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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.20 no.65 Curitiba abr./jun 2020  Epub 27-Jul-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.20.065.ds18 

Dossiê

Docência universitária: um olhar sobre a constituição da profissionalidade docente de professores iniciantes

University Teaching: an overview on the constituting of teacher professionality in beginning professors

Docencia universitaria: una mirada a la constitución de la profesionalidad de los maestros principiantes

Marcos Henrique Almeida dos Santosa 
http://orcid.org/0000-0002-0344-3128

Mara Regina Lemes de Sordib 
http://orcid.org/0000-0003-1216-7185

aUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. Doutor em Educação, e-mail: marcosh@ufpa.br

bUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: maradesordi14@gmail.com


Resumo

O artigo objetiva compreender o processo gradativo de constituição da profissionalidade docente de professores iniciantes de uma universidade pública estadual de São Paulo (Brasil), com base nas experiências de formação e atuação profissional vivenciadas no decorrer de suas trajetórias. O texto é oriundo de uma pesquisa predominantemente qualitativa, realizada entre os anos de 2016 e 2020, a partir do acompanhamento do trabalho de 10 professores, de diferentes áreas do conhecimento. Esse acompanhamento se deu essencialmente por meio da observação livre e intensiva de suas aulas durante um semestre letivo e da adoção de narrativas como possibilidade de reflexão e formação. Com base na análise dos dados produzidos, foi possível compreender que os professores iniciantes, conscientes ou não das suas microdecisões pedagógicas, constroem caminhos que possibilitam a constituição de uma profissionalidade docente universitária, a partir da gradativa apropriação e construção, no trabalho pedagógico, de conhecimentos específicos da docência. Tais percursos revelam o compromisso com a atividade de ensino, à medida em que se assume a responsabilidade com a formação dos estudantes, para além da dimensão cognitiva. Compreende-se que esses caminhos precisam ser apoiados, implicando a necessária responsabilidade institucional para com a formação do docente universitário. Sem dúvida, os espaços formativos precisam superar a compreensão técnica e instrumental da docência, assim como possibilitar a clareza quanto ao projeto de formação do estudante que se almeja. Desse modo, as instituições podem possibilitar a afirmação do processo de constituição de uma profissionalidade docente universitária, sobretudo quando consideram a reflexão, investigação e crítica como atitudes que sustentam o exercício profissional da docência.

Palavras-chave: Docência Universitária; Profissionalidade Docente; Professores Iniciantes

Abstract

This article aims to understand the gradual process of building professionality of beginning professors at a public state university in São Paulo, Brazil, based on experiences of training and professional performance during their trajectories. The text comes from a predominantly qualitative research carried out between 2016 and 2020, based on the monitoring of 10 teachers, from different areas of expertise. This monitoring took place essentially through the free and intensive observation of classes, during an academic term, and the adoption of narratives as a possibility for reflection and training. Based on the analysis of the produced data, it has been possible to understand that beginning professors - being aware or not of their pedagogical microdecisions - build paths that allow the constitution of a university teaching professionality, based on the gradual appropriation and construction of a specific knowledge in pedagogical work. Such paths reveal commitment to teaching activity, as the responsibility for the training of students is assumed beyond the cognitive dimension. It is understood that these paths need to be supported, incorporating the necessary institutional responsibility for the training of university teachers. Undoubtedly, the training spaces need to surpass the technical and instrumental understanding of teaching, as well as to enable clarity regarding the student's training project that has been sought. In this way, institutions can make it possible to affirm the process of building a university teaching professionality, especially when they consider reasoning, research and criticism as supporting actions to the professional exercise of teaching.

Keywords: University Teaching; Teaching Professionality; Beginning Professors

Resumen

Este artículo tiene como objetivo comprender el proceso gradual de constitución de la profesionalidad de los maestros principiantes en una universidad pública estatal en São Paulo, Brasil, a partir de las experiencias de capacitación y desempeño profesional experimentadas durante sus trayectorias. El texto proviene de una investigación predominantemente cualitativa entre los años de 2016 y 2020, basada en el monitoreo del trabajo de 10 docentes, desde diferentes áreas del conocimiento. Este monitoreo se llevó a cabo esencialmente a través de la observación libre e intensiva de sus clases, durante un semestre académico y la adopción de narrativas como una posibilidad de reflexión y capacitación. Con base en el análisis de los datos producidos, ha sido posible comprender que los docentes principiantes, conscientes o no de sus microdecisiones pedagógicas, construyen caminos que permiten la constitución de una profesionalidad docente universitaria, basada en la apropiación gradual y la construcción, en el trabajo pedagógico, del conocimiento específico para la enseñanza. Dichos caminos revelan el compromiso con la actividad docente, ya que se asume la responsabilidad de la formación de los estudiantes, más allá de la dimensión cognitiva. Se entiende que estos caminos deben ser apoyados, lo que implica la responsabilidad institucional necesaria para la formación de docentes universitarios. Sin lugar a dudas, los espacios de capacitación deben superar la comprensión técnica e instrumental de la enseñanza, así como permitir claridad sobre el proyecto de capacitación del estudiante que se está buscando. De esta manera, las instituciones pueden hacer posible afirmar el proceso de constituir una profesión docente universitaria, especialmente cuando consideran la reflexión, la investigación y la crítica como actitudes que apoyan el ejercicio profesional de la enseñanza.

Palabras clave: Docencia universitaria; Profesionalidad Docente; Maestros principiantes

Introdução

O debate sobre docência universitária assumiu contornos significativos no cenário acadêmico-institucional brasileiro nas três últimas décadas, sobretudo com a emergência da problemática da formação para o exercício do magistério no ensino superior. No âmbito dessa problemática, germinam investigações e discussões sobre a profissionalidade docente, que expressa a natureza profissional da docência, e a necessidade de reafirmação do ato de ensinar inerente à função docente, bem como a acepção básica da docência como profissão em ação, na perspectiva processual.

Pesquisadores como Roldão (2005; 2007), Cunha (2006), Bazzo (2007) e Ramos (2010) nos auxiliam a compreender os contornos desse debate na educação superior. Debate já travado, de forma genérica, por autores como Gimeno Sacristán (1995), Contreras (2002), Ramalho, Nuñez e Gauthier (2004) e Morgado (2005). Esse conjunto de produções possibilita a compreensão da necessidade de um olhar mais atento sobre as aprendizagens e experiências adquiridas e vivenciadas pelo professor universitário, ao longo de seu percurso profissional e de formação, dada a ausência de um curso específico de formação inicial para o exercício da docência na universidade. Necessidade que se acentua quando consideramos os desafios inerentes à fase de iniciação à docência universitária.

Esse debate propulsionou o desenvolvimento de uma investigação doutoral1 norteada pela seguinte questão: Quais as implicações do processo de constituição da profissionalidade docente de professores iniciantes sobre o trabalho desenvolvido no ensino de graduação?

Diante dessa questão, trilhamos, entre os anos de 2016 e 2020, um percurso metodológico ancorado em uma abordagem predominantemente qualitativa (MINAYO, 2001). Partimos do diálogo inicial com uma universidade pública estadual de São Paulo (Brasil) e seu espaço de apoio à docência universitária para nos aproximarmos de seus professores recém-ingressantes. Diálogo que nos possibilitou ratificar a compreensão de que quem ingressa na instituição não necessariamente está iniciando na carreira docente, podendo ter tido experiências anteriores em outras instituições, como professor do ensino superior.

Com base nessa compreensão, a pesquisa de campo foi essencialmente configurada pelo acompanhamento do trabalho desenvolvido por 10 professores iniciantes no ensino de graduação, pertencentes a diferentes áreas do conhecimento (Artes e Humanidades; Ciências Biológicas e Saúde; Ciências Exatas e Tecnológicas). Esses professores ingressaram na instituição entre 2014 e 2016 e estavam na fase inicial do exercício profissional da docência universitária, concernente aos três primeiros anos (HUBERMAN, 1992). São doutores, com formação acadêmica em suas respectivas áreas do conhecimento, sendo nove bacharéis e apenas um com licenciatura e bacharelado. A maioria participou das ações institucionais de acolhimento aos ingressantes e/ou de um curso de formação pedagógica.

No primeiro semestre de 2017, realizamos a observação livre (TRIVIÑOS, 1987) e intensiva das aulas ministradas pelos professores iniciantes, instituindo uma dinâmica de acompanhamento e diálogo, fundamental para nossas reflexões (pesquisadores e participantes) sobre o processo de constituição da profissionalidade docente. Acompanhamos quase a totalidade das aulas, correspondendo a cerca de 290 horas-aula observadas.

Paralelamente à observação, convidamos os professores a narrar, por escrito e/ou oralmente, sobre as experiências vivenciadas e aprendizagens adquiridas no decorrer de suas trajetórias de formação e atuação profissional. A adoção da narrativa como procedimento de pesquisa (CUNHA, 2010) configurou-se como uma possibilidade de reflexão e formação, considerando que “[...] o professor, ao ser instigado a falar sobre suas concepções e experiências, organiza seu pensamento e utiliza a narrativa como processo reflexivo” (CUNHA, 2006, p. 31-32).

O processo de reflexão foi favorecido com a realização de dois encontros com cada professor, sendo um no meio do semestre e outro ao final do semestre, nos quais os professores foram convidados a, oralmente, refletir sobre as aprendizagens e experiências vivenciadas no decorrer do semestre. Nessas ocasiões, compartilhamos alguns de nossos registros escritos do trabalho de observação e apresentamos algumas questões que pudessem auxiliar na reflexão. Além disso, ao final do semestre, socializamos brevemente alguns pontos sinalizados pelos estudantes no grupo focal (GATTI, 2005), que foi realizado com eles para compreendermos o que o trabalho desenvolvido pelos professores possibilitou para sua formação.

Para analisar os dados produzidos na investigação, sustentamo-nos na análise de conteúdo temático-categorial (BARDIN, 2016). Constituímos unidades temáticas, com base no conteúdo manifesto no material empírico, a partir da seleção de trechos (sentença, conjunto de sentenças e parágrafos), provenientes das diversas fontes e procedimentos, que estivessem de fato imbricados com nossa questão de pesquisa. Esses trechos (unidades temáticas) foram agrupados, por analogia, em macrounidades de contexto (totalidade dos excertos). No processo de categorização, ou seja, no reagrupamento por analogias temáticas, agregamos as unidades de contexto em categorias empírico-analíticas, que serviram de base, portanto, para as discussões abordadas nesse trabalho.

Desse modo, o processo de investigação culminou na produção da tese (SANTOS, 2020), que resultou na elaboração do artigo, cujo objetivo é compreender o processo gradativo de constituição da profissionalidade docente de professores universitários iniciantes, com base nas experiências de formação e atuação profissional vivenciadas no decorrer de suas trajetórias.

O texto está organizado em duas seções. Na primeira, situamos o debate sobre profissionalidade docente, trazendo à tona produções acadêmicas que auxiliam nosso olhar analítico. Na segunda seção, aprofundamos as discussões sobre profissionalidade docente universitária, tomando como referência nosso cenário de investigação para discutir as experiências vivenciadas e os desafios para a formação do docente universitário.

Profissionalidade docente: situando o debate

Na compreensão sobre a docência como profissão, fundada em estudos sobre a formação de professores, alguns autores nos auxiliam na compreensão da profissionalidade docente e, portanto, fundamentam a análise da realidade que investigamos. Primeiramente, apresentamos o trabalho de Gorzoni e Davis (2017). As autoras situam que o termo profissionalidade docente, nos estudos mais recentes, relaciona-se à especificidade da ação docente, de ensinar, que envolve tanto um conhecimento profissional específico quanto o desenvolvimento de uma identidade profissional, com a expressão de modos próprios de ser e atuar como docente. Declaram que “grande parte dos autores coloca ênfase na construção de competências e no desenvolvimento de habilidades próprias ao ato de ensinar, adquiridas nas formações e nas experiências de trabalho do professor” (p. 1411).

Com base nessa compreensão, identificamos uma dupla perspectiva, na qual grande parte dos autores se sustenta: a da qualificação e a da competência. Ao situar a discussão sobre a profissionalidade na relação entre essas perspectivas, com base em alguns autores, Ramos (2010, p. 48) propõe que:

[...] a profissionalidade congrega duas facetas interdependentes que não se reduzem à aquisição de um novo conhecimento nem à realização de uma ação, mas implica considerar que o sentido de um novo conhecimento encontra a sua expressão na ação. Ou seja, no caso da concepção de profissionalidade focada, qualificação e competência, apesar de serem distintas, respeitam a um mesmo movimento relacional.

Importa-nos compreender que essa natureza relacional do conceito, implicada pelo sentido do conhecimento expresso na ação, está ligada, portanto, a um caráter empírico e científico da profissionalidade.

As concepções apresentadas por Ramos (2010) possibilitam-nos entender que a noção de competência está ligada à profissionalidade empírica, enquanto a noção de qualificação relaciona-se à profissionalidade científica. Mencionamos, ainda, a distinção entre profissionalidade restrita, circunscrita à intuição e à experiência em sala de aula, e profissionalidade extensa, que reconhece os conhecimentos que fundamentam o campo da educação e referenciam o exercício da docência. Desse modo,

[...] o desafio se localiza na superação de uma profissionalidade restrita, num transitar para o reconhecimento e desencadeamento de um diálogo entre a profissionalidade empírica e científica. Ou seja, é exigida uma dupla ruptura, a primeira com o reconhecimento de um outro saber que não apenas o disciplinar, e a segunda com o reconhecimento de que este saber adquire sentido em diálogo com a experiência (RAMOS, 2010, p. 50).

A partir disso, compreendemos a relevância do entendimento da profissionalidade como um conceito em construção. Para Gimeno Sacristán (1995, p. 65), a profissionalidade docente é “[...] a afirmação do que é específico na acção docente, isto é, o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor”. O autor, além de incluir no conceito a dimensão ética da docência, declara que ele “[...] está em permanente elaboração, devendo ser analisado em função do momento histórico concreto e da realidade social que o conhecimento escolar pretende legitimar; em suma, tem de ser contextualizado” (GIMENO SACRISTÁN, 1995, p. 65).

Essa compreensão se aproxima à de Cunha (2006, p. 24). A autora aponta que o termo profissionalidade “[...] se traduz na ideia de ser a profissão em ação, em processo, em movimento”. E aponta que talvez essa concepção seja mais adequada do que a de profissão, considerando que o “[...] exercício da docência nunca é estático e permanente; é sempre processo, é mudança, é movimento, é arte” (p. 24). A autora afirma, porém, que essa concepção “[...] contraria a histórica premissa construída para o trabalho do professor, materializada na ideia de que a função docente resume-se em ensinar um corpo de conhecimentos estabelecidos e legitimados pela ciência e pela cultura” (p. 24).

Compreendendo essa dinâmica processual, o olhar sobre a profissão em ação, não pode estar desvinculado da compreensão da natureza da função específica do professor. Roldão (2007) considera a ação de ensinar como o caracterizador distintivo do docente. Para além de uma visão tradicional, de ensinar como sinônimo de transmitir um saber, de passar o conhecimento e do papel do professor como aquele que professa um saber por ele dominado, a autora caracteriza a função de ensinar, nas sociedades atuais, pela figura da dupla transitividade e pelo lugar de mediação.

Ensinar configura-se assim, nesta leitura, essencialmente como a especialidade de fazer aprender alguma coisa (a que chamamos currículo, seja de que natureza for aquilo que se quer ver aprendido) a alguém (o acto de ensinar só se actualiza nesta segunda transitividade corporizada no destinatário da acção, sob pena de ser inexistente ou gratuita a alegada acção de ensinar) (ROLDÃO, 2007, p. 95, grifo da autora).

Nessa dupla transitividade, o professor, para além do conteúdo científico que aborda, é responsável pela mediação entre o saber e o aprendente, sendo aquele que ensina não só alguma coisa, mas alguma coisa a alguém, fazendo com que o outro, estudante, seja conduzido a aprender. Define-se, então, como um profissional de ensino. Roldão (2007) parte do pressuposto da centralidade do conhecimento profissional como fator decisivo da distinção profissional, apontando que “existe uma estreitíssima ligação entre a natureza da função e o tipo de conhecimento específico que se reconhece como necessário para a exercer” (p. 97).

Em outro texto, Roldão (2005) compreende a profissionalidade como o “[...] conjunto de atributos, socialmente construídos, que permitem distinguir uma profissão de outros muitos tipos de actividades, igualmente relevantes e valiosas” (p. 108, grifo da autora). E analisa quatro caracterizadores desse conceito, que trazem à tona a natureza profissional da docência:

O reconhecimento social da especificidade da função associada à actividade (por oposição à indiferenciação); o saber específico indispensável ao desenvolvimento da actividade e sua natureza; o poder de decisão sobre a acção desenvolvida e consequente responsabilização social e pública pela mesma - dito doutro modo, o controlo e sobre a actividade e a autonomia do seu exercício; e a pertença a um corpo colectivo que partilha, regula e defende, intra-muros desse colectivo, quer o exercício da função e o acesso a ela, quer a definição do saber necessário, quer naturalmente o seu poder sobre a mesma que lhe advém essencialmente do reconhecimento de um saber que o legitima (ROLDÃO, 2005, p. 109, grifo da autora).

Esses caracterizadores sustentam o olhar da autora sobre as particularidades da profissionalidade docente no ensino superior. No que se refere ao poder de decisão, por exemplo, a autora situa a autonomia universitária para sublinhar que “[...] o docente de ensino superior concebe o currículo das suas disciplinas, entra ou não entra na instituição, progride ou não progride na carreira, pelo aval dos seus pares e não do estado, e exerce a docência como um percurso autónomo” (ROLDÃO, 2005, p. 120, grifo do autor). Salientamos, ainda, a análise da autora sobre o saber, que configura a especificidade profissional do docente. Roldão (2005, p. 122) aponta a limitação de esse saber “[...] se centrar no conteúdo do saber ensinado, e muito pouco no saber educacional, integrador do saber conteudinal e do saber processual”. A autora conclui que

[...] o estatuto do docente do ensino superior aproxima-se mais dos caracterizadores de profissionalidade pela via da autonomia sobre a acção e da construção do saber científico dentro das próprias comunidades, que se regulam e exercem controlo interno. Contudo, o exercício docente no ensino superior continua muito marcado por uma concepção empobrecida de ensinar como mero acto de passagem, vinculado a um procedimento de ensino que permanece individual e isolado, e escassamente alimentado por saberes pedagógicos (ROLDÃO, 2005, p. 122-123, grifo da autora).

Dentre as perspectivas teóricas que se situam nas discussões sobre profissionalidade docente, evidenciamos, ainda, os modelos sociais abordados por Morgado (2005), que se aproximam dos modelos de compreensão da prática profissional do ensino, abordados por Contreras (2002).

O modelo de profissionalidade técnica (MORGADO, 2005) ou de racionalidade técnica (CONTRERAS, 2002) se configura segundo a ideia básica de que “a prática profissional consiste na solução instrumental de problemas mediante a aplicação de um conhecimento téorico e técnico, previamente disponível, que procede da pesquisa científica” (CONTRERAS, 2002, p. 90), ou seja, situa o professor como especialista técnico.

O modelo de profissionalidade reflexiva (MORGADO, 2005), alicerçado pela epistemologia da prática, compreende o ensino como prática reflexiva e o professor como profissional reflexivo (CONTRERAS, 2002). É um modelo que se sustenta na ideia de que o conhecimento está na ação e que reconhece a reflexão sobre a prática.

O modelo de profissionalidade crítica (MORGADO, 2005) ou do professor como intelectual crítico (CONTRERAS, 2002) vai além das perspectivas de análise dos problemas internos da sala de aula, conferindo à reflexão uma dimensão crítica. Inclui-se, assim, a análise sobre “o sentido do ensino e os fins pretendidos” (CONTRERAS, 2002, p. 155). Supõe-se o desenvolvimento de um pensamento crítico, a partir do questionamento que os professores fazem sobre o sentido de sua ação, tendo em vista a compreensão e a transformação social (CONTRERAS, 2002). Segundo Contreras (2002, p. 157-158),

Conceber o trabalho dos professores como trabalho intelectual quer dizer, portanto, desenvolver um conhecimento sobre o ensino que reconheça e questione sua natureza socialmente construída e o modo pelo qual se relaciona com a ordem social, bem como analisar as possibilidades transformadoras implícitas no contexto social das aulas e do ensino.

Nesse sentido, o enfoque da reflexão crítica tem o propósito claro de analisar a origem social e histórica dos problemas vivenciados no cotidiano da sala de aula, para além das intenções e atuações pessoais dos professores. Desse modo, a constituição de uma profissionalidade crítica consideraria os fatores sociais e institucionais que condicionam a prática educativa e a emancipação das formas de dominação que afetam o pensamento e a ação, conduzindo, portanto, à produção de uma prática emancipatória, sustentada na autonomia profissional dos professores, entendida como processo progressivo de emancipação (CONTRERAS, 2002).

O modelo de profissionalidade crítica nos remete à compreensão de Ramalho, Nuñez e Gauthier (2004), quando sinalizam que para além dos conhecimentos profissionais mobilizados na ação, com vistas à aprendizagem dos estudantes, é importante o trinômio reflexão, investigação e crítica, como atitudes fundamentais para o exercício profissional da docência. Em diálogo com esse trinômio, Ramos (2010) aponta, com base em seu estudo sobre a profissionalidade docente universitária, a perspectiva de uma profissionalidade crítica, investigativa e reflexiva, compreendida, portanto, em outra racionalidade. Essa profissionalidade se (re)constrói numa dinâmica relacional competência-qualificação e é entendida no contexto de “outra compreensão e atitude diante da construção e produção do conhecimento” (RAMOS, 2010, p. 300), possibilitando, por intermédio de uma atitude investigativa, reflexiva e crítica, o desenvolvimento da capacidade analítica.

A autora investigou a possibilidade de ações de atualização pedagógico-didática na Universidade do Porto se configurarem em espaço de reflexão sobre a profissionalidade docente universitária. Segundo a autora: “a emergente reconceitualização da docência universitária é atravessada pelo reconhecimento da insuficiência de uma profissionalidade centrada no domínio disciplinar” (RAMOS, 2010, p. 46).

O entendimento das particularidades da profissionalidade docente no ensino superior nos remete a algumas pesquisas desenvolvidas nos programas de pós-graduação brasileiros, que discutem o tema seja como consequência da compreensão dos saberes docentes (BORGHETTI, 2017) ou da competência docente (LACERDA, 2011), seja com base na compreensão desse processo em determinado campo, como a engenharia (VAZ, 2016) ou a educação profissional (HELMER, 2012). Dentre esses trabalhos, ressaltamos aqui a tese de Bazzo (2007).

Bazzo (2007), sustentando-se principalmente em Gimeno Sacristán (1995), procura compreender a constituição da profissionalidade docente na educação superior no contexto da universidade brasileira, situando desafios e possibilidades. A pesquisadora realizou entrevista semiestruturada com 18 professores efetivos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de diferentes áreas, nove dos quais com mais de dez anos de exercício (“seniores”), coordenadores ou ex-coordenadores de cursos de graduação, e nove professores recém-contratados (“ingressantes”). Dentre os principais resultados, aponta-se que a expressão profissionalidade docente era desconhecida para os participantes e sua significação, apenas intuída. Todavia, por suas vivências e trajetórias profissionais, os participantes obtêm importantes insights a esse respeito. Bazzo (2007) declara ainda que vários entrevistados escolheram relacionar positivamente a constituição da profissionalidade docente ao crescimento pessoal do professor, assinalando a importância das trajetórias no seu amadurecimento profissional, político e humano.

Segundo Bazzo (2007), há um interesse dos participantes em entender melhor o complexo processo pelo qual passam diariamente diante dos seus compromissos docentes. Ademais, eles admitem a necessidade de formação específica para adquirirem o que classificaram como sua “segunda profissionalidade”, apesar de reconhecerem que pouco se faz (individual e institucionalmente) para desenvolvê-la de forma mais “científica, crítica e consciente”. Desse modo, Bazzo (2007, p. 196) afirma, com base nos resultados,

[...] que haveria espaço para incluir na agenda de professores universitários processos de formação que contribuíssem para o desenvolvimento de uma profissionalidade docente crítica, reflexiva e emancipadora, apesar da ainda pouca importância que a ela se consegue dar, individual e institucionalmente, neste nível de ensino, e dos limites impostos pelas determinações mais amplas do contexto histórico-político e social em que a Universidade está mergulhada.

A autora coloca como possibilidade a instauração de processos individuais e coletivos, institucionalmente apoiados, de formação pedagógica que visem a desenvolver a profissionalidade docente dos professores universitários como parte do esforço para restaurar os compromissos da universidade com seus estudantes e com a sociedade.

As pesquisas de Bazzo (2007) e Ramos (2010) possibilitaram nossa compreensão sobre o sentido de uma profissionalidade docente universitária, em uma perspectiva crítica, reflexiva, investigativa e emancipadora, bem como sobre a responsabilidade institucional com ações de formação pedagógica e espaços de reflexão acerca desta profissionalidade. Instigaram-nos a compreender melhor o processo de constituição da profissionalidade, com base no olhar sobre o trabalho desenvolvido por professores universitários iniciantes.

Profissionalidade docente universitária: experiências e desafios

No cenário de investigação, ao dialogarmos com os professores universitários iniciantes, seus saberes e práticas no ensino de graduação, identificamos diversificadas experiências de formação e atuação profissional que possibilitaram a mobilização e construção, no trabalho pedagógico, de conhecimentos profissionais específicos da docência.

Os professores, no decorrer de suas trajetórias, vivenciaram experiências significativas de qualificação (profissionalidade científica), tanto no âmbito individual (autoformação) quanto em espaços coletivos (na pós-graduação stricto sensu e na própria instituição de atuação profissional), que referenciam e justificam suas práticas (profissionalidade empírica).

Minha formação de professor é um grande mosaico de coisas, que eu fui lendo e aprendendo, testando [...] depois do curso [de formação institucional], depois de ler a respeito, depois de fazer minhas próprias experiências também, eu fui vendo coisas que dão certo, coisas que não dão tão certo (Reflexão de um Professor - Ciências Exatas e Tecnológicas).

Identificamos a compreensão de alguns professores de que o aprendizado para o exercício da docência ocorre a partir da experiência, continuamente: “[...] creio que o maior aprendizado ocorreu na prática, após meu ingresso na docência. Turma após turma, erro após erro, acerto após acerto” (Narrativa de uma Professora - Ciências Exatas e Tecnológicas). Alertamos, entretanto, para a necessária superação de uma profissionalidade restrita tão somente à experiência em direção a uma profissionalidade extensa, que abranja os conhecimentos do campo da educação a partir do necessário preparo, como alguns professores apontam:

[...] eu me sinto muito tateando ainda nesse processo. Mas o que eu percebo é que como os professores da universidade não têm um preparo pra docência, todo o processo é muito intuitivo. Porque é isso, dificilmente aqui alguém fez licenciatura, ou teve alguma base de pedagogia. É sempre uma formação na prática (Reflexão de uma professora - Artes e Humanidades).

Desse modo, para além de reducionismos a uma profissionalidade empírica, limitada à experiência, é importante reconhecer seu necessário diálogo com a profissionalidade científica (RAMOS, 2010). Esse diálogo potencializa-se quando as políticas e ações, institucionalmente organizadas, de formação do professor universitário iniciante possibilitam não somente a afirmação da necessidade de qualificação, em uma perspectiva aderente à profissionalidade científica, como também quando estão permeadas por estratégias que reconheçam e valorizem o próprio conhecimento que o professor constrói e mobiliza em sua experiência de atuação profissional.

Uma das professoras enriquece esse debate apresentando a visão da formação e atuação docente como uma interface de ciência e arte. Sendo assim, ela reflete que existe um conjunto de conhecimentos (dimensão da ciência) que precisam ser apropriados para o exercício da docência, bem como aprendizagens que se constituem na experiência (dimensão da arte). Assim, reflete sobre algumas situações que vivenciou no decorrer de sua atuação:

Vejo a formação e atuação docente como ciência e arte, requerendo estudo, mas também criatividade, para tornar as aulas interessantes aos alunos [...] A gente tem uma ciência, que a gente precisa se apropriar dela. E cada vez que a gente se apropria e coloca na prática, a gente vai aperfeiçoando. Daí a arte. E também tem muita coisa que a gente nunca foi ensinada, por isso muito da arte. (Reflexão de uma Professora - Ciências Biológicas e Saúde).

Portanto, afirmamos, com base em Ramos (2010), a necessidade de uma profissionalidade que congregue duas facetas interdependentes, qualificação e competência, que respeitam a um mesmo movimento relacional. O diálogo entre a profissionalidade empírica e a científica, para além de uma perspectiva restritiva à aquisição de um novo conhecimento ou à realização de uma ação, implica considerar o sentido de um novo conhecimento que encontra a sua expressão na ação (RAMOS, 2010).

Quando os conhecimentos adquiridos e mobilizados em suas experiências formativas se expressam na ação, evidenciamos que os professores universitários, de forma intencional ou não, explícita ou implícita, reconhecem a natureza profissional da docência, compreendendo o ato de ensinar como inerente à função docente. A noção de transferir o conhecimento é acionada por alguns professores e expressa a apropriação que eles têm dos conhecimentos específicos das suas áreas e que, portanto, são compartilhados com os alunos:

Eu gosto muito de transferir o conteúdo. Acho que, na verdade, o ensino você sempre está transferindo o que você sabe para o outro. E isso me faz muito feliz, assim. O ato de ser professora, de mostrar aquilo que eu sei e ver os alunos absorvendo aquilo é o que mais me deixa feliz [...] (Reflexão de uma Professora - Ciências Biológicas e Saúde).

Porém, identificamos que essa noção vai além da ideia restrita de ensinar como passar o conhecimento e do professor como aquele que professa um saber por ele dominado, tendo em vista o reconhecimento de um sujeito, aluno, e do compromisso com sua aprendizagem, tal como observamos no trabalho dos professores.

[Professora:] “Eu não tenho uma resposta certa para isso [...] tenho uma vaga hipótese [...] alguém tem uma pista?”. “Posso tentar?”, arrisca um aluno. “Vamos tentar. Eu também vou tentar”, desafia a professora. Após a colocação do aluno, a professora destaca: “Eu acho que faz sentido o que você está falando” (Registro do trabalho de uma Professora - Artes e Humanidades).

Além disso, a noção de ensinar também se expressa, pelos professores, no seu sentido complementar, ou seja, transferir de forma que os alunos tenham capacidade de compreender, de você tentar mostrar como aprender, de auxílio nesse caminhar de aquisição de um conhecimento (Reflexão de uma Professora - Artes e Humanidades). Aproxima-se, assim, da noção de ensinar algo a alguém, ou seja, fazer aprender alguma coisa a alguém, que caracteriza a função de ensinar, distintiva do docente, com base nessa dupla transitividade e no lugar de mediação (ROLDÃO, 2007).

A ideia de mediação entre o saber e o aprendente, que faz com que o outro, estudante, seja conduzido a aprender, se manifesta, explícita ou implicitamente, nas falas dos professores iniciantes e/ou no seu trabalho. Quando expressam de forma explícita, fazem referência aos processos formativos vividos institucionalmente: “[...] eu bebo da água [da ação de formação institucional], que mostrou pra gente essa relação professor-aluno, que é mediada. Que é, na verdade, a mediação” (Reflexão de um Professor - Ciências Exatas e Tecnológicas).

Na constituição dessa relação mediada, os professores valorizam a importância do conhecimento específico de suas áreas. Porém, para além de uma profissionalidade docente restrita ao domínio de um conteúdo, identificamos a construção do conhecimento pedagógico em seu exercício profissional, sobretudo a partir dos saberes mobilizados em suas experiências formativas.

Com certeza, todo professor deve ter, primeiro de tudo, domínio mínimo do assunto que vai tratar [...] Além disso, óbvio, os conhecimentos didáticos também são importantes: conseguir planejar bem seu curso, saber o que é importante, o que não é, onde você vai focar, quais atividades você vai desenvolver com os alunos para que eles desenvolvam aquela dada habilidade... (Reflexão de um Professor - Ciências Exatas e Tecnológicas).

A afirmação da necessidade de conhecimentos específicos para o exercício profissional da docência é, certamente, primordial. Entretanto, cabe-nos alertar sobre as limitações de uma possível compreensão técnica e instrumental da docência, que restringe os conhecimentos pedagógicos a técnicas de ensino prescritas para aplicação nas aulas universitárias. Esta compreensão, sustentada em um modelo de profissionalidade técnica (MORGADO, 2005), restringe as possibilidades de reflexão sobre as situações vivenciadas no cotidiano profissional.

Alguns professores sinalizam a necessidade de aprender novas técnicas, de criar um banco de dados, de sugestões e melhorias, ou criar um manual de boas práticas, algo do gênero, para os professores seguirem (Reflexão de um Professor - Ciências Exatas e Tecnológicas). Revelam, sem dúvida, uma expectativa predominante na fase de iniciação à docência universitária, que é expressa, sobretudo, por profissionais que trilharam percursos acadêmicos em suas áreas específicas do conhecimento: Eu fui treinado por 12 anos para ser engenheiro e eu tive um curso de horas para ser professor (Reflexão de um Professor - Ciências Exatas e Tecnológicas).

Outros professores reconhecem e vivenciam experiências que valorizam a dimensão da reflexão sobre a prática, fortalecendo o sentido de uma profissionalidade reflexiva (MORGADO, 2005). A própria participação na pesquisa, em especial nos encontros realizados, desencadeou esse processo de reflexão:

Na verdade, aquele momento, para mim, foi um momento de reflexão, de pensar sobre aquela questão toda que você estava trazendo [...] uma coisa muito legal daquela conversa é que enquanto eu te respondia, eu estava ganhando pensamento meu sobre as ideias de tornar o processo de aprendizado mais agradável. E acho que a partir disso eu consegui me organizar um pouco mais e entender o que estava acontecendo nesse processo (Reflexão de um Professor - Ciências Exatas e Tecnológicas).

O processo de reflexão possibilita, assim, a afirmação de outros sentidos para a compreensão da docência, que insinuam a necessidade de superação da busca por soluções instrumentais para os problemas vivenciados no exercício profissional.

Ademais, o processo gradual de construção do conhecimento pedagógico pelos professores nos fornece indícios de uma tentativa de ruptura com o que tem predominado em um dos caracterizadores da profissionalidade docente no ensino superior: um saber específico centrado no conteúdo do saber ensinado e muito pouco no saber educacional, portanto, escassamente alimentado por saberes pedagógicos (ROLDÃO, 2005). Para além da insuficiência de uma profissionalidade centrada no domínio disciplinar, observamos que os caminhos trilhados pelos professores expressam valores e posturas profissionais, tais como a seriedade, a honestidade e a ética, que revelam o compromisso com a atividade de ensino e, consequentemente, a responsabilidade com a formação profissional dos estudantes.

Esses caminhos revelam a constituição de uma profissionalidade docente universitária (RAMOS, 2010), a partir da gradativa apropriação e construção, pelos professores, dos conhecimentos necessários ao exercício da docência. Processo gradativo que contribui para a afirmação do sentido de uma “[...] profissão em ação, em processo, em movimento” (CUNHA, 2006, p. 24).

Nesse processo de constituição, para além do reconhecimento e mobilização dos conhecimentos inerentes ao exercício profissional, identificamos algumas dimensões que permeiam o trabalho pedagógico dos professores, contribuindo para a construção de outros sentidos para a formação universitária, que não se restringe à aprendizagem dos conteúdos específicos das áreas do conhecimento.

O estímulo à autonomia e a participação dos estudantes no trabalho pedagógico, por exemplo, foram reconhecidas por meio de estratégias como: aulas expositivas dialogadas; grupos de discussão; apresentação e discussão de vídeos; leitura coletiva de textos; estudo dirigido e realização coletiva de exercícios.

O professor lança uma pergunta. E indica: “Pensa aí com seus colegas, cinco minutinhos”. Os alunos começam, então, a interagir entre si, dialogando sobre as possibilidades para os processos sinalizados pelo professor. Após essa interação, o professor indica: “Bom, parece que o pessoal já está chegando [...] alguém tem alguma sugestão que quer compartilhar com a gente? [...] lembrem-se... Não tem certo ou errado, todos estão aqui para aprender”. Os alunos vão sinalizando, então, as possibilidades. E o professor dialoga com eles, a partir disso, esclarecendo dúvidas e destacando alguns aspectos do conteúdo. Esse processo provocou uma interação maior dos alunos com o trabalho desenvolvido [...] Na continuidade do diálogo, verifica: “Esse grupo aqui discutiu bastante. Vocês chegaram em uma proposta?”. E, a partir de um aspecto problematizado por uma aluna, ele sinaliza: “Agora a gente está começando a caminhar para a direção que eu queria [objetivo da disciplina] [...]”. E, na lousa, esboça gráficos e ilustrações (Registro do trabalho de um Professor - Ciências Exatas e Tecnológicas).

Em diálogo com as estratégias adotadas, destacamos as referências que os professores fazem às experiências formativas que vivenciaram e que possibilitaram a inclusão da dimensão da autonomia e participação no trabalho pedagógico.

Com esses conhecimentos percebi que com planejamento e abordagem ativa das aulas, saindo da aula tradicional expositiva, a prática da docência fica mais agradável e com melhores resultados para o professor e para os alunos, principalmente (Narrativa de uma Professora - Ciências Biológicas e Saúde).

Além das vivências formativas, as experiências de atuação profissional, vividas por alguns professores em suas áreas específicas do conhecimento, contribuíram para o exercício de uma docência universitária fundamentada na relação entre teoria e prática profissional.

A experiência profissional que tive antes de iniciar minha carreira como docente foi muito importante. Proporcionou-me um amadurecimento profissional, uma vez que minha formação acadêmica é em outra área: [curso da área de Ciências Biológicas e Saúde]. Essa vivência me permitiu o contato direto com problemas reais das indústrias [...], possibilitando assim trazer para o ambiente de sala de aula exemplos práticos sobre os temas teóricos abordados no conteúdo programático (Narrativa de uma Professora - Ciências Exatas e Tecnológicas).

Diversificadas estratégias adotadas pelos professores possibilitaram o estreitamento do estudante com a realidade de atuação profissional: discussão de instrumentos, casos e simulação de procedimentos adotados profissionalmente; adoção de recursos audiovisuais que abordavam situações específicas do contexto profissional; socialização de experiências profissionais por convidados que atuam na área e desenvolvimento de projetos.

A simulação é realizada em um espaço circular de aprendizagem, que permite a visualização central e panorâmica de estudos de casos, com finalidade didática [...] A professora e os alunos observam o caso real apresentado. Em alguns momentos, a professora sente a necessidade de fazer pequenas intervenções [...] durante esse processo, os alunos mantem-se atentos e fazem anotações. Acompanham a simulação com [instrumentos de atuação profissional], que foram estudados durante as aulas. Após a simulação [...] os alunos, então, sinalizam suas dúvidas e lançam perguntas para a paciente. A própria professora também participa, fazendo perguntas para ela [...] a professora destaca, então, mais alguns comentários sobre os [aspectos] que possivelmente interferem [no caso específico]. E faz comentários gerais sobre a simulação realizada (Registro do trabalho de uma Professora - Ciências Biológicas e Saúde).

A aproximação com o contexto de atuação profissional ganha contornos significativos quando o trabalho pedagógico ancora-se em dimensões como a criticidade, a ética e a cidadania, para além de uma formação restrita à dimensão cognitiva. A problematização pelos professores, sobretudo nas aulas expositivas dialogadas, de temas e questões atuais presentes no cenário regional, nacional e mundial possibilitou a reflexão do futuro profissional sobre o contexto no qual seu trabalho estava inserido e as responsabilidades que precisaria assumir.

“O que vocês acham que tem de errado em termo de [tópico específico] nisso?”; “Eu posso [realizar certo procedimento]? [...] teria que estar [...]”; “A gente não pode minimizar os fatos, porque é [ato criminoso] em um local que coloca a vida de pessoas em risco” (Registro do trabalho de uma Professora - Ciências Exatas e Tecnológicas).

[...] eles ficam muito fechados nessas paredes da faculdade e acham que o conhecimento está aqui. E não está só aqui [...] Então você tem que trazer para a realidade, dar esse choque de realidade [...] certos assuntos que eu, como pessoa, acho importante, para o desenvolvimento de uma sociedade, eu acabo trazendo também para o âmbito da disciplina, mesmo que não seja diretamente (Reflexão de uma Professora - Ciências Exatas e Tecnológicas).

Desse modo, outros sentidos vão sendo impressos à profissionalidade docente universitária, tendo em vista a formação do estudante em uma perspectiva mais ampliada, que não se restringe aos conteúdos específicos de cada área.

A compreensão de que existem problemas no mundo hoje que são técnicos, e alguns que são éticos, tal como destaca um professor da área de Ciências Exatas e Tecnológicas, implica o necessário trabalho pedagógico realizado de uma forma ampla, para não correr um risco de formar um profissional limitado.

A professora estimula, constantemente, o debate: “O que mais?”; “O que vocês acham?”. Em certo momento, um aluno lança uma questão, indicando: “Não sei se a pergunta é válida. Não quero trocar o assunto”. Uma aluna tenta responder, mas indica que ficou confusa ao elaborar sua resposta. A professora fala, então: “É assim que a gente vai desenvolver a capacidade argumentativa [...]”. Verifica, então, outras colocações dos alunos, para, então, se posicionar. Indica alguns aspectos que devem ser considerados com atenção: “Só tem que tomar cuidado [...]”; “vocês têm que tomar muito cuidado como alunos [da área de Humanidades]”. E indica que a questão é pensar dentro de um campo relacional (Registro do trabalho de uma Professora - Ciências Exatas e Tecnológicas).

O sentido de uma formação crítica que permita aos alunos desenvolver a capacidade argumentativa a partir de produções acadêmicas e da leitura da realidade é fundamental para que o egresso da universidade analise e questione o contexto social de sua ação profissional, assumindo, portanto, uma postura de reflexão crítica (CONTRERAS, 2002). Desenham-se, assim, as possibilidades de uma formação para o exercício da cidadania, tendo em vista a responsabilidade profissional e social. Essa perspectiva comunga com o que Dias Sobrinho (2013) problematiza: a responsabilidade das Instituições de Educação Superior com uma formação ética, científica e técnica, com a formação do cidadão, ou seja, de um sujeito autônomo e consciente de suas responsabilidades na construção da sociedade. Essa responsabilidade, quando assumida, contribui para o reconhecimento do sentido de uma profissionalidade docente crítica, reflexiva e investigativa (RAMOS, 2010), sintonizada, portanto, com os desafios contemporâneos.

Se assumirmos esse sentido, os espaços formativos do professor universitário precisam superar a compreensão técnica e instrumental da docência e possibilitar a clareza quanto ao projeto de formação do estudante que se almeja, para que não ocorra, de forma acrítica, a apropriação de metodologias de ensino específicas. Ainda que, por vezes, revele-se o sentido de uma profissionalidade técnica, quando se vislumbra a solução instrumental dos problemas da prática profissional do ensino, as experiências que identificamos e vivenciamos no cenário de investigação se aproximam do modelo de profissionalidade reflexiva, pois reconhecem a reflexão sobre a prática (MORGADO, 2005; CONTRERAS, 2002).

Advertimos, porém, que, se assumimos o sentido de profissionalidade docente crítica, reflexiva e investigativa, é necessária a abertura para experiências formativas que considerem reflexão, investigação e crítica como atitudes que sustentam o exercício profissional da docência (RAMALHO; NUÑEZ; GAUTHIER, 2004).

Afirma-se, assim, o sentido de uma profissionalidade extensa, para além das perspectivas de análise dos problemas internos da sala de aula (profissionalidade restrita). Confere-se à reflexão uma dimensão crítica, sustentada na análise sobre “o sentido do ensino e os fins pretendidos” (CONTRERAS, 2002, p. 155), para além das intenções e responsabilidades individuais dos professores.

Considerações finais

As significativas experiências de formação docente e discente, conhecidas e vivenciadas na trajetória de investigação, permitiram compreender um conjunto de opções e caminhos trilhados por professores iniciantes em uma universidade pública. Desse modo, no processo de constituição da profissionalidade docente, esses professores recorrem a diferentes estratégias de formação e atuação profissional. Fazem escolhas, tentam criar suas rotas, seus caminhos, constroem e mobilizam (na ação) os conhecimentos profissionais inerentes ao exercício da docência, tendo em vista o compromisso com a atividade de ensino e as suas responsabilidades com a formação dos estudantes no ensino de graduação. Revelam, assim, a constituição de uma profissionalidade docente universitária, ainda em construção.

Nesse processo de constituição, os caminhos individuais trilhados pelos professores por si só não são suficientes, diante do risco de se considerar tão somente a perspectiva da competência, ligada a uma profissionalidade empírica, sobretudo quando alguns professores compreendem que o aprendizado para o exercício da docência se adquiriu na prática. Torna-se, portanto, imperiosa a necessidade do diálogo entre a profissionalidade empírica e a científica, para além de uma perspectiva restritiva à competência ou à qualificação, tendo em vista o sentido de um conhecimento expresso na ação. As experiências de formação docente vivenciadas por esses professores certamente foram potentes para reforçar o sentido de uma profissionalidade científica, sobretudo as institucionalmente organizadas.

No trabalho pedagógico desenvolvido no ensino de graduação, os professores iniciantes constroem possibilidades e essa construção é sempre inacabada. Constituem formas próprias de compreender a docência e atuar profissionalmente, sobretudo a partir das diferentes apropriações que eles tiveram em suas trajetórias acadêmicas e profissionais, constituidoras de possibilidades de atuação e caminhos de reflexão.

Compreendemos que as possibilidades que se desenharam não poderiam ser castradas e sim apoiadas, sobretudo quando constatamos, a partir das diferentes estratégias adotadas, que elas estão comprometidas com aprendizagens ampliadas, para além da dimensão cognitiva. Conscientes ou não das microdecisões que tomam, os professores revelam, implícita ou explicitamente, a partir do trabalho desenvolvido, uma concepção de docência e formação universitária potencializadora da constituição de uma profissionalidade docente universitária crítica, reflexiva e investigativa.

Diante disso, acionamos a responsabilidade institucional para com a formação do docente universitário. Como as políticas institucionais de formação podem se configurar? A oferta de cursos, por si só, é suficiente? Quais cursos são esses? Sustentam-se na busca por soluções inovadoras que podem ser instauradas em metodologias específicas adotadas pelo professor? Ou essas soluções estão agregadas à reflexão, com base na experiência, sobre os conhecimentos necessários para o exercício da docência? Essas experiências de formação tomam como referência uma matriz de formação humana do estudante, para além do trabalho com os conteúdos específicos das áreas do conhecimento? Como a instituição tem olhado para os processos de constituição da profissionalidade docente universitária?

No âmbito desses questionamentos, será necessário o enfrentamento de tensões entre diferentes olhares, perspectivas e concepções que circulam no cotidiano institucional, em busca de significados consensuados e estratégias negociadas entre a comunidade acadêmica. A construção de argumentos que reafirmam o sentido de uma formação universitária de cidadãos-profissionais pode fortalecer a responsabilidade social das universidades públicas pela formação ética, científica e técnica, pela formação do cidadão, ou seja, de um sujeito autônomo e consciente de suas responsabilidades na construção da sociedade.

Desse modo, reafirmamos o sentido de uma profissionalidade extensa, para além das perspectivas de análise dos problemas internos da sala de aula (profissionalidade restrita), das intenções e responsabilidades individuais dos professores. Nessa perspectiva, as experiências formativas precisam incluir a clareza quanto ao projeto de formação do estudante universitário que se almeja, para que não ocorra, de forma acrítica, a apropriação de metodologias de ensino específicas, indo além do sentido de uma profissionalidade técnica. Assim, essas experiências podem possibilitar a afirmação do processo de constituição de uma profissionalidade docente universitária, sobretudo quando consideram a reflexão, investigação e crítica como atitudes que sustentam o exercício profissional da docência. No apoio ao docente universitário iniciante, a afirmação desse processo torna-se essencial diante das possibilidades de ruptura com a subvalorização da docência e da constituição de caminhos fecundos para um trabalho pedagógico compromissado com as aprendizagens.

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1Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Número do Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE):58345516.4.0000.5404.

Recebido: 28 de Fevereiro de 2020; Aceito: 11 de Maio de 2020

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