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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.20 no.65 Curitiba abr./jun 2020  Epub 27-Jul-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.20.065.ds05 

Dossiê

Educação Popular e Formação Docente: experiências de re-existência

Popular Education and Teacher Training: reexistence experiences

Educación popular y formación docente: experiencias de reexistencia

Maria Teresa Estebana 
http://orcid.org/0000-0003-0130-149X

Marisa Narcizo Sampaiob 
http://orcid.org/0000-0001-6055-6332

a Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. Doutora em Filosofia e Ciências da Educação, e-mail: mtesteban@uol.com.br

b Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: marisamns@gmail.com


Resumo

O artigo discute, a partir de uma pesquisa exploratória, princípios da Educação Popular na Colômbia e no Brasil, presentes em experiências educacionais de formação docente e práticas escolares. Na atual conjuntura brasileira e latino-americana, em que professoras/es têm sido colocadas/os sob suspeita por exercerem a docência visando a formação integral e humana, mostram-se necessárias propostas baseadas na ética, no diálogo, e na participação, princípios da Educação Popular (movimento teoricoprático caracterizado pela ação com as classes populares) ao fortalecimento da formação e da ação docentes. Estes princípios orientam propostas de formação de professoras/es na universidade e suas práticas educativas em distintos contextos. O levantamento e conhecimento de diferentes propostas educativas nos países envolvidos, que desenvolvem práticas orientadas pelo referencial da Educação Popular, proporcionou o diálogo com espaços educativos, organizações e projetos diversos. Houve o contato com universidades, escolas, movimentos sociais e grupos, cujo trabalho tem buscado e criado propostas pedagógicas significativas. Construir uma educação pública e democrática para todas/os depende também de uma formação como prática política, que contribua para potencializar a ação docente em conexão e diálogo permanentes com distintos cenários e situações. Uma formação que seja ato de resistência e defesa da educação como prática de liberdade (FREIRE, 1989). A Educação Popular ressignifica a formação docente e a prática social dos sujeitos em formação - observar, atuar, vivenciar práticas educativas em diferentes contextos (escolares e não escolares) - de modo a problematizar experiências de fracasso e reprodução das desigualdades, ainda recorrentes para as classes populares, para transformá-las.

Palavras-chave: Educação Popular; Formação Docente; Práticas Pedagógicas

Abstract

Based on exploratory research, the article discusses the principles of Popular Education in Colombia and Brazil, observed in educational experiences of teacher education and school practices. In the Brazilian and Latin American contexts, in which teachers have been placed under suspicion for exercising teaching aiming at integral and human formation, proposals based on ethics, dialogue, and participation, principles of Popular Education (theoretical-practical movement characterized by action with the popular classes) are necessary to the strengthening of teacher education and action. These principles guide proposals for teacher education at the university and their educational practices in different contexts. Get information and knowledge from different educational proposals in the countries involved, which develop practices guided by the Popular Education framework, provided the dialogue with educational spaces, organizations, and diverse projects. There was contact with universities, schools, social movements, and groups, whose work has sought and created significant pedagogical proposals. Building public and democratic education for all also depends on make teacher education as a political practice, which contributes to enhancing teaching action in permanent connection and dialogue with different contexts and could be an act of resistance and defense of education as a practice of freedom (FREIRE, 1989). Popular Education resignifies the teacher education and social practice of the subjects in training - observing, acting, experiencing educational practices in different contexts (school and non-school) - to problematize experiences of failure and reproduction of inequalities, still frequent for the popular classes to transform them.

Keywords: Popular Education; Teacher Education; Pedagogical practices

Resumen

El artículo discute, en base a una investigación exploratoria, los principios de la Educación Popular en Colombia y Brasil, presentes en las experiencias educativas de capacitación docente y prácticas escolares. En el contexto brasileño y latinoamericano, en el que los docentes han sido puestos bajo sospecha por ejercer la enseñanza con el objetivo de la formación integral y humana, se muestra que las propuestas basadas en la ética, el diálogo y la participación, principios de la Educación Popular, (movimiento teoricopráctico caracterizado por la acción con las clases populares) son necesarios para el fortalecimiento de la formación y la acción docente. Estos principios guían las propuestas de formación docente en la universidad y sus prácticas educativas en diferentes contextos. El análisis y el conocimiento de diferentes propuestas educativas en los países involucrados, que desarrollan prácticas guiadas por el marco de la Educación Popular, proporcionaron el diálogo con espacios educativos, organizaciones y diversos proyectos. Hubo contacto con universidades, escuelas, movimientos sociales y grupos, cuyo trabajo ha buscado y creado importantes propuestas pedagógicas. La construcción de una educación pública y democrática para todos también depende de la capacitación como práctica política, lo que contribuye a mejorar la acción docente en conexión y diálogo permanente con diferentes contextos. Una formación que sea un acto de resistencia y defensa de la educación como práctica de libertad (FREIRE, 1989). La Educación Popular resignifica la formación del profesorado y la práctica social de los sujetos en formación - observar, actuar, vivenciar prácticas educativas en diferentes contextos (escolares y no escolares) - con el fin de problematizar las experiencias de fracaso y reproducción de desigualdades, aún recurrentes para las clases para transformarlos.

Palabras clave: Educación Popular; Formación Docente; Prácticas Pedagógicas

Introdução

A escola básica e a universidade latino-americanas frequentemente são confrontadas com a sua insuficiente democratização - tanto no que se refere ao acesso quanto à qualidade do trabalho realizado. Observamos, nos projetos educacionais oficiais: a manutenção da perspectiva eurocêntrica, na qual a própria ideia de escola de massas se concretiza; uma crescente subordinação às demandas do mercado, como expressão da hegemonia neoliberal; e a importação de modelos internacionais de governar/definir/organizar nossas formas de viver e educar, em detrimento das demandas de igualdade e justiça social e da garantia de direitos para toda a população. Nesse cenário, persiste a criação de obstáculos à plena escolarização dos segmentos subalternizados da população, de modo que ainda estamos longe de alcançar sequer a universalização da alfabetização para as classes populares.

A educação, como se sabe, traz as tensões próprias de sociedades desiguais e sua configuração é parte das lutas sociais, nas quais se forjam mecanismos de resistência, de intensificação dos confrontos e de ampliação das conquistas. Como parte da luta e da construção de processos que buscam a transformação social, encontra-se a produção, na América Latina, da Educação Popular, como prática política e pedagógica. Proposta de constituição múltipla, que remonta ao trabalho de Simón Rodríguez e José Martí, passando por diversos outros educadores, se ressignifica por sua presença em diferentes movimentos sociais e contextos latino-americanos, se atualiza em função dos distintos momentos históricos em que emergem projetos como respostas coletivas e criativas aos problemas encontrados nos distintos contextos, se conecta às demandas dos sujeitos subalternizados por sua capacidade de crítica e de problematização da realidade injusta e mantém seu vigor pelo diálogo com os processos educativos populares, nos quais se produzem práticas e saberes.

A Educação Popular se consolida, na segunda metade do século XX, especialmente em torno das ideias de Paulo Freire. Propõe-se como pensamento crítico ao eurocentrismo e aos processos de subalternização dele decorrentes, em que se configuram relações que subjugam formas de ser e de viver, sustentadas pela dominação dos países e povos nessa relação constituídos como periféricos. Volta-se à articulação da educação com o projeto histórico de libertação das classes populares, vinculado aos movimentos sociais, culturais e políticos que atuam na transformação da ordem social dominante, constituindo uma “pedagogia do oprimido”, na qual os segmentos sociais subalternizados são os principais sujeitos dessa transformação, na busca de relações mais justas em que a vida seja uma experiência digna e feliz para todas/os (FREIRE, 1989, 2006).

Como proposta e movimento teoricoprático1, a educação popular institui-se como práxis político-social, como um projeto do povo em luta contra a opressão. É um pensamento que se produz na luta, da qual a escolarização vem se mostrando parte expressiva. Caracterizado pela ação com as classes populares, de libertação dessas classes, e apoiado em uma perspectiva crítica, é constantemente atacado pelos defensores do sistema político e econômico hegemônico.

Neste momento, vivemos mais um período em que se intensificam os golpes contra a sociedade brasileira, atingindo fortemente a escolarização das classes populares. A desqualificação da escola pública e das/os professoras/es se acentua, com a redução de financiamento, a destruição de programas de apoio, a desarticulação de instrumentos de democratização da escola e as ações contundentes contra processos pedagógicos críticos e democráticos. Tais propósitos e procedimentos estão evidentes na atual condução da política brasileira; entretanto, como sabemos, os princípios que os estruturam não conhecem fronteiras, e neste momento estão presentes na maior parte do continente e em outros países do mundo.

Nestes contextos brasileiro e latino-americano, em que professoras/es têm sido colocadas/os sob suspeita por exercerem a docência visando a formação integral e humana, propostas baseadas na ética, no diálogo, e na participação, princípios da Educação Popular, mostram-se necessárias ao fortalecimento da formação e da ação docentes. Estes princípios orientam propostas de formação de professoras/es em universidades e práticas educativas em distintos contextos.

Considerando as especificidades da educação na América Latina, nos propusemos a uma pesquisa exploratória que teve como objetivo conhecer experiências educacionais orientadas pelos princípios da Educação Popular no Brasil e na Colômbia, dando especial atenção para a formação docente e para as práticas escolares. Construir uma educação pública e democrática para todas/os depende também de uma formação como prática política, que contribua para potencializar a ação docente em conexão e diálogo permanentes com distintos contextos. O levantamento e conhecimento de diferentes propostas educativas nos países envolvidos, que desenvolvem práticas orientadas por esse referencial, proporcionou o diálogo com espaços educativos, organizações e projetos diversos. Houve o contato com universidades, escolas, movimentos sociais e grupos, cujo trabalho tem buscado e criado propostas político-pedagógicas significativas por suas características dialógica, problematizadora e participativa.

Neste artigo, trataremos da Educação Popular como articuladora da formação e da ação docentes, dialogando com nossas experiências como professoras de cursos de formação de professoras/es e como pesquisadoras no Brasil, nos valendo das atividades de pesquisa realizadas na Colômbia. Trabalhamos com a ideia de que a formação se dá em distintos contextos, dentre eles a universidade e a escola básica, priorizadas neste trabalho.

Educação Popular e Movimentos de Transformação de Práticas Educativas Institucionais

A Educação Popular se consolida como proposição relevante no âmbito dos paradigmas críticos em educação. Suas características crítica e transformadora e seus laços com as culturas e os grupos subalternizados, desde sua origem, a configuram como proposta com potência para articular processos alternativos às formas de organização e práticas de educação hegemônicas, conformadas pelas políticas neoliberais. Pensada, no sentido freireano, como uma educação tecida pelo compromisso com a libertação a partir do diálogo com os sujeitos, pode ser tomada como possibilidade/modo de transformar o próprio sistema educativo, parte de uma ordem social injusta, que também precisa ser transformada.

Nesse sentido, para Torres (2013), sua inscrição nos paradigmas emancipadores articula três dimensões: gnoseológica, por referir-se à interpretação crítica da realidade; política, por encaminhar posturas alternativas à dinâmica social dominante; e prática, por sua articulação com as ações individuais e coletivas que mobilizam a transformação da realidade. A estas dimensões podemos ainda somar, com Cendales e Mariño (2004), o princípio da intencionalidade ética, e a busca da inclusão de todas as pessoas nos processos sociais.

Seu caráter emancipador se encontra em seu próprio campo político-pedagógico, uma vez que tem uma consistente produção própria de pensamento, ainda que em seu desenvolvimento se conecte a um amplo conjunto de práticas e teorias no âmbito do pensamento crítico, com sua tradição de privilegiar a educação como instrumento de mudança social, e ainda que seja necessário atualizar a própria ideia de emancipatório, pelo diálogo com outras propostas críticas que também se abrigam sob a denominação emancipatórias, notadamente as de cunho histórico-críticas, decoloniais, pedagogias cooperativas e comunitárias. O que se busca, com o adensamento do debate e da reflexão, é a sustentação de sujeitos coletivos e suas práticas questionadoras e transgressoras, capazes de, usando este referencial político-pedagógico, conceberem-se como sujeitos criadores de possibilidades de enfrentar a estrutura sócio-política dominante. Esse potencial emancipatório resulta também das práticas inerentes às experiências educativas populares, dos saberes que geram e das vivências dos movimentos sociais.

Para refletir sobre a educação problematizadora, que tem na dialogicidade o núcleo da educação transformadora e que visa praticar estas concepções em ação de resistência e defesa da educação como prática da liberdade (FREIRE, 1989), é relevante desenvolver um pouco mais a discussão sobre a dimensão política desse pensamento pedagógico, de maneira a contribuir para orientar nossas propostas de formação de professoras/es na universidade.

Um primeiro aspecto dessa dimensão, para Torres (2013), está na percepção do político como processo macroestrutural que coloca a Educação Popular em lugar de oposição à educação institucionalizada, vista como espaço de reprodução da relação de dominação social. O segundo aspecto, ao focalizar as dinâmicas em seu nível micro, evidencia todo ato educativo como ato político, conforme abordado por Freire, com a presença de relações de poder em todas as práticas educacionais.

Nesse segundo aspecto se inscreve o estudo trazido a este texto, centrado nas alternativas pedagógicas produzidas para problematizar e recriar os atos cotidianos que dificultam o pensar autêntico (FREIRE, 2006) para torná-los parte de um movimento de produção do saber como busca inquieta, nas interações dos seres humanos em seus encontros para a pronúncia do mundo, a partir das leituras que dele fazem - cujo conteúdo se torna objeto de problematização (FREIRE, 2006). Torres (2013) afirma ainda a necessidade de se retomar o popular como categoria política, na qual povo significa “um processo de constituição de sujeitos [...] que a partir de suas condições singulares de opressão, exclusão ou exploração, agenciam projetos emancipadores” (p. 26).

Ainda pela ótica desse mesmo autor, discutimos a dimensão pedagógica da Educação Popular. Um primeiro ponto a destacar nesta dimensão é sua natureza reflexiva, já que a pedagogia permite a sistematização e a conceitualização das práticas educativas e se constitui como um saber sobre essas práticas. Outro elemento relevante é sua potencialidade dialógica, pois a produção dessa pedagogia exige a participação das/os educadoras/es populares como sujeitos que refletem sobre suas experiências, problematizam os processos vividos, sistematizam o saber pedagógico e potencializam as práticas educativas populares. Dessa forma, podemos apostar, como Mejía (2014), na Educação Popular como forma para lidar com as tensões próprias do nosso tempoespaço, a partir de suas práticas de diálogo, confrontação, negociação, e, por isso, como parte imprescindível da formação de professoras/es.

Considerando os múltiplos movimentos, contextos e sujeitos que desenham a Educação Popular, Torres (2013) a propõe como pensamento pedagógico e movimento educativo, demarcando as ideias de Paulo Freire como sua origem. Como pensamento pedagógico, apresenta concepções, práticas, conceitos, formas de mediação e metodologias próprias, consoantes à opção ética que orienta sua ação transformadora, motivada por sua crítica à ordem social hegemônica. Ao identificar-se com a produção de alternativas, enseja a elaboração de “estratégias pedagógicas dialógicas, problematizadoras, criativas e participativas” (TORRES, 2013, p. 19), tendo como questão relevante a atuação dos segmentos sociais subalternizados como sujeitos da transformação.

Simultaneamente, sua compreensão como movimento educativo, leva-nos a reconhecer que as experiências concretas não estão orientadas exclusivamente por concepções, pensamentos e teorias pedagógicas elaboradas, mas também por ideologias, imaginários culturais, representações e crenças compartilhadas e reelaboradas pelos educadores populares. Assim, o horizonte emancipatório e a radicalidade da educação popular não são exclusivamente uma questão de paradigmas, mas de imaginários culturais e subjetividades sociais (BERLANGA, 2010) (TORRES, 2012, p. 19).

Como pensamento pedagógico e movimento educativo, a Educação Popular é ampla e plural, abarcando desde movimentos sociais até experiências escolares. Sua atuação envolve como sujeitos pedagógicos: educandas/os individuais e coletivos, educadoras/es e as próprias organizações e instituições em que os processos educativos se realizam.

Importa-nos uma aproximação ao estudo dos movimentos de transformação que se produzem em contextos de educação formal - neste caso, na formação de professoras/es na universidade e na escolarização de crianças e pessoas jovens e adultas em escolas públicas - com produção de processos pedagógicos elaborados a partir de princípios da Educação Popular, em movimentos que pretendem romper com os procedimentos de educação bancária (FREIRE, 2006), ainda fortemente presentes nos processos de escolarização das classes populares. A permanência das experiências de fracasso e de reprodução das desigualdades, no ambiente escolar, expressa a presença da cultura do silêncio (FREIRE, 2006) na composição da relação entre professor/a e estudante e do afastamento entre os conteúdos e métodos escolares e a vida.

O diálogo com os processos escolares comprometidos com a educação libertadora requer o encontro com professoras/es que se desafiam a tomar a relação pedagógica como experiência de humanização daquelas/es que dela participam. Nesta perspectiva, entendemos como é necessário pensarfazer a formação de professoras/es como prática política, que contribua para potencializar a ação docente em conexão e diálogo permanentes com distintos contextos em que se movem e seus sujeitos. Uma formação que seja, que viva e que ensine criação, recriação, contestação e transgressão.

O fato de a Educação Popular surgir a partir dos contextos desiguais e das relações de poder existentes no nosso continente sul, constituindo-se, então, em um paradigma latino-americano e uma produção epistemológica nossa, nos levou a buscar (re)conhecer e vivenciar múltiplas experiências em nosso continente, mais especificamente na Colômbia, e com quem está pensandofazendo educação hoje, nesta perspectiva, com especial atenção para a formação docente.

Dessa forma, destacamos experiências que conhecemos neste país, onde, já há bastante tempo, são desenvolvidas diferentes ações de Educação Popular, sistematizadas e registradas em publicações como “Colombia: ¡30 años de intentarlo! La Educación Popular (EP)” (TORRES, 2010) e “Entretejidos de la Educación Popular en Colombia” (MEJÍA; CENDALES; MUÑOZ, 2013). Encontram-se ainda na Colômbia educadoras/es reconhecidas/os internacionalmente por seu trabalho nesta área (Alfonso Torres, Dolores Cendales e Marco Raúl Mejía), com os quais tivemos oportunidade de conversar e trocar experiências em relação a pesquisas e práticas de formação docente. Além disso, a importante referência de Orlando Fals Borda (1970), sociólogo colombiano, cuja obra dialoga com a obra de Paulo Freire e defende ideias que também orientam práticas de Educação Popular: valorização do conhecimento dos povos originários; produção de conhecimento próprio latino-americano, descolonizado; participação como forma de investigação e transformação.

As experiências aqui discutidas foram visitadas e conhecidas por nós em diferentes períodos do ano 2018, quando estabelecemos contato com variadas propostas e práticas educacionais, desenvolvendo dois projetos de investigação exploratória. Ao todo foram visitadas 10 cidades colombianas (nove em um dos projetos e dois no outro, sendo Bogotá comum aos dois) e mais de 30 espaços educativos, abrangendo associações de moradores/as, sindicatos, ONGs, corporações sociais, universidades, escolas normais e primárias públicas. Foram selecionados espaços cujo trabalho tem buscado criar propostas pedagógicas significativas a partir dos princípios da Educação Popular, indicados pelos dois educadores e pela educadora de referência anteriormente citados: Alfonso Torres, Dolores Cendales e Marco Raúl Mejía.

Durante estas visitas foram realizadas entrevistas com educadoras/es, conversas com professoras/es e estudantes da escola básica, bem como de graduação e pós-graduação das universidades e das escolas normais; levantamento de documentos e publicações produzidos pelos grupos com os quais travamos contato, além de registros escritos, fotográficos e videográficos. Todo esse material foi organizado em diferentes arquivos digitais que passaram a compor, juntamente com as publicações trazidas, o acervo dos grupos de pesquisa e dos cursos de formação docente onde atuamos.

Tais encontros evidenciam a potência da Educação Popular para intensificar as dimensões reflexiva e crítica da formação docente, com o aprofundamento da problematização dos processos e resultados educacionais (escolares e não escolares) historicamente articulados à produção de subalternidade, portanto, pouco favoráveis às classes populares. As experiências que tivemos a oportunidade de conhecer e a bibliografia encontrada na Colômbia sublinham a articulação entre os movimentos de constituição do sujeito como professor/a e suas práticas sociais, indicando a importância de que os diferentes espaçostempos formativos assumam o popular como categoria política, e o diálogo com ele como metodologia privilegiada de uma formação como prática social, entendendo o lugar do povo na qualificação e na construção da educação, como parte da transformação da sociedade.

Esta questão ganha ainda maior relevância pedagógica ao observarmos que grande parte das/os estudantes dos cursos de formação de professoras/es são oriundas/os das classes populares e atuarão, na maioria das vezes, em escolas públicas; e também maior relevância política em função da conjuntura atual que nos apresenta novos desafios como formadoras/es, diferentes dos que vínhamos enfrentando no Brasil, tentando superar com políticas públicas e propostas pedagógicas amparadas em princípios humanistas e democráticos. Estes hoje, sendo absolutamente necessários, não são suficientes. Precisamos aprender a lidar com este contexto construindo diferentes respostas que nos (re)aproximem das classes populares, suas demandas e sua força.

Nossa intenção é colaborar com o fortalecimento do diálogo entre grupos e contextos que, tendo como experiência comum a imposição do paradigma eurocêntrico com a consequente subalternização dos povos latino-americanos, encontram na Educação Popular uma formulação que se sustenta na re-existência e assinala movimentos de transformação. Nesse sentido, é pertinente um breve olhar para questões postas à formação docente no Brasil, identificando relações com princípios articuladores da Educação Popular.

Pensando com Freire a formação docente

Tradicionalmente, a formação docente na América Latina, Brasil obviamente incluído, constitui seus processos e conteúdos a partir dos cânones demarcados pela ciência moderna para atribuir validade a um conhecimento: universalidade, abstração, objetividade e comprovação empírica. Modelo que projeta e solidifica dicotomias, tendendo a reconhecer como pertinentes exclusivamente aqueles conhecimentos que derivam dessa concepção dual e fragmentária que separa, e hierarquiza, ser humano e natureza, mente e corpo, razão e sentimento, sujeito e objeto, verdade e erro, teoria e prática, ensinar e aprender.

Nessa conformação, o lugar da/o professor/a no processo de escolarização varia de um sujeito que é treinado para reproduzir conteúdos e procedimentos, tendo por base a racionalidade técnica, a um sujeito que reflete sobre sua prática e produz/cria com autonomia suas propostas pedagógicas, referenciado na racionalidade prática, ou ao sujeito interativo que assume uma perspectiva problematizadora visando à transformação da realidade e a promoção da justiça social (SAUL; SAUL, 2016). Há, entretanto, clara predominância das vertentes mais próximas ao sentido redutor do trabalho docente, primeiro modelo aqui indicado, no qual a prática pedagógica é apresentada como linear, fracionada e hierarquizada (ALVES, 1998).

Segundo Imbernón (2016), a partir da década de 1990 acentua-se o debate sobre a formação inicial docente e imprime-se um conjunto de mudanças em sua estrutura e conteúdo, como resposta aos novos requerimentos de um mundo em que se intensificam a instabilidade econômica e laboral e as transformações socioculturais, tecnológicas e científicas. O horizonte é a formação do novo modelo de trabalho, compatível com a dinâmica socioeconômica que se afirma.

A composição do modelo neoliberal, nesse período, terá efeitos importantes no desenho da formação do professorado, acentuando sua tendência à uniformização de conteúdos e processos, com redução da formação aos aspectos mais relacionados à instrumentalização para o ensino. Observa-se crescente interferência dos organismos multilaterais e dos reformadores educacionais (FREITAS, 2014) na elaboração das políticas para a educação, com forte presença na formação docente, notadamente nos países periféricos. Tais ações evidenciam o vigor do discurso moderno/colonial (MIGNOLO, 2003) na condução do projeto educacional.

A vertente de formação docente então instaurada se efetiva na contramão do discurso crítico que se vinha produzindo no Brasil desde a década anterior. O processo de redemocratização da sociedade brasileira, que caracteriza a década de 1980, se inscreveu também nos debates sobre a formação docente, como atesta, por exemplo, a ação da ANFOPE2 ao articular diversas/os pesquisadoras/es envolvidas/os com essa questão. Seus trabalhos assumiram uma perspectiva que demarca a docência como a base da identidade profissional do/a educador/a, indicando também a impossibilidade de produção de um modelo único nacional para a formação e a necessidade de “controle coletivo das propostas feitas pelas várias agências formadoras” (ALVES, 1998, p. 136). Um amplo conjunto de pesquisadoras/es, como Alves e Garcia (1992), André (1994), Brzezinski (1987), Candau (1984), Linhares (1995), Ludke (1995), entre tantas/os outras/os, desenvolveu trabalhos convergentes com esse sentido de aprofundamento da formação docente como processo democrático e voltado à democratização da escola.

Esse movimento gerou muitos debates, livros, artigos e experiências em cursos de Pedagogia3, deixando marcas que ainda podem ser percebidas nos estudos e nas ações relativos à formação docente; porém, não se tornou tendência dominante. Se é certo afirmar que dele derivou uma importante produção de conhecimentos, também nos parece correta a percepção de que este conjunto de experiências e conhecimentos vem, desde então, atuando no sentido de tensionar o movimento hegemônico de adequação da formação docente às demandas do modelo neoliberal, chegando, por vezes, a reduzir sua força. Contudo, não foi capaz de interrompê-lo. Ainda assim, vale ressaltar, para além do que adquire maior visibilidade, há, no cotidiano dos processos de formação, práticas e concepções outras, que mantêm acesas a crítica e a possibilidade de resistência que podem fomentar transformações necessárias.

Nesse contexto de formulação crítica de conhecimentos no campo da formação docente, nos quais se originaram tanto consistentes críticas ao modelo vigente como propostas que orientaram a configuração de cursos de formação e a elaboração de políticas públicas, encontramos elementos que dialogam com a educação popular. De acordo com Saul e Silva (2012), a partir de 1992, alguns estados e municípios do Brasil construíram políticas curriculares baseadas nos pressupostos que orientaram o trabalho de Freire frente à Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Ainda conforme os mesmos autores, foram acompanhados por Silva 14 sistemas públicos municipais e estaduais que se inspiraram naquela gestão.

Segundo Saul e Saul (2016), o pensamento freireano se constitui numa matriz crítico-emancipatória, elaborando uma concepção do saber fazer docente sintonizada com fundamentos políticos, filosóficos e antropológicos de sua proposta. A formação das/os educadoras/es foi uma das questões centrais na gestão de Paulo Freire da educação municipal de São Paulo:

A educação é permanente não porque certa linha ideológica ou certa posição política ou certo interesse econômico o exijam. A educação é permanente na razão, de um lado, da finitude do ser humano, de outro, da consciência que ele tem de sua finitude. Mais ainda, pelo fato de, ao longo da história, ter incorporado à sua natureza não apenas saber que vivia, mas saber que sabia e, assim, saber que podia saber mais. A educação e a formação permanente se fundam aí (FREIRE apud SAUL; SAUL, 2016, p. 25).

A ênfase na autonomia docente e na participação como exercício de poder alicerçado na partilha das decisões e das ações, no compromisso com o coletivamente vivido, no diálogo, no compartilhamento de saberes e na reflexão pautada na problematização da prática, sempre em relação com a teoria, caracterizam a compreensão freireana de relação dialógica, assumida como mobilizadora da práxis pedagógica, indispensável à transformação exigida. Nessa perspectiva, Freire propôs os seguintes princípios básicos para o programa de formação de educadoras/es:

a) o educador é o sujeito de sua prática, cumprindo a ele criá-la e recriá-la; b) a formação do educador deve instrumentalizá-lo para que ele crie e recrie a sua prática através da reflexão sobre o seu cotidiano; c) a formação do educador deve ser constante, sistematizada porque a prática se faz e se refaz; d) a prática pedagógica requer a compreensão da própria gênese do conhecimento, ou seja, de como se dá o processo de conhecer; e) o programa de formação de educadores é condição para o processo de reorientação curricular; f) os eixos básicos do programa de formação de educadores precisam atender à fisionomia da escola que se quer, enquanto horizonte da sua proposta pedagógica, à necessidade de suprir elementos de formação básica aos educadores e à apropriação, pelas/os educadoras/es, dos avanços científicos do conhecimento humano que possa contribuir para a qualidade da escola que se quer (FREIRE apudSAUL; SILVA, 2012, p. 9).

Esse programa se confronta às propostas ancoradas no modelo neoliberal, que vem se consolidando no âmbito das políticas públicas para a formação docente, como demonstra a recém aprovada Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação)4. Evidencia-se, neste momento, o reforço do discurso pragmatista da educação, que trabalha com imagens uniformes de professor e de aluno e desconhece a diferença e desigualdade como constituidoras da sociedade brasileira, gerando uma proposta prescritiva, padronizada, na qual teoria e prática são postas em oposição. Caracteriza-se uma abordagem reducionista da formação do professorado e do ato pedagógico, voltados à mera execução de um currículo predefinido e descontextualizado. Tal direcionamento abandona a relevante produção brasileira sobre o tema e revigora proposições já combatidas no Brasil desde a década do 1980, conforme visto.

Portanto, retomar os princípios freireanos para a formação docente nos coloca em sintonia com movimentos históricos em defesa da qualidade do trabalho das/os educadoras/es junto às classes populares. A reflexão sobre os percursos traçados e resultados obtidos, no que conhecemos no Brasil e na Colômbia, reforça a potência da Educação Popular para revigorar a formação docente como processo democrático e plural, eticamente comprometida com a efetivação da escolarização das classes populares como parte de seu histórico processo de libertação. Sua proposição contra-hegemônica nos permite encontrar na dinâmica cotidiana - da escola ou de outros espaços de formação - núcleos que não se ajustam ao modelo moderno/colonial e abrem possibilidades outras.

Esse brevíssimo percurso por movimentos recentes no campo da formação docente assinala a qualidade da escola pública como cerne das preocupações das/os pesquisadoras/es comprometidas/os com a democracia, reafirmando a docência como processo articulado pela relação dialógica entre a prática e a teoria, contextualizado, coletivo, crítico e atento ao fortalecimento da autonomia profissional. Embora nem sempre se encontre relação explícita entre autores que vêm se dedicando à formação docente e as proposições da Educação Popular, a proposta de Freire cria possibilidades de diálogo entre os diversos discursos e movimentos que buscam uma formação de professoras/es crítica, democrática, libertadora.

Nossa pesquisa reafirma a necessidade e a possibilidade de que a formação seja ato de resistência e defesa da educação como prática de liberdade (FREIRE, 1989). A Educação Popular ressignifica a formação docente e a prática social dos sujeitos em formação - observar, atuar, vivenciar práticas educativas em diferentes contextos (escolares e não escolares) - de modo a problematizar experiências de fracasso e reprodução das desigualdades, ainda recorrentes para as classes populares, para transformá-las.

Nesse sentido, a Educação Popular se constitui como um ponto privilegiado para se ad-mirar5 os processos escolares cotidianos. Encontramos na obra de Freire uma perspectiva de formação que une as três dimensões apreciadas nas nossas visitas: a dimensão da forma/método, a dimensão do conteúdo e a dimensão política. A elas nos dedicamos a seguir.

O Cotidiano Escolar como Espaçotempo de Criação e Formação

Os dois trabalhos de pesquisa que dão origem a este artigo tiveram movimentos e objetivos distintos, com pontos convergentes. Considerando as especificidades deste texto e nosso campo de atuação, focalizamos mais especificamente questões afeitas à formação da/o educador/a; à ação docente na universidade, no curso normal e na escola básica.

As convergências de nossas observações, vivências e encontros se deram em três dimensões indissociáveis, que estão presentes nos aspectos anteriormente citados (formação e ação docente e práticas escolares): a dimensão da forma/método, a dimensão do conteúdo e a dimensão política. Estas estão também diretamente relacionadas às dimensões identificadas na Educação Popular e também referidas neste texto: prática, gnoseológica e política (TORRES, 2013).

O primeiro aspecto a destacar é metodológico, pelo caráter praticoteórico do processo formativo. Nas instituições visitadas, desde o início dos cursos de formação docente, a base do trabalho está na observação/atuação na prática, em diferentes contextos: escola, ONG, rural, urbano, infância em situação de risco, Educação de Pessoas Jovens e Adultas. Esta característica também se aprecia na formação permanente, permeada por momentos de reflexão sobre a prática. Ainda que essa relação na formação da/o educador/a não seja uma característica exclusiva da Educação Popular, o encaminhamento metodológico da relação com a teoria e com a prática evidencia a presença de princípios dessa proposta em seus projetos institucionais, que ensejam a formação política das/os professoras/es.

No âmbito da prática, há uma forte articulação com instituições, organizações ou experiências educacionais que se ligam a segmentos sociais subalternizados. A leitura da prática e seu diálogo com a teoria frequentemente derivam de processos de problematização do vivido, pautados na busca de uma interpretação crítica da realidade em consonância com o princípio da intencionalidade ética (CENDALES; MARIÑO, 2004). Este princípio se concretiza também ao orientar a produção de atos pedagógicos articulados pela necessária transformação da realidade, que só pode se dar com a participação dos sujeitos e a valorização da sua cultura e dos seus saberes; e só pode se realizar por sujeitos que, em sua formação, tiveram a oportunidade de (re)conhecer, vivenciar e refletir sobre a relação com os segmentos populares. Encontramos uma dinâmica em que o diálogo, a reflexão, a criação e a transformação guiam a composição das estratégias pedagógicas, em sintonia com o pensamento pedagógico da Educação Popular.

Nesse sentido, a escola básica é tanto espaço de formação para as/os futuras/os educadoras/es, quanto para as/os profissionais que nela já trabalham. Como instituição pública que recebe estudantes dos grupos socialmente subalternizados e muitas vezes marginalizados, o enfrentamento das questões que emergem nos âmbitos educativo e pedagógico faz da experiência cotidiana espaçotempo de formação para quem já atua na docência, quando têm a oportunidade de problematizar e investigar seu contexto de atuação e sua própria prática. A incorporação dos princípios da Educação Popular no projeto político-pedagógico escolar demanda que professoras/es problematizem e estudem coletivamente sua prática e para realizar esta prática, bem como que tenham tido esta experiência no seu processo de formação inicial.

O segundo elemento para nós significativo, como subsídio à nossa reflexão sobre o lugar dessa perspectiva de educação em nosso próprio trabalho na formação docente, se refere ao conteúdo do trabalho pedagógico nas experiências que conhecemos durante o desenvolvimento da pesquisa. O diálogo com diferentes espaços educacionais traz para o trabalho pedagógico questões, conceitos, saberes e princípios diretamente relacionados ao contexto sociohistórico e cultural das/os estudantes e professoras/es. Sendo o diálogo e a participação componentes teórico-metodológicos centrais na Educação Popular, também se inscrevem no processo educativo como conteúdos relevantes que se enunciam em diferentes experiências como objeto de estudo, para que se consolidem como eixos articuladores das alternativas que se produzem como resposta à leitura crítica da desigualdade e da injustiça presentes na ordem social dominante, cuja atuação se faz sentir também na escolarização.

Assim, ganha relevância o estudo das relações sociais e políticas que se estabelecem na sociedade colombiana que, marcadas pela subalternização e desigualdade, do mesmo modo que nos demais países latino-americanos, se produzem como conflituosas. A superação de conflitos cotidianos e a memória do conflito (conflito armado de diferentes forças sociais que marcaram e ainda marcam a história e o cotidiano da sociedade colombiana) se mostraram questões comuns a diferentes sujeitos e contextos com os quais dialogamos. A elas se aliam outras, como: história e cultura dos territórios em que vivem, a sabedoria ancestral de seus povos originários, a multiplicidade de conhecimentos e a cultura da paz. A integração dos saberes de experiência feitos (FREIRE, 1991) ao trabalho pedagógico das instituições é especialmente interessante por se confrontar, como prática coletiva, dialógica e cotidiana, ao modelo prescritivo e eurocêntrico de currículo que prevalece nos projetos educacionais oficiais consoantes ao discurso neoliberal dominante.

Desse modo, o currículo que se produz no bojo das relações e interações cotidianas se faz também ato de resistência, que se fortalece com a mirada crítica e emancipatória da Educação Popular. Movimento que coincide com o assinalado por Gómez e Torres (2018) sobre a pertinência de seus aportes para a proposição do “currículo como criação”, no qual a transformação resulta da ação coletiva de professoras/es, estudantes e demais participantes das comunidades educativas. Trujillo e Trujillo (2018) enfatizam esta ideia ao tratarem da construção de uma escola pública de Educação Popular, na periferia de uma cidade colombiana, indicando a reflexão sobre a prática, a análise dos processos vividos e a organização cooperativa como fundamentais para o êxito do projeto educativo.

As experiências com que nos encontramos afirmam a educação como ato político e a educação com as classes populares reitera seu papel transformador. Sua conexão com processos comprometidos com uma leitura crítica da realidade permite a reapropriação de elementos constituintes das relações sociais e das experiências cotidianas dos sujeitos populares e sua ressignificação, tornando pedagógico o que está excluído. Nesse sentido, observamos nos contextos estudados a conversão do conflito ao mesmo tempo em objeto de conhecimento e dispositivo cognitivo, enquanto forma de aprender, sendo pedagogicamente aproveitado e fundamental para a articulação ao processo educativo, o que permite uma ruptura com a negação dos conflitos, um dos pilares de ordenação e da unidade na construção da sociedade (MEJÍA, 2012). Ao desenvolver assim a prática pedagógica, as/os docentes tentam romper com a pedagogia constituída como universal e normatizadora das práticas educativas, o que é necessário, na perspectiva do autor, para que os saberes em sua multiplicidade sejam reconhecidos e trazidos à relação educativa.

Essas observações das experiências colombianas e as reflexões sobre elas, no movimento da pesquisa, provocaram-nos a pensar na trajetória de formação no contexto brasileiro e levaram-nos a tentar estabelecer relações mais diretas com experiências cotidianas já vividas, na formação de professoras/es na universidade e em práticas educativas em distintos contextos, e possibilidades ainda por viver em nosso país.

Encontrar as experiências colombianas que orientam suas práticas pelos princípios da Educação Popular, e registrar o que já produzimos no Brasil, nos fortalece como professoras pesquisadoras que se dedicam a formar professoras/es, por vislumbrarmos possibilidades diversas de ações e práticas junto a coletivos subalternizados e precarizados em contextos semelhantes aos nossos.

A criação cotidiana de inéditos-viáveis (FREIRE, 2006, 1992), que apreciamos nos distintos espaços e propostas que visitamos na Colômbia e revisitamos na literatura brasileira sobre formação docente, prova a todas/os que delas participam, e que as conhecem, que é possível não só resistir à força do pensamento hegemônico, mas principalmente demonstram a existência da possibilidade de se produzir uma educação outra, formuladora de um mundo outro.

Referências

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1Neste texto, o uso de expressões que unem duas palavras (teoriaprática, espaçotempo, pensarfazer) expressa o entendimento de que essas dimensões e/ou ações são indissociáveis.

2Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação é uma entidade de caráter político-acadêmico originária do movimento dos educadores na década de 1970, e hoje, é uma Entidade de referência no cenário nacional quando se trata de desenvolver estudos, pesquisas e debates sobre a formação e valorização dos profissionais da Educação. Cf. Blog da ANFOPE, disponível em: https://blogdaanfope.wordpress.com/about/

3A esse respeito ver Alves (1998) e Alves e Garcia (1992), sobre a proposta realizada na Faculdade de Educação da UFF.

4Homologada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) via Resolução CNE/CP Nº 2/2019.

5“Para o ponto de vista crítico que aqui defendemos, a operação de mirar implica noutra - a de ad-mirar. Ad-miramos e ao adentrar-nos no ad-mirado ou miramos de dentro e desde dentro, o que nos faz ver” (FREIRE, 1981, p. 31).

Recebido: 30 de Março de 2020; Aceito: 11 de Maio de 2020

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