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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.19 no.63 Curitiba oct./dic 2019  Epub 30-Ene-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.19.063.ds01 

Dossiê

Hildegard de Bingen: uma intelectual diante da religião - conhecimento e política

Hildegard of Bingen: An Intellectual in the Face of Religion - Knowledge and Politics

Hildegard de Bingen: un intellectual delante de la religion - conocimiento y politica

a Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, Brasil. Doutora em História, e-mail: teleoliv@gmail.com


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar a figura feminina de uma das personagens mais importantes do conhecimento ocidental cristão no século XII, Hildegard de Bingen (1098-1179). Monja beneditina, autora de muitas obras de cunho “científico”, moral e religioso e de muitas cartas, das quais mais de uma centena foi preservada. Além disso, compôs partituras musicais. Assim, por meio de seus escritos, evidenciaremos que, mesmo de dentro do mosteiro, essa personagem estabeleceu relações com pessoas muito influentes do seu tempo, o que nos permite afiançar que suas ideias circularam e interferiram na sociedade do seu tempo. As fontes do nosso estudo são o livro Scivia e uma de suas Cartas, dirigida ao abade Bernardo de Claraval (1090-1153). Nossas reflexões buscarão explicitar, por meio de uma abordagem histórica de “longa duração”, que os seus escritos nos permitirão um duplo caminho. De um lado, recuperar a memória de escritos femininos - obras de Hildegard - nos permite afirmar que a figura feminina esteve presente e atuante, como autora e intelectual, na sociedade medieval cristã do século XII e, portanto, a mulher ocupa lugar na história desde há séculos. De outro, trazer o debates sobre uma fonte feminina cristã medieval, pode contribuir com a construção de novos olhares para o campo da história da educação brasileira.

Palavras-chave: Imagem feminina; Intelectual; Religiosidade cristã; História da educação medieval

Abstract

The purpose of this article is to analyze the female figure of one of the most important characters of Western Christian knowledge in the twelfth century, Hildegard of Bingen (1090-1179). Benedictine nun, author of many works of "scientific", moral and religious nature and of many letters, of which more than a hundred was preserved. In addition, she composed musical scores. Therefore, through her writings, we will show that even from within the monastery, this character established relationships with very influential people of her time, allowing us to assure that her ideas circulated and interfered with the society of her time.The sources of our study are the book Scivia and one of her Letters, addressed to Abbot Bernard of Clairvaux (1090-1153). Our reflections will seek to make explicit, through a historical “long-term” approach, that her writings will allow us to follow a double path. On the one hand, recovering the memory of feminine writings - Hildegard's works - allows us to affirm that the feminine figure was present and active, as author and intellectual, in the 12th century Christian medieval society and, therefore, woman occupies a place in history for centuries. On the other hand, bringing debates about a medieval Christian feminine source can contribute to the construction of new perspectives, in Brazil, for the field of the history of education.

Keywords: Feminine figure; Intellectual; Christian religiosity; History of Medieval Education

Resumen

El propósito de este artículo es analisar la figura femenina de uno de los personajes más importantes del conocimiento Cristiano occidental, Hildegard de Bingen (1090-1179). Monja benedictina, autora de muchas obras de carácter “científico”, moral y religioso y de muchas letras, de las cuales se conservaron más de cien. Además, compuso partituras. Mostraremos que, incluso, desde el interior del monastério, este personaje estabeleció relaciones con persones muy influyentes de su tempo, lo que nos permite assegurar que sus ideas circularan e interfirieran con la sociedad de su tempo. Las fuentes de nuestro estúdio son el livro Scivia y uma de sus cartas, dirigida al abad Bernardo de Claraval (1090-1153). Nuestras reflexiones buscarán hacer explícito, através de un enfoque histórico “a largo plazo”, que sus escritos nos permitirán um doble caminho. Por um lado, recuperar la memoria de los escritos femininos - las obras de Hildegard - nos permite afirmar que la figura feminina estuvo presente y activa, como autora e intelectual, en la sociedad Cristiana del siglo XII y, por lo tanto, la mujer ocupa un lugar en la historia desde por siglos. Por otro lado, traer debates sobre una fuente feminina Cristiana puede contribuir a la construcción de nuevas perspectivas para el campo de la historia de la educación brasileña.

Palabras clave: Imagen femenina; Intelectual; Religiosidad cristiana; Historia de la educación medieval

Introdução

Uma das questões que mais nos chama a atenção, positivamente, nos dias que correm, é o lugar que a figura feminina ocupa na sociedade contemporânea, pois os índices apontam para a presença da mulher na universidade, em múltiplos setores do mercado de trabalho, na docência, na pesquisa, enfim, nos mais diversos lugares/postos, a mulher está presente e atuante e, na maioria das vezes, em proporção numérica bem maior que a masculina. Nesse cenário, temos sempre em mente a ideia de que esse destaque ou “lugar ao sol” da mulher é uma conquista obtida a partir da Segunda Guerra Mundial ou mesmo em decorrência do movimento conhecido como Bra-Burning1, ocorrido em setembro de 1968, na cidade de Atlantic City. Esses dois acontecimentos teriam definido, fortemente, a situação da mulher na sociedade ocidental a partir do século XX. Esses movimentos foram, inquestionavelmente, decisivos para dar à mulher, em geral, um lugar social de destaque e, certamente, esse é um acontecimento do nosso tempo presente. Todavia, não podemos ignorar que a figura feminina já ocupara lugar social na história desde a antiguidade ou mesmo na sociedade pré-arcaica.

Assim, em virtude dessa tradição histórica da figura feminina na sociedade, é que trazemos, para nossas reflexões, uma das personagens femininas mais expressivas do Ocidente, no século XII, a monja Hildegard de Bingen (1098-1179), também conhecida como a Sibila do Reno. Nosso objetivo é recuperar a memória dessa monja para explicitar a relevância da figura feminina no medievo.

Hildegard foi uma monja beneditina que esteve envolvida em inúmeras atividades relacionadas à religião, à cultura, à ciência e à política. Essa personagem foi considerada uma das mulheres mais cultas e influentes do seu século, mas, segundo seus escritos, todo o seu conhecimento sobre a natureza, sobre os homens e sobre Deus seriam oriundos de suas visões2.

Essa monja nos deixou vários escritos e partituras musicais (GONÇALVES-VIDIGAL; OLIVEIRA, 2013), sendo, inclusive, considerada a primeira musicista da Igreja Católica no Ocidente medieval, mas, dentre o conjunto de seus textos, destacam-se três importantes livros. O primeiro intitula-se Scivia3 e foi escrito provavelmente a partir de 1155, uma vez que a própria Hildegard observa que principiou a escrever a partir dos 43 anos. O segundo livro, intitulado O livro dos méritos da vida, e o terceiro, O livro das obras divinas, foram escritos entre 1158 e 1163 (PERNOUD, 1996).

Ainda sobre a produção hildegardiana, Newman (2015) observa que:

Embora não tenha começado a escrever senão a partir dos 43 anos, Hildegard foi autora de uma compacta trilogia que combina doutrina e ética cristãs com cosmologia; uma enciclopédia resumida de medicina e de ciência natural; uma correspondência que compreende diversas centenas de cartas a pessoas de todos os níveis sociais; duas vidas de santos; inúmeros escritos ocasionais; e, especialmente, uma requintada coleção de músicas que inclui setenta canções litúrgicas e o primeiro drama alegórico de fundo moral conhecido (NEWMAN, 2015, p. 21).

A passagem nos indica que Hildegard deixou-nos muitos escritos e tratou de questões muito variadas, o que revela uma profunda erudição, portanto, estamos nos referindo a uma figura feminina que, certamente, influenciou o seu tempo e, embora seja bastante conhecida na Europa e na Argentina exista um grupo de pesquisa consolidado sobre essa monja beneditina, ela é praticamente desconhecida entre a comunidade científica brasileira, em especial no âmbito da história da educação.

Assim, consideramos que nossas reflexões acerca dessa personagem tragam contribuições para o campo da educação, mas, acima de tudo, possibilitam que consideremos a mulher na Idade Média sob uma nova perspectiva, a de que ocupava lugares importantes na sociedade, inclusive a de ser formadora de pessoas. Para além disso, podem, também, possibilitar que pensemos a mulher sob uma perspectiva de longa duração, a qual ultrapassa o século XX e XXI.

Algumas palavras sobre o tempo e a formação de Hildegard de Bingen.

Hildegard viveu uma das épocas mais efervescente do medievo ocidental. Ela nasceu um ano antes do fim da Primeira Cruzada (1096-1099), movimento que atingiu e alterou, profundamente, as relações sociais feudais e cristãs, pois teria sido um dos maiores deslocamentos de pessoas desde as invasões bárbaras do final do Império Romano no Ocidente (HEERS, 1995). Também vivenciou a Segunda Cruzada (1147-1150) (DEMURGER, 1998), tendo, inclusive, tido visões sobre esse movimento.

Foi contemporânea de três dos maiores intelectuais do século XII, Pedro Abelardo (1079-1142), Hugo de Saint-Victor (1096-1141) e Bernardo de Claraval (1090-1153), sendo que com o terceiro teve, seguramente, uma grande amizade. Essa afeição ficou registrada nas inúmeras cartas trocadas entre eles (HILDEGARD OF BINGEN, 1998). Ela recorria a Bernardo de Claraval para solicitar conselhos sobre a vida e suas visões, conforme é evidenciado na Carta de n. 01, na compilação de suas cartas editadas sob o título The letters of Hildegard of Bingen:

Peço-lhe, em nome do Deus Vivo, que dê ouvidos às minhas perguntas. Pai, estou muito perturbada por uma visão que me apareceu através da revelação divina, uma visão vista não com meus olhos carnais, mas apenas em meu espírito. Miserável, e de fato mais do que miserável em minha condição de mulher, desde a infância vi grandes maravilhas que minha língua não tem poder de expressar, mas que o Espírito de Deus me ensinou que eu possa acreditar. Pai firme e gentil, em sua bondade responde a mim, sua serva indigna, que nunca, desde a mais tenra infância, viveu uma hora livre de ansiedade (HILDEGARD OF BINGEN, 1998, p, 27, tradução nossa)4.

Esse excerto da carta já nos dá indícios do respeito que a monja nutria por Bernardo de Claraval, o chama de “pai” e revela a ele a sua dupla angústia: pelas suas visões e por ser mulher. Na verdade as duas angústias estão atreladas à mesma circunstância: a de conhecer e perceber o que estava acontecendo na sociedade, dado que o fato de ser mulher letrada não lhe dava a mesma condição que tinham os homens enquanto “eruditos”. Ainda acerca dessa passagem é importante destacar que, desde os três anos, as visões de Hildegard eram, segundo ela, a origem de seu conhecimento. Por isso, afirmava que desde a “tenra infância” sofria a “ansiedade” oriunda do conhecimento.

Em outro momento da mesma carta, Hildegard enfatiza:

Eu procuro consolo em você, para ter certeza. Mais de dois anos atrás, de fato, eu vi você em uma visão, como um homem olhando diretamente para o sol, ousado e sem medo. E chorei, porque sou tímida e medrosa. Pai bom e gentil, fui colocada sob seus cuidados para que que você possa me revelar, por meio de nossa correspondência, se devo falar abertamente ou manter silêncio, porque tenho uma grande ansiedade por essa visão em relação ao quanto devo falar sobre aquilo que eu vi ou ouvi. (HILDEGARD OF BINGEN, 1998, p, 28, tradução nossa)5.

Mais uma vez, consideramos significativo o diálogo que Hildegard trava com Bernardo de Claraval. Ela o elege como conselheiro não somente por respeitá-lo, mas porque o considerava uma pessoa corajosa e iluminada, portanto, capaz de orientá-la na decisão de divulgar ou não o que ela conhecia. A monja não tinha clareza se deveria falar sobre esse conhecimento.

É importante esclarecer, neste texto, que, para os homens de saber (VERGER, 1999) ou o intelectual (LE GOFF, 2010; OLIVEIRA; SANTIN; MENDES, 2016) no medievo, os cinco sentidos humanos não asseguravam a capacidade intelectiva do conhecimento, uma vez que esses sentidos eram comuns aos homens e aos outros animais. Desse modo, o que daria ao homem a sua competência de compreensão/interpretação e sabedoria seria a sua capacidade interior que, em Hildegard, é denominada de alma, mas que em Hugo de Saint-Victor (1096-1141), no século XII, e em Tomás de Aquino (1124/25-1274), no século XIII, seria entendido como intelecto. Assim, as visões de Hildegard resultariam da sua capacidade intelectiva de compreender as relações que a circundava. Em virtude disso, queria ter a certeza para expô-las, solicitando, assim, a chancela de Claraval.

Outro aspecto significativo da época de Hildegard, que não pode ser desconsiderado para refletirmos acerca de seus escritos, diz respeito ao renascimento das cidades que interfere, com certeza, na concepção que os homens tinham da sua época. Segundo Oliveira (2012), o ressurgimento da cidade, em fins do século XI e início do seguinte, marca indelevelmente a história do Ocidente Medieval, pois foi a partir dessa nova ambiência social que se instituiu a primeira grande divisão do trabalho entre o campo e a cidade. Para além das mudanças na concepção de trabalho, é preciso considerar que o espaço da cidade forjou, nos homens, a necessidade de uma nova visão de mundo, na qual foi preciso criar hábitos de civilidade, distintos daqueles do campo. Na cidade, todos convivem com todos, portanto, a partir daí se inicia, ainda que com certa timidez, a ideia de uma vida pública (LE GOFF, 1980a, 1980b). Isso posto, ainda que Hildegard vivesse em um mosteiro, os acontecimentos e as “novidades” circulavam com intensidade e, certamente, alcançavam a comunidade da qual ela fazia parte.

Essa circularidade de notícias que chegava até a monja é evidenciada em suas cartas. Nesse conjunto, encontram-se cinco cartas trocadas com o papa Eugênio III (1088-1153), duas cartas entre ela e o papa Anastásio IV (1073-1154), uma carta com o papa Adriano IV (1100-1159) e duas cartas com o papa Alexandre III (?-1181). Além das cartas trocadas com os papas, um total de 10, inúmeras foram as missivas escritas e recebidas entre ela e arcebispos de muitas cidades e regiões do Ocidente Medieval (Bremen, Colonia, Mainz, Salzburg, Trier, Bamberg, Beauvais, Halberstat, Jerusalém, Constance, Liège) e com outras autoridades religiosas e laicas de Praga, Soissons, Paris, Utrecht, Worns, dentre outros lugares. Esse quadro de suas correspondências nos permite depreender que Hildegard tinha e recebia muitas informações, logo, as suas “visões”, leia-se, em geral, conhecimento, estariam carregadas dessas novidades. Era, portanto, uma personagem atuante e importante que, seguramente, sofreu influências dos acontecimentos do seu tempo, mas, também, interferiu neles, em virtude das redes de relações que estabeleceu com os homens de poder.

A formação/iluminação de Hildegard

O “problema”, se assim podemos caracterizar, sobre a formação dessa monja associa-se ao fato de que ela, e todos os intelectuais do seu tempo, não se consideravam sábios. Ao contrário, entendiam que o conhecimento que recebiam era oriundo de uma luz divina e esse aspecto precisa ser considerado quando nos referimos à formação de uma pessoa como Hildegard. Em primeiro lugar, as traduções de Aristóteles não tinham ainda chegado ao Ocidente, por conseguinte, os conceitos de mediana, hábitos, intelecto agente, primeiro motor e senso comum, ainda não eram conhecidos ou, ao menos, difundidos. Em segundo lugar e, em decorrência disso, os mosteiros e as escolas palatinas conservavam o conhecimento antigo a partir do saber neoplatônico e Agostinho de Hipona era tido como a grande autoridade (CAMBI, 1999). Todavia, isso não significa que não possamos inferir elementos que nos possibilitem compreender a formação de Hildegard.

Segundo Pernoud (1996), a educação dessa monja foi, desde cedo, incumbência de Jutta:

Os biógrafos de Hildegard contam que Jutta lhe ensinou os salmos e a tocar o decacordo, instrumento com que se lhes acompanhava o canto. Na época, toda educação começava pelo canto dos salmos. “Aprender a ler” dizia-se “aprender o saltério”. É provável que se aplicassem a reconhecer nos manuscritos bíblicos os textos dos salmos que haviam memorizado: uma espécie de método global, pois as palavras já eram conhecidas, e ler e escrever consistia em reconhecer e depois reproduzir, nas tabuinhas os vocábulos registrados na memória. Hildegard declarou mais tarde que, se aprendera o texto do saltério, do Evangelho e dos principais livros do Antigo e do Novo Testamento, não lhes ensinaram a interpretação das palavras, nem as divisões das sílabas, nem o estudo dos casos e dos tempos. Jutta teria negligenciado um pouco a gramática, dando atenção, principalmente aos textos (PERNOUD, 1996, p. 13-14, grifo nosso).

A descrição da autora supracitada nos permite depreender que a formação de Hildegard acompanhava o costume monástico presente desde o início da Idade Média, pois ela aprendera a música, a memorização, a escrita e, especialmente, as escrituras sagradas. Não podemos deixar de recordar que os mosteiros, tanto no qual a monja fora formada quanto o que fundaria depois, eram beneditinos, ou seja, possuíam uma larga tradição na cópia, na música e no conhecimento bíblico e, acima de tudo, seguiam um princípio rígido de comportamento pautado na Regra de São Bento (1993). Ainda é preciso destacar que Hildegard sabia escrever e interpretar em consonância com os costumes monásticos.

No preâmbulo6 da obra Scivias, a própria Hildegard explica de onde originou a sua capacidade de escrita.

Aconteceu que, no ano 1141 da Encarnação do Filho de Deus Jesus Cristo, quando eu tinha quarenta e dois anos e sete meses de idade, o céu abriu-se e uma luz fulgurante de brilho excepcional veio e pervagou todo o meu cérebro e todo o meu peito, não como um ardor, mas como uma cálida chama, como o sol aquece qualquer coisa que com seus raios tocam. E imediatamente eu soube o significado da explicação das Escrituras, isto é, do Saltério, do Evangelho e de outros livros católicos, tanto do Antigo como do novo Testamento, embora eu não tivesse interpretação das palavras de seus textos ou a divisão das sílabas ou o conhecimento dos casos ou tempos (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 97)7.

A riqueza da descrição de detalhes com que a autora narra o momento em que inicia a escrever é de muita precisão histórica: ela se preocupa em informar até os meses da sua idade. Essa descrição possibilita ao leitor saber quando a monja principiou a preocupar-se em divulgar o seu pensamento. Mais, na sua escrita ela permite que se observe como considera o conhecimento, ou seja, por vincular-se à tradição medieval, conforme já observamos, anteriormente, ela concebe o ato de conhecer por via da iluminação da mente, pois afirma que o saber emana da luz que adentra a sua “cabeça e o seu peito”. Nesse fragmento descrito por Hildegard percebe-se nitidamente que ela é familiarizada ao conteúdo do “saber” medieval: as escrituras, os saltérios, os evangelhos e livros católicos. O que se explicaria pelo fato dela ter aprendido o mesmo conhecimento que era ministrado nos mosteiros beneditinos desde ano 529, quando Bento de Núrsia funda a abadia de Monte Cassino. Ainda é possível depreender da passagem como ela considera o seu conhecimento frágil, por não saber a divisão da sílaba e os casos.

Mas as visões que tive não as percebi em sonhos, ou no sono, ou em delírio, ou pelos olhos do corpo, ou pelos ouvidos do ser exterior, ou em lugares ocultos; recebi-as, pois, estando desperta e enxergando com a mente pura e com os olhos e ouvidos do ser interior, em lugares abertos, conforme Deus o queria. Como isso poderia ser é difícil para a carne mortal compreender.

Todavia, quando havia saído da infância e chegado a idade da plena maturidade mencionada acima, ouvia uma voz vinda do céu dizendo:

[...]

Ó humano, que recebestes estas coisas designadas a manifestar o que está oculto não na inquietude do engano, mas na pureza da simplicidade, escreve, portanto, as coisas que vê e ouve (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 97)8.

Ao continuar a narrativa, a monja ressalta que as visões que registra na sua escrita não são frutos de sonhos ou delírios, ou seja, encontrava-se consciente quando as recebeu. Provavelmente, ela enfatiza a sua lucidez quando escreve porque quer que os seus escritos sejam considerados.

[...] Estas visões aconteceram e estas palavras foram escritas nos dias de Henrique, arcebispo de Mogúncia, e de Conrado, rei dos romanos, e de Cuno, abade de Disibodenberg, sob o Papa Eugênio.

E promulguei e escrevi estas coisas não pela intervenção de meu coração ou da de outra qualquer pessoa, mas como pelos mistérios secretos de Deus, eu ouvi-as e recebi-as nos lugares celestiais.

E, mais uma vez, ouvia a voz do céu dizendo-me: “Grita, portanto, e escreve assim!” (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 97-98)9

A passagem acima é a que finaliza o prólogo e, mais uma vez, define, com exatidão, o tempo da sua escrita e o faz por meio das autoridades da Igreja. Na verdade, Hildegard medeia a sua narrativa entre os personagens reais e a figura de Deus, mas o fundamental do discurso é que escreve por ter sido “ordenada” por Deus para ser autora. Essa justificativa, certamente, não permitiria qualquer interpretação negativa por parte das autoridades eclesiásticas ou laicas sobre seus escritos. Nossa afirmação não indica, contudo, que estaria “conscientemente” usando um subterfugio para usufruir da liberdade de escrever, mas incide no fato de que, ser mulher, poderia constituir-se em “obstáculo” para a defesa de ideias.

Essa mesma preocupação em explicitar que se trata de uma pessoa que pouco conhece da gramática, mas sim, recebe o conhecimento da iluminação divina, também é relatada na carta 01 dirigida a Bernardo de Claraval.

Através desta visão que toca o meu coração e alma como uma chama ardente, ensinando-me profundidades de sentido, eu tenho uma compreensão interior do Saltério, os Evangelhos, e outros volumes. No entanto, não recebo esse conhecimento em alemão. Na verdade, eu não tenho nenhum treinamento formal em tudo, pois eu sei como ler apenas no nível mais elementar, certamente sem análise profunda. Mas por favor, dê-me a sua opinião sobre este assunto, porque eu não sou ensinada e treinada em matéria exterior, mas só sou ensinada internamente, em meu espírito (HILDEGARD DE BINGEN, 1998, p. 28, tradução nossa)10

Ela praticamente repete o que está no prólogo da Scivia, o conhecimento que possui sobre o saltério, bem como a respeito dos Evangelhos lhe é infundido por iluminação externa. Recorremos a essa passagem para enfatizar o fato de que Hildegard possui uma profunda humildade em relação ao seu saber e se preocupa em informar Bernardo de Claraval de que lê, no nível rudimentar, de que não sabe interpretar os textos e, um detalhe que não encontramos em outros escritos seus, a revelação da sua língua materna, quando afirma não “receber os conhecimentos” em alemão. Todavia, ainda que a monja destaque, em relação à sua formação intelectual, uma profunda ignorância da gramática, o volume de seus escritos nos indica que se tratava de uma pessoa sábia.

Reflexões sobre a obra Scivia

A primeira consideração que tecemos acerca dessa obra recai sobre a sua consistência e extensão. Estruturada em três livros, possui aproximadamente 800 páginas. Para além de seu volume, a densidade de questões tratadas por Hildegard evidencia sua profunda erudição, o que dificulta muito a seleção de itens a serem destacados em um estudo. Assim, nos limites desse artigo, elegemos três “temas” da obra que nos permitem explicitar, ao mesmo tempo, a erudição da autora e a sua preocupação com a formação moral das pessoas. As duas primeiras questões estão no livro primeiro da obra e a terceira é parte do livro terceiro.

O primeiro aspecto que selecionamos é a relação que Hildegard estabelece entre a fecundação humana e o pecado. Como autora cristã, naturalmente, ela principia pela questão do pecado “[...] Efetivamente, é melhor ter essa justa união, mediante a disposição da prudência da Igreja, do que ansiar por fornicação; mas vós, humanos, ignorais isso, e perseguis vossos desejos carnais não apenas como humanos, mas como animais” (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 118)11.

Do mesmo modo que outros autores da cristandade latina, a monja chama a atenção para o fato de que o sexo em demasia torna os homens similares aos animais, pois, na fornicação, estariam a ausência da razão e o predomínio do instinto. De acordo com Hildegard, só pode ser considerado humano aquele que pratica suas ações segundo o uso consciente da razão. Por outro lado, quem age por seus instintos não pode ser designado como homem.

Ainda sobre a fecundação ela destaca:

Que um homem não descarregue seu sêmen em desejo sexual excessivo antes dos anos de sua força; pois se ele tentar semear sua semente na ânsia do prazer antes que a semente tenha calor necessário para coagular adequadamente, é prova de que ele está pecando por sugestão do diabo. E quando um homem já é forte em seu desejo, que ele não exercite sua força naquele ato tanto quanto ele puder; porque se ele, assim, der atenção ao diabo estará fazendo uma obra diabólica, tornando seu corpo desprezível, o que lhe é inteiramente ilegítimo. Mas que o homem aja como a natureza lhe ensina, e busque o modo justo com sua esposa na força de seu calor e no vigor de sua semente, e que ele faça com conhecimento humano, por desejo de filhos (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 124)12.

A monja salienta que o sêmen masculino só pode promover a fecundação se tiver maturidade. Hildegard considera a fecundação a partir de uma tradição da medicina de Hipócrates que foi conservada no medievo ocidental, particularmente quando faz associações entre o calor e a coagulação como condições de fecundação (SANTOS; FAGUNDES, 2010). Outra questão que ressaltamos da passagem é a abordagem cristã, ou seja, o homem deve praticar o sexo com vistas à procriação e com a sua esposa. Logo, o sexo em si não é pecado, ou como a monja define, “coisa do diabo”, pois é por meio dele que ocorre a manutenção do ser humano. Somente se torna pecado se praticado fora do casamento e sem finalidade de reprodução.

O segundo aspecto que trazemos para nossa análise da Scivia é a comparação feita entre os homens na terra e o proprietário de um jardim.

O proprietário que procura estabelecer um jardim sem ter aborrecimentos, em primeiro lugar escolhe um lugar adequado e, a seguir, estabelecendo um lugar para cada planta, pondera sobre o fruto de boas árvores e sobre a utilidade, o sabor, a fragrância e a alta estima das várias espécies. E assim, este senhor, se ele é um grande filósofo e planejador avisado, coloca cada uma das plantas onde ele vê que ela será a mais útil possível, e, em seguida, ele pensa cercá-las com muitos muros altos, de modo que nenhum de seus inimigos possa destruir sua plantação. Depois ele escolhe seus peritos, que sabem como irrigar o jardim e que recolhem seu fruto, fazendo com eles muitas coisas fragrantes. Portanto, considera bem, ó humano: se o senhor previsse que o seu jardim, não produzindo nenhum fruto, nem algum tipo de uso deveria ser destruído, por que tão grande filósofo e planejador o teria construído, plantado, regado e fortificado tão apaixonadamente e com tanto mais esforço?

Ouve, portanto, e compreende! Deus, que é Sol da justiça, fez surgir seu esplendor sobre a imundície que é a maldade da humanidade; e aquele esplendor brilhou com grande intensidade, enquanto aquela imundície tresandava excessivamente (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 132-133)13.

De acordo com Hildegard, o bom proprietário é aquele que conhece as plantas, a terra e que planeja o cultivo do seu jardim antes de plantar as árvores, pois precisa saber o lugar que tem maior iluminação e maior proteção. Mais, observa que o “bom” proprietário precisa contratar especialistas para que o seu jardim floresça e produza frutos. A descrição da produção agrícola feita por ela revela que a sua ciência acerca da arte de administrar e isso derivava da sua condição de monja e conhecedora da vida monástica.

Assim, ao comparar o bom planejamento do jardim com a vida das pessoas na sociedade, criada por Deus, ela pretende destacar que os homens, ao receberem a vida, precisam proteger o espaço e os outros homens com quem conviverão, logo, precisam administrar seus atos, tal como o proprietário do jardim, pois cada uma das ações interfere no bom andamento do coletivo. Portanto Deus, tal como o proprietário do jardim, cuidaria dos homens para que fosse expurgados deles o mal, ou como ela escreve as “imundices” dos homens, por conseguinte, da Terra.

Sob esse aspecto é importante retomar o contexto histórico no qual a monja viveu, uma vez que as Cruzadas, as cidades, o comércio, estavam causando profundas transformações no comportamento dos homens e essas mudanças estavam produzindo desarmonia no “jardim do mundo” e era para buscar saídas para essa “crise” da cristandade latina que a religiosa escreve sobre a necessidade da conservação da ordo social e do planejamento da vida entre os homens.

O terceiro aspecto da Scivia que recuperamos para evidenciar a erudição e a importância da escrita de Hildegard como mulher e intelectual é a forma como aborda as virtudes humanas no Livro III. É preciso ressaltar que, ainda que trate por primeiro da piedade e descreva, longamente, suas caraterísticas, a monja não a define como a primeira das virtudes. Para nós, isso ocorre por ser a piedade a base dos atos do ser humano, portanto, seria parte da essência do homem.

Ao expor as virtudes, a autora apresenta a qualidade e a aparência de cada uma delas, que a saber, são sete: 1) a humildade, 2) a caridade, 3) o temor, 4) a obediência, 5) a fé, 6) a esperança e 7) a castidade. As sete virtudes para a autora são: 1) a humildade, 2) a caridade, 3) o temor, 4) a obediência, 5) a fé, 6) a esperança e 7) a castidade. A nosso ver a preocupação de Hildegard em apresentar o aspecto mental e material da virtude está relacionada à unicidade humana que perpassa a época, ou seja, a ideia de que o homem é único e indissociável, composto de alma e corpo, do mesmo modo em que a figura divina é trina: pai, filho e espírito. Assim, as virtudes no homem se efetivam pelo seu comportamento moral e por sua imagem corpórea.

A despeito do modo como Hildegard apresenta as virtudes é preciso salientar que se distancia da tradição neoplatônica presente, em geral, nos autores medievais. Ela conserva o número sete, que é o número perfeito, em razão de inúmeras simbologias cristãs, mas uma das mais significativas é a associação feita entre as quatro estações do ano e a figura da trindade: pai, filho e espírito. De tal modo, o sete é a junção do divino com a natureza. Entretanto a monja se afasta da tradição medieval que considerava as sete virtudes sociais a partir das quatro virtudes cardiais, exposta por Platão na República, que são: força, temperança, justiça e equidade e das três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Em Hildegard, as virtudes estão restritas ao universo mental do cristianismo, não se considerando, portanto, as quatro virtudes cardiais platônicas.

Apresentamos, a seguir, as virtudes em consonância com a ordem que a autora dispôs no livro III, da Scivia. Assim, iniciaremos pela piedade, que não se encontra entre as sete descritas, por ser a base de todo comportamento humano. Por isso a analisa em separado para, depois, tratar das sete virtudes.

De acordo com Hildegard, a piedade está diretamente vinculada ao conhecimento

A piedade está justamente ligada ao conhecimento, pois o Filho de Deus cumpriu conscientemente e em grande paz a vontade do pai. Com efeito, ele, o único Filho, nascido da Virgem, dispersou entre as pessoas a semente da virtude celestial; e assim, ele possibilitou que elas seguissem a companhia dos anjos na modéstia da castidade, visto que essa virtude surgiu na piedade superna. [...] Contudo, o florescimento deste ramo elevou a raça humana, no conhecimento, através da piedade, da santidade e da salvação. Como? A fortaleza que vence o diabo e está unida ao conhecimento é inspirada pelo Espírito Santo quando as pessoas fiéis devotadamente reconhecem a Deus como desejo ardente e abraçam-no ansiosamente no mais profundo de suas almas (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 631-632)14.

A piedade está associada ao conhecimento por ser a virtude que está vinculada ao Espírito Santo. Essa virtude expressa a capacidade dos homens viverem juntos, pois, como é oriunda do Filho de Deus, estimula nos homens a fortaleza para combater os vícios. Dito de outro modo, só pode ser piedoso o cristão por “abraçar” a vontade do pai, do mesmo modo que Jesus. Mais, só pode ser piedoso quem conhece e vive segundo os princípios da religiosidade. Logo, a piedade é fundamental para a vida em sociedade, já que exige o conhecimento e a prática de comportamentos com vistas ao bem.

Após a análise da piedade, Hildegard apresenta a primeira virtude dentre o conjunto das sete virtudes essenciais ao cristão, que é a humildade. A nosso ver, essa virtude é uma das mais emblemáticas, pois, ainda que, no século XIII, ela venha a ser considerada por Tomás de Aquino como uma virtude ligada à simplicidade, à pobreza e parte da virtude da piedade, em Hildegard, ela está adornada de ouro e pedras preciosas.

Assim, ela usa uma coroa de ouro, com três forquilhas mais elevadas, porque ultrapassa e docemente precede as outras virtudes, e assim, está coroada com a coroa de ouro da preciosa e resplandecente Encarnação do Salvador. Pois ele adornou a cabeça dela com mistério quando se encarnou. A coroa é triangular, pois a Trindade está na Unidade, e a Unidade está na Trindade; o Filho, com o Pai e o Espírito Santo, é um único Verdadeiro Deus, excedendo todas as coisas na altura da divindade. Ela está radiantemente ornada com pedras preciosas verdes e vermelhas, e com pérolas brancas. [...] E com todas estas a Igreja é iluminada e adornada, como um objeto ornado com pedras preciosas (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 636)15.

Como observamos anteriormente, ao narrar as características da humildade, apresentando-a como a imagem da riqueza, ainda que continue a associar com a coroa triangular que representa a trindade cristã do pai, filho e espírito santo, indubitavelmente, nessa virtude podemos depreender uma defesa da Igreja. Na verdade, nela detecta-se uma defesa da riqueza ostentada pela Igreja, pois não podemos nos esquecer que essa instituição, em meados do século XII, já estava sofrendo severas críticas por segmentos importantes da sociedade e pelo movimento dos Cátaros no século XI, quando atacaram o papa pela portentosa riqueza da Igreja. É um exemplo dessa crise na cristandade latina.

Como Hildegard era uma importante personagem dessa instituição, põe-se ao seu lado para defendê-la dos ataques. Entretanto, a contradição dessa situação incide no fato de, o tempo todo, em seus escritos, a monja enfatizar que é uma humilde e ignorante serva de Deus. Ela se posta como humilde e os seus escritos espelham isso, sem dúvida, mas, na definição dessa virtude, exalta a riqueza e a beleza da mais importante instituição medieval do seu século.

Na segunda virtude, a da caridade, ela retoma a humildade no sentido dos primeiros cristãos.

E a segunda figura simboliza a caridade, pois, depois da humildade com que o Filho de Deus se dignou encarnar-se, a verdadeira e ardente lâmpada da caridade foi acesa quando Deus tanto amou a humanidade que, por amor a ela, ele enviou o seu Unigênito para assumir um corpo humano. Ela é de um profundo azul-celeste, como um jacinto, tanto na pessoa quanto na túnica, pois através de sua humanidade, o Filho de Deus encarnado iluminou as pessoas fiéis e celestiais, como um jacinto ilumina qualquer objeto embaixo do qual ele for colocado. E assim, ele inflamou-as com a caridade, para que elas possam fielmente assistir todos os necessitados, e essa virtude está vestida com a túnica da doçura de Deus, para que ela possa brilhar sobre todas as pessoas com verdadeira luz para a devoção, uso e proveito delas (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 637)16.

Não vemos nessa virtude a explicitação da riqueza, mas da pobreza da humanidade. Ela está usando uma túnica, sem nenhuma joia, como deveria ser a vida do homem cristão: pobre e puro. Não podemos desconsiderar um aspecto social importante na descrição da caridade. Desde o século XI, por causa do desenvolvimento do feudalismo (GUIZOT, 1838), a região da Hildegard vivencia o renascimento do comércio, das cidades e, junto a isso, chega a possibilidade dos homens viverem com mais suntuosidade, mais riqueza, e usufruírem, inclusive, de produtos do Oriente, com mais intensidade, pois, além do comércio com diferentes regiões, já haviam ocorrido duas cruzadas, o que intensificou o contato entre o Ocidente e Oriente (LE GOFF, 1991). Assim, ao propor aos homens hábitos de simplicidade, a monja estaria fazendo uma crítica à “nova” forma como os homens estavam vivendo no seu tempo.

A terceira virtude é o temor, que a identificamos com a virtude da sabedoria, pois dela origina a prudência e, também, o conhecimento.

[...] ela é a maior e mais alta de estatura do que as outras virtudes, e não humana na forma, pois ela, acima de todas as outras, provoca angustia e tremor nas pessoas. Elas olham com visão aguda para a grandeza da Suprema Majestade e da elevação de sua divindade, e elas ficam com medo; de fato, Deus deve ser temido e venerado por todas as pessoas, visto que elas foram criadas por ele, não por outro. Razão pela qual esta virtude não se assemelha a um ser humano, pois, conforme foi mencionado, ela rejeita a perversidade que se opõe a Deus com obras más, e fixa seu olhar interior em Deus unicamente e percorre as vias justas de sua vontade. Destarte, ela está coberta de olhos por todo o corpo pois vive completamente na sabedoria. Efetivamente, com os olhos do bom entendimento, ela olha tudo ao seu redor e contempla Deus em todas as suas maravilhas, de modo a escolher a senda justa das boas obras e evitar, por aquele conhecimento de Deus, os pântanos diabólicos das obras más (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 639)17.

O temor/sabedoria é, para a monja, a principal dentre todas as virtudes, pois dela dependem as ações dos homens. É ela que permite que a humanidade compreenda os acontecimentos em seu entorno e permite o discernimento dos atos, com vistas ao bem. Como a morada da sabedoria está no intelecto e em Deus, ela é imaterial, pois ninguém a vê ou a sente, mas, indubitavelmente, a pratica ou não. Assim, essa virtude está na linguagem e nos hábitos dos homens e, ainda que seja imaterial, “ela possui olhos por todos os lados”, exatamente porque está refletida e reflete toda e qualquer vontade humana, ainda que invisível, uma vez que ela se materializa no que o homem é ou na sua essência. Ela não precisa ser corpórea porque o seu corpo está configurado no SER da humanidade.

A quarta virtude é a obediência e está vinculada à manutenção da sociedade cristã. “Na verdade, ela está ligada pela pureza da verdadeira fé na obra de Cristo e no caminho da verdade. E ela não age nem caminha como deseja, mas como Deus, o Regente, lhe ordena, conforme ela demonstra em suas práticas já citadas” (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 640)18. Os homens precisam considerar que é fundamental seguir as regras estabelecidas por Deus, leia-se a Igreja e o papa, que seriam os seus representantes no mundo terreno. A obediência seria, portanto, condição para que a ordo (DUBY, 1982) entre os três segmentos sociais fosse conservada, uma vez que as alterações que estavam ocorrendo no Ocidente feudal, em razão do ressurgimento das cidades e do comércio, permitiram o surgimento de uma ordem nova, a do terceiro estado, os moradores dos burgos (OLIVEIRA, 1997).

A quinta virtude é a fé:

[...] quando as pessoas têm a obediência, e obedecem a meus mandamentos ao ouvi-los, elas se tornarão crentes na fé, e fielmente cumprirão em obras o que elas aprenderam por sabedoria e admoestação.

[...] Assim, ela não confia nas vaidades enganosas, mas em Deus, e isso, conforme já foi citado, ela declara acerca de si mesma (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 640-641)19.

A fé é parte da obediência, pois seguir os mandamentos é condição para manter a sociedade. A fé também pressupõe que os homens não devem ser vaidosos e precisem seguir os princípios estabelecidos por Deus.

A sexta virtude é a esperança. Ela depende primeiro da fé, para ser despertada nos homens, mas essa virtude não é visível por estar na mente dos homens.

Sua vida não está sobre a terra, mas oculta nos lugares celestes, até o tempo da eterna recompensa, pela qual a esperança anseia com todo o seu desejo, tal como um servo por seu pagamento ou um jovem por sua herança. Assim, ela está vestida com uma túnica de cor pálida, pois sua confiança ainda é pálida, porque ainda não foi recompensada, mas penosamente espera a vinda de seu desejo (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 640)20.

A sétima virtude é a castidade.

A castidade, porém, renuncia a toda imundice e anseia com maravilhoso desejo por seu doce Amado, o mais doce e agradável odor de todas as coisas, por quem aqueles que o amam esperam em tímida beleza da alma. Desse modo, ela está vestida com uma túnica mais pura e mais brilhante do que o cristal, que brilha resplendente como a água quando o sol nela se reflete. Ela é brilhante por causa de sua simples intenção, e pura porque não está coberta com o pó do ardente desejo; miraculosamente fortalecida pelo Espírito Santo, ela está envolvida nas veste da inocência, que brilha na esplêndida luz da Fonte de água viva, o brilhante Sol da eterna glória. (HILDEGARD DE BINGEN, 2015, p. 641-643)21.

A castidade é, sem dúvida, uma das virtudes basilares do cristianismo e encontra-se presente nos escritos cristãos desde o período da patrística, a exemplo de Jerônimo de Estridão (347-420) e Agostinho de Hipona (354-430). Essa virtude asseguraria que o cristão estava isento de cometer erros e seguiria a vida regrada, seria uma pessoa pura, reta, pois estaria livre de fornicações e não se ocuparia de outra coisa, senão da sua mente, portanto, teria tempo, também, para se dedicar aos princípios divinos.

Ao analisar as virtudes cristãs, consideramos que Hildegard se volta a elas para explicar o comportamento das pessoas, com vistas a orientá-las para a vida em comum à que ela acredita e defende: a cristã. Ela também discorre sobre a principal instituição da sociedade cristã ocidental, a Igreja. Assim, dentre as sete virtudes, a nosso ver, seis tratariam diretamente do comportamento das pessoas singulares, pois é uma análise sobre as ações de cada pessoa e uma sobre a riqueza da Igreja. Com efeito, nas reflexões sobre as virtudes, Hildegard trata da estrutura da sociedade de seu tempo, na qual os homens precisam agir em consonância com os princípios cristãos e, ao mesmo tempo, aceitar o governo da Igreja, inclusive a sua riqueza.

Considerações finais

Ao recuperarmos a memória da monja Hildegard de Bingen como uma intelectual feminina que atuou e difundiu conhecimentos no Ocidente Medieval, no século XII, e que, indubitavelmente, mantém-se viva por meio dos escritos de estudiosos e historiadores medievalistas, tivemos o objetivo de evidenciar que essa mulher ocupou lugar importante na história e que se a considerarmos sob a perspectiva da longa duração teríamos a possibilidade de evitar equívocos no tempo presente de pensar que a mulher só conquistou lugar na sociedade a partir do século XXI.

Para além disso, ao trazermos a narrativa de uma religiosa do século XII, por meio de uma de suas cartas e da obra Scivia, para o campo da história da educação, contribuímos com a ampliação do universo de fontes a ser investigado por nossos estudantes e pesquisadores e colaboramos para que o nosso olhar sobre a participação/visão da mulher na sociedade se amplie.

Outro aspecto que retomamos à guisa de considerações finais é a explicação de denominarmos Hildegard de intelectual. Nos campos da história e da história da educação muito se debate sobre o conceito de intelectual, com uma preocupação em definir de forma cabal o papel desse personagem na sociedade. Para nós esse debate pode e deve ser atualizado com a inserção de pensadores medievais que, em seu tempo, com os instrumentos e recursos que tinham, conseguiam participar das questões políticas e se posicionarem, explicitamente, diante das forças que estavam em luta.

Hildegard foi um exemplo desse posicionamento, pois, mesmo de dentro do mosteiro, ativamente participou das mudanças que ocorriam no século XII. O que comprova, como mostramos no texto, por meio dos diálogos com os papas, com bispos, com autoridades laicas, com outros monges. Além disso, estabeleceu uma relação de amizade com um dos mais eminentes teóricos da Igreja, Bernardo de Claraval, ora pedindo-lhe conselhos, ora o aconselhando, como suas missivas evidenciam.

Se as suas cartas revelam suas articulações políticas com os homens de poder, no seu tempo, não menos importante foram as questões tratadas na obra Scivia. Nela, abordou uma infinidade de temas, mas não descurou, em nenhum momento, o todo da sociedade que precisava ser considerado e, exatamente por isso, buscou apontar caminhos para as pessoas, no seu sentido singular, sem, contudo, perder de vista o seu lugar de monja católica, portanto, não se esquivou em defender a Igreja e adotar um comportamento cristão, pautado nas virtudes cristãs para as pessoas.

Com efeito, Hildegard agiu como intelectual, inclusive no sentido moderno do conceito. Por meio de seus escritos, conseguiu apontar e analisar os problemas de seu tempo - oriundos das cidades, do comércio, das heresias, das cruzadas etc. -, bem como não hesitou em indicar caminhos para eles. Isso tudo com muita humildade, no discurso, e sem sair do mosteiro. Ela reconhecia o tempo todo que “era uma frágil mulher” em uma sociedade, marcadamente, masculina, porque essa era a realidade no medievo ocidental, na qual a força era a condição da conservação da própria sociedade e não porque seria uma sociedade “machista”. Podemos afirmar, seguramente, que a monja sabia como conduzir seus pensamentos, mas, indubitavelmente, podemos afiançar que teve sabedoria o suficiente para escrever e propagar suas ideias em prol do que ela entendia ser o caminho da sociedade: a vida cristã, imbuída de virtudes. São, pois, essas considerações que nos permitem designar Hildegard de Bingen como uma intelectual sem precedentes, do século XII.

Uma última ressalva que fazemos sobre os escritos dessa personagem diz respeito à forma como a analisamos. Buscamos olhar para ela com os olhos da história e a contextualizá-la no século XII, da cristandade ocidental latina, pois, se assim não o fizéssemos, incorríamos no risco de negar a sabedoria contida nos seus escritos, ou mesmo a fortaleza de suas decisões, para a julgá-la como uma monja, uma religiosa que defendeu a vida cristã, em momento em que a vida citadina principiava a florescer. Se a vermos sob essa segunda perspectiva não a estudaremos sob a lente da história, mas a julgaremos, já que no nosso presente, o século XXI, temos a tendência de refutar as ideias defendidas por autores medievais, por esses serem representantes da Igreja.

Referências

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1Trata-se do movimento feminista que ficou conhecido no Brasil como “Queima de sutiãs” (PINTO, 2010).

2Segundo Goméz (2014), era comum na Idade Média que as mulheres escritoras justificassem seus escritos como sendo fruto de visões ou revelações.

3Nossas reflexões sobre os escritos de Hildegard estarão pautadas na sua obra Scivia (2015).

4“I beseech you in the name of the Living God to give heed to my queries. Father, I am greatly disturbed by a vision which has appeared to me through divine revelation, a vision seen not with my fleshly eyes but only in my spirit. Wretched, and indeed more than wretched in my womanly condition, I have from earliest childhood seen great marvels which my tongue has no power to express but which the Spirit of God has taught me that I may believe." Steadfast and gentle father, in your kindness respond to me, your unworthy servant, who has never, from her earliest childhood, lived one hour free from anxiety”.

5“I seek consolation from you, that I may be assured. More than two years ago, indeed, I saw you in a vision, like a man looking straight into the sun, bold and unafraid. And I wept, because I myself am so timid and fearful. Good and gentle father, I have been placed in your care so that you might reveal to me through our correspondence whether I should speak these things openly or keep my silence, because I have great anxiety about this vision with respect to how much I should speak about what I have seen and heard. [...]”.

6A tradução brasileira da obra indica como Declaração, por isso nas referências a indicaremos como se encontra nessa edição.

7Alertamos ao leitor que para todas as citações da obra Scivia as referenciaremos, em nota, o nome da autora, o título da obra, o livro e o parágrafo. HILDEGARD DE BINGEN, Sc, Descrição, § 3.

8HILDEGARD DE BINGEN, Sc, Descrição, § 3.

9HILDEGARD DE BINGEN, Sc, Descrição, § 6.

10“Through this vision which touches my heart and soul like a burning flame, teaching me profundities of meaning, I have an inward understanding of the Psalter, the Gospels, and other volumes. Nevertheless, I do not receive this knowledge in German. Indeed, I have no formal training at all, for I know how to read only on the most elementary level, certainly with no deep analysis. But please give me your opinion in this matter, because I am untaught and untrained in exterior material, but am only taught inwardly, in my spirit”.

11HILDEGARD DE BINGEN, Sc, I, 13.

12HILDEGARD DE BINGEN, Sc, I, 20

13HILDEGARD DE BINGEN, Sc, I, 32.

14HILDEGARD DE BINGEN, Sc. III, 15.

15HILDEGARD DE BINGEN, Sc. III, 18.

16HILDEGARD DE BINGEN, Sc. III, 19.

17HILDEGARD DE BINGEN, Sc. III, 20.

18HILDEGARD DE BINGEN, Sc. III, 21.

19HILDEGARD DE BINGEN, Sc. III, 22.

20HILDEGARD DE BINGEN, Sc. III, 23.

21HILDEGARD DE BINGEN, Sc. III, 24.

Recebido: 15 de Setembro de 2019; Aceito: 30 de Outubro de 2019

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