Introdução
A gamificação na educação, seja na formação básica, continuada, superior ou de extensão, já não é uma moda passageira (RODRIGUÉZ; ARGUELLO; FONT, 2018, p. 121), mas sim uma estratégia de ensino e de aprendizagem que tem ganhado espaço na área como metodologia ativa, inventiva, híbrida e múltipla quanto às suas características e possibilidades de experimentação. Este tema (gamificação) é o fio condutor da pesquisa doutoral intitulada “Letramento e emancipação digital cidadã: cartografias e rastros na constituição de Espaços de Convivência Híbridos e Multimodais”, vinculada à pesquisa “A cidade como espaço de aprendizagem: games e gamificação na constituição de Espaços de Convivência Híbridos, Multimodais, Pervasivos e Ubíquos para o desenvolvimento da Cidadania1”, desenvolvida no contexto do Grupo de Pesquisa em Educação Digital (GPe-dU) - Unisinos/CNPq, no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU-Unisinos), a qual busca compreender como as práticas pedagógicas gamificadas contribuem para o letramento e a emancipação digital e cidadã de estudantes na Educação Básica. Para mais bem elucidar o tema e a pesquisa desenvolvida, a seguir, discorremos sobre: letramento digital na perspectiva emancipatória, digital e cidadã; tendências para a educação nesse tempo histórico e social; a perspectiva metodológica adotada nesta pesquisa; o jogo SM Real Life; e os resultados obtidos até o presente momento.
Emancipação Digital Cidadã e Letramento Digital
O conceito de emancipação foi utilizado, a princípio, na época das colônias, para tratar do processo de independências, contexto no qual era conjuntamente relacionado à questão de progresso econômico. Conforme Streck e Adams (2014), com o avanço da sociedade industrial e a exploração do trabalho humano, a emancipação passou a ser entendida como luta pela universalização dos direitos. Porém, foi Marx que veio a utilizar o termo em âmbitos distintos: político e humano.
No âmbito humano, emancipar-se significa libertar-se de alguém, de modo que o indivíduo se torne agente autônomo e livre, não necessitando nem dependendo do poder exercido por outros. Trata-se de um processo de transformação social (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2012; STRECK; ADAMS, 2014).
Nas obras do pedagogo e alfabetizador brasileiro Paulo Freire são empregadas as palavras libertação, humanização e emancipação no mesmo contexto que Marx. Na educação, Freire defende uma pedagogia emancipadora, por meio da reconfiguração da realidade opressora, que se dá através da libertação, a qual acontece quando o sujeito oprimido consegue perceber o mundo da opressão: “[...] esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação” (FREIRE, 2005, p. 46). Assim, para o autor, a liberdade é uma conquista que somente existe no ato de quem a faz (FREIRE, 2011). Nesse caso, Freire considera o movimento de educação emancipatória como algo possível, embasado em três elementos: a compreensão da história como uma possibilidade e não como uma determinação; a ação humana condicionada por uma ação histórica; e a concepção do ser humano como alguém incompleto, que está em busca do ser mais (STRECK; ADAMS, 2014).
Ao referirmos uma Emancipação Digital Cidadã, remetemo-nos, então, à emancipação cidadã libertadora defendida por Paulo Freire, quando o autor legitima a formação integral crítica, em oposição às contradições sociais da dicotomia opressor/oprimido. Propõe-se então, vincular ao termo Emancipação o adjetivo Cidadã - apresentado por Freire (2002) -, e ainda o adjetivo Digital - defendido por Schwartz (2007).
Schwartz (2007, p. 51) - quando afirma que, dentro da perspectiva emancipadora digital, “a rede é um espaço de aprendizado” e de vida para a construção colaborativa de conhecimentos que emergem a partir do uso ativo das TD, em consonância com Castells (1999, p. 51) -, pontua: “As [TD] não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos.” Assim, a lógica das redes é transformada, uma vez que a informação está inserida em todo o sistema: “A morfologia da rede parece estar bem adaptada à crescente complexidade de interação e aos modelos imprevisíveis do desenvolvimento derivado do poder criativo dessa interação” (SCHWARTZ, 2007, p. 108).
Para Schwartz (2007, p. 125-126), a emancipação digital representa um: “[...] fenômeno que transcende as premissas dos projetos de inclusão, retratando não somente o acesso dos cidadãos à informática, mas também os meios de conhecimento para o controle dos processos produtivos de conteúdo digital”. Nesse contexto, buscamos em Varela (2005, p. 90) a compreensão de conhecimento, entendido como uma interpretação promulgada, que emerge a cada momento de nossas vidas, na qual sujeito e objeto se constroem simultaneamente. Desse modo, fundamentados em Levy (1992), podemos caracterizar as tecnologias digitais como tecnologias da inteligência, as quais ampliam, exteriorizam e modificam funções cognitivas dos indivíduos, enquanto sujeitos que podem transformar - enquanto sujeitos em formação, no contexto de suas práticas sociais. Em suma, a emancipação digital é essencial para que os sujeitos não somente controlem seus processos produtivos digitais, conforme Schwartz (2007, p. 133), “mas também possam sustentar sua autonomia nas demais esferas da vida. Vai além, portanto, das premissas da maioria dos projetos de mera ‘inclusão’ digital, ou seja, que dão prioridade ao acesso à informação por meio eletrônico”.
Quanto à cidadania, constata-se que, etimologicamente, o termo era similar ao termo política, pois remete à cidade; entretanto, Rios (2010, p. 78) frisa que, “No decorrer do tempo, os dois termos se distanciaram, tomando cada um deles significado bem particular.” O autor complementa que, no Estado Moderno, tal distinção ainda prevalece, sendo que cidadania é compreendida como “universal no que diz respeito aos deveres e direitos” e que a política é “destinada ao poder legalmente constituído” (RIOS, 2010, p. 79).
Todavia, neste estudo, entende-se cidadania como algo transcendente e que, ao longo dos tempos, adaptou-se a vários contextos e se apropriou de conotações e sentidos distintos, mas sempre representando uma coletividade, não se limitando a um único sujeito. Nesse sentido, ao lutar pela libertação das contradições sociais da dicotomia opressor/oprimido, o aluno passa a integrar uma coletividade em prol de interesses individuais e coletivos de um determinado grupo social. Freire (2003) acrescenta que o aluno, quando passa a conhecer a sua realidade, por sua vez, torna-se atuante e consciente de seu papel em prol da transformação da sociedade.
Desta forma, Schlemmer (2010, 2011) estende o conceito de emancipação digital para uma emancipação digital cidadã, ao assegurar ao sujeito a oportunidade de ser um cidadão de nosso tempo, conferindo-lhe empoderamento, em um espaço interativo no qual ele é, ao mesmo tempo, coensinante e coaprendente. Tal vivência permite libertá-lo das relações opressivas, por meio das TD.
Ao pensar em Letramento Digital (LD) em uma perspectiva emancipatória digital cidadã, entende-se a possibilidade de desenvolver no sujeito a capacidade de se adaptar a meios, situações, lugares e espaços diversos, apropriando-se de tecnologias híbridas (analógicas e digitais) que vão ora mediar e/ou intermediar - na concepção de Latour (2012, p. 65) - informações, dados, sentimentos, regras, diversão, orientação em conhecimento, como forma de empoderamento para o desenvolvimento de seu protagonismo individual e social, enquanto cidadão. A maioria dos conceitos de LD na literatura2 é anterior à Web 3.0 e à difusão de tecnologias mais emergentes, capazes de associar big data, Realidade Aumentada (RA), Realidade Virtual (RV), Internet das coisas (IoT), learning analytics, tecnologia Wearable, dentre outras tecnologias digitais (TD), bem como o próprio conceito de Cidades Inteligentes na perspectiva das humanidades (SCHLEMMER; BACKES; LA ROCCA, 2016).
Tendências para a Educação nesse tempo histórico e social
O relatório da New Media Consortium (NMC), publicado anualmente desde 2012, em parceria com a Consortium for School Networking (CoSN), conhecido por Horizon Report3 (2017), identifica e delineia seis tecnologias emergentes e seis desafios para os próximos anos, de acordo com seu potencial impacto, uso no ensino, aprendizagem e pesquisa criativa na educação básica e superior, projetando-os em três horizontes de tempo para sua adoção: a curto, a médio e a longo prazo (de 1 a 2 anos; de 3 a 4 anos e de 5 anos ou mais, conforme Figura 1). O LD figura-se dentre os desafios considerados como solucionáveis a curto prazo.
Conforme reporta Nogueira (2017), segundo Samantha Adams Becker (2017, apud NOGUEIRA, 2017), diretora sênior de Publicações e Comunicações do New Media Consortium (NMC) e editora do relatório anual, no Horizont Report de 2017, os espaços maker e a robótica figuraram no horizonte de tempo a curto prazo, por serem considerados tecnologias de experimentação. No limiar de dois a três anos, vislumbra-se “a tecnologia analítica e a realidade virtual - capaz de tornar as simulações de aprendizado mais autênticas” (BECKER, 2017 apud NOGUEIRA, 2017). Já no cenário de quatro a cinco anos, estão a inteligência artificial e a internet das coisas, que, respectivamente, de acordo com a editora, “têm potencial de tornar o aprendizado mais intuitivo”, bem como “podem ajudar as escolas a reduzir custos; a usar os dados dos alunos de forma mais eficiente e a fornecer aos alunos ferramentas para criar soluções para problemas do mundo real” (BECKER, 2017 apud NOGUEIRA, 2017).
Ainda segundo o texto de Nogueira, justifica Samantha Becker, baseando-se no último relatório publicado (2017), que:
Ao redor do mundo, a tecnologia é usada para o aprendizado todos os dias fora da educação formal - quando uma criança vê um vídeo sobre a física do skate ou pega seu celular para ler sobre sapos em um aplicativo. É importante que a educação básica reflita mudanças sociais para que estudantes estejam preparados para o mundo real” [...].
“Não se trata apenas de saber como usar um dispositivo específico ou ferramenta digital, mas também estimular a criatividade e promover o aumento da intuição nos alunos para que eles possam se adaptar a qualquer novo contexto digital que surja no futuro. Escolas têm a responsabilidade de propagar o letramento digital não apenas entre os estudantes, mas também entre os professores, com oportunidades contínuas de desenvolvimento profissional (BECKER, 2017 apud NOGUEIRA, 2017, grifo nosso).
Em uma breve análise do relatório de 2017 (HORIZON REPORT, 2017), observa-se que o LD é encarado como uma das tendências-chave para acelerar a adoção de tecnologias digitais no curto prazo (1 a 2 anos). O LD aparece na denominação de alfabetização de programação (em anos anteriores, figurava a expressão LD), associado à difusão da aprendizagem STEAM (sigla que engloba ciências, tecnologia, engenharia, artes e matemática). Porém, nas observações de Becker (2017 apud NOGUEIRA, 2017), percebe-se ainda que a tecnologia é encarada como “ferramenta” a ser “usada” como forma de preparação para um mundo “real”, distanciando-se do conceito de cultura híbrida e de tecnologias da inteligência.
Para contextualizar a relevância de tal estudo doutoral, assim como as práticas desenvolvidas pelo GPe-dU Unisinos/CNPq, é interessante observar os desafios propostos no cenário de médio prazo (3 a 5 anos), que focam: a) a mediação do aprendizado, em que é possível perceber, por meio do rendimento e do engajamento dos estudantes, seus ganhos em relação à aprendizagem; e b) o redesenho dos espaços de aprendizagem. No cenário mais distante (de cinco anos ou mais), o foco é avançar nas culturas de inovação e, em continuidade ao desafio no curto prazo, “repensar criticamente o currículo e aprofundar as abordagens de aprendizagem como aquelas baseadas em problemas, em projetos, em desafios e em investigações, que incentivam a buscar por soluções criativas” (BECKER, 2017 apud NOGUEIRA, 2017).
Em linhas gerais, o que o Horizont Report preconiza retrata um dilema enfrentado pela educação, seja em qualquer nível e modalidade, no Brasil e no mundo, em virtude das práticas sociais digitais ou híbridas em ascensão. No entanto, entendemos que o que precisamos efetivamente é conceber diferentes desenhos educacionais e constituir distintos espaços de aprendizagem, a partir da compreensão das novas relações que os sujeitos constroem com e no mundo, as quais são enatuadas e inventadas no movimento. O foco da aprendizagem hoje está no estudante, como ator4, (LATOUR, 2012, p. 75), protagonista de todo o processo de aprendizagem. Iniciativas como BYOD, flipped classroom, games e gamificação (também presentes no relatório citado) implicam maior autonomia sobre as tecnologias e sobre os conceitos que rodeiam esse sujeito, possibilitando uma personificação de seus itinerários, rotas e formas de aprendizagem, o que se considera aprendizagem adaptativa. Em uma perspectiva ativa (e, por que não, “emancipatória”?5), podem-se observar entornos de aprendizagem pessoais - em inglês, Personal Learning Environment (PLE6) -, já que se presumem hábitos e domínios provenientes de diferentes tecnologias.
Não se pode deixar de considerar, na atual conjuntura, a ascensão da indústria dos videogames na última década, que vislumbra não só um mercado em desenvolvimento, mas também as infinitas possibilidades que os dispositivos móveis associados a TD - como RV, RA e RM, bem como a própria programação - permitem. Nesse contexto, Aranda (2017) chama a atenção para uma nova “tribo”, denominada “gamificadores”, os quais vão além da relação e da discussão sobre os prós e contras dos videogames, fazendo uma analogia ao livro de Eco (2006), intitulado “Apocalípticos e integrados”. Aranda pontua que essa tribo acredita que os games podem ser utilizados a favor da educação:
Creo que estaríamos de acuerdo en que la opinión pública, publicada, televisada o tuiteada está plagada de argumentos a favor y en contra de una industria y un pasatiempo cultural altamente generalizado en nuestra sociedad como son los videojuegos. Por un lado, tenemos a los abanderados del terror y, por el otro, a los activistas de las bondades, al más puro estilo del clásico libro de Eco, Apocalípticos e integrados. Pero, ojo, también ha florecido otra tribu, los «gamificadores», unos seres educados que piensan que los videojuegos tienen algo que engancha y que pueden ser utilizados en favor de la cultura con mayúsculas en contextos educativos formales como la escuela o la universidad. [...] Más allá de discusiones y opiniones, buenas o malas, sobre un recurso cultural tan ampliamente presente en nuestra cotidianidad como es el juego digital, necesitamos que la sociedad adquiera conocimientos y competencias que le permitan disfrutar más y mejor, evitando prejuicios, ideologías o modas educativas (ARANDA, 2017, p. 1-2, grifos nossos).
O autor conceitua gamificação como o ato de “[...] aprovechar ese enganche, esa motivación abnegada que supuestamente proporciona el videojuego para ponerlo al servicio de la educación: aprender más y mejor utilizando las dinámicas del presunto enemigo educativo” (ARANDA, 2017, p. 03).
Segundo Schlemmer (2014), a gamificação consiste em utilizar a forma de pensar dos games, seus estilos e estratégias, bem como os elementos presentes no seu design, tais como mecânicas e dinâmicas (M&D), em contextos não game, como forma engajar os sujeitos na resolução de problemas, em diferentes áreas, níveis e contextos educacionais (ZIECHERMANN; LINDER, 2010; ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011; DETERDING et al. 2011; KAPP, 2012).
Gazabón et al. (2016) constataram que o conceito mais comum e mais reconhecido no meio acadêmico é atribuído a Deterding et al. (2011): “Uso de los elementos de juego en contextos no - juegos”, fazendo com que “las tareas o cosas que no son juegos se parezcan más a ellos”. Já de acordo comSchlemmer (2014, p. 77), a gamificação pode ser pensada a partir de pelo menos duas perspectivas (conforme Quadro 1):
- PERSUASÃO, que estimula a competição, tendo um sistema de pontuação, de recompensa e de premiação, etc., o que do ponto de vista da educação, reforça uma perspectiva epistemológica empirista, como o que encontramos no PBL - points, badges e leaderboard [...]
- COLABORAÇÃO E COOPERAÇÃO, instigada por missões, desafios, descobertas, empoderamento em grupo, o que do ponto de vista da educação leva a perspectiva epistemológica interacionista-construtivista-sistêmica (inspirados, por exemplo, por elementos presentes nos Massively Multiplayer Online Role Play Games - MMORPG) (SCHLEMMER, 2018, p. 54).
GAMIFICAÇÃO | M&D | MECANISMOS SOCIOCOGNITIVOS | CONCEPÇÃO EPISTEMOLÓGICA |
Persuasão | PBL - points, badges e leaderboard | Competição | Empirista |
Construção Coletiva do Conhecimento | Narrativas, missões, desafios, enigmas, itens colecionáveis, pistas vivas, pistas on-line, pistas geográficas, bibliotecas vivas ou bibliotecas humanas, achievements e EXP. | Colaboração e cooperação | Interacionista Conectiva, reticular |
Fonte: Elaborado pelos autores, com base em Schlemmer (2015) e Machado et al. (2015).
A autora afirma que, para dar início a um processo gamificado, deve-se realizar, primeiramente, as seguintes etapas: leitura do cotidiano, identificação da problemática e mapeamento do contexto que envolve os sujeitos7, seu ambiente, cultura e vivências. Na sequência, é preciso pensar em um conjunto de M&D que serão utilizadas para desenvolver um processo ou projeto gamificado, o qual pode combinar até mesmo as duas perspectivas acima apresentadas.
Metodologia
A pesquisa é qualitativa, do tipo exploratória e descritiva. Para seu desenvolvimento, foi utilizado o método cartográfico de pesquisa e intervenção (KASTRUP, 2007, 2008; PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009), que, no contexto das pesquisas desenvolvidas pelo GPe-dU UNISINOS/CNPq, figura muitas vezes não só como metodologia de pesquisa, mas também como método inspirador do desenvolvimento de novas práticas que estejam alinhadas à necessidade de compreender o fenômeno das aprendizagens na sua complexidade - social, política, cognitiva, afetiva e tecnológica8 (SCHLEMMER; LOPES, 2016).
A Cartografia é um método criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), que tem por objetivo acompanhar processos. Kastrup (2008) coloca em evidência que a cartografia se apresenta como uma investigação de um processo em desenvolvimento.
O trabalho do pesquisador-cartógrafo está voltado para a produção de dados e intervenção, em vez de realizar uma coleta de dados seguida das análises. Os dados em questão são produzidos por meio de acompanhamento, caminhada e/ou percurso, observação participante e registros feitos pelo pesquisador-cartógrafo em seu movimento pelo território que habita, e-habita e coabita, em concomitância com o ato de investigar os sujeitos em uma dimensão coletiva de construção (BARROS; KASTRUP, 2010), ou com base nas pistas9 deixadas pelos sujeitos envolvidos. As autoras complementam esse aspecto afirmando que o sentido da cartografia é de acompanhar percursos, implicando “processos de produção, conexão de redes ou rizomas” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 10). Para eles,
Cartografar significa acompanhar a processualidade presente em cada momento da pesquisa. [...] Ela requer aprendizado e atenção permanente, pois sempre podemos ser assaltados pela política cognitiva do pesquisador cognitivista: aquele que se isola do objeto de estudo na busca de soluções, regras, invariantes (PASSOS; KASTRUP; ESCOSSSIA, 2009, p. 73).
Esta pesquisa tem sua atenção voltada para as turmas do 7º ao 9º anos do Ensino Fundamental10 da Educação Básica, a partir do ano de 2016, havendo variações das turmas (anos) e dos professores11 (diferentes disciplinas) envolvidos. A Escola foco do estudo está vinculada à rede municipal de ensino do município de São Leopoldo/RS.
Os movimentos oriundos das atividades desenvolvidas pelos professores-mediadores-cartógrafos envolvidos no projeto (desde 2016/02) e que resultaram no desenvolvimento de jogos e práticas educativas gamificadas (fio condutor deste estudo doutoral) são observados e registrados em um diário de percurso, além dos registros fotográficos, vídeos e relatos apontados no aplicativo Evernote, catalogados por data. A seguir, discorremos sobre o jogo.
O Jogo “SM Real Life”
O jogo foi desenvolvido no ano de 2016/02, com a mediação colaborativa e multidisciplinar dos professores de Geografia, Língua Inglesa e Artes (dança), em turmas de estudantes do 7º ano, a partir das etapas de leitura do cotidiano, identificação da problemática e mapeamento do contexto que envolve os sujeitos, seu ambiente, cultura e vivências. Desse mapeamento dos problemas de seu ambiente, surgiu a necessidade de contribuir para conscientizar a comunidade e propor mudanças em sua realidade social12. Para isso, foram propostas missões que possibilitassem a resolução de tais problemas e que, ao mesmo tempo, envolvessem conceitos curriculares e espaços físicos considerados relevantes para aquele grupo, como: a padaria, o posto de saúde, a “lomba” (rua em aclive), a igreja, a própria escola, a entrada (única) de acesso à comunidade, dentre outros.
O jogo de tabuleiro “SM Real Life” tem como objetivo cumprir 10 missões. A narrativa inicial do jogo, que pode ser jogado de 2 a 4 pessoas por vez, descreve a realidade do lugar, alguns dos seus problemas sociais e o que se espera do local no futuro:
SM Real Life é um jogo no qual dois jovens sobreviventes de um massacre voltam à sua terra natal (a comunidade) e decidem fazer deste lugar um novo lar: um lugar onde possam ser felizes, livres das drogas e da violência. Esses jovens vivenciaram, no passado, uma realidade triste, pois o tráfico dominava o lugar, e pessoas más comandavam a vila. Em um confronto com a polícia, tudo foi destruído; mas alguns sobreviventes têm uma nova chance: a de reconstruir esse lugar. Para isso, vão precisar de ajuda, que trará mais pessoas boas para a vila, fazendo, assim, uma verdadeira “corrente do bem” (Narrativa inicial do jogo, Caderno de campo e grifos do pesquisador, 2016).
As missões propõem ações colaborativas capazes de mudar a realidade da comunidade, envolvendo disciplinas e conteúdos relativos ao currículo do 7º ano, como: “Local 4: Lixeira - Missão: Separar os lixos corretamente segundo as cores das lixeiras. [...] Local 6: Praça - Missão: Consertar os brinquedos da praça. [...] Local 7: Rua Seringueira - Missão: Desentupir as bocas de lobo da rua” (Conforme as Missões do SM Real Life 2016 - arquivo e grifos do pesquisador).
Ao lançar os dados, o jogador pode sair com uma das disciplinas (MOV=Dança. I=Inglês. G=Geografia. M=Matemática. LP=Português), e realizar o desafio correspondente à disciplina sorteada para prosseguir:
Local 2- Muro da Escola - Missão: Aumentar o muro da escola para melhor protegê-la. [...]
MOV: Encoste quatro partes diferentes do corpo na parede.
I: Qual banda lançou o álbum chamado “The wall”? (R. Pink Floyd).
G: Como se chama o muro que evita as enchentes do Rio dos Sinos? (R. Dique).
M: Se o muro tem 3 metros, quanto precisamos aumentá-lo para chegar a 4 metros e vinte de muro construído? (R. 1,2 metros).
LP: Escreva uma mensagem de paz para o muro em 30 segundos.” (Desafios referentes a cada missão do SM Real Life 2016 - arquivo e grifos do pesquisador).
Além das atividades desenvolvidas pelos professores-mediadores-cartógrafos em sala de aula (e na comunidade), ocorreram, no ano de 2017, oficinas tecnológicas nas dependências da escola e da Unisinos, bem como a organização e a participação de um evento em nível municipal, em parceria com a Unisinos e o GPe-dU UNISINOS/CNPq (I e II We Learning With The City ‘WLC’, 2016-201713, respectivamente). Tais eventos permitiram a socialização dos jogos e de práticas educativas gamificadas que foram desenvolvidas nas escolas parceiras. Um segundo evento, de nível nacional, foi o SBGames Kids & Teens 201714, que ocorreu na cidade de Curitiba- PR - concomitantemente ao SBGames, maior evento nacional de jogos promovido pela Sociedade Brasileira de Games (SBGames). Ambos os eventos são pensados, organizados e realizados por crianças e adolescentes, com o apoio dos professores e integrantes do GPe-dU UNISINOS/CNPq. Além disso, o propósito destes eventos é de que esses jovens assumam o protagonismo no processo de concepção e desenvolvimento dos respectivos eventos, vivenciando a experiência de organização e desenvolvimento de oficinas, mostra de jogos e outras atividades que considerem pertinentes a um evento (ver Figura 2).
No decorrer de 2017 os estudantes aprenderam nas oficinas tecnológicas alguns elementos sobre modelagem, edição de imagens e programação. A partir disso, surgiu a ideia de fazer uma versão digital do jogo construído no ano anterior, após discutir e rever aspectos que funcionaram, ou que poderiam ser mudados ou acrescidos à versão digital. Os temas abordados anteriormente foram mantidos, assim como a narrativa e a preocupação com os problemas sociais da comunidade em que os alunos vivem. Nas imagens a seguir (Figura 3), pode-se perceber o percurso trilhado no decorrer dos anos de 2016/2017, na construção colaborativa e cooperativa do jogo de tabuleiro “SM Real Life” - incluindo sua versão digital15 -, bem como o envolvimento dos estudantes nas oficinas tecnológicas, a representação do espaço físico, a presença da multimodalidade (física, digital e g-learning) e do hibridismo16.
A versão digital em questão encontra-se em fase de conclusão, restando os ajustes finais, testes e divulgação na própria comunidade. O resultado final também será divulgado nas demais escolas da rede municipal e em eventos futuros.
As observações, vivências e rastros do percurso trilhado durante os anos de 2016/2017 permitem concluir que o desenvolvimento de práticas educativas gamificadas podem possibilitar a emancipação digital e cidadã dos sujeitos em sua formação e identidade, uma vez que eles utilizam e apropriam-se efetivamente do poder transformador e emancipatório das TD. Ao produzir um jogo ou ao se integrarem como agentes em práticas gamificadas, os estudantes participam de forma significativa em um conjunto de práticas sociais, que vão além dos textos tradicionalmente codificados (verbais). O fato de se valorizar a perspectiva da colaboração e da cooperação no âmbito da gamificação oportuniza o carácter emancipatório, digital e cidadão dos sujeitos, tornando-os capazes se adaptarem a meios, situações, lugares e espaços diversos, tornando-se fazedores, proativos, atores do processo - e não simplesmente consumidores.
Por fim, consideramos as TD, bem como as práticas educativas gamificadas, como tecnologias de transformação social. Desse modo, há práticas de letramento específicas em videogames (jogos, jogos digitais, práticas educativas gamificadas na gamificação) capazes de possibilitarem a inclusão, a formação e o empoderamento dos sujeitos envolvidos, ressignificando o espaço de ensino e de aprendizagem e a própria metodologia pedagógica praticada hoje nas escolas.