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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.19 no.61 Curitiba abr./jun 2019  Epub 31-Ene-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.19.061.ds09 

Dossiê

A obra Prática da Escola Serena: autoeducação e formação cultural como princípios educativos

Serena School Practice book: self-education and cultural formation as educational principles

La obra Práctica de la Escuela Serena: autoeducación y formación cultural como principios educativos

a RS: Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Doutor em Educação, e-mail: rossano.degraf@yahoo.com.br


Resumo

O presente artigo pretende explorar a obra Prática da Escola Serena, escrita em 1946, pelo intelectual paranaense Erasmo Pilotto (1910-1992), mostrando o papel dado à cultura e à autoeducação como princípios educativos. A obra constituiu-se numa síntese das ações protagonizadas pelo intelectual durante sua atuação na Escola de Professores de Curitiba e no Instituto Pestalozzi, no período de 1938 a 1947. A ação nesses espaços permitiu à Pilotto atuar no campo educacional, integrando a cultura e a educação na formação de uma cultura geral para os professores. Essa concepção teve como uma de suas fontes a interlocução das concepções educacionais do filósofo italiano Giovanni Gentile, que foram ressignificadas pelo intelectual em suas obras e iniciativas no campo educacional paranaense. As leituras dadas pelo intelectual às teses de Gentile motivaram-no a conceber a formação de professores, apoiado em uma ampla cultura geral e não em uma formação baseada apenas na prática. Para alcançar os objetivos desta investigação, será utilizada a teoria praxiológica de Bourdieu, o que permitirá analisar as interações do intelectual no campo educacional.

Palavras-chave: Autoeducação; História da Educação; Formação Cultural

Abstract

The present article aims to explore the book Serena School Practice that has been written in 1946 by the intellectual Erasmo Pilotto from Paraná (1910-1992), showing the role given to culture and self-education as educational principles. The book constituted a synthesis of actions carried out by the intellectual during the time he worked in the School of Teachers of Curitiba and in the Pestalozzi Institute from 1938 to 1947. The action in these spaces allowed Pilotto to act in the educational field, integrating culture and education in the formation of a general culture for teachers. This conceptualization had as one of its sources the educational interlocution of the Italian philosopher Giovanni Gentile conceptions which were resignified by the intellectual in his books and initiatives in the educational field of Paraná. The reading comprehension of the intellectual on Gentile’s theses motivated him to conceive a teacher formation supported by a broad general culture and not in the formation based only in practice. In order to reach the objectives of this investigation, the praxeological theory of Bourdieu will be used, which will allow analyzing the interactions of the intellectual in the educational field.

Keywords: Self-education; History of Education; Cultural Formation

Resumen

El presente artículo pretende explorar la obra Práctica de la Escuela Serena, escrita en 1946, por el intelectual paranaense Erasmo Pilotto (1910-1992), mostrando el papel dado a la cultura ya la autoeducación como principios educativos. La obra se constituyó en una síntesis de las acciones protagonizadas por el intelectual durante su actuación en la Escuela de Profesores de Curitiba y en el Instituto Pestalozzi, en el período de 1938 a 1947. La acción en esos espacios permitió a Pilotto actuar en el campo educativo, integrando la cultura y la educación en la formación de una cultura general para los profesores. Esta concepción tuvo como una de sus fuentes la interlocución de las concepciones educativas del filosofo italiano Giovanni Gentile, que fueron resignificadas por el intelectual en sus obras, e iniciativas en el campo educativo paranaense. Las lecturas dadas por el intelectual a las tesis de Gentile lo motivaron a concebir la formación de profesores apoyados en una amplia cultura general y no en una formación basada apenas en la práctica. Para alcanzar los objetivos de esta investigación, se utilizará la teoría praxeológica de Bourdieu, lo que permitirá analizar las interacciones del intelectual en el campo educativo.

Palabras clave: Autoeducación; Historia de la Educación; Formación Cultural

Introdução

O presente artigo pretende explorar a obra Prática da Escola Serena (1946) escrita pelo educador e intelectual paranaense Erasmo Pilotto (1910-1992), a obra citada sintetizou as experiências educacionais protagonizadas pelo intelectual no campo educacional local, nas quais enfatizou o princípio da autoeducação como estratégia educativa. O recorte da pesquisa tem como foco o período de 1938 a 1947, correspondentes aos anos de atuação de Pilotto no cargo de Assistente Técnico na Escola de Professores de Curitiba e de diretor e professor do Instituto Pestalozzi.

Com essas ações, pôde aliar as ações realizadas no campo educacional formulando uma concepção educativa baseada na integração entre a cultura e a educação e enfatizando o papel da primeira no que chamou de formação de uma cultura geral do professor, inspirando uma prática educativa baseada na autoeducação, proposição pedagógica, sistematizada pelo intelectual em diversas de suas obras desenvolvidas entre as décadas de 1940 a 1980.

As pesquisas de Miguel (1997) e de Vieira (2001, 2011 e 2015) consideram Pilotto como um dos principais articuladores do Movimento pela Escola Nova no Paraná, além de destacarem sua ação no campo educacional paranaense. No sentido de contribuir com essas investigações, nosso estudo (SILVA, 2009 e 2014) tem por objetivo ampliar o estudo da obra de Pilotto, analisando como suas concepções educativas concebem a arte, a autoeducação e a cultura e como princípios educativos.

Como aporte teórico necessário para alcançar os objetivos propostos, nos apoiaremos na teoria praxiológica de Bourdieu (1994, 1996, 2004 e 2006), perspectiva teórica que associa os conceitos de campo, habitus e capital, que, ao romper com a abordagem da fenomenologia e do objetivismo, realiza uma análise do mundo social que é o resultado de uma determinada prática. Essa entendida como o que realmente se efetiva num determinado tempo histórico e social, a prática não depende apenas da escolha individual do sujeito, mas leva em consideração as dinâmicas do campo social. Para Bourdieu (1994) o campo é o elemento constituinte da sociedade que pode ser interpretado como as possibilidades oferecidas ao indivíduo, que conforme o seu capital disponível, pode assumir ou não posições de prestígio, reconhecimento e poder nas diferentes esferas de atuação que constituem o campo.

Para alcançar os objetivos propostos neste texto será necessário, juntamente ao aporte teórico, dispor de fontes de tipologias variadas como: documentos não publicados, obras e relatos de Pilotto e de outros agentes que estiveram presentes na trajetória do intelectual.

Escrita da obra Prática da Escola Serena

Publicado em 1946, o livro Prática da Escola Serena traz as reflexões de Pilotto sobre sua cátedra na Escola de Professores. Ao comentar seu retorno como docente à instituição, afirma que defendeu a orientação que tivera como aluno, ou seja, sua posição não foi formada pelos métodos preconizados pela então Escola Normal de Curitiba, ligada às teorias de Herbart, mas sim pela orientação de seus estudos realizados no Centro de Cultura Filosófica - CCF e no Centro de Cultura Pedagógica - CCP, ambos criados pelo intelectual na década de 1930. Tais centros refletem a tônica do intelectual no que denominou de autodidatismo que forja sua concepção pedagógica, pelo menos em parte. Pois, embora não se possa negar o habitus de sua formação inicial1, o autor sempre tenta manter certa autonomia, afirmando uma posição de independência intelectual.

Se quiséssemos dar um índice, diríamos que, entre o mais reportaríamos o grande clima do Instituto Internacional de Educação de Genebra, cujas publicações praticamente conhecíamos como a palma da mão. E os livros da Coleção Labor, de Barcelona; e da Espasa-Calpe, de Madrid. E o pensamento da escola italiana: o da linha criada ou derivada de Gentile e, noutra direção, o de Montessori. Etc., etc. Tudo com a virtude de um grande entusiasmo (PILOTTO, 2004, p. 56).

Nesse sentido, a obra Prática da Escola Serena traz as reflexões do autor, suas convicções e suas interlocuções com autores ligados à filosofia e à pedagogia, trazendo à tona a visão do autor sobre a organização escolar. O livro é dividido em quatro capítulos: “Instituto Pestalozzi”, “Escola primária”, “Escola rural” e “Escolas de formação do magistério primário”. Apresentando a posição do autor sobre os princípios educacionais da educação infantil e primária, e da formação de professores na perspectiva metodológica e organizacional para essas etapas do ensino.

Cabe ressaltar que em 1946, então com 36 anos, Pilotto já dispunha de certo capital social e simbólico, pois além de exercer a cátedra na Escola Professores em Curitiba há 13 anos, já havia ocupado cargos nas Escolas Normais de Paranaguá e Ponta Grossa e havia participado do Grupo Editorial Renascimento do Paraná - Gerpa e da revista Joaquim, espaços que o colocavam em evidência no campo intelectual local. Assim, ao publicar seu livro já era uma figura de autoridade na questão educacional no contexto paranaense.

Com o título “Este livro é quasi (sic) um diário” (PILOTTO, 1946, p. 5), o intelectual inicia seu texto com uma citação em francês de Miguel de Montaigne, retirada da Advertência ao Leitor, da obra Ensaios, publicada originalmente em 1588, na qual Montaigne afirma que sua obra se destina apenas a alguns amigos e parentes próximos conscientes de seu fim:

[...] para que, ao me perderem (do que correm o risco dentro em breve) possam reencontrar nele alguns vestígios de minhas tendências e humores e que por esse meio mantenham mais íntegro e mais vivo o conhecimento que tiveram de mim. [...] Então, leitor, eu mesmo sou o tema do meu livro; isso não é razão para que você empregue seu tempo livre em um tópico tão frívolo e tão vaidoso2 (MONTAIGNE apudPILOTTO, 1946, p. 5, tradução nossa).

Apesar dessa declaração, a obra não parece ter sido escrita com o intuito de servir apenas à memória de suas experiências educacionais. Embora as fontes disponíveis não nos permitam avaliar a circulação dessa obra. No capítulo 2 - Escola primária - Pilotto publica as “Ideias gerais para organização de um programa de ensino primário”, que serviriam de inspiração aos Programas Experimentais para o Ensino Primário, implantados em 1950, durante sua gestão na Secretaria de Estado da Educação e Cultura do Paraná. Os programas podem ser considerados como a manifestação de uma intenção de oficialização do texto publicado em 1946. Conforme o intelectual, essas “ideias gerais” foram resultado da criação de uma comissão de quatro pessoas, instaurada em 12 de outubro de 1944 pela Diretoria Geral de Ensino Primário do Estado do Paraná. No entanto, conforme o autor, por “circunstâncias diversas” a comissão não foi posta em execução oficial3 (PILOTTO, 1946, p. 45).

Outro ponto a ser analisado é o caráter estilístico da obra. Ao analisar os estilos presentes nos textos de Pilotto, Vieira afirma que podemos encontrar três formas preponderantes em sua escrita:

Nos discursos de formatura, considerando apenas a materialidade textual, pois não dispomos de indícios para analisar a sua postura como orador, notamos o tom professoral, eloquente, crítico e, nitidamente, pretendendo mobilizar as energias dos jovens professores. Nas obras que abordam política educacional, administração e organização do ensino, verificamos o tom engajado do tribuno que apresenta suas teses e projetos como se estes fossem parte de um sentimento de dever moral e político. Nesse contexto argumentativo, ele usa de linguagem imperativa para se manifestar sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer em termos de educação. Nos textos sobre método de ensino, verificamos o didatismo do normalista que explica, passo a passo, os seus procedimentos, com linguagem simples, direta e eivada de emotividade (VIEIRA, 2015, p. 98).

Partindo dessa análise, podemos considerar que a obra Prática da Escola Serena pode ser considerada um livro que trata do método de ensino, pois traz uma forma didática de apresentar as concepções pedagógicas de Pilotto. No capítulo 1 - Instituto Pestalozzi - o autor apresenta a estrutura da instituição, que seria um modelo a ser seguido para a educação pré-primária, descrevendo a arquitetura escolar, o mobiliário e a sua organização de forma didática, enfatizando o caráter de manual. Cabe ressaltar que o Instituto Pestalozzi foi uma escola experimental de educação pré-primária, criada por Pilotto em 1943, que teve um curto período de funcionamento de apenas dois anos. Além de Erasmo Pilotto, participaram da criação da instituição Anita Pilotto, Adriano Robine e Lourival Sponholz. Em depoimento arquivado no Museu da Imagem e Som do Paraná, Helena Kolody (1988) afirma que a instituição ministrava aulas para crianças com necessidades especiais e curso de extensão cultural. Também, conforme Iwaya (2001), o Instituto recebeu alunas da Escola de Professores, que realizavam práticas docentes. Ao descrever a estrutura da instituição, ressalta que esta deveria ser uma “casa para crianças”:

[...] de tal modo que muitas crianças pudessem aí viver como se estivessem em um lar concebido expressamente para elas, e por tal forma organizado que, só com viver nesse ambiente, usando livremente o que aí encontrasse, já estivesse recebendo uma larga parte de educação (PILOTTO, 1946, p. 16).

Pilotto descreve a garagem transformada em um Centro de Arte, que dispunha de uma diversidade de materiais para as atividades de artes plásticas. É citado também que as crianças tinham a sua disposição obras de arte originais e reproduções de artistas. Em relação à música, são evidenciadas as práticas musicais e a apreciação musical de obras de Mozart e Grieg, ouvidos em discos ou em apresentações realizadas no Instituto, além da prática teatral. Para Pilotto, o ensino

[...] da modelagem, do desenho, do recorte, da música e tudo o mais esteve fortemente orientando sempre, no sentido de despertar as forças criadoras do espírito infantil, no sentido de que cada trabalho que realizassem as crianças pudesse ser apontado como uma pequena obra de arte (PILOTTO, 1946, p. 22).

Para o autor, as práticas artísticas e a apreciação de obras de arte teriam um caráter de formação do espírito infantil e de formação de uma cultura geral.

Conduzimos a criança a criar sempre. De par com isso, estivemos animados da ideia de que a criança pode e deve estar em contato com valores mais altos da cultura humana. Sabemos de ciência própria, pelo trato assíduo com esse processo, que há obras imortais de todas as artes, da pintura, da música, da escultura, da literatura, que são perfeitamente acessíveis a uma criança ainda de jardim da infância, dependendo tudo da maneira como lhe forem as coisas apresentadas (PILOTTO, 1946, p. 22).

Ao analisarmos a descrição dos ambientes e das práticas no Instituto Pestalozzi (SILVA, 2009), constatamos que o autor se aproxima das ideias de John Dewey no que tange ao ensino de arte, as quais, para Osinski (2002 p. 73-75), se opunham tanto à rigidez da escola tradicional, no ensino de desenho, quanto à livre expressão4 pura e simples. Ainda para a autora, Dewey destaca os efeitos maléficos do sistema imitativo e repetitivo do desenho tradicional, ao mesmo tempo que aponta o fato de que o trabalho sem direcionamento e sem referências externas, das práticas de livre expressão, levaria à perda do interesse pela arte. Nesse sentido, para Dewey a solução não seria estabelecer um meio termo entre as duas tendências, mas o ensino de arte deveria se redirecionar entre a experiência e o contato com a produção artística, pois não faria sentido desconsiderar o saber acumulado pela experiência humana. Assim, o papel do professor não seria de um espectador, como sugerido pelos defensores da livre-expressão, mas deveria ter uma ação mais direta e participativa no processo de ensino de arte.

Compartilhando as concepções do autor americano, Pilotto defende a importância do contato da criança com a produção artística e o seu benefício para a formação infantil. Concepção defendida em seus apontamentos para a direção geral do Instituto, nos quais se remete ao “ideal ateniense de vida”:

Como os gregos, que se educavam só com o viver em Atenas, os nossos alunos devem educar-se com só viver em nosso meio. Eles assistirão ao teatro de beleza e de ideais. Conhecerão uma arte, como a arte saída, na Grécia, dos santuários - para educar; terão, diante de seus olhos, nas paredes, as melhores obras de arte que lhe pudermos proporcionar, folharão álbuns em narrações perfeitas; conhecerão a poesia; conhecerão a dança nos moldes da Duncan (PILOTTO, 1946, p. 39).

A escolha de Pilotto das obras apresentadas no Instituto Pestalozzi remetem a obras de valor cultural, provenientes, em sua grande maioria, da arte europeia e de manifestações eruditas. Em relação à valorização da arte presente na obra de Pilotto, cabe destacar que a própria denominação “escola serena” é definida pelo pedagogo e filosofo italiano Giuseppe Lombardo Radice5, em referência às “escolas novas” italianas, que tinham por ideal a:

[...] continuidade entre a escola e a família, numa valorização das atividades artísticas e numa visão da criança como artista espontâneo. Nela, portanto, o ensino perdia toda rigidez preordenada e se desenvolvia segundo os princípios de "serenidade, equilíbrio, atividade, espontaneidade" (CAMBI, 1999, p. 518).

Embora não cite o autor, a concepção de espaço e valorização das atividades artísticas estão presentes na organização do Instituto Pestalozzi e em outras iniciativas de Pilotto.

No segundo capítulo, “Escola primária”, como mencionado anteriormente, temos a descrição de um programa de ensino primário, que será a base dos Programas Experimentais criados durante seu período como Secretário de Educação e Cultura do Estado do Paraná. O capítulo abre com a discussão sobre a organização do trabalho que, segundo Pilotto, fora motivada, por um pedido da diretoria geral de Ensino em 19446. Embora seja mencionado que a comissão utilizava como ponto de partida as declarações da National Society for the Study of Education7, Pilotto não menciona quais seriam os pontos adotados pela comissão. De acordo com ele, o trabalho da comissão levou dois anos para ser concluído. Antes de apresentar os programas, faz algumas indicações sobre a função da escola primária. De acordo com o autor:

Comumente se tem dito que a função da escola primária é a ministração de uma educação geral e comum às crianças normais que frequentam a escola em tempo normal. Entende-se que é geral, porque não cabem, por nada, dentro da escola primária, as especializações, e nenhuma tendência para a formação profissional (PILOTTO, 1946, p. 46)

Como se lê na passagem, de acordo com Pilotto, a Escola deveria fornecer uma formação geral para a criança, que, como mencionado, é uma tônica do discurso de Pilotto, que se coloca contra a especialização da educação. Para o intelectual, a educação não pode se separar da cultura, que, por sua vez, é compreendida sob uma acepção humanista. Nesse aspecto, é clara a relação com a obra de Pestalozzi. Para Pilotto, “quer nos advertir contra essa cultura só de livros e sem ligação nenhuma com a vida humana [...] É contra essa cultura que Pestalozzi nos fala, chamando-nos para a verdadeira cultura, de sentido humano, em ligação com o sofrimento humano” (PILOTTO, 1946, p. 47).

A essa concepção de desenvolvimento cultural está associada a ideia da escola como um ponto de mudança da comunidade. Caberia à escola educar o meio em que está situada, tendo por alvo os problemas e a cultura local. Conforme Velloso (1997), no Estado Novo (1937 a 1945) os intelectuais passam sistematicamente a direcionar sua ação para a esfera estatal, entendendo que sua ação seria responsável por trazer a ordem, a organização e a unidade para a sociedade civil, vista muitas vezes como um “corpo conflituoso, indefeso e fragmentado”; nesse sentido, a orientação de Pilotto em tornar a escola um centro de desenvolvimento cultural está relacionada ao habitus da intelectualidade do período, que se colocavam como guias das ações políticas do Estado. Para Vieira (2008, p. 20), o Estado era “agente político, por excelência, para a efetivação do projeto moderno de reforma social”. Essa ideia toma mais corpo quando Pilotto descreve, no capítulo 3 de sua obra, as escolas isoladas e a função das associações, que confere a escola o papel de ser um centro irradiador de cultura.

No capítulo 3 - Escola rural - Pilotto volta a destacar a formação baseada em uma cultura geral para o educando que fosse independente de seu meio, visto que, de acordo com ele, o meio não poderia ser desconsiderado, no entanto, ele não deveria limitar o educando. Para o autor, o professor primário deve ter como fundamento “dar aos seus alunos uma educação geral. Ele [o professor] não deve pensar em transformar a sua escola em um centro de formação especializada” (PILOTTO, 1946, p. 106). Nesse ponto, percebe-se a preocupação humanista de sua concepção pedagógica, de acordo com a qual a educação deve ocupar-se em formar o indivíduo de modo a proporcionar-lhe superar as limitações impostas por seu meio. A escola, nesse sentido, precisa formar o homem.

Por isso, o trabalho da Escola tem de ser, dia e noite, a preocupação de fazer com que as crianças que lhe estão confiadas cheguem a viver como homens, cheguem a viver uma vida melhor. A escola não estará fazendo o suficiente se os seus alunos não estiverem todos os dias vivendo um pouco mais como homem [...] Nessa primeira parte deste programa das escolas isoladas, nós dizemos que o único programa é o de fazer estas crianças chegarem a viver uma vida melhor (PILOTTO, 1946, p. 106-107).

Em seguida, com base em Pestalozzi, sustenta que a escola deve ampliar sua atuação para além do ambiente escolar, de maneira a constituir-se como um centro de cultura. Essa concepção será a tônica dada, pelo intelectual, na administração das escolas isoladas, convicção coerente com sua concepção de que a escola deve ser um ponto de mudança social mais ampla, apta a atingir toda a comunidade em que se insere. Uma das estratégias dirigidas ao objetivo de assegurar tal caráter às escolas foi a criação de associações ligadas às escolas, que constituiriam um “elemento de educação para os associados”. Uma das funções destacadas para as associações seria organizar eventos culturais, como sessões de leitura, de desenho, pintura e modelagem, além de discussões de problemas e notícias locais, regionais e nacionais.

O programa estabelecido para as escolas isoladas busca elevar o “nível da vida local”. Em termos de estilo, esse capítulo segue a estrutura dos demais, apresentando-se de maneira didática. Uma ilustração disso são as indicações sobre o teatro escolar, em que Pilotto apresenta um roteiro para a organização do espaço e para as técnicas que podem ser utilizadas pelo professor.

O teatrinho de fantoches pode executar-se assim: a representação pode ser feita mesmo no vão de uma janela, preparada até com papel jornal, de modo a ficar a boca de um palco. Os bonecos são construídos com massa de papel, que se obtém rasgando um jornal em pedacinhos bem pequenos, amassando-os molhados até ficarem reduzidos a uma pasta [...] (PILOTTO, 1946, p. 115).

A organização do texto dessa forma nos permite inferir que o intelectual elaborou a obra Prática da Escola Serena como um manual que traz aspectos teóricos e questionamentos sobre a prática pedagógica, mas que também fornece ao leitor instrumentos para implementar essa mesma prática.

O capítulo 4 - Escolas de formação do magistério primário - apresenta um plano de trabalho para as Escolas de Professores. Nesse trecho de seu livro, sustenta que as Escolas de Professores teriam três finalidades básicas, a saber:

[...] formar professores primários; ser um centro de cultura pedagógica, compreendendo-se aqui, mais particularmente, a investigação filosófica e a investigação experimental relativa aos problemas ligados ao fenômeno da educação; ser um centro de vulgarização pedagógica, de âmbito de ação que se estenda ao magistério do Estado e vá abranger, também, ainda que mais restritamente, os responsáveis, na família, pela educação. (PILOTTO, 1946, p. 117)

Para a formação de professores, destaca a importância de uma formação cultural, que compreende duas esferas: a cultura profissional ou especializada e a cultura geral. A primeira diz respeito aos aspectos metodológicos e da postura do professor, ao passo que a cultura geral seria a base da formação, compreendida pelos conhecimentos sobre arte e filosofia, que, para o autor, não eram suficientemente contemplados nos cursos ginasiais. Posteriormente na obra Apontamentos para uma Pedagogia Fundamental I (1982) divide essa cultura profissional em dois aspectos: o da formação técnica e o da formação da personalidade do professor. Essa subdivisão permite-nos apresentar a concepção do intelectual sobre a formação dos professores como um processo que se dá em três âmbitos: a formação geral, a formação técnica ou profissional e a formação da personalidade de educador.

Como forma de superação da deficiência relativa à cultura geral dos professores, propunha a criação de um Centro de Alunos, que, como uma organização anexa à escola, proporcionaria a formação cultural. Uma iniciativa inspirada nessa preocupação foi a criação do Centro de Cultura Dona Júlia Wanderley, desenvolvida na Escola de Professores durante sua atuação como assistente técnico.

Pilotto propõe que a organização do Centro seja feita pelos alunos principalmente enfatizando o protagonismo e o caráter autoeducativo desse espaço, no qual os alunos estudariam, individualmente ou em grupo, arte e filosofia, procurando uma sincronização entre as histórias de cada um desses assuntos. A preocupação com a historicidade dessas áreas de conhecimento reflete a visão de Pilotto sobre a necessidade de se compreender os contextos nos quais se dá a criação. Nesse ponto, percebe-se a interlocução com filósofo italiano Giovanni Gentile, reportando-se ao papel das disciplinas escolares na formação cultural.

Recordemos o papel da História, no plano de Gentile. As cadeiras de música, desenho e modelagem e a de trabalhos manuais devem fornecer apropriadíssimo campo para informações relativas à cultura geral. Parece que seria o caso de se dar uma extensão um pouco maior a essas cadeiras, dilatando-as além de interesses puramente metodológicos, para aproveitá-las, também em propósitos de formação geral e de liberação das forças criadoras do espírito do educando (PILOTTO, 1946, p. 123).

Gentile8 é o único autor debatido nessa obra. Sua ideia de formação de uma cultura geral parece ter sido a tônica, ressignificada por Pilotto como um ponto forte de sua concepção pedagógica. Que conceberia essa preocupação com a formação cultural por meio da criação de espaços extraescolares, tais como as associações e os centros de alunos, bem como no interior do próprio currículo escolar.

Para o intelectual, a orientação do filósofo italiano parte da tese de que a “Pedagogia, como toda a Ciência e como todas as coisas, é uma contínua e eterna criação do espírito” (PILOTTO, 1946, p. 122). Assim, os que tiverem “espírito de mestres” não seriam formados pela rotina, mas pela cultura adequada que despertaria as forças criadoras do espírito, de modo a se tornarem “criadores de pedagogia”. Essa tese faz referência ao habitus familiar, do intlectual ligado à Antiga Escola Normal9, local de formação de sua mãe e tios, momento no qual a instituição, que em sua concepção dedicava-se a formação da cultura geral do professor em detrimento da formação técnica. Para Gentile (1926) a educação não se resume à repetição de fórmulas, que no máximo atestariam a boa memória do educador, mas se faria pelo contato com o aluno que levaria o professor a também aprender na expressão “il maestro che impara”:

Professor, que é um professor, não se repete, mas é sempre renovado no espírito do aluno. Vive e assim se faz, sempre diferente. É, junto com seu aluno: são o mesmo espírito [...] não há melhor complemento para apoiar a cultura do futuro professor que uma formação sincera e um treinamento real10 (GENTILE, 1926, p. 149-150, tradução nossa).

Em relação a cultura e a escola, temos o seguinte comentário de Gentile na obra The reform of education (1922).

A escola não é, obviamente, a sala que contém o professor e os alunos. Estes podem ter uma sala, podem até ter o professor, sem, contudo possuir a escola, que consiste na comunicação de cultura. Esta cultura, temos visto, não é realmente preexistente ao ato que comunicá-la, não é para ser encontrada em livros, não é para ser procurada em um mundo ideal transcendental, não é para ser exigida do professor. É somente no espírito da pessoa que está no ato de aprender. Ela existe na forma em que é possível que ela seja, não comparável a qualquer forma presumível de cultura preexistente. A escola ganha a sua existência inteiramente na alma do aluno11 (GENTILE, 1922, p. 41, tradução nossa).

Para o filósofo, o papel da escola se constitui na transmissão da cultura acumulada historicamente, não apenas em uma perspectiva teórica, mas também pela vivência do espírito. A cultura seria então composta pelas grandes obras legadas por artistas, filósofos e poetas, as quais, transcenderiam seu tempo. Tal convicção quanto à transmissão de uma cultura, que faz parte do espírito do homem, reflete a influência da concepção de Gentile de que o “[...] passado com todo o seu conteúdo é uma projeção da nossa real consciência, isto é, no presente12” (GENTILE, 1922, p. 43, tradução nossa).

Com o objetivo de destacar os elementos da cultura trazidos para o presente, Gentile cita como exemplo a Divina comédia de Dante Alighieri, que apesar de ter sido escrita havia seis séculos, ainda é capaz de provocar admiração. Na concepção que a cultura anima uma obra como a de Alighieri estaria presente nas crianças, e a educação seria a maneira de despertar essa presença no espírito: “[...] a cultura que ainda não possuem, e que esperamos para chegar na escola, já está implantada em nossa mente, onde ele vai brotar e crescer e dar frutos, fundido e confundido com a vida de nosso espírito13” (GENTILE, 1922, p. 44, tradução nossa). Em sua concepção, a cultura apenas poderia ser percebida pelo homem cultivado, e o desenvolvimento da personalidade do educando seria efetivada pela educação. Com o processo educativo haveria a percepção da cultura e com ela o desenvolvimento espiritual.

Nessa perspectiva, a formação de professores tem por objetivo, na visão de Pilotto sobre a concepção de Gentile:

[...] promover a liberação de todas as forças espirituais que serão depois postas em serviço nos trabalhos de educação. Não é a prática irmã gêmea da rotina; que se faz necessária, mas as atividades que promovam a liberdade espiritual criadora do futuro mestre. E visivelmente, essa liberdade espiritual criadora só se pode gerar no contato com os Princípios, com as Ideias Gerais, que se apresentam bem naquelas atividades da Filosofia, da História, etc. Demais as atividades de Música, etc., corretamente orientadas, são fontes de expansão, liberdade espiritual, criação permanente (PILOTTO, 1946, p. 120).

O combate à rotina, na medida em que esta tem como efeito cristalizar os hábitos, foi colocada em prática por Pilotto durante sua trajetória na Escola de Professores. Ideal que seria reavaliado pelo intelectual, quando assumiu o cargo de Secretário de Estado da Educação e da Cultura no período 1949-1951. Nessa época, consolidou outro ponto de sua aproximação com Gentile, relativo às concepções sobre a formação de dois tipos de professor: aqueles que estariam atuando diretamente na “rotina”, isto é, no que correntemente se denomina “chão da escola”, e aqueles responsáveis pela liderança educacional, envolvidos com a criação de propostas e metodologias pedagógicas, ou seja, a formação de uma elite entre os professores. Essa divisão se tornaria mais clara na proposta feita na criação dos Cursos Normais Regionais14, quando o intelectual convoca a “elite de professores das Escolas Normais” para formarem profissionais que atuariam como coordenadores e docentes nos cursos de formação de professores espalhados pelo interior do Estado.

Dividimo-los [...] em dois grupos, aqueles que pertencem à média da classe e os que estão colocados acima dessa média. E isso do duplo ponto de vista da inteligência e da personalidade total. E todo o processo educacional da escola se processa em dois níveis, ainda que não percebam claramente os alunos. Aqueles alunos que se revelam líderes, então merecem um cuidado ainda mais especial. É para os do segundo nível, nível superior, que organizamos o Centro Superior de Pedagogia [...] (PILOTTO, 1946, p. 131).

Para cada um dos grupos, concebe dois tipos de atividade: o primeiro teria por objetivo a formação cultural do professor formado pelo Curso Normal, pois, como afirma, a “maior parte dos que afluem à Escola, sem que se deva rejeitá-los, [...] não têm nem desenvolvimento nem base de cultura para um trabalho de tal feitio”. Esses deveriam ser educados “num regime de atividades mais terra a terra, que é necessário conduzir essa grande maioria a uma rotina, cujos malefícios se há de compensar, depois, por uma permanente assistência, de várias procedências” (PILOTTO, 1946, 121). O segundo tipo de atividade visaria outro grupo, e consistiria em mantê-los em contato com:

[...] os superiores ideais da humanidade, com grandes figuras e os grandes movimentos [...] procuramos iniciar os alunos nos fundamentos filosóficos da educação, fazê-los entrar intimamente com os mais altos valores da cultura humana; é para eles que destinamos, sobretudo, a atenção especial de um cuidado individual; é junto deles que procuraremos exercer uma influência direta e pessoal [...]. Em síntese, estamos, sempre, atentissimamente voltados para os melhor dotados e procuramos destinar-lhes uma direção de trabalho de acordo com as suas possibilidades e promessas que deles podemos esperar [...]. Em verdade, essa ideia de divisão do curso em dois níveis é uma das fundamentais de nosso plano [...], uma ideia de educação diferencial dos alunos, tendo em vista a sua posição futura no magistério (PILOTTO, 1946, p. 130-132).

A concepção de Pilotto concernente a uma educação diferenciada pode ser comparada à tese de Gentile sobre a divisão, no interior da escola secundária, de uma escola dedicada aos estudos “desinteressados” de caráter humanístico, destinada à elite condutora, e a escola técnica, destinada aos dirigidos. O filósofo justifica essa separação com a seguinte afirmativa:

Os estudos secundários são, por sua própria natureza, aristocráticos, no sentido ótimo da palavra; estudos para poucos, para melhores, porque preparam para uma formação desinteressada, à qual não podem ter acesso se não aqueles poucos que estão destinados de fato, pela sua capacidade ou pela sua situação social e familiar, ao culto dos altos ideais humanos (GENTILE apud CARMO, 1999, p. 57).

E sobre a cultura superior, definida como o estudo humanístico, afirma que, por ser superior, “não deve ser de todos, mas somente de um número relativamente exíguo [...]. O Estado [...] deve abrir uma porta em direção à alta cultura, porém mais estreita do que larga, a fim de que a multidão não se precipite para dentro” (GENTILLE apud CARMO, 1999, p. 57).

Posição permite concluir que a base da concepção espiritualista na pedagogia está pautada, para esse autor, na autonomia e na educação voltada para a cultura, que compreenderia as artes, a lei, a pesquisa e a religião, mesmo que com um acesso mais restrito. Tal concepção foi assimilada por Pilotto em muitas de suas iniciativas pedagógicas. Por exemplo, ao citar a criação do Centro Superior de Pedagogia15, planejado inicialmente como uma atividade extraclasse, destinada às melhores alunas, conclui que os resultados foram “excepcionais”. No entanto, ao tentar reproduzir a experiência com a totalidade das estudantes, declara ter percebido uma redução do “rendimento geral”, admitindo com base nessa avaliação que a atividade deveria ser reservada “para os melhores alunos”, ou seja, para aqueles que viriam a ocupar um papel de elite condutora do magistério (PILOTTO, 1946).

O princípio de autoeducação será retomado pelo intelectual em obras posteriores, como no livro “Para um humanismo individualista” (1968)16, no qual salienta a falta de autocrítica e o consumismo da sociedade ocidental, especialmente a norte-americana e a europeia. Ele atribui também à educação o condão de oferecer uma resposta à crise provocada pela modernização das sociedades industriais. Para ele, a educação deve procurar a normalidade vital do educando, incluindo o equilíbrio da personalidade.

Educação para a ação, para a coparticipação e para a vida criadora. Toda a educação que eleve o espírito humano em sua capacidade analítica tende a conduzi-lo ao vácuo, se conduz simultaneamente apenas a uma atitude egocêntrica e puramente receptiva, como se vê, tantas vezes, no caso das aristocracias [...]. A educação deve conduzir à autoeducação ou terá falhado ao fundamental (PILOTTO, 1973, p. 158, grifo nosso).

Vieira (2015, p. 90) salienta que a autoeducação, na obra de Pilotto, estaria vinculada à concepção de individualismo, “uma reação à tendência de estandardização das formas de pensar e de agir na sociedade de massas”. E nesse sentido:

[...] a educação, que é uma atividade realizada em grupo e visa necessariamente à sociabilização, deveria objetivar nas atividades em grupo a individualização e não o sentimento meramente gregário. A educação formal, para ele, necessitaria incutir a capacidade de autoeducação, pois esta, além de transcender ao tempo da escolarização e acompanhar o indivíduo ao longo de toda sua vida, permite a formação individualizada, de acordo com os desejos e as necessidades dos indivíduos (VIEIRA, 2015, p. 90).

Pilotto concebe a autoeducação como formadora do espírito, tese discutida no livro Temas da educação de nosso tempo (1954)17. Obra na qual examina o conceito de Gentile de que a educação é autonomia e desenvolvimento.

A educação é o próprio processo do desenvolvimento. É preciso conceber a educação como “o autônomo desenvolvimento do espírito individual” e não “como uma ação com que o espírito promove o desenvolvimento de outro espírito”. E, justamente, a tarefa da pedagogia é conceber a pedagogia dentro desse conceito de que sua esfera é o próprio desenvolvimento do espírito [...] E toda a educação, por esse modo, se converte numa valorização do espírito [...]. De outra parte, todo o processo de educação se converte numa valorização da autonomia, da individualidade, da liberdade, do sentido eternamente criador, e numa valorização do espiritual, quase diríamos numa educação inspirada por um espiritualismo ético firmemente definido (PILOTTO, 1973, p. 432-433).

O espiritualismo moderno “considera o conhecer como uma relação interna da consciência consigo mesma” (ABBAGNANO, 2007, p. 177), em uma chave interpretativa que garante a identidade do conhecer pela consciência. Tais convicções inspiraram Pilotto em suas ações na Escola de Professores por meio do Centro de Cultura Dona Júlia Wanderley e do Centro Superior de Pedagogia. Espaços nos quais buscou construir a autonomia do educando, consoante à concepção de que a “verdadeira” formação se dá pela autonomia possível do educando, seja daquele que estará na sala de aula, em atividades básicas, ou daquele que assumirá o papel de liderança no campo educacional. A ideia de formação para autonomia pode ser percebida na iniciativa desenvolvida no Instituto Pestalozzi, com a criação de cursos de extensão cultural destinados ao público adulto, que tinham por objetivo realizar a formação em vários aspectos da arte, da filosofia, e da literatura.

Os cursos de extensão cultural se dividiam em três ciclos (PILOTTO, 1946, p. 42). O primeiro, tinha como público os adolescentes de 14 a 17 anos, dividido nas seguintes seções: artes plásticas (estilos e escolas, artes decorativas, desenho e modelagem); artes musicais, esta subdivida em música (audição, criação, crítica e interpretação, teoria da composição musical); língua portuguesa (primeiras ideias de teoria da literatura, conhecimento direto de algumas obras-primas da literatura mundial); teatro (iniciação à arte dramática); história; dança; ciências e estudos brasileiros. O segundo ciclo, destinava-se a um público maior de 17 anos, mantinha as mesmas seções, com diferentes subdivisões: artes plásticas (leis fundamentais da pintura, da escultura, da arquitetura, estudos históricos e crítica); de artes musicais: música (audição, interpretação/criação, Bach, Mozart, Beethoven, Chopin, Wagner, Debussy, Grieg, Stravinski); literatura (gêneros literários, escolas, Homero, Horácio, Dante, Montaigne, Cervantes, Shakespeare, Goethe, Camões); drama (teatro grego, teatro clássico, francês); filosofia (moderna e contemporânea); história (formas da cultura); eloquência (Cícero e Vieira); dança e seção de ciências e de estudos brasileiros. E o terceiro ciclo, intitulado “introdução para cultura superior” (SILVA, 2009).

Tal formação tinha o intuito de superar a deficiência da educação, seja a primária ou a ginasial, tendo como foco a formação cultural, considerando para esse fim que o autodidatismo era a única possibilidade de aquisição de tal repertório de conhecimento. Ao divulgar os cursos do Instituto, escreve a seguinte mensagem:

O Instituto Pestalozzi organizou para espíritos como o de você, o seu curso de extensão cultural. É uma oportunidade para que você, todas as tardes, vá alargar o seu espírito, ampliar a sua vida, tornando-a mais rica e mais bela. O programa do curso de extensão foi feito com o pensamento não de dar aos que o frequentam uma série de lições escolares, mas de proporcionar-lhes, em momentos agradáveis, um contacto com valores mais nobres da cultura e da vida (PILOTTO, 1946, p. 41).

Assim, ao “promover a educação, mas de modo a que o educando seja depois levado à autoeducação, reinstaurada a autoeducação como fato fundamental da vida” (PILOTTO, 1976, p. 193), Pilotto exibe sua leitura do pensamento de Gentile no que concerne à valorização da autonomia, da individualidade, da liberdade e do sentido criador, como também, na classificação e na divisão na forma de acesso a essa cultura.

Considerações finais

Como assistente técnico, da Escola de Professores e diretor e professor do Instituto Pestalozzi, Pilotto trouxe novas práticas de ensino que valorizavam a autoeducação e a cultura geral na formação do professor, partindo de sua ressignificação da obra Gentile. Tendo por pressuposto o desenvolvimento da cultura que deveria permear todo currículo escolar. Mas, em uma relação dialética, enfatizou ao mesmo tempo espaços extracurriculares como lugares privilegiados para o desenvolvimento desse conhecimento, baseado no princípio da autoeducação. E a cultura assumiria nesse contexto o papel de formadora do espírito humano, sendo sua dimensão maior que a escolar.

Partindo desse pressuposto, concebe o Centro de Cultura Dona Júlia Wanderley, que se constituiria como um espaço paralelo à Escola de Professores, com o objetivo de educar através da cultura e da autonomia. Inspirado pela Filosofia Idealista de Gentile, formulou a formação de professores apoiada no desenvolvimento do espírito do mestre, com base em uma ampla cultura geral em detrimento de uma formação com base apenas na prática. E, também, concebe uma formação dualista, que tinha por objetivo formar professores para uma atuação mais prática, embora não negue a eles o acesso à cultura, e uma formação as lideranças educacionais que discutiriam aspectos superiores da cultura filosófica e pedagógica.

Salienta-se que a obra Prática da Escola Serena foi publicada um ano antes de Pilotto deixar a Escola de Professores para integrar a equipe de governo de Moysés Lupion, em 1947. Até esse momento, havia investido em ações no campo educacional e artístico que lhe garantiam certa autonomia e autoridade. O capital acumulado nessas ações, permitiram que Pilotto fosse conduzido em 1949 ao cargo de Secretário de Estado da Educação e da Cultura, cargo que lhe permitiu constatar a aplicabilidade das concepções sistematizadas na obra analisada.

Por fim, cabe destacar que a obra analisada permite compreender a circulação das teses de Gentile em nosso contexto, além de como suas ideias foram apropriadas por educadores e intelectuais brasileiros.

Referências

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1Uma investigação mais detalhada sobre a formação inicial de Pilotto pode ser encontrada em Silva (2014).

2[...] à ce que m’ayant perdu (ce qu’ils ont à faire bientôt) ils y puissent retrouver aucuns traits de mes conditions et humeurs, et que par ce moyen ils nourrissent, plus altiére et plus vive, la connaissance qu’ils ont eue de moi. [...] Ainsi, lecteur, je suis moi-même la matière de mon livre: ce n’est pas raison que tu emploies ton loisir en un sujet si frivole et si vain.” (MONTAIGNE apud PILOTTO, 1946, p. 5)

3Infelizmente as fontes disponíveis até o momento não esclarecem quem eram os três membros que compunham com Pilotto essa comissão. Em sua autobiografia (PILOTTO, 2004), não foi mencionada tal comissão.

4Conforme Osinski (2002) no início do século XX, inicia-se um movimento de renovação artística, marcado pelo abandono dos cânones acadêmicos em favor da expressão individual do artista. Para a autora, no mesmo período as pesquisas sobre o desenvolvimento infantil estabeleceram novas abordagens sobre a produção de arte infantil. Tais abordagens fortaleceram a ideia de que a arte não poderia ser ensinada, mas constitui-se como uma expressão do indivíduo, tal concepção passou a ser chamada de livre expressão.

5Giuseppe Lombardo Radice, foi colaborador de Gentile para a reforma da escolar elementar em 1923, rompendo posteriormente com o fascismo.

6Nesse momento, Valfrido Pilotto, primo de Erasmo, era chefe de gabinete do secretário de Interior e Erasmo Pilotto era assistente técnico da Escola de Professores, cargo de indicação da direção da instituição, ocupada naquele momento por Osvaldo Pilotto, irmão de Valfrido.

7A National Society for the Study of Education foi uma associação norte-americana que esteve em atividade entre os anos de 1901 e 1988, congregando professores de diversas universidades norte-americanas.

8Na obra Prática da Escola Serena (1946), Pilotto pede que esqueçamos as filiações políticas de Gentile e nos centremos em sua proposta pedagógica, embora tal advertência, não o tenha livrado de críticas. Quando assume a função de Secretária da Educação, era comum notas de jornais, referirem-se a ele como comunista, numa associação distorcida com o fascismo. Sobre a filiação de filósofos idealistas ao fascismo, Borghi afirma que: “É preciso lembrar que a imanência dos valores no homem - que os idealistas afirmavam - não significava sua imanência no indivíduo. O Espírito é, em si, um princípio universal que exclui toda particularidade e, consequentemente, a espontaneidade espiritual à qual eles se referem, já é, em si, uma qualidade que não pertence ao indivíduo como tal. Para eles, liberdade e espontaneidade não se referem a seu sujeito verdadeiro e se dissolvem em seu oposto. Assim, a dualidade de motivos constatada é aparente e não real e a própria instância da liberdade se reveste, no idealismo, de uma dimensão autoritária. Isto explica como os idealistas puderam dar o nome de liberdade ao conceito de dissolução do indivíduo no universal (encarnada nas instituições e no Estado) e contribuir assim para reforçar essa singular confusão mental que levou numerosos italianos a aceitar o fascismo como um movimento de libertação” (BORGHI apud HORTA, 2009, p. 53).

9Para Pilotto, a antiga Escola Normal é idealizada como um local de excelência educacional, tendo como principal virtude a ênfase na cultura geral e na formação da personalidade do professor, apesar da incipiente formação técnica fornecida pela instituição, que na visão do intelectual, teria uma “espécie de densidade categorial”. Em um artigo denominado A antiga Escola Normal, afirma: “[...] ficamos sabendo da ênfase dada à formação da personalidade do mestre. Cultura Geral e formação da personalidade em um ambiente de muita seriedade e, por vezes, vibrante idealidade: eis os dois pontos que seriam, em meu entender, de destacar na educação ministrada pela antiga Escola Normal” (PILOTTO, 1981, p. 25).

10Il maestro, che è maestro, non si ripete, ma si rinnova perennemente nello spirito dello scolaro. Vive e percio si fa, sempre diverso. Si fa, insieme col suo scolaro: egli e lo scolaro, uno stesso spirito [...] non vedono miglior complemento alla cultura diretta segnanti del futuro maestro, che un sincero e reale tirocinio (GENTILE, 1926, p. 149-150).

11The school is obviously not the hall which contains the teacher and the pupils. These may have a hall, may even have the teacher, without yet possessing the school, which consists in the communication of culture. This culture, we have seen, is not really pre-existent to the act which communicates it; it is not to be found in books, not to be looked for in an ideal transcendent world, not to be demanded of the teacher. It is only in the spirit of the person who is in the act of learning. It is there in the manner in which it is possible for it to be there, not comparable to any presumed form of pre-existing culture. The school gains its existence entirely in the soul of the learner (GENTILE, 1922, p. 41).

12The past with its entire content is a projection of our actual consciousness, i.e., of the present. (GENTILE, 1922, p. 43)

13[…] the culture which we do not yet possess, and which we expect to get at school, is already implanted in our mind,where it will sprout and grow and bear fruit, fused and confused with the life of our spirit. (GENTILE, 1922, p. 44)

14Os Cursos Normais Regionais foram criados por Pilotto durante sua gestão na Secretaria de Estado da Educação e da Cultura e tinham por objetivo realizar a formação de professores normalistas no interior do estado.

15O Centro Superior de Pedagogia foi criado por Pilotto na Escola de Professores e funcionava paralelamente ao Centro de Cultura Dona Júlia Wanderley.

16A primeira edição de Para um humanismo individualista data de 1968. A obra teve uma segunda edição em 1972 e foi reeditada na coletânea de textos de Pilotto, Obras I, de 1973.

17A obra foi publicada originalmente em 1954, e reeditada na coletânea Obras I (1973).

Recebido: 18 de Fevereiro de 2019; Aceito: 27 de Maio de 2019

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