SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número62Realidade aumentada na escola: experiências de aprendizagem em espaços híbridosPor uma didática decolonial: aproximações teóricas e elementos categoriais índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.19 no.62 Curitiba jul./sept 2019  Epub 30-Jan-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.19.062.ds14 

Dossiê

Facebook Dating: discussões sobre impactos sociais do novo recurso tecnológico do Facebook

Facebook dating: discussions about social impacts of this new Facebook´s technological resource

Facebook Dating: discusiones acerca de impactos sociales de lo nuevo recurso tecnologico de Facebook

Pollyana Ferrari Teixeiraa 

Mariana Leonhardt Hallageb 

aPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Comunicação Social pela USP, e-mail: pollyana.ferrari@gmail.com

bPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, e-mail: mari_hallage@hotmail.com


Resumo

O presente artigo visa analisar impactos sociais que alguns recursos tecnológicos exercem sobre o contexto contemporâneo, tendo como objeto o Facebook Dating, nova ferramenta da rede social digital Facebook, dedicada a incentivar relacionamentos afetivos entre usuários da rede que tenham afinidade, de acordo com seus dados que deixam rastros na plataforma. Tendo como pano de fundo a tecnologia ubíqua, que permeia o cotidiano de pessoas interconectadas e com acesso a dispositivos móveis inteligentes, são discutidos alguns pontos cruciais dessa interação, como a participação dos usuários, o condicionamento de suas imagens pessoais para serem parte dessa rede, o monitoramento via geolocalização demandado pelo aplicativo, a hiperexposição e a obscenidade das imagens, evidenciando uma sociedade transparente e, principalmente, a problemática do Facebook deter um enorme banco de dados sobre usuários.

Palavras-chave: Redes sociais digitais; Facebook; Relacionamento; Relevância; Dados

Abstract

This article intends to analyze social impacts that some technological resources apply over the contemporary context, taking as an example the Facebook Dating, a new tool of the digital social media Facebook, promoted to encourage relationships between users who have affinities, according to their data left behind in the platform. In a context of ubiquitous technology, which permeates the day by day of interconnected people with access of a smart mobile dispositive, there are some valid points to be discussed, such as: the participation of the users in the web, the conditioning of their personal images to be part of this social media, the geolocation monitoring demanded by the app, the hyper exposure and the obscenity of their images, putting in evidence a transparent society and, mainly putted in attention, the problem of data exposure considering that the platform holds a huge data center.

Keywords: Digital social media; Facebook; Relationship; Relevance; Data

Resumen

Este articulo visa analizar impactos sociales que los recursos tecnologicos tiene sobre el contexto contemporáneo como el Facebook Dating, creado para alentar relaciones entre usuarios que tienen afinidades. En un contexto de tecnología ubicua, que impregna el día a día de personas interconectadas con acceso a dispositivos inteligentes, hay algunos puntos válidos para discutir, como: la participación de los usuarios en internet, el estado de tus imágenes personales forman parte de la red social, la geolocalización supervisada y demandada por la aplicación, la sobreexposición y la obscenidad de tus imágenes, poniendo en evidencia la sociedad transparente y, en su mayoría, el problema de la exposición de datos, mientras que la plataforma tiene un gran centro de datos.

Palabras clave: Redes sociales; Facebook Dating; Alteridad; Relevancia; Datos

Introdução

A comunicação digital se faz cada vez mais presente no cotidiano contemporâneo, principalmente através das redes sociais digitais e pela difusão de telefones móveis com acesso à internet. Segundo dados da Statista3, em relação ao primeiro trimestre de 2019, mais de 1,5 bilhões de pessoas utilizam o Facebook diariamente, priorizando o uso em celulares smartphones. A Facebook Inc., empresa que detém as redes sociais digitais de maior uso atualmente, quando comparadas em conjunto, como o Facebook, o Instagram, o Messenger e o WhatsApp, é percebida como uma gigante global no mercado de tecnologia e informação. Como todas essas plataformas pertencem à mesma companhia, os dados fornecidos e produzidos pelos usuários são intercambiáveis, formando centros de big data imensuráveis, como explicado por Martha Gabriel (2018). Partindo do pressuposto de que o valor da companhia está atrelado ao quanto ela consegue avaliar sua audiência e segmentá-la precisamente, para que possa vender espaços de anúncios e publicidade a empresas interessadas, torna-se um agente de mercado que movimenta grande parcela dos negócios de comunicação e marketing.

Para perpetuar sua influência perante as empresas que desejam investir na plataforma anunciando para públicos específicos, é preciso que o Facebook incentive os usuários a continuarem sob seu domínio enquanto se comunicam digitalmente com outros agentes, cuidando de sua popularidade e dos números de engajamento que já possuem. Com isso, uma série de recursos são lançados periodicamente, para manter o interesse de sua audiência e, no final de abril de 2019, a rede estendeu um recurso que já havia testado desde agosto de 2018 em cinco outros países, agora disponível no Brasil e em mais nove países, chamado Dating.

Analisando o Facebook Dating, um recurso da rede social para facilitar o encontro amoroso entre seus usuários, é possível perceber uma série de desdobramentos sociais, refletindo sobre a exploração dos dados pessoais dos usuários que a plataforma faz e manipula diariamente, para sugerir conteúdos relevantes através de reconhecimento de padrões. Outro ponto latente para análise envolve as complicações de uma empresa deter bancos de dados cada vez maiores, diminuindo a privacidade das pessoas que o usam. Elaboramos uma revisão de literatura para mapear as produções científicas relacionadas e já publicadas, compondo o estado da arte em questão.

Utilizando o Google Scholar para o rastreamento de resultados, formulando queries de busca no dia 27/05/2019, que relacionaram as palavras “alteridade”, “aplicativos de encontros”, “redes sociais digitais”, “filtros de relevância”, entre outros termos, foram compilados alguns resultados relevantes, listados na tabela abaixo:

Tabela 1 Produções científicas relacionadas a alteridade e ética informacional 

Título Autor Origem Ano Link acesso
As redes sociais na divulgação e formação do sujeito do conhecimento: compartilhamento e produção através da circulação de ideias Cristiane Dias (UNICAMP) e Olivia Ferreira do Couto (UNICAMP) Revista Linguagem em (Dis)curso - SC 2011 http://www.scielo.br/pdf/ld/v11n3/a09v11n3
Humans of New York: a alteridade ressignificada a partir das redes sociais Rafaela Chiapin Pechansky PUC-RS Porto Alegre 2018 http://tede2.pucrs.br:8080/tede2/bitstream/tede/ 8248/4/RAFAELA_CHIAPIN_PECHANSKY_DIS.pdf
Como sair das bolhas Pollyana Ferrari Livro - EDUC 2018 https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr =&id=KSZaDwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT6&dq =alteridade+%22redes+sociais%22+aplicativos+ relacionamento+tinder&ots=kaZpqOpcqj&sig=3 tuqolFRTZXD7BGKKwoCVuk0Fck#v=onepage&q&f=false
O paradigma da complexidade e a ética informacional João Antonio de Moraes UNICAMP 2018 http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP /331240/1/Moraes_JoaoAntonioDe_D.pdf
Ver e ser visto: implicações das relações contemporâneo-virtuais no laço social Maria Cristina Brendler Uhde Universidade Regional do Noroeste do RS (UNIJUÍ) 2017 http://bibliodigital.unijui.edu.br:8080/xmlui/ bitstream/handle/123456789/4854/Maria%20 Cristina%20Brendler%20Uhde.pdf?sequence=1

O recurso Dating lançado pelo Facebook oferece ferramentas diferentes de outros aplicativos de relacionamento, por estar sob mesmo domínio, conectando à rede de amigos e a eventos. Como outros programas que envolvem em seu objetivo o encontro de parceiros para relações afetivas, os perfis dos usuários estão sujeitos a representarem a imagem que o usuário deseja para manter sua reputação almejada, mais que condizer com a realidade vivida, pois expõem a si mesmos através de relatos do que percebem como verdade própria.

Na série Black Mirror, polêmica por trazer para o debate aspectos da vida cotidiana e suas modificações, por causa do impacto da tecnologia em diversas relações sociais, o primeiro episódio da terceira temporada, chamado Nosedive, traduzido para Queda Livre no Netflix brasileiro, chama atenção e se conecta perfeitamente com a problemática do Facebook Dating em relação à perda da alteridade. É a história de uma personagem sedenta por aprovação social, almejando aumentar sua popularidade e forçando-se a produzir relatos de si própria com base na expectativa dos outros, mesmo que não representassem a realidade. É o retrato de pessoas relacionando-se com si próprias e suas projeções estéticas, produzindo o conteúdo que é esperado por sua audiência. A moralidade de pertencer aos padrões sociais ganha relevância, criando círculos que prejulgam os outros por um ranking de visibilidades, abafando o calor das múltiplas vozes que teriam lugar na internet e, em especial, nas redes sociais digitais, se externalizassem a personalidade individual de seus usuários.

Esta produção possui caráter ensaístico, em que pretende-se discorrer sobre a hipótese da perda da alteridade em grandes plataformas de relacionamento afetivo que interferem na livre comunicação da rede, quando julga entender o que é relevante para cada pessoa, afastando o diferente e tendendo a sempre aproximar o semelhante, simplificando as relações, afastando complexidades da vida fora das redes.

Contexto da tecnologia aplicada para comunicação digital

Entender como as redes sociais digitais se desenvolvem na sociedade contemporânea e os desdobramentos que esse tipo de mídia causa são importantes a partir da colocação de que a mídia tem o poder de trazer novos paradigmas para a sociedade contemporânea. Ao analisar as mídias tradicionais, Canclini (2016) interpreta que são componentes que executam “operações de reconceitualização e metaforização que realiza em conexão com outros campos da vida social” (CANCLINI, 2016, p. 74). O uso de novas tecnologias da inteligência, ou seja, tecnologias que mediam encontros entre pessoas que desejam se comunicar em rede, colabora para o ambiente complexo atual que equilibra informações locais a globais, apagando os limiares entre vida pública e privada, abrindo um lugar de fala maior para cidadãos comuns. Vivencia-se assim a computação pervasiva, que está em todos os lugares, tornando-nos ubíquos, ainda, pois trata-se de uma computação que nos coloca em existência na rede ao mesmo tempo em que existimos fisicamente, compondo o ciberespaço informacional que nos envolve e enreda, diariamente.

De acordo com Lucia Santaella (2013), quando discute a ubiquidade das imagens digitais e a inserção da tecnologia no cotidiano, “a disponibilidade e expansão dos acessos à internet, potencializados pela portabilidade conectada, disseminada por toda parte, concede ao ser humano o atributo da ubiquidade, algo que antes lhe parecia impossível” (2013, p. 128). A participação de agentes nas redes sociais digitais evidencia a mudança do consumo de mídia, que antes era de mão única, vindo dos grandes centros de comunicação para o público, e que agora promove a mão dupla, em que pode-se de fato abrir uma conversação em rede entre agentes de diferentes esferas, contemplando usuários comuns, empresas e instituições, no mesmo ciberespaço, comungando de regras específicas de interação que são colocadas pelas plataformas, representando o lugar que promove esse tipo de comunicação.

A ubiquidade de uma pessoa, agora interconectada em rede, reorganiza o corpo físico, criando um corpo social, em que “ao mesmo tempo, enquanto o corpo deixaria de ser o ancoradouro real da vida, organiza-se um universo descorporificado, dessensualizado, desrealizado: o das telas e dos contatos digitalizados” (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 45). Essa nova condição de existência, que liga as pessoas a um conjunto de telas organizadas em rede, estende a participação no mundo e altera atos de suas vidas cotidianas, bem como o convívio na escola e no lazer.

Um exemplo dessa consequência é a difusão de aplicativos de relacionamento, que prometem auxiliar pessoas a arranjarem pares românticos através da inteligência de dados que possuem, avaliando preferências individuais e vasculhando suas plataformas atrás de pessoas com semelhantes gostos e predileções, para formar casais perfeitos. É o caso de programas como o Tinder, o Happn e o Grindr, criados especificamente para esse fim. Por meio de geolocalização, likes mútuos e afinidade definida por preferências profissionais e de lazer de um usuário, esses aplicativos conectam usuários e incentivam a conversação para que, possivelmente, essas pessoas se relacionem fora da rede, marcando encontros pessoalmente. A universidade não está apartada desse cenário de telas, pelo contrário, ela compete pela atenção dos alunos, muitas vezes dispersos em plataformas de relacionamento ou entretenimento. Para Friedman (2017, p.182), a velocidade com que o fluxo digital de informações e ideias circulam pela rede contribui para as rápidas mudanças de opinião pública, pontos de vista e tradições que antes pareciam sólidas. Em São Paulo, desde 2017, o uso de celulares é permitido em toda a rede estadual de ensino durante o horário das aulas4. Para Semprini (2006, p. 61) “o individualismo é uma nova maneira de viver o vínculo social” e o enaltecimento do entretenimento modificaram as relações sociais líquidas e o convívio na escola.

Um dos recursos recém disponibilizados pelo Facebook para os usuários do Brasil é o Facebook Dating, acessível no mesmo local nativo da rede social, via dispositivos móveis, que promete fazer o papel dos aplicativos citados acima, com algumas melhorias, por estar atrelado ao banco de dados do próprio Facebook, detentor de uma enorme fatia de fluxos digitais que acontecem em redes sociais digitais, por mesclar informações em complexo big data, que reúne tudo o que é produzido também nas redes Instagram, WhatsApp e Messenger.

Sobre o Facebook Dating: apresentando funções e desdobramentos

No final de abril de 20195, a Facebook Inc. realizou uma conferência para seus desenvolvedores, chamada F8, em San Francisco, na Califórnia, nos Estados Unidos, e anunciou a extensão da disponibilização de uso do Facebook Dating, recurso tecnológico que visa unir usuários em relacionamentos afetivos, que antes estava acessível para usuários de cinco países, em fase de teste (Colômbia, Tailândia, Argentina, México e Canadá) e, que a partir de maio, foi viabilizado aos usuários de outros países, incluindo o Brasil.

Trata-se de um recurso exclusivo para dispositivos móveis, desenvolvido para os sistemas operacionais Android e iOS, por enquanto. Surgiu a partir de uma análise de dados que reparou em uma fatia considerável de usuários do Facebook que declaram seu status de relacionamento como solteiro(a), representando mais de 200 milhões de pessoas, cerca de 13% de todos os usuários da rede social.

Fonte: Screenshots feitos pelo perfil da autora, em 07/05/2019.

Figura 1 Interface inicial do recurso dentro do Facebook 

Com interface que segue os padrões da plataforma já existente, o Facebook Dating localiza-se no menu principal do aplicativo, na barra lateral que lista seções disponíveis. Esse é o primeiro diferencial exposto pela empresa - não é preciso sair de um aplicativo de rede social e iniciar uma seção em outro, como é o caso do Tinder, Happn e Grindr, que são individuais e não são nativos de outras redes. O Facebook Dating está sob os domínios do Facebook, rede social de uso diário já costumeiro para 1,5 bilhões de pessoas. Como parte do discurso de divulgação do recurso, tem-se a promessa de promover encontros em que os usuários achem relacionamentos significativos, fugindo de encontros casuais e passageiros. O foco está em pessoas e em como elas se expressam na rede social, rastreando o banco de dados, procura semelhantes, em que o próprio programa sugere opções para que se inicie uma conversa. Para evitar inconvenientes de assédio sexual ou envio ofensivo de imagens, o chat criado para o Dating só permite o envio de textos, proibindo imagens ou vídeos, inicialmente.

Um ponto relevante de complexidade, acrescido à equação de conversação (além de estarmos mediados por tecnologia e sujeitos às regras da plataforma que sedia as interações), é de que a plataforma sugerirá pessoas que se relacionariam bem com outras de acordo com relatos pessoais que elas fazem de si mesmas, projetando informações que entendem como agradáveis, mas que não necessariamente condizem com a realidade em que vivem, podendo muitas vezes ser autoverdades. Conforme pontua Guattari (2012), o relato se apresenta de forma diferente de uma informação qualquer, pois ele sofre influência da pessoa que o comunica, por interesses diversos que se tem em proferi-lo, “ele o incorpora na própria vida daquele que conta, para comunicá-lo como sua própria experiência àquele que escuta. Dessa maneira o narrador nele deixa seu traço, como a mão do artesão no vaso de argila” (GUATTARI, p. 53, 2012).

A fim de criar uma reputação desejada nas redes sociais, os usuários selecionam quais tipos de dados serão vantajosos de serem visualizados por outros, criando representações de si mesmos, na tentativa de controlarem impressões de valor que desejam atribuir a sua imagem. Dessa forma, esses perfis são cuidadosamente construídos, “para gerar uma percepção em uma audiência imaginada. Essas impressões são negociadas com a rede social, que legitima ou não essa face através da conversação” (RECUERO, 2014, p. 161). Isso demonstra que a fonte de dados que o aplicativo obtém para trabalhar sobre semelhantes apresenta brechas, pois é elaborada em cima do “parecer ser” que cada usuário pretende mostrar.

Automaticamente, o aplicativo só importa dados de nome e idade. Demais informações são colocadas no Facebook Dating pelo usuário em seu próprio perfil. Com a premissa de criar um ambiente natural para conversação, ao contrário do Tinder, por exemplo, em que é necessário que ambos usuários se validem através de um mútuo like, o chat é aberto para que uma pessoa converse com qualquer outra, como uma aproximação física normal, em que não se pede autorização para se conversar com alguém, apenas inicia-se um bate papo.

Os usuários se colocam na rede através de imagens que selecionam para capa de perfil e álbum de fotos, comportando-se como marcas, em função da visibilidade midiática. Conforme Lipovestky e Serroy pontuam sobre o capitalismo artista e a estetização do mundo:

[...] Estamos no hiperespetáculo quando, em vez de ‘suportar’ passivamente os programas midiáticos, os indivíduos fabricam e difundem em massa imagens, pensam em função da imagem, se expressam e dirigem um olhar reflexivo para o mundo das imagens, agem e se mostram em função da imagem de si que querem ver projetada (LIPOVETSKY e SERROY, 2015, p. 267).

Mais um fator que diferencia o Dating de outros aplicativos, também em razão de compartilhar o mesmo espaço da rede social maior, o Facebook, é a possibilidade de conhecer uma pessoa que estará com você em um evento criado por amigos, antes mesmo que ele aconteça. Caso os usuários confirmem presença em um evento via Facebook, e ambos estejam ativos no recurso Dating, a plataforma os avisará e sugerirá uma prévia conversa, para que possam interagir em um chat, chegando ao dia do evento (em um encontro físico) já se conhecendo digitalmente. Trabalhos como o de Pariser (2012) sobre o efeito sistêmico de algoritmos de inteligência artificial (IA), utilizados por empresas como Google e Facebook, que, intencionalmente ou não, acabam gerando uma espécie de filtro de conteúdo que nos expõe mais às coisas que ele (o algoritmo) entende como de nossa preferência, limitando o resto.

Ambiente on-line e off-line estão intensamente imbricados, formando um único ambiente, híbrido, que reúne dados para uma mesma dimensão de realidade. A materialidade do corpo não se separa mais das extensões e mediações que as interfaces tecnológicas promovem, “como extensões intensificadoras e amplificadoras do potencial natural dos sentidos e da mente” (SANTAELLA, 2013, p. 65). Por ter um uso estritamente móvel, via celulares e tablets smarts, a precisão de geolocalização do usuário é demandada, para aqueles usuários que habilitam esse acesso de dados do Facebook, durante o uso do aplicativo em seu dispositivo, conforme imagem abaixo:

Fonte: Screenshots feitos pelo perfil da autora, em 07/05/2019.

Figura 2 Configurações de privacidade e de permissão para acesso à localização 

O programa seleciona opções que estejam em um raio de até 100km do usuário, facilitando a possibilidade de um encontro físico posterior, mas não limitando as opções essencialmente pela distância física, como é o caso do Happn, que conecta pessoas que estão muito próximas umas das outras, para um encontro mais imediato. Por medida de privacidade e segurança, só estarão com perfil ativo no Dating aqueles usuários do Facebook que entrarem nessa seção e criarem um segundo perfil, dedicado a essa funcionalidade. Mas para usar o Dating, é preciso usar o Facebook.

Uma chave curiosa para gerenciar esses dois perfis de uma mesma pessoa na plataforma criada pelo Facebook é a exclusão de pessoas que são amigos na rede social do rol de opções de pessoas potenciais para um relacionamento com um determinado usuário, evitando inconvenientes de alguém ser exposto a um amigo como opção, bem como um ente familiar ou um ex-namorado, por exemplo. Isso ajuda na discrição da criação do perfil, quando o usuário quiser manter sigilo sobre essa atividade.

Frente à inteligência de dados do Facebook, as informações de um usuário estão cada vez mais expostas e interconectadas, permitindo que o programa faça inferências com precisão sobre gostos, predileções e opções pessoais, comparando estímulos que recebeu ao longo da jornada do usuário na plataforma, através do reconhecimento de padrões de uso. Como pontua Byung-Chul Han (2018), na sociedade em que vivemos, chamada por ele de uma sociedade expositiva, de transparência completa, “cada sujeito é seu próprio objeto-propaganda; tudo se mensura em seu valor expositivo. A sociedade exposta é uma sociedade pornográfica; tudo está voltado para fora, desvelado, despido, desnudo, exposto” (HAN, 2018, p. 246-247).

Quando se refere a uma sociedade pornográfica, o autor afirma que expomos muito de nossas vidas na atualidade, formando um ambiente em que as imagens vêm com o objetivo de escancarar suas mensagens, promovendo obscenidade, por não preservar um pouco de sua essência em mistério, que geraria sedução e curiosidade. É pela alta exposição de nossas preferências que a rede social consegue, em tese, ofertar as opções mais relevantes para escolhermos dentre um bombardeio de ofertas que a plataforma agrega, seja de produtos, de informação, de propaganda ou, agora, até mesmo de possíveis parceiros amorosos.

O artifício da relevância, lógica que estuda os dados dos usuários para ofertar conteúdos mais precisos em retorno, pode ser justificada quando se dá importância para o tempo e atenção que os usuários disponibilizam para comunicação digital. A conexão em rede, na medida em que aumenta nosso alcance às informações, também enfraquece nossas relações pelo volume de impulsos a que somos expostos. Sobre essa relação paradoxal que enfrentamos, entre ganharmos voz nas mídias sociais digitais, mas termos dificuldade em sermos ouvidos na real potencialidade de audiência que a rede nos daria, Martha Gabriel pontua sobre a importância de novos filtros que podem diminuir nossa sobrecarga informacional cognitiva:

Se pensarmos na sociedade conectada, ao mesmo tempo em que um indivíduo ganha voz, por meio das mídias sociais, todos os outros indivíduos do planeta também ganham o mesmo poder. Assim, fica cada vez mais difícil ser “ouvido”, pois o poder de falar se dilui mais entre todos. Por isso, paradoxalmente, a tecnologia que distribuiu o poder é a mesma que o dilui. Em função disso, vemos novamente o surgimento de estruturas centralizadoras de poder, novos filtros, que se caracterizam pelas estratégias de influenciadores. A mídia de massa passou a dividir inicialmente o domínio dos fluxos de informação com todos (GABRIEL, 2018, p. 726-730).

Enquanto teríamos acesso a uma infinidade de informações, entre textos, imagens e vídeos nas redes sociais digitais, alimentando anseios mais primitivos de desejarmos ter várias opções para escolher o que consumir, não nos é agradável a atitude da escolha, gerando angústia de estarmos perdendo algo, caracterizada na atualidade pela sigla FOMO (Fear Of Missing Out). A customização de conteúdo, de acordo com as preferências do usuário, torna-se bem-vinda, pois o programa decide sobre nossas escolhas, reduzindo opções, transpassando somente as mais relevantes, as que tem mais potencial de serem assertivas, hipoteticamente.

Além de comprovar o quanto as plataformas sabem sobre seus usuários, uma consequência negativa desses filtros de relevância aplicados é a neutralização de diferenciações entre as pessoas, afastando a diferença e aproximando somente os usuários semelhantes, o que contraria o conceito de multidão, defendido por Hardt e Negri (2014), como característico da sociedade atual, em que o todo social é composto por multiplicidades que coexistem de forma mais ou menos harmônica, dependendo do contexto em que inserem. Para eles, ao encarar a sociedade contemporânea vemos a multidão, que “é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única. [...] é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares” (HARDT e NEGRI, 2014, p. 12).

Caso não tivéssemos a interferência dos filtros de relevância, que agem arbitrariamente sobre o movimento mais orgânico da rede, em que a plataforma ativamente interfere no comportamento e nas conexões entre pessoas, possivelmente saberíamos lidar com a alteridade, fugindo de bolhas formadas por pessoas de mesma opinião. As redes sociais digitais seriam, para os autores, nesse ambiente neutro hipotético, uma boa imagem de base para o modelo de multidão, pois “os vários pontos nodais se mantêm diferentes mas estão todos conectados na rede, e além disso as fronteiras externas da rede são de tal forma abertas que novos pontos nodais e novas relações podem estar sendo constantemente acrescentadas” (HARDT e NEGRI, 2014, p. 14).

Com a manipulação que o Facebook faz sobre as conexões que se dão em sua base, tendo como motivo também a usabilidade cada vez mais agradável aos seus usuários, quando julga que a relevância pode auxiliar na retenção de presença em um ambiente com menos atrito entre usuários, cria-se um ambiente transparente, em que a alteridade é neutralizada. Reiterando essa constatação, Byung-Chul Han (2018) afirma que:

As mídias sociais e sites de busca constroem um espaço de proximidade absoluto onde se elimina o fora. Ali encontra-se apenas o si mesmo e os que são iguais; já não há mais negatividade, que possibilitaria alguma modificação. Essa proximidade digital presenteia o participante com aqueles setores do mundo que lhe agradam. Com isso, ela derriba o caráter público, a consciência pública; sim, a consciência crítica, privatizando o mundo. A rede se transforma em esfera íntima ou zona de conforto. A proximidade pela qual se elimina a distância também é uma forma de expressão da transparência (HAN, 2018, p. 731-734).

Outra vertente do Facebook Dating, consolidando a importância do filtro de relevância na busca por semelhantes, é a função Crush Secreto, que abre espaço para que o usuário selecione até nove amigos de sua rede no Facebook que ele teria interesse em se relacionar amorosamente. Caso uma dessas pessoas também o coloque em sua lista especial, os dois receberão um aviso e poderão conversar sobre essa eleição assíncrona, colocada em visibilidade graças à plataforma.

Quando o Facebook decide integrar mais uma funcionalidade a sua plataforma, fica clara a estratégia de desejar ser o centro da atenção digital de seus usuários, abrigando em seu domínio o chat, através do Messenger, o conteúdo fixo pessoal, dado no feed com as pessoas que são conexões entre si, o conteúdo efêmero, através dos stories que aparecem na testeira inicial do feed, e agora o Dating, como seção de encontro de pessoas para relacionamentos afetivos. Há uma tendência de convergir o que mais se procura em outras redes sociais, em uma só, visando ser o centro da atenção de um usuário. Sobre a convergência de mídias, Jenkins (2009) ressalta que ela “está ocorrendo dentro dos mesmos aparelhos, dentro das mesmas franquias, dentro das mesmas empresas, dentro do cérebro do consumidor e dentro dos mesmos grupos de fãs. A convergência envolve uma transformação tanto na forma de produzir quanto na forma de consumir os meios de comunicação” (JENKINS, 2009, p. 44).

Na medida em que a plataforma é de acesso gratuito aos seus usuários, a fonte financeira do Facebook, assim como de outras redes sociais, está em empresas que investem em publicidade e conteúdo na rede, a fim de atingir públicos potenciais para converter comercialmente em transações para seu negócio. Nessa relação estabelecida, “o grande produto comercializado nas redes sociais é a imagem pública do internauta como consumidor, que também se comporta como marca. A “realidade” percebida nas redes sociais é um jogo de espelhos” (AVELAR, 2015, p. 44).

Essa é uma das complicações que caem sobre nós por causa dos impactos do big data, pois torna os usuários das redes em mercadorias, uma vez que a plataforma vende seus dados, para serem manipulados sob seu domínio, pelas empresas interessadas em injetar capital em seu negócio.

Resultados

De todos os desdobramentos levantados, sobre a inserção que o Facebook Dating pode causar socialmente, a principal estratégia realçada é a de filtros de relevância, que parece responder à pergunta sobre “como ser audível em um mundo cacofônico?” (CANCLINI, 2016, p. 176). A tecnologia, indiscutivelmente, alterou as noções pré-concebidas sobre tempo e espaço, expandindo a atuação de pessoas em lugares antes inalcançáveis, através da comunicação digital em rede, colaborando para a construção de um ambiente híbrido e com potencial aparentemente sem limites.

Refletindo sobre a abertura do mercado global, valorizando a produção local de cada região, mas ampliando suas potencialidades de acesso mundialmente, em que evoluímos “de um mercado de massa para uma nova forma de cultura de nicho, que se define agora não pela geografia, mas pelos pontos em comum” (ANDERSON, 2006, p. 39), percebe-se que enquanto a tecnologia diminuiu limitações territoriais que antes eram decisivas para a expansão de uma comunicação ubíqua, ela também sofre interferências de grandes plataformas de comunicação, como é o caso das redes sociais digitais, que filtram o que será acessível aos consumidores, dentro de suas plataformas.

Caso considerássemos na íntegra o aspecto de organização social evidenciado por Hardt e Negri (2014) sobre multidão, a alteridade se faria muito presente, até pela abertura na forma de nos comunicarmos promovida pelas tecnologias sociais, em que “o consumo de mídia, antes de via única, ou seja, com pouquíssima interferência dos leitores/telespectadores, que apenas recebiam a informação, transforma-se com a ativa participação dos usuários por meio da produção de conteúdos e colaboração” (SILVA, 2016, p. 183-185).

Considerações finais

O artigo buscou abarcar o lançamento do recurso tecnológico Facebook Dating, dentro da plataforma do Facebook, discutindo a ideia de exposição da própria imagem, a fim de propor Recursos Educacionais Abertos (REA) - que são “materiais de ensino, aprendizado e pesquisa em qualquer suporte ou mídia”, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) - para serem problematizados em sala de aula durante conversas sobre educação midiática.

Em contrapartida à ideia de uma multidão, é preciso ter em vista a potencialidade da interferência que a plataforma pratica sobre as relações que acontecem em seu domínio, agindo os interagentes de acordo com o que detém de informações sobre eles, aplicando um critério de relevância, que customiza os conteúdos a que terão acesso, elevando o nível de interferência na vida humana, em que é possível limitar, inclusive, o contato que seus usuários terão com outros em relações afetivas, quando é buscada para esse fim, como é o caso do Facebook Dating. O condicionamento dessas informações pessoais dos usuários afasta a alteridade e reitera a formação de bolhas, pois o Facebook Dating interfere nas relações permitidas a acontecerem, deixando apenas uma parcela de responsabilidade de escolha em livre arbítrio para os usuários.

Dessa forma, há uma tendência de que somente semelhantes se relacionarão, viciosamente, neutralizando as diferenças de uma sociedade pautada pela multiplicidade, pela multidão. Essa realidade passa a ser achatada e simplificada, em uma condensação estratégica para minimizar conflitos na rede, promovendo um ambiente forçosamente agradável aos interagentes, em uma mecânica manipulada promovida pelo Facebook.

Referências

ANDERSON, C. A cauda longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. Rio de Janeiro: Elsevier Alta Books, 2006. [ Links ]

AVELAR, J. et al (org). Design digital e novas mídias. São Paulo: Editora Reflexão, 2015. [ Links ]

CANCLINI, N. G. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. 1ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016. [ Links ]

FRIEDMAN, T. L. Obrigado pelo atraso: um guia otimista para sobreviver em um mundo cada vez mais veloz. Trad. Claudio Figueiredo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017. [ Links ]

GABRIEL, M. Você, eu e os robôs: pequeno manual do mundo digital. São Paulo: Atlas, 2018. [ Links ]

GUATTARI, F. As três ecologias. Trad. Maria Cristina Bittencourt. 21ª edição. Campinas: Papirus, 2012. [ Links ]

JENKINS, H. Cultura da convergência. Trad. Susana L. de Alexandria. 2ª ed. São Paulo: Aleph, 2009. [ Links ]

LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Trad. Maria Lúcia Machado. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. [ Links ]

LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. [ Links ]

HAN, B. C. A Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2018. [ Links ]

HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na era do império. Trad. Clóvis Marques. 4ªed. Rio de Janeiro: Record, 2014. [ Links ]

PARISER, E. O filtro invisível: O que a internet está escondendo de você. São Paulo: Zahar, 2012. [ Links ]

RECUERO, R. A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e redes sociais na Internet. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2014. [ Links ]

SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013. [ Links ]

SEMPRINI, A. A marca pós-moderna: poder e fragilidade da marca na sociedade contemporânea. Trad. Elisabeth Leone. 2ª ed. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2006. [ Links ]

SILVA, T. T. Ativismo digital e imagem: estratégias de engajamento e mobilização em rede. Jundiaí: Paco e Littera, 2016. [ Links ]

3Disponível em: <https://www.statista.com/statistics/346167/facebook-global-dau/>. Acesso em 07 mai. 2019.

4O uso de celulares em escolas estaduais do Estado de São Paulo era proibido pela Lei 12.730/2007 até outubro de 2017, quando a Assembleia Legislativa aprovou o projeto de lei que permitiu a sua alteração, sancionada pelo governador Geraldo Alckmin em 06 de novembro do mesmo ano.

5Disponível em: < https://www.adweek.com/digital/facebooks-f8-2019-14-more-countries-just-got-facebook-dating/>. Acesso em 08 mai. 2019.

Recebido: 09 de Agosto de 2019; Aceito: 22 de Agosto de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons