentar ao saber sensível a ideia da experiência, o cotidiano.

MM - Para mim é a experiência.

CD - Quando eu penso o saber sensível na prática pedagógica, na didática raciovitalista, penso também nas experiências sensoriais de não somente ver e escutar, mas de sentir, nesse sentido...

MM - Grosso modo, na minha opinião, a palavra que convém é a inteireza do ser.

Ou seja, o cérebro, os sentidos, o sentir, todos os sentidos, ver. Um dos meus parceiros intelectuais, não sei... você deveria encontrá-lo, ele se chama Aurélien Fouillet, você não o conhece? Um pesquisador do CEAQ.

CD - Sim eu já o vi com o senhor no curso.

MM - Aurélien. Ele escreveu um belíssimo livro que se chama “O império lúdico”. Você deveria ler este livro.

CD - Do que ele trata?

MM - O subtítulo é “Quando o mundo se torna um jogo”. Ele foi publicado há um ano, um ano e meio. É um belíssimo livro no qual ele analisa os videogames, os jogos informáticos. E ele mostra como esses jogos desempenham um papel na vida das jovens gerações. Portanto, de um ponto de vista pedagógico é a mesma coisa, somos forçados a levar em conta a proliferação, a multiplicação desses videogames, sob essas diversas formas. Por exemplo, essa concepção de inteireza. Não um pedaço do cérebro, mas tudo.

CD - A inteireza é compreender o ser humano em sua totalidade...

MM - O ser humano em sua totalidade, vamos dizer. Ou seja, como, de fato, há uma importância para os olhos, o nariz, o tocar. Esta é a experiência. E era um elemento que a educação no século XIX deixou totalmente de lado, dando destaque unicamente à razão. Na França tem uma expressão, que não existe mais nos dias de hoje, na educação se ensinava às criancinhas, a injunção dos pais era: sente direito. A criança sempre se inclina um pouco. Era a grande injunção que nos diferenciava dos animais. E o “sente direito” é por causa do cérebro, fica na parte de cima. E essa pequena injunção popular apenas traduzia a prevalência da razão. É o que eu queria dizer.

CD - Eu estou desenvolvendo uma didática inspirada no raciovitalismo. Portanto, considero o fenômeno educativo numa perspectiva holística. Isto quer dizer que vejo os alunos, não como continentes vazios, mas considerando sua subjetividade, sensibilidade, seus corpos e, evidentemente, a razão. Compreendo que a aprendizagem e o desenvolvimento superam os processos racionais. Nessa didática do sensível, como eu posso dizer, temos como etapas, a sensibilização, a metaforização, a imaginação, a ressignificação do saber e a criação, finalmente. E quando eu digo metaforizar eu penso no uso da metáfora lúdica e também na linguagem artística das imagens, dos poemas, dos jogos, por exemplo. O que o senhor acha dos usos dessas metáforas como motores motivacionais?

MM - É claro. Em muitos de meus livros chamei a atenção para a importância das metáforas. Mostrei que a poesia devia desempenhar um papel, que era um papel primordial. Diria que tudo o que você acaba de dizer pode ser resumido através desta ideia: criatividade. E a educação moderna, aquilo que conheço dela na França, não levava em conta a criatividade. Chegava até a ser algo marginal. Para as pessoas de minha idade no colégio as atividades dirigidas, a música, eram dados por professores secundários, pouco importantes. E era o símbolo, de certa forma, da prevalência da dimensão estritamente racionalista. Mais uma vez, entendem bem, porque o espírito do tempo destaca a criatividade. O imaginário é o espírito do tempo, isto é o clima, o ambiente mental. Como o espírito do tempo destaca a criatividade então é preciso conseguir integrar pedagogicamente esta dimensão de poesia, de jogo, essa dimensão mais uma vez... A expressão de Nietzsche que utilizo muitas vezes: “Fazer da própria vida uma obra de arte”. E esta ideia de fazer da própria vida uma obra de arte é um dos elementos importantes concernindo os jovens nos dias de hoje. Portanto, é preciso que a pedagogia consiga, evidentemente, integrar essa dimensão. Senão ela permanecerá defasada, ela permanecerá desconectada em relação à realidade.

CD - Para finalizar, o senhor pode nos dizer algumas palavras a respeito de nossa didática raciovitalista? É uma ambição vazia ou é uma possibilidade?

MM - Não, é uma possibilidade. Isto é, um pouco no sentido do termo, é até uma bela ideia, eu acho, de conseguir desenvolver um processo de acompanhamento. Isto é, como explicar isto? A educação repousava unicamente sobre o poder. O poder é isto: eu sei, você criança não sabe. Eu mando em você, é o poder, eu puxo você. Portanto, é aquilo que chamo verticalidade. Se utilizo uma expressão que está em meu livro “O tesouro escondido”, retomo uma expressão de Jacques Lacan, A Lei do Pai, ou seja, a verticalidade. Aquilo que está em jogo atualmente na iniciação, na criatividade, na importância do jogo, a importância do festivo, da experiência, essas jovens gerações precisam do que chamo autoridade. É difícil em francês porque a palavra autoridade remete a autoritarismo.

CD - Autoridade e autoritarismo são diferentes. Compreendo bem. O autoritarismo é a hipertrofia.

MM - Enquanto autoritas em latim é aquilo que faz crescer. Este é o sentido da palavra latina. E, portanto, essas jovens gerações não querem mais o poder, mas precisam da autoridade, do irmão mais velho. Eu chamo isto a lei dos irmãos. Ou seja, não a Lei do Pai, mas a lei dos irmãos que é horizontal. E sua didática raciovitalista é isto. No final das contas é essa capacidade a... Vejam, não se deve cair na demagogia, não se deve ser demagogo com os jovens. Eles precisam de autoridade, mas uma autoridade que, de certa forma, a palavra que me parece ser adequado é o de acompanhamento. Em inglês, está muito na moda, é o coaching. Mas no fundo, essa ideia de coaching, não sei como vocês dizem em português, é o acompanhamento.

CD - Acompanhamento.

MM - Esta é a iniciação. Esta é a autoridade. Portanto, penso que uma didática raciovitalista é uma didática do acompanhamento. Mais uma vez, temos conhecimentos, eles têm conhecimentos, vamos conseguir fazer um discernimento. Qual é o mais útil? Para o seu desenvolvimento, para que possam se tornar adultos. Mas, não se pode mais, em função do espírito do tempo, contentar-se com uma dimensão que mais uma vez, é aquela do poder, a dimensão vertical. É aquilo que chamei, antes da razão sensível, e eu escrevi num grande livro de epistemologia intitulado “O conhecimento comum”.

CD - Sim tenho esse livro.

MM - E no livro “O conhecimento comum” eu mostro que as categorias da metáfora, da analogia, da criatividade, tudo isto, na minha opinião, vai constituir a didática raciovitalista. É isso.

CD - Obrigada, Professor. Muito obrigada.

Tradução: Michel Collin.

Revisão: Cristina d'Ávila.

Referências

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MAFFESOLI, M. Le temps des tribus. Le déclin de l’individualisme dans les sociétés postmodernes. 3ème édition. Paris : Ed. La Table Ronde, 2000. [ Links ]

MAFFESOLI, M. Éloge de la raison sensible. Paris: Editora La Table Ronde, 2005. [ Links ]

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ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da educação. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968. [ Links ]

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. [ Links ]

Recebido: 10 de Julho de 2017; Aceito: 08 de Agosto de 2017

*

CD: Doutora em Educação, e-mail: cristdavila@gmail.com

1

Cristina d'Ávila é Pedagoga, Doutora em educação pela Universidade Federal da Bahia (2001). Professora Associada IV da Universidade Federal da Bahia e Titular da Universidade do Estado da Bahia (DEDC 1/UNEB). Pós-doutorado na Universidade Paris Sorbonne Cité (UPSC - René Descartes). Supervisão de Michel Maffesoli (2015-2016).

2

Michel Maffesoli é Sociólogo, Doutor em sociologia pela Universidade de Grenoble (1973). Doutor em Letras e Ciências humanas (1978). Professor emérito na Universidade Paris Sorbonne Cité (UPSC - René Descartes). Membro do Instituto Universitário da França (IUF). Administrador do CNRS. Presidente do CEAQ (Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano).

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