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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.19 no.63 Curitiba out./dez 2019  Epub 30-Jan-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.19.063.ds03 

Dossiê

Educação e religião no projeto de Sofia Cavalletti: um modelo pedagógico e cultural

Education and religion in Sofia Cavalletti’s project: a pedagogical and cultural model

Educación y religion em el proyecto de Sofia Cavalletti: un modelo pedagógico y cultural

Edile Maria Fracaro Rodriguesa 
http://orcid.org/0000-0003-1018-2007

Sérgio Rogério Azevedo Junqueirab 
http://orcid.org/0000-0003-2168-1186

a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. Doutora em Teologia, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Educação e Religião (GPER), e-mail: edilefracaro@gmail.com

b Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Ciências da Educação, líder do Grupo de Pesquisa Educação e Religião, e-mail: srjunq@gmail.com


Resumo

Este artigo, resultado de pesquisa bibliográfica, busca compreender um dos múltiplos caminhos de diversas práticas empreendidas no cenário religioso e educativo, que é a participação efetiva de mulheres na organização da sociedade. Aborda os temas da educação e da religião a partir da concepção de Sofia Cavalletti (1917-2011), que com Gianna Gobbi (1920-2002), pedagoga montessoriana, desenvolve a Catequese do Bom Pastor (Catechesis of the Good Shepherd - CGS). Traça o contexto da Nova Escola e os pressupostos do projeto montessoriano para a compreensão dessa proposta para o cenário religioso e educativo. Assim como no método montessoriano, a CGS possibilita o manuseio de materiais concretos dando ênfase à educação dos sentidos. E como acontece com a maioria das abordagens, educacionais ou ministeriais, a CGS também tem seus críticos. O tempo de formação dos catequistas, considerado muito longo, a questão linguística nos escritos de Cavalletti, particularmente para um público de fala inglesa, e o fato de não fornecer definições precisas sobre as suas pesquisas, são alguns pontos delicados de seus pressupostos.

Palavras-chave: Sofia Cavalletti; Educação Religiosa; História da Educação; Escola Nova

Abstract

This article, the result of a bibliographical research, seeks to understand one of the multiple paths of various practices undertaken in the religious and educational scenario, which is the effective participation of women in the organization of society. It approaches the themes of education and religion from the conception of Sofia Cavalletti (1917-2011), who, with Gianna Gobbi (1920-2002), a Montessori educator, develops the Catechesis of the Good Shepherd (CGS). He traces the context of the New School and the presuppositions of the Montessori project for the understanding of this proposal for the religious and educational scenario. As in the Montessori method, the GCS enables the handling of concrete materials, emphasizing the education of the senses. And as with most approaches, educational or ministerial, the GCS also has its critics. The time of formation of catechists, considered too long, the linguistic question in the writings of Cavalletti, particularly for an English-speaking audience, and the fact that it does not provide precise definitions of their research, are some delicate points of their assumptions.

Keywords: Sofia Cavalletti; Religious Education; History of Education

Resumen

Este artículo, fruto de una investigación bibliográfica, pretende entender una de las múltiples vías de las diversas prácticas emprendidas en el escenario religioso y educativo, que es la participación efectiva de las mujeres en la organización de la sociedad. Aborda los temas de la educación y la religión desde la concepción de Sofía Cavalletti (1917-2011), quien, junto con Gianna Gobbi (1920-2002), educadora Montessori, desarrolla la Catequesis del Buen Pastor (CGS). Traza el contexto de la Nueva Escuela y los presupuestos del proyecto Montessori para la comprensión de esta propuesta para el escenario religioso y educativo. Como en el método Montessori, el GCS permite el manejo de materiales concretos, enfatizando la educación de los sentidos. Y como con la mayoría de los enfoques, educativos o ministeriales, la GCS también tiene sus críticos. El tiempo de formación de los catequistas, considerado demasiado largo, la cuestión lingüística en los escritos de Cavalletti, en particular para un público anglófono, y el hecho de que no proporciona definiciones precisas de sus investigaciones, son algunos puntos delicados de sus suposiciones.

Palabras clave: Sofia Cavalletti; Educación Religiosa; Historia de la Educación; Escuela Nueva

Introdução

Este artigo, resultado de pesquisa bibliográfica, busca compreender um dos múltiplos caminhos traçados por diversas práticas empreendidas no cenário religioso e educativo, que é a participação efetiva de mulheres na organização da sociedade.

Pesquisas sobre a presença das mulheres na (re)produção e manutenção de uma cultura religiosa em diferentes espaços educativos vêm sendo desenvolvidas no sentido de discutir “Educação, Gênero e Cristianismo: circulação, representação, formação e práticas femininas em cenário religioso e educativo”. E quais são as personagens que em seus cotidianos e em seus espaços de circulação realizam suas práticas educativas e (re)produzem uma cultura cristã no espaço educacional?

Abordando os temas da educação e da religião a partir da concepção de Sofia Cavalletti (1917-2011), notória biblista ─ que com Gianna Gobbi (1920-2002), pedagoga montessoriana, desenvolve a Catequese do Bom Pastor (Catechesis of the Good Shepherd - CGS). Para contextualizar essas contribuições, traça-se o contexto da Nova Escola e os pressupostos do projeto montessoriano.

Na História da Educação, trabalhos como os de Marta Carvalho (1994, 1998) e Maria Lucia Hilsdorf (2003) vêm discutindo as configurações do campo educacional nos anos de 1920-1930. No Brasil, problematizando as polarizações entre os grupos representados na Associação Brasileira de Educação e indicando uma disputa mais política do que pedagógica em relação às leituras e apropriações do movimento escolanovista. Na esteira proposta por essas pesquisadoras, Antonio Donozetti Sgarbi (1997, 2001), Evelyn Orlando (2008), Oriomar Skalinski Junior (2015) e Bianca Prachun (2019), dentre outros, vêm se dedicando a analisar a compreensão católica desse movimento, configurando o que se pode chamar de uma Escola Nova católica. O presente artigo soma-se a essas iniciativas e aponta uma proposta pedagógica católica alinhada com os pressupostos da Escola Nova em diálogo estreito com a pedagogia montessoriana.

Contexto da Escola Nova

O movimento da Escola Nova, conhecido também como Escola Ativa ou Progressiva, tem sua origem na Europa, contando entre os fundadores o suíço Adolphe Ferrière (1879-1960). Crítico do que denominava de escola tradicional, Ferrière acreditava em uma “nova escola”, com base na ciência da criança, aspecto que mereceu atenção em suas obras. A Escola Ativa “era a aplicação das leis da psicologia à educação das crianças” (PERES, 2002, p. 10).

Como diretor e colaborador da revista da Ligue pour l’ere nouvelle, Ferrière também ficou conhecido por ser o redator das 30 características da Educação Nova, cuja primeira publicação se deu em 19151. Na 30ª característica lê-se:

30. A educação da razão prática consiste principalmente, nos adolescentes, em reflexões e em estudos sobre as leis naturais do progresso espiritual, individual e social. A maior parte das escolas novas observam uma atitude religiosa não confessional ou interconfessional, que acompanha a tolerância em relação a diferentes ideais, desde que incarnem um esforço em vista do crescimento espiritual do homem. (FERRIÈRE apudALVES, 2010, p. 180).

O fim mais importante dessa proposta era o impulso espiritual da criança e o desenvolvimento da autonomia moral do educando. Os alunos deveriam assumir as responsabilidades da ordem social escolar, para que mais tarde pudessem enfrentar devidamente os problemas da ordem política do seu país. É importante ressaltar que se combatia uma moral estruturada em fórmulas e defendia-se a liberdade reflexiva, em que o indivíduo já senhor do ambiente guia a sua vontade, propondo libertar o aluno da tutela do adulto para colocá-lo sob a tutela da própria consciência moral.

Na prática, deveria existir um modelo escolar no qual se confiaria aos alunos à disciplina e o seu funcionamento. Defendia o desenvolvimento do trabalho escolar no sentido de permitir ao aluno a passagem daquilo que denominava de autoridade consentida (quando a criança recebe a matéria-prima dos seus juízos e forma hábitos) para a autonomia crescente, uma vez que senhores de si mesmo, as crianças sê-lo-ão também da sua pequenina república - a escola, conforme a característica 21 de Ferrière (apudALVES, 2010).

Pode-se dizer que com a Escola Ativa também se fez necessário refletir sobre a identidade docente. Ferrière afirmava que o “novo” professor deveria, entre outras coisas, ter autonomia pedagógica, dominar a ciência da infância, ser um observador tenaz, ser um provocador e condutor da espontaneidade das crianças, descobrir e despertar o interesse infantil, “ser contido” e não se antecipar às necessidades e interesses das crianças. Sintetizando: um profundo conhecedor da alma humana!

O movimento da Escola Nova expandiu para a América do Norte. John Dewey (1859-1952), filósofo norte-americano, teve papel relevante na compreensão de que o papel da escola não deveria ser uma preparação para a vida, mas, sim, a própria vida. Dewey apresentava a vida-experiência e aprendizagem como eixo norteador para a educação. Dessa forma, a função da escola seria a de propiciar uma reconstrução permanente da experiência e da aprendizagem dentro de sua vida. A educação teria uma função democratizadora de igualar as oportunidades. De acordo com o ideário da Escola Nova ao se falar de direitos iguais perante a lei, fala-se de direitos de oportunidades iguais perante a lei.

Mas não somente o americano Dewey, mas também Hall e os europeus Montessori, Decroly, Binet, Kerchensteiner, Claparède, Ferrière (já citado), Faria de Vasconcelos e Adolfo Lima “dão consistência a um pensamento pedagógico que privilegia a individualidade da criança em detrimento da homogeneização” (ALVES, 2010, p. 167-168).

Por interferência de Rui Barbosa, o Movimento da Escola Nova chegou ao Brasil em 1882. E no período de 1950 a 1960, a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e na revista Educação e Ciências Sociais é a principal difusora dos temas filosóficos e educacionais do movimento.

Outro fator a ser considerado é que ao ser elencado os pioneiros da Escola Nova há um grande número de pensadores. A docência era considerada uma profissão masculina até os anos finais do século XIX. No Brasil, como em muitas outras sociedades, a docência foi iniciada por homens, religiosos, especialmente jesuítas, no período compreendido entre 1549 e 1579. O final do século XIX é um marco que determinou as condições do exercício da docência no Brasil para as professoras. Esse momento tratava da criação de escolas e do quanto à instrução beneficiaria as mulheres.

Refletir sobre o legado de Sofia Cavalletti é apontar para uma das mulheres com impacto internacional na educação do século XX, a italiana Maria Montessori (1870-1852). É nesse cenário de renovação que se encontra a primeira médica da Itália que se transformou em referência na educação ─ Maria Montessori. A partir do estudo com crianças com necessidades especiais, Montessori orienta também o trabalho com crianças sem comprometimento e buscou colocar o aluno como personagem central do trabalho escolar.

Proposta montessoriana como pressuposto

Montessori assumiu posições de enfrentamento com a cultura de seu tempo, ao escolher uma profissão não comum às mulheres, medicina. Entretanto, após sua formatura no curso de medicina, em 1896, Montessori não pode atuar como médica, pois era inconcebível a uma mulher examinar o corpo de um homem (PRELLEZO; LANFRANCHI, 1995, p. 244).

As mudanças tecnológicas vivenciadas por Montessori como a luz elétrica, o rádio, o telefone e o cinema ampliavam suas expectativas para o futuro. Isso sem falar das descobertas da ciência, em especial da psiquiatria, que fascinaram a jovem médica em Roma. Foi o campo da psiquiatria que lhe permitiu verificar pesquisas que tornavam mais eficaz e mais humano o tratamento dos doentes mentais, permitindo o conhecimento sobre o funcionamento do cérebro de “loucos” e sadios.

Com especial interesse pelos estudos de um dos desbravadores dos mecanismos do aprendizado infantil, como do médico francês Édouard Séguin (1812-1880), Montessori construiu seu método. A educadora adaptou o princípio da autoeducação, propondo uma interferência mínima dos professores, pois a aprendizagem teria como base o espaço escolar e o material didático, que é caracterizado por uma ênfase na autonomia, liberdade com limites e respeito pelo desenvolvimento natural das habilidades físicas, sociais e psicológicas da criança (PRELLEZO; LANFRANCHI, 1995, p. 246-247).

Para Montessori, mais importante do que o método é a possibilidade criada pela utilização desse para se libertar a verdadeira natureza do indivíduo, para que esta possa ser observada e compreendida. Assim, não é tanto seu material ou sua prática, mas a educação que se desenvolve com base na evolução da criança (CHÂTEAU, 1978, p. 310).

A criança é o centro do método Montessoriano e o/a professor/a tem o papel de acompanhar o processo de aprendizado. O/a docente guia, aconselha, mas não dita e nem impõe o que vai ser aprendido pela criança (MACHADO, 1986, p. 21-22).

Em seu trabalho destaca-se a importância da liberdade, da atividade e do estímulo para o desenvolvimento físico e mental das crianças (MACHADO, 1986, p. 3-4). Preocupada em equilibrar a liberdade e disciplina, Montessori compreendia que não seria possível conquistar uma sem a outra.

As numerosas Case dei Bambini em conjunto a sua ação são sua grande contribuição para a educação. Assim, consegue disseminar o seu método de “pedagogia científica” primeiramente por toda a Itália e depois por numerosos países (SILVA, 1991).

Fiel à sua opção religiosa, Montessori mantinha-se atenta a princípios religiosos que a conduziram a uma concepção positiva do conhecimento que caracterizou a época marcada por efervescência intelectual e fascínio pela mente humana em que viveu.

Para Trindade (2018, p. 243), “não se podem dissociar os compromissos religiosos de Maria Montessori da obra que legou”. Para o autor, a obra de Montessori expressa às opções da pedagoga italiana, bem como o espaço e o tempo históricos, fatores importantes a serem considerados ao se examinar seu pensamento e obra.

Sofia Cavalletti: um legado com impacto na educação em âmbito internacional

Nascida em 21 de agosto de 1917, na cidade de Roma, na casa que pertencia à família há mais de 300 anos próxima ao Vaticano, era filha de Giulia Pediconi e Giorgio Cavalletti, depois de dois irmãos, Francisco e Marcelo. Veio a falecer na mesma residência em 23 de agosto de 2011. A CGS, método que desenvolveu ao longo de sua trajetória, é utilizado em mais de 37 países, dentre os quais o Brasil. A CGS é conhecida em denominações cristãs como a católica, ortodoxa e episcopal e é a grande contribuição dessa autora para o cenário religioso e educativo.

De família tradicional católica, Cavalletti não frequentou a escola desde pequena. Aprendeu a ler com a mãe, teve tutores e frequentou a escola mais tarde por apenas cinco anos. Ao final da Segunda Guerra Mundial passou em um exame que lhe permitiu estudar na Universidade La Sapienza na Faculdade de Letras e Filosofia (1946). Em 1949 graduou-se em hebraico e em línguas semíticas comparadas com o professor Eugenio Zolli, ex-rabino-chefe de Roma, que começou a congregar na Igreja Católica após a guerra.

Para Prudêncio Júnior (2014, p. 43):

Sofia Cavalletti demonstrou ser uma pessoa à frente de seu tempo por meio das narrativas de sua experiência. A observação realizada em mais de 25 anos com crianças em centros catequéticos, paróquias, escolas maternais e primárias e outros lugares preparados para a evangelização das crianças demonstrou formas concretas que têm conduzido os pequenos até hoje ao encontro com o sagrado.

Essa postura de Cavalletti direciona sua vida. Sua dedicação aos estudos da Bíblia é notória e em 1960 colaborou na tradução da Bíblia Florentina, com a tradução dos livros de Isaías e de Provérbios. Também participou da publicação Bibbia Concordata (Editorial Mondadori) e da Nuovissima traduzione (Paoline editorial), com traduções dos livros de Ester, Judite e Levítico. Em 1966 publica: Ebraísmo e Spiritualità Christian (Hebraísmo e espiritualidade cristã2, Editora Studium). Em 1968 lança Il Trattato delle Benedizioni do talmude babilônico (UTET).

Em 1978, aos 61 anos, já tinha 165 trabalhos publicados, fazendo referência sempre à Bíblia em hebraico. Em 1991 publica Il giudaismo intertestamentário (O judaísmo intertestamentário, Queriniana Editorial). Conforme biografia divulgada pela Asociación Colombiana para la formación Religiosa Católica (Acoforec), colaborou em revistas italianas e estrangeiras com artigos de conteúdo bíblico, pós-bíblico e catequético. Foi membro da Comissão Diocesana para o Ecumenismo e da Comissão Ecumênica da Conferência Episcopal Italiana CEI.

O trabalho de Cavalletti com crianças ocorreu a partir de uma solicitação de Adele Costa Gnocchi, colega de Maria Montessori, para ensinar religião em uma escola que utilizava o método de Montessori. Esse relato está no livro O Potencial Religioso da Criança, no qual Cavalletti narra como começou essa catequese.

Até os 30 anos ela não tinha experiência e formação para atuar no espaço infantil. A partir de um processo narrativo iniciou o projeto CGS. E em 1951 publica com Gianna Gobbi, Educazione religiosa, liturgia e método Montessori (Educação, liturgia e método Montessori, Paoline Editorial), com apresentação de Cipriano Vagaggini, sacerdote do Pontifício OSB Litúrgico Instituto S. Anselmo, obra traduzida para inglês e português. O livro foi lançado no Brasil pela Editora Paulinas em 1966.

As perguntas que moveram Cavalletti ainda são pertinentes para o entendimento do cenário educativo e religioso. Quem é a criança? Quais as suas fases de desenvolvimento e as características que precisam ser consideradas em seu processo de aprendizagem e de evangelização? Como se relacionam com o sagrado?

Entre os anos de 1961 e 1962, também com Gianna Gobbi e outros parceiros, começou o primeiro curso de formação para catequistas, que se dá por cinco anos na sede do Escritório da Catequese da Diocese de Roma. As notas dos cursos, posteriormente, são traduzidas e publicadas nos Estados Unidos da América e no México.

Destaca-se que é em 1965, a pedido da Diocese de Roma, que publica com Gianna Gobbi: Io sono il buon Pastore, em cinco volumes para crianças e cinco guias para catequistas (Acoforec). São lançadas 10 mil cópias do primeiro volume em 1966. A publicação se completa em 1971. Mais tarde a obra é traduzida para o espanhol e lançado em diversos países da América do Sul (Acoforec).

Em 1975 Cavalletti ministra o primeiro curso de formação catequista no exterior, nos EUA, que se seguiu de cursos no México, Canadá, França, Israel, Croácia, Inglaterra e Alemanha em um movimento de várias parcerias estabelecidas.

Em 1979 publica: Potenziale religiosa Il bambino (Città Nuova Publisher), traduzida em inglês, espanhol, polonês e coreano. E em 1996 Il tra potenziale religiosa i 6-12 anni (Città Nuova Publisher), obra traduzida em espanhol, inglês e polonês.

Em 2004 publica La storia d’Israele, com Gianna Gobbi, e cartilhas explicativas: La storia d’Israele, Abramo da alla parusia e La storia d’Israele, memória tra e Speranza (Rubbettino Editorial), traduzido em inglês e espanhol. Colaborou em revistas italianas e estrangeiras com artigos de conteúdo bíblico, pós-bíblico e catequético (Acoforec). Em suas leituras além de textos para o estudo bíblico estavam às obras de filósofos e teólogos como Paul Ricoeur, Jean Daniélou, Louis Bouyer e Pierre Teilhard de Chardin.

As frentes de atuação de Cavalletti, sua inserção no mercado da tradução, a circulação seu trabalho, seu engajamento nas mudanças pedagógicas, a caracterizam como uma produtora e mediadora cultural, tal como define Sirinelli (1996). Inserida no campo da produção de saberes pedagógicos, Cavalletti produz e difunde um modelo pedagógico concorrente em relação ao ensino de catecismo, em âmbito internacional, fazendo circular um modelo ancorado em bases modernas e progressistas.

Esse movimento foi largamente discutido nos trabalhos de Marta Carvalho e Joaquim Pintassilgo (2011), nos quais discutem os modelos em concorrência em torno da escola pública brasileira como foco privilegiado na escola paulista. Segundo os autores,

Importa-me, portanto, falar, aqui, de modelos pedagógicos concorrentes em circulação em São Paulo, nas cinco primeiras décadas republicanas. Esses modelos pedagógicos põem em cena representações contrastantes da escola e das práticas de ensino e aprendizagem. Na proliferação dos discursos que articularam tais representações, dois modos distintos de normatização das práticas escolares buscaram legitimar-se como saber pedagógico de tipo novo, moderno, experimental e científico, produzindo estratégias concorrentes de configuração do campo dos saberes representados como necessários à prática docente. Como se viu, no campo normativo da pedagogia moderna, essa pedagogia prática que animou as iniciativas de institucionalização da escola do Estado de São Paulo a partir do final do século XIX, a pedagogia é arte de ensinar. Estruturando-se sob o primado da visibilidade, essa pedagogia propõe-se como arte cujo segredo é a boa imitação de modelos. Diferentemente, a pedagogia da Escola Nova que se difunde no país a partir de meados da década de 1920 pretende subsidiar a prática docente com um repertório de saberes autorizados, propostos como seus fundamentos ou instrumentos. (CARVALHO; PINTASSILGO, 2011, p. 191).

A proposta de modernização da educação religiosa que Cavalletti desenvolveu a partir de sua experiência com a pedagogia montessoriana visava à autonomia dos estudantes e tem uma interferência de modelo religioso com a organização da CGS.

O potencial religioso da criança para Cavalletti

A experiência de Cavalletti foi enriquecida com o trabalho em equipe com Gianna Gobbi, discípula e colaboradora da Dra. Maria Montessori, o qual favoreceu o aprofundamento e o conhecimento de experiências sobre a criança e a filosofia da própria Maria Montessori. Dessa forma, pensou-se em uma proposta não só para a criança, mas com a criança. Outro membro da equipe foi a Dra. Silvana Quatrocchi Montanaro, uma psiquiatra e líder dos cursos internacionais sobre “Desenvolvimento e Pedagogia para crianças de 0 a 3 anos de idade”.

A proposta de uma educação religiosa para crianças de 3 a 12 anos de idade foi resultado de uma pesquisa experimental permanente na vida de Cavalletti, e que se espalhou para diversos ambientes sociais e culturais muito diferentes.

Em 1954 a CGS foi estabelecida com base nos princípios de Montessori a partir de encontros de Cavalletti e Gobbi com as crianças, que demandaram a criação e o desenvolvimento de materiais de acordo com os princípios montessorianos. Inicialmente os encontros com as crianças ocorreram em um pequeno espaço na escola de Costa Gnocchi. Logo esse espaço se tornou insuficiente pela alta procura por esses encontros e a catequese foi transferida para a casa de Sofia. Três salas foram designadas como “átrios”, cada uma voltada para uma faixa etária diferente para aprender as Escrituras e a liturgia. A casa em que Sofia nasceu tornou-se um lugar privilegiado na proposta pedagógica que veio a desenvolver, a qual foi pensada para não acontecer em uma sala de aula, mas em um átrio (um local de vida e preparação, que às vezes é chamado por ela de centro de educação de adoração); nessa proposta as catequistas da CGS não se considerariam professores/professoras, mas guias de educação religiosa.

A pesquisa para esse trabalho levou Cavalletti a se dedicar ao estudo de teóricos do desenvolvimento humano. Erik Erikson e Jean Piaget, naquele momento, começavam a ganhar atenção nessa área, mas Cavalletti sempre retornava ao trabalho e aos princípios de Maria Montessori. A grande capacidade de concentração da criança, amor à ordem e ao silêncio e deleite no trabalho eram princípios com os quais se identificava no método montessoriano.

De acordo com Cavalletti e Gobbi (1966) muitos erros foram cometidos nesse percurso e tiveram que jogar fora alguns dos materiais que criaram enquanto procuravam os temas e elementos essenciais que correspondessem às necessidades das crianças. Apenas materiais que despertaram muito interesse e profunda alegria foram mantidos. Por meio de material concreto e simples, para Cavalletti e Gobbi (1966), desde a mais tenra idade, a criança pode compreender as grandes e essenciais verdades da fé, da mensagem das Escrituras e da liturgia cristã. Assim, tudo o que não era essencial foi removido do átrio.

Essa proposta tinha como uma de suas bases, a utilização de um ambiente cuidadosamente preparado. Assim como Montessori, Cavalletti e Gobbi (1966) perceberam observando as crianças que estas podem ser muito boas professoras para adultos. As duas pesquisadoras passaram anos respondendo à pergunta: que aspectos da fé cristã falam mais plenamente para uma criança em estágios específicos de seu desenvolvimento humano? Sua observação cuidadosa das crianças revelou a capacidade das crianças de refletir profundamente. A partir de suas observações, chegaram a três características da criança que se evidenciavam quando pareciam poder satisfazer seu desejo interior de relacionamento com Deus: alegria, dignidade e essencialidade.

As pesquisas de observação feitas por Cavalletti eram realizadas de formas não relacionadas, os temas eram diversos, mas as sínteses que traziam às crianças apresentavam a figura do Bom Pastor como presença constante, sendo que a Eucaristia era o pasto, onde o Pastor recolhe suas ovelhas e ali as alimenta com o Seu amor. (PRUDÊNCIO JÚNIOR, 2014, p. 42).

Outras suposições influenciam o pensamento de Cavalletti, como a de que uma criança é capaz de ter uma profunda experiência religiosa. “A experiência religiosa é fundamentalmente uma experiência de amor, e o amor é, para o ser humano, essencial à vida” (CAVALLETTI, 1985, p. 15). E essa experiência é global para a criança, pois toca todo o ser da criança; ela sente que isso é uma parte natural do que significa ser humano. “Portanto, nos perguntamos se a criança não encontra no fato religioso a satisfação de uma exigência existencial a ponto de influir sobre a formação harmônica de sua personalidade e, se ausente, a ponto de incidir negativamente” (CAVALLETTI, 1985, p. 15).

A partir do exposto por Cavalletti, pode-se compreender que uma pessoa não está se desenvolvendo completamente como um ser humano a menos que o potencial religioso seja estimulado e crescente.

Não é, portanto, na procura de uma compensação que a criança se volta para Deus, mas numa profunda exigência de natureza. A criança tem necessidade de um amor global, infinito, tal que nenhum ser humano é capaz de lhe dar. O amor é para a criança mais necessário do que o alimento... No contato com Deus ela experimenta um indefectível amor e, ao mesmo tempo, encontra a alimentação que o seu ser requer e do qual tem necessidade, para desenvolver-se em harmonia. Deus - que é amor - e a criança, que pede o amor mais que o leite materno, se encontram, portanto, em uma correspondência específica de natureza; e a criança, no encontro com Deus, tem prazer pela satisfação de uma exigência profunda de sua pessoa, de uma autêntica exigência da vida (CAVALLETTI, 1985, p. 15).

E a partir de sua experiência em estudos da Bíblia, Cavalletti entende que a partir da tradição judaico-cristã a linguagem é um agente poderoso ─ evocativo, descritivo e expressivo para experimentar Deus.

Na concepção de Cavalletti essa forma de catequese refunda o conteúdo bíblico, pois foca no uso de parábolas e não em fórmulas e definições. As parábolas são um convite à meditação à medida que conectam a realidade da vida cotidiana com a realidade do Reino de Deus. Pensando na proposta de Jesus ao contar as parábolas, não se explica o seu significado. Ao se explicar trair-se-ia a própria natureza da parábola, que é não dar uma definição pronta.

Cavalletti desencoraja o uso de versos isolados das Escrituras para ilustrar um ponto que impediria o ouvinte de ter uma experiência direta com a Palavra de Deus. Ela defende dar aos ouvintes a passagem completa em si mesma para que possam dialogar com os textos, propondo assim um “encontro vivo”. Assim, encoraja-se a reflexão e não a mera exposição de histórias, ditos e parábolas. Ao encorajar até mesmo as crianças pequenas a refletirem profundamente sobre o significado das passagens bíblicas, percebeu que elas são capazes de trabalhar com os materiais propostos por longos períodos de tempo, até mesmo surpreendendo com suas percepções acerca do Reino de Deus.

Para Cavalletti (1985) é preciso ir além de instruir as crianças a fazerem gestos, a dizerem palavras, mas sim levá-las a fazerem a uma real experiência da relação com Deus, consigo, com os outros e com a sociedade (CAVALLETTI, 1985, p. 11). Esse é o princípio da evangelização, que não considera a criança como receptora passiva de verdades ensinadas pelos adultos. Assim, a partir da proposta de Cavalletti entende-se a criança como protagonista no processo educativo-evangelizador. Ainda para a autora, “a criança é capaz de ver o invisível, quase como se fosse mais tangível e real do que a realidade imediata que lhe é apresentada. Ela quase que transcende a natureza física quando é favorecido a elas um itinerário de encontro com Deus” (CAVALLETTI, 1985, p. 36).

A organização espacial também é importante nos processos educativo-evangelizadores. Além da proposta bíblica, o átrio, lugar de adoração e reflexão, é um lugar onde a relação entre a experiência de fé e a linguagem da fé é realizada. A expressão “átrio” vem da própria Maria Montessori. Segundo a Organização Nacional da Catequese do Bom Pastor do México, o átrio,

É um espaço que na antiga basílica cristã, servi de antecâmara, no sentido material e metafórico da Igreja. Era um lugar de preparação dos catecúmenos para conhecer os mistérios da fé e vivê-los nos sacramentos. Para a criança, trata-se do lugar onde começa a conhecer as grandes realidades de sua vida cristã, e também, principalmente, começa a viver essas realidades na meditação e na oração. (ORGANIZACIÓN).

Assim sendo, o átrio é um ambiente preparado adequadamente a cada faixa etária, como será descrito a seguir. Ali a criança exercita o silêncio, a liberdade de escolha, o controle dos movimentos e a disciplina.

A catequese do bom pastor (CGS)

As crianças são preparadas para estar no átrio, recebendo instruções sobre como o espaço é montado, como trabalhar com os materiais e os móveis e como administrar seus próprios corpos de maneira controlada. Normas de comportamento são estabelecidas, como falar suavemente e mover-se cuidadosamente. O/A catequista usa móveis que são do mesmo tamanho que os móveis para as crianças, a fim de reduzir a disparidade de tamanho entre as crianças adultas e jovens.

As instruções sobre o movimento são feitas à maneira de Montessori, de modo que as crianças se sintam capazes, de acordo com a idade, de serem competentes e independentes para se comportarem bem, sem intervenção adulta. Antes de as crianças começarem a participar do CGS, os pais geralmente são orientados para o propósito e a estrutura do átrio, recebendo orientações sobre como podem apoiar o trabalho do átrio em suas próprias casas.

A experiência em um átrio pode começar com um momento de boas-vindas - momento em que as crianças podem querer se reunir em um espaço fora do átrio para se cumprimentar e começar a se aquietar “por dentro”.

A área central de qualquer átrio é reservada para a apresentação das Escrituras. Um canto é um espaço cuidadosamente preparado para a oração. Para Cavalletti, as crianças respondem ativamente à experiência religiosa, sendo envolvidas em uma satisfação total. “A facilidade e a espontaneidade da expressão religiosa e da oração da criança fazem pensar em algo que surge do íntimo, quase como se fosse inerente à própria criança” (CAVALLETTI, 1985, p. 35).

Outras áreas contêm materiais da história e materiais de resposta. As crianças podem “precisar de até duas horas para se dedicar totalmente ao trabalho escolhido” (GOBBI, 1998, p. 39). Em alguns átrios as crianças muito pequenas podem começar com 45 minutos e depois acumular períodos mais longos.

Esse processo espalhou pelos países um exemplo que ocorreu em 1975 quando Sofia foi convidada a dar um curso sobre “A religiosidade da criança” em St. Paul (Minessotta), em uma convenção das escolas Montessori. O curso contou com a presença de duas mexicanas: Monclova e Coahuila, que a convidou para ir ao México no verão de 1976. A partir dessa visita foi organizada uma rede de formação nos Estados Unidos e mesmo no México, tanto que se registra a sua presença e de seus colaboradores de Roma para o México entre os verões de 1978 a 1983 em que foram preparados espaços e textos para as crianças nesse país. Registra-se esse trabalho em cerca de 55 países, entre os quais Canadá, Estados Unidos, México, Colômbia, Panamá, Chile, Argentina, Peru, Bolívia, Alemanha, Croácia, Austrália, entre outros. O trabalho não foi apenas em espaço católico, mas ecumênico, incorporando principalmente as igrejas episcopal, metodista e luterana dos Estados Unidos da América. Consequentemente foi organizado em 1996, em Roma, o Conselho Internacional da Catequese do Bom Pastor (Consiglio Internacional), constituído por pessoas que representam os diferentes países onde a catequese foi estabelecida há vários anos e onde as respectivas Associações Nacionais já foram formadas.

O site da Biola University (MAY, [20-?]) apresenta a biografia de educadores cristãos do século XX. Scottie May ([20-?]) apresenta as contribuições de Cavalletti e seu impacto internacional.

Anualmente Cavalletti produzia um relatório do trabalho para a associação italiana. Como exemplo, no texto de 2006 incluiu o fato de que 27 mil crianças na diocese de Chihuahua, no México, participavam sozinhas da catequese, sendo que 800 catequistas se reuniram para o encontro nacional. Nesse mesmo país, em Guadalajara, mil crianças participavam do CGS, 300 das quais filhos e filhas de prisioneiros. Além disso, 100 delas eram cegas.

No Panamá, no Centro Montessori de Espiritualidade, há um pré-átrio de 10 crianças de dezoito meses a 2 anos de idade. Essas crianças muito pequenas respondem da mesma maneira que as crianças com mais de 3 anos, algo que surpreendeu os catequistas.

Na Argentina a pesquisa atual visa determinar uma “teologia” das crianças, examinando a representação das crianças mais jovens do Bom Pastor e a arte da história bíblica das crianças mais velhas.

No Brasil, o modelo da CGS chegou apenas em 2001, trazido pela catequista Carmen Tieppo, com autorização de Sofia Cavalletti (O SÃO PAULO, 2017). O primeiro átrio foi em São Paulo e segundo o site da Catequese do Bom Pastor, o método é ministrado em Paróquias de São Paulo, Goiânia, Brasília e Cuiabá, por exemplo. Em agosto de 2017 foi comemorado o centenário do Nascimento de Sofia Cavalletti com um encontro das catequistas em São Paulo para celebrar a vida de Sofia (CATEQUESE, ©2019).

Essas ações dão a ver a “multiplicidade de ações desenvolvidas pela hierarquia eclesiástica e o laicato católico em diferentes setores da sociedade que, por diferentes caminhos, fizeram circular ideias, saberes e práticas”, como por Orlando e Leonardi (2017, p. 16) e reconfiguraram um modus operandi de uso da Bíblia pelos católicos.

Transformando o cenário religioso da educação e da religião

A CGS usa o pacto da palavra bíblica para descrever a conexão ou relacionamento com Deus, uns com os outros e com a comunidade de fé e se dá em três níveis: Nível I, para crianças de 3 a 6 anos; Nível II, para crianças de 6 a 9 anos; Nível III, para crianças de 9 a 12 anos.

No Nível I é apresentada a pessoa de Jesus e tem como tema unificador a parábola do Bom Pastor, a fim de ajudar cada criança a se apaixonar pelo Bom Pastor, que é uma resposta individual. Cavalletti propõe o uso das parábolas como as principais histórias do primeiro nível, porque esse foi o método que Jesus usou para introduzir o mistério do Reino de Deus. Quando Cavalletti e Gobbi (1966) observaram as crianças em seu átrio, perceberam que as crianças eram mais frequentemente atraídas para a parábola do Bom Pastor. Algumas crianças voltavam repetidamente para refletir sobre essa história ou para fazer o mesmo “trabalho” repetidas vezes.

A percepção recorrente do campo da Psicologia, inclusive, pressupõe que as crianças não conseguem captar tais abstrações. Para Cavalletti, o “significado” da parábola não estaria nos objetos da narrativa, pois, pela sua pesquisa, percebeu que as parábolas permitem que as crianças respondam com admiração e se perguntem sobre o que Deus poderia estar revelando através desses textos. Essa descoberta é contra intuitiva, na medida em que a teoria cognitiva sugere que as crianças pequenas deveriam primeira ser apresentadas a narrativas concretas.

As narrativas do nascimento e da vida de Jesus são apresentadas para ajudar as crianças a perceberem que Jesus é uma pessoa real que viveu na Terra em um lugar e tempo reais. Para ajudar nessa compreensão, essas crianças pequenas fazem um trabalho envolvente com a geografia de Israel e Jerusalém nos dias de Jesus. Além disso, como nas escolas montessorianas, no Nível I, existe uma área para atividades da vida cotidiana em que as crianças pequenas aprendem a ser cuidadosas ao trabalhar com porcelana e cristal, ter experiência em despejar água e limpar a si mesma.

O Nível II concentra-se na Videira Verdadeira e nos Ramos, para ajudá-las a entender sua conexão uns com os outros “na Videira”. Esse nível introduz a História da Redenção, permitindo que as crianças comecem a esclarecer a visão de Deus para o seu povo, bem como iniciar a preparação para a primeira comunhão. O Nível II também inclui o trabalho com o cânon e os gêneros das Escrituras.

O Nível III, que se dá após a criança receber a Eucaristia, é o momento de compreender melhor o Antigo Testamento e a história da salvação, visto que a criança já possui uma noção de tempo e consegue se inserir na história. O Nível III investiga o trabalho elementar em hebraico. A mensagem cristã é solidamente baseada na história, e assim deve ser a catequese, segundo Cavalletti.

Nesse sentido, o treinamento cuidadoso de catequistas é fundamental para a eficácia da CGS. Esse treinamento é prolongado e complexo, assim como é para o Método Montessori - pelo menos um ano cumulativamente para cada nível. Segundo Prudêncio Júnior (2014, p. 42), no processo da CGS, o/a catequista “procura conhecer a fé pelos olhos da criança.” Para o autor é necessário saber como é a criança para compreender o que há nela que é tão importante para o Reino. Outro fator importante nessa proposta é a escuta e a observação para então evangelizar. Não há uma receita pronta, A criança é interlocutora de seu processo de crescimento e amadurecimento na fé.

Em Pédagogie Sientifique: La découverte de l’enfant deMontessori (1958) há um capítulo intitulado “Educação religiosa” (entre as páginas 231 e 236). Nele, a autora aponta um alinhamento entre a educação religiosa e o seu projeto educacional.

As linhas gerais da educação religiosa são as mesmas do nosso projeto educacional: a preparação de um ambiente onde se distinguem diferentes preocupações, aquelas que podemos considerar como relacionadas com a vida prática, e outras que dizem respeito à expansão do sentimento religioso, a educação do coração e a cultura necessária para conhecer a religião (MONTESSORI, 1958, p. 231).

Assim como no método montessoriano, a CGS possibilita o manuseio de materiais concretos dando ênfase à educação dos sentidos. Contudo, apesar do cuidado com o material, a CGS não incentiva uma abundância de materiais de trabalho. Não é necessário ter material para todos os temas apresentados. O instrumento fundamental para transmitir a fé é comunicar a Palavra da maneira mais fiel possível ao texto.

Cada catequista faz seu próprio álbum de apresentações. Isso leva a consideráveis investimentos em tempo e trabalho de cada catequista, mas também notável “propriedade” dos materiais, que incluem mapas de Jerusalém e Palestina, símbolos cristãos e litúrgicos e figuras e materiais para apresentações bíblicas. Há uma área de altar para rezar e cantar juntos.

O papel do/a catequista é preparar o ambiente para as crianças e apresentar materiais que incentivem as crianças a responder ao amor de Deus. O/A catequista é uma cotestemunha com as crianças, ouvindo-as e com elas enquanto indagam quem é Deus ou como ele demonstra seu amor. O/A catequista é o intermediário inicial nessa relação através das apresentações e diálogos durante o tempo de oração. O/A catequista sugere perguntas meditativas que vêm do texto bíblico para as crianças compreenderem e guardarem em seus corações. Essas conversas, juntamente ao ambiente preparado, ajudam a promover o relacionamento das crianças com Deus, na medida em que se expressam através de arte, canções e orações.

Há uma relação intrínseca entre a fé cristã e a educação. Para Streck (1989, p. 7), “[...] a fé cristã pode articular-se com a pedagogia na busca de seu alvo maior, ou seja, a vida plena ou abundante (Jo 10,10)”. O processo de indagar o mundo desencadeia a aprendizagem, e essa é uma grande disposição da criança.

Para Trindade (2018, p. 244),

[...] considera-se que se pode concluir que o projeto de intervenção pedagógica que anima Montessori só é passível de ser compreendida no âmbito de uma abordagem que, no seu caso, não dispensa o religioso como componente da dimensão humana incontornável que sustenta o seu legado pedagógico.

Ainda segundo o autor, a perspectiva de Montessori inspirou alguns projetos na educação religiosa. Além de citar a CGS, Trindade (2018) também aponta o projeto de Jerome Berryman (2013), abordado na obra The Spiritual Guidance of children: Montessori, Godly Play, and the future.

Uma preocupação de Cavalletti foi o fato de a palavra “brincadeira”, quando associada a esse tipo de trabalho pelas crianças, diminuir o fato de que a relação da criança com Deus é muito profunda e séria, embora alegre. Essa alegria da criança é profunda e, de acordo com Cavalletti, muito diferente do tipo de alegria exuberante e cheia de risadas quando as crianças estão tipicamente “brincando”.

Cavalletti e Gobbi (1966) perceberam que um “método de signos” ou símbolos, uma linguagem comum da Bíblia e da liturgia pode servir como ferramenta para ajudar a criança a encontrar significado e direção no átrio. “Sinais” apontam para o mistério que é a experiência de Deus. A criança é um ser metafísico, e é por isso que a oração é incluída na vida espiritual da criança de forma natural, relatando seus experimentos e vivências. Como utilizam constantemente o pensamento verbal para organizar suas experiências, sejam elas reais ou a partir da fantasia, questionam todos os domínios da vida humana, inclusive fé (CAVALLETTI, 1985, p. 37). Essa experiência possibilita ao potencial religioso da criança um potencial espontâneo, exigindo cautela de cada catequista para não supercontrolar as atividades no átrio.

Em 2002 Cavalletti perdeu sua parceira de trabalho que ao longo de 50 anos colaborou na elaboração e desenvolvimento do trabalho. Com morte de Gobbi, ainda continuou o trabalho em sua casa. A partir do outono de 2006, aos 89 anos, com a ajuda de assistentes, ainda liderava as crianças toda segunda-feira à tarde nos três átrios que montou em sua casa.

Considerações finais

Cavalletti acreditava que a primeira exposição da criança à fé deve estar centrada na pessoa de Jesus Cristo. Por causa da ênfase que a catequese coloca em Jesus, o Bom Pastor, geralmente as crianças logo percebem que ele é o centro da fé cristã. Ao levar em conta a capacidade da criança de entender o “invisível”, considera a ludicidade, o jogo e a fantasia como possibilidades do desenvolvimento de sua espiritualidade.

O trabalho de Cavalletti envolvendo a questão de um projeto de educação e religião a partir da pedagogia montessoriana se desdobrou em variações de sua proposta como Godly Play (desenvolvido por Jerome Berryman), Young Children and Worship (desenvolvido por Sonya Stewart e Jerome Berryman), Beulah Land (desenvolvido por Gretchen Wolff Pritchard) e The Way of the Child (publicado pela Upper Quarto).

Nesse processo de expansão e modificações a proposta da CGS para a educação religiosa está sendo usada por muitas tradições cristãs apesar de Cavalletti não ter planejado uma divulgação junto a outras denominações.

E como acontece com a maioria das abordagens, educacionais ou ministeriais, a CGS também tem seus críticos. O tempo de formação dos catequistas, considerado muito longo, a questão linguística nos escritos de Cavalletti, particularmente para um público de fala inglesa, e o fato de não fornecer definições precisas sobre as suas pesquisas, são alguns pontos delicados de seus pressupostos.

Referências

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1O anexo com os trinta pontos propostos por Ferrière está disponível no artigo de Alves (2010).

2Entende-se por hebraísmo expressões e maneiras peculiares do idioma hebreu que precisam ser interpretadas nas traduções da Bíblia, que originalmente foi escrita em hebraico e em grego. O conhecimento do hebraísmo é necessário para a devida contextualização e assim se fazer uso devido das regras de interpretação (LUND; NELSON, 1968, p. 23).

Recebido: 15 de Setembro de 2019; Aceito: 15 de Outubro de 2019

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