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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.20 no.67 Curitiba oct./dic 2020  Epub 31-Dic-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.20.067.ds03 

Dossiê

Naíde Regueira Teodósio: médica, professora e pesquisadora em tempos autoritários1

Naíde Regueira Teodósio: doctor, professor and researcher in authoritarian times

Naíde Regueira Teodósio: médica, docente e investigadora en tiempos autoritarios

Raylane Andreza Dias Navarro Barretoa 
http://orcid.org/0000-0002-5602-8534

Carliane Maria do Carmo Lins da Natividadeb 
http://orcid.org/0000-0003-1042-1880

aUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: raylane.navarro@ufpe.br

bUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil. Mestra em Biologia de Fungos, e-mail: carli.lins@gmail.com


Resumo

Com vistas a contribuir com a história das mulheres e com a história da Educação no Brasil foi objetivo neste artigo analisar a relação formação-atuação profissional-enfrentamento a regimes autoritários da médica, professora, pesquisadora pernambucana e militante do Partido Comunista Brasileiro, Naíde Regueira Teodósio (1915-2005). A investigação ocorreu por meio do método biográfico a partir de Franco Ferrarotti (1991) e Giovanni Levi (1996), tendo como objeto de análise a trajetória formativa e profissional da referida personagem. Foram utilizadas fontes documentais (prontuários, declarações, processo de indenização por danos físicos, psicológicos e morais) localizadas no fundo da Comissão da Verdade do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano/PE e de entrevistas concedidas e armazenadas na Coordenação-Geral de Estudos da História Brasileira (Cehibra) da Fundação Joaquim Nabuco e no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Os resultados apontam elementos educacionais que consorciam formação familiar, escolar, político-partidária e autoformação. Desvelam também faces de uma formação médica que alia fisiologia, nutrição e engajamento político e que permite interpretações sobre a constituição de si, as práticas femininas, a relação formação-atuação e, sobretudo, sobre as formas concretas de resistência e enfrentamentos aos regimes políticos autoritários no Brasil das décadas de 1940 e 1960.

Palavras-chave: Naíde Regueira Teodósio; Partido Comunista Brasileiro; Pernambuco; Regime politico autoritário

Abstract

In order to contribute to the Women’s History and the History of Education in Brazil, this article aims to analyze the professional - training-performance - confrontation with authoritarian regimes relation by the doctor, professor, researcher and Brazilian Communist Party activist Naíde Regueira Teodósio (1915-2005). The investigation took place through the biographical method from Franco Ferrarotti (1991) and Giovanni Levi (1996), having as its object of analysis the formation and professional trajectory of the mentioned character. Documentary sources (medical records, statements, indemnity process for physical, psychological and moral damages) located at the bottom of the Jordão Emerenciano/ PE State Archive’s Truth Commission were used, as well as interviews granted and stored at Joaquim Nabuco Foundation’s General Coordination of Brazilian History Studies (Cehibra) and at Getúlio Vargas Foundation’s Research and Documentation Center of Brazil Contemporary History (CPDOC). The results point out that educational elements combine family, school, political and party formation and self-education. They also unveil sides of a medical training that combines physiology, nutrition and political engagement, which allow interpretations concerning oneself constitution, female practices, training-performance relation and, above all, about the concrete forms of resistance and confrontations with authoritarian political regimes in Brazil in the 1940s and 1960s.

Keywords: Naíde Regueira Teodósio; Brazilian Communist Party; Pernambuco; Authoritarian political regime

Resumen

Con la mira puesta en contribuir a la historia de la mujer y a la historia de la educación en Brasil, fue objetivo del presente artículo analizar la relación entre formación - acción profesional - enfrentamiento a los regímenes autoritarios por parte de la médica, docente e investigadora de Pernambuco, y militante del Partido Comunista Brasileño, Naíde Regueira Teodósio (1915-2005). En la investigación utilicé el método biográfico de Franco Ferrarotti (1991) y Giovanni Levi (1996), siendo objeto del análisis la trayectoria formativa y profesional de la persona referida. Se utilizaron fuentes documentales (registros, declaraciones, proceso de indemnización por daño físico, psicológico y moral) que se hallan en el fondo de la Comisión de la Verdad del Archivo Público Estatal Jordão Emerenciano / PE, así como entrevistas concedidas y depositadas en la Coordinación General de Estudios Brasileños (Cehibra ) de la Fundación Joaquim Nabuco y en el Centro de Investigación y Documentación de la Historia Contemporánea de Brasil (CPDOC) de la Fundación Getulio Vargas. Los resultados apuntan a elementos educativos que combinan formación familiar, escolar, político-partidista y autodidactismo. Desvelan asimismo aspectos de una formación médica que conjuga fisiología, nutrición y compromiso político, y que permiten interpretaciones sobre la constitución de sí misma, las prácticas femeninas, la relación entre formación y acción y, más que nada, sobre las formas concretas de resistencia y enfrentamiento a los regímenes políticos autoritarios en el Brasil de las décadas de 1940 y 1960.

Palabras clave: Naíde Regueira Teodósio; Partido Comunista Brasileño; Pernambuco; Régimen político autoritario

Qualquer que seja a sua originalidade aparente, uma vida não pode ser compreendida unicamente através de seus desvios ou singularidades, mas, ao contrário, mostrando-se que cada desvio aparente em relação a normas ocorre em um contexto histórico que o justifica. (LEVI, 1996, p. 176).

Introdução

O que faz uma mulher enfrentar um regime político ditatorial e tudo que ele comporta em termos de violações de direitos fundamentais, privações, violências, prisões, torturas? São as circunstâncias, a família, as influências, as filiações ideológicas ou a formação? Foi com o objetivo de responder a tal questionamento que consideramos investigar a história de vida de Naíde Regueira Teodósio (1915-2005), conhecida na história pernambucana por sua atuação médica e militante da causa comunista e também por dar nome ao “Prêmio Naíde Teodósio de Estudos de Gênero”, realizado pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) e pela Secretaria da Mulher de Pernambuco (Sesc Mulher-PE). Nascida em Sirinhaém, no litoral sul pernambucano, aluna interna do Colégio Sagrada Família, foi a única a se formar na turma de 1947, no curso de Medicina da antiga Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco.

Naíde, que teve várias de suas pesquisas publicadas, também teve militância política destacada, fosse no período do governo Vargas, fosse no regime civil militar. No estado novo foi investigada por participar da Aliança Nacional Libertadora (ANL); nos anos 1960 foi presa sob a acusação de subversão por manter laços de amizade com o comunista Paulo Cavalcanti2 e por sua colaboração com o governador Miguel Arraes, deposto, preso e exilado. Seu marido e um3 dos seus quatro filhos também foram presos, embora fosse a ela creditada a culpa. Tais fatos não a impediram de conseguir o título de professora Livre Docente da Universidade de Recife e de formar gerações de médicos e pesquisadores de atuação destacada nas áreas das ciências da saúde, tonando-se uma das primeiras pesquisadoras da área médica de Pernambuco.

O intuito perseguido nessa investigação foi o de desvelar seu processo formativo e sua atuação profissional com o objetivo de analisar a relação formação-atuação profissional-enfrentamento a regimes autoritários. Isto porque partilhamos da concepção de Levi no que aqui serve de epígrafe para este artigo e da ideia de Franco Ferraroti (1991, p. 17), para quem “[...] o método biográfico permite compreender o indivíduo a partir de suas relações, mediações e dos ‘campos sociais’ nos quais a práxis dos homens (e mulheres) auto objetivada e o esforço universalizante do sistema social se encontram e se confrontam de modo mais direto”. Do ponto de vista da História das Mulheres corroboramos com Michele Perrot (1995), que concebe as mulheres como atrizes e agentes sociais da sua própria história, e, por isso, não se atém necessariamente à violência, à dominação ou à invisibilidade, tão presentes na vida das mulheres marcadas pelos símbolos de uma longa duração de sistemas de valores masculinos, mas às suas práticas cotidianas, a seus processos emancipatórios, às suas afirmações e resistências.

Para tanto a trajetória de vida de Naíde Teodósio foi tomada como objeto de estudo e por meio do método de investigação histórica foram pesquisados, para além dos seus trabalhos científicos, artigos de jornais, documentos localizados no fundo da Comissão da Verdade do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano/PE e e entrevistas concedidas e armazenadas na Coordenação-Geral de Estudos da História Brasileira (Cehibra) da Fundação Joaquim Nabuco e no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, dentre outros documentos que revelaram caminhos, escolhas, estudos, trajetos formativos e modos de ser mulher, médica, pesquisadora, professora e militante política em meados do século XX, período marcado por regimes políticos autoritários.

Para tanto partimos dos pressupostos de Magalhães e Barreto, para quem,

No tocante à automemória, a imagem criada de si mesmo, proposital ou não, deve ser meticulosamente estudada pelo pesquisador, já que é, com base nela, que os elementos (im)ponderáveis são perceptíveis. Sem dúvida, os registros oficiais dão a ver aquilo que foi pensado e preparado para chegar ao público-alvo, mas correlativamente há que se considerar aquilo que está na ação de preparar o que foi perpetuado. Não se pode prescindir dos objetivos, das intenções e méritos das ações, e, não é raro, nesse aspecto, os relatos orais destoarem de registros escritos. (MAGALHÃES; BARRETO, 2016, p. 75)

Uma infância “privilegiada”

Franco Ferrarotti, ao analisar a utilização e a eficiência do método biográfico e constatar o seu uso para o estudo tanto dos grupos primários quanto de indivíduos em particular, chega a uma conclusão bastante significativa para aqueles que se dedicam ao estudo das biografias individuais. Segundo ele:

Tomando por ponto de partida o movimento heurístico de “ida e volta”, o grupo permite a eliminação da fase mais complexa do método biográfico: A compreensão da totalização infinitamente rica do seu contexto que o indivíduo efectuou e efectua quando se exprime por meio das formas críticas da narrativa biográfica. (FERRAROTTI, 1991, p. 176)

Quando associamos tal perspectiva ao que considera Levi sobre a relação biografia e contexto, as possibilidades aumentam, pois segundo ele:

Há numa relação permanentemente recíproca entre biografia e contexto: a mudança é precisamente a soma infinita dessas inter-relações. A importância da biografia é permitir uma descrição das normas e de seu funcionamento efetivo, sendo este considerado não mais o resultado exclusivo de um desacordo entre regras e práticas, mas também de incoerências estruturais e inevitáveis entre as próprias normas, incoerências que autorizam a multiplicação e a diversificação das práticas. (LEVI, 1996, p. 180)

E é justamente a partir da compreensão de que mulheres e contexto se revelam, pois se justificam, que adentramos na trajetória de vida de Naíde Regueira Teodósio, filha de Joel Regueira Pinto de Souza, comerciante e político do município de Sirinhaém, e de Branca de Figueira Brito, que se dedicava ao lar, exclusivamente. Naíde iniciou os estudos em uma pequena escola paroquial da cidade mantida pelos franciscanos, onde permaneceu dos 4 aos 9 anos de idade. De acordo com a própria Naíde Teodósio (1983), por ter condições econômicas e sociais mais favoráveis que seus amigos escolares e mesmo sendo mais nova que eles, se destacava em sala de aula, sendo considerada “excelente aluna”. Por isso, era designada pela professora para “ensinar” e até “punir os colegas” quando estes não aprendessem as lições. Contudo, não aprovava os métodos utilizados pela professora, como relatado em entrevista concedida à Fundação Joaquim Nabuco, em 1983:

A professora era uma senhora, que adotava os métodos bem clássicos do aprendizado e consistia inclusive em usar a palmatória [...] eu rejeitava de ela ter aqueles grandes entusiasmos pelo bom aluno, o aluno que brilhava mais, em encarregar este aluno de disciplinar os colegas mais fracos e incapazes.

[...]

Então, como eu era uma aluna reputada como excelente aluna, ela exigia de mim, ou pelo menos me dava a atribuição de ensinar a colegas da mesma classe e me dava uma palmatória para que eu a usasse, eu jamais a usei [...]. (TEODÓSIO, 1983)

Nessa rememoração, podemos observar um dos mais importantes traços de Naíde e que a acompanhou na idade adulta: o senso de justiça. Isso nos faz entender essa escola como um dos espaços/grupos que ofereceu elementos de reflexão sobre a composição de si e do outro, mediada pela relação entre ela e a estrutura social na qual estava inserida. Embora fosse considerado um privilégio pessoal e prática comum, no interior pernambucano dos anos de 1920-1930, a professora ter como regra que o melhor aluno da sala ensinasse aos mais fracos e os punisse com a palmatória, método mútuo, ela não fazia uso da “prerrogativa”. Assim analisou Naíde, aos 68 nos de idade, as circunstâncias da menina de menos de 9 anos:

Sendo eu bem mais nova que esses colegas, claro que havia uma diferença de condições sociais tremenda entre a minha pessoa e esses colegas. Eram pessoas muito pobres, sem dúvida nenhuma, eram mal nutridos, não tinham nenhum ambiente de lar que proporcionasse a eles mais informações e eram atrasados, portanto, eu era privilegiada [...]

Então o meu papel era fazer com que eles avançassem, eu jamais tive nenhuma atitude de repressão ou de reprimenda a qualquer desconhecimento deles.

Tais ações são reputadas a um outro grupo, o familiar, em especial a mãe, que dentre outras coisas a ensinou a se informar sobre os fatos que ocorriam ao seu redor e no país. Embora Branca se dedicasse ao lar, segundo Naíde, ela lia muito, se informando dos problemas que ocorriam na época e assim discutia e informava a família sobre fatos, modo de vida, higiene e condições de aquisição de cultura. Tais práticas, por certo, serviram de pré-requisito para Naíde ao analisar o modo de conceber a vida e o seu lugar nela. Foram, por certo, compondo seu capital cultural e contribuindo para a sua formação moral.

Um outro estágio de sua vida que se revela imprescindível para que entendamos sua vida e formação está ligado ao ensino secundário. Aos nove anos saiu do interior e foi para a capital, passando a ser aluna interna do Colégio Sagrada Família, localizado no bairro de Casa Forte em Recife, instituição em que permaneceu por quatro anos. De acordo com seus relatos, o colégio era orientado segundo critérios franceses, sendo o ensino regular em português. No entanto, as comunicações e conversação na hora do lazer, deveriam ser realizadas em francês. Além disso, esse colégio foi fundamental para o que Naíde veio a realizar em seu futuro, pois considerou que o colégio a “desenvolveu”; a fez ter consciência patriota, uma formação ética sólida e despertou um grande interesse pelos problemas da humanidade e do país (TEODÓSIO, 1983). Assim relatou sobre a escolarização no internato:

[...] eu considero que a influência dessas irmãs, deste colégio em minha vida foi fundamental, eu desenvolvi todo um desempenho na vida profissional, nas relações com o ambiente de trabalho, com as pessoas que trabalhavam ao meu lado, tudo isso teve um marco muito sólido [...]. (TEODÓSIO, 1983).

Marco este calcado em elementos como disciplina rigorosa, estudos e uma série de outros aspectos que envolvem esse modelo de instituição, como analisou Conceição (2014), ao estudar o discurso médico-higiênico sobre os internatos. Segundo ele

No início do século XX, a desaprovação do internato permaneceu presente no discurso médico. No ano de 1910, o Dr. Raul Mendes de Castilho Brandão também apresentava o internato como modelo propício à corrupção física e moral da mocidade. Para ele, era “revoltante” que muitos pais que habitavam em Salvador, e que possuíam outros meios e recursos financeiros, colocassem “desumanamente” seus filhos como internos em colégios. Além do mais, os bons costumes, enfim, a educação moral, somente a família seria capaz de realizar. Todavia, destoando das teses médicas contrárias ao internato, em 1921, o Dr. Claudon Ribeiro da Costa escrevia, embora de forma sucinta, que não encontrava razões para condenar o modelo colégio-internato, quando bem ajustado às medidas higiênicas, pois em todos os países adiantados produzia ótimo resultado. (CONCEIÇÃO, 2014, p. 37)

Como se pode notar a partir do excerto anterior, embora sobre o contexto baiano houvesse interpretações distintas acerca dos internatos, no caso de Naíde, ao que se supõe, o internato não somente foi um meio encontrado para estudar, mas uma instituição mediadora que serviu, como diria Ferrarotti (1991), de “região giratória” fundamental na constituição dos seus horizontes de expectativas. Atribuir, já adulta, à instituição religiosa essa importância na formação patriótica e moral é, senão emblemático, uma forma de traduzir o papel da escolarização e das oportunidades de estudo.

Naíde, porém teve que “revalidar” os estudos. Isto porque o internato/Colégio da Sagrada Família não possuía o curso secundário reconhecido pelo Governo Federal, ou seja, não era equivalente ao Colégio Pedro II do Rio de Janeiro como determinava o Decreto nº 21.241 de 4 de abril de 1932 - Reforma Francisco Campos, que consolidava “as disposições sobre a organização do ensino secundário” e dava outras providências. Por isso Naíde teve que valer-se do que dispunha o artigo 100 da mesma reforma que assim determinava:

Enquanto não forem em número suficiente os cursos noturnos de ensino secundário sob o regime de inspeção, será facultado requerer e prestar exames de habilitação na 3ª série e, em épocas posteriores, sucessivamente, os de habilitação na 4ª e 5ª séries do curso fundamental ao candidato [...]. (BRASIL, 1932)

Valendo-se de tal dispositivo legal, prestou exames da 3ª, 4ª e 5ª séries ginasiais, sendo as provas da 3ª e 5ª séries no Colégio Salesiano e a prova da 4ª série, no Liceu Pernambucano, concluindo, assim, seu curso ginasial e terminando sua formação de grau médio. Ainda de acordo com a referida reforma, a essa época o ensino secundário compreendia dois cursos seriados: fundamental e complementar, este composto por disciplinas que deveriam ser obrigatórias de acordo com o curso para o qual se desejasse seguir. O ensino fundamental era composto pelo seguinte conjunto de disciplinas obrigatórias, distribuídas em 5 anos4:

  • 1ª série: Português - Francês - História da Civilização - Geografia - Matemática - Ciências físicas e naturais - Desenho - Música (canto orfeônico).

  • 2ª série: Português - Francês - Inglês - História da Civilização - Geografia - Matemática - Ciências físicas e naturais - Desenho - Música (canto orfeônico).

  • 3ª série: Português - Francês - Inglês - História da Civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - História Natural - Desenho - Música (canto orfeônico).

  • 4ª série: Português - Francês - Inglês - Latim - Alemão (facultativo) - História da Civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - História Natural - Desenho.

  • 5ª série: Português - Latim - Alemão (facultativo) - História da Civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - História Natural - Desenho. (BRASIL, 1932)

No caso do Curso complementar, este deveria ser feito em dois anos de estudo intensivo, com exercícios e trabalhos práticos individuais, e compreendia, no caso de alunos que prestariam exames para a faculdade de Medicina, as seguintes disciplinas: “1ª série: Alemão ou Inglês - Matemática - Física - Química - História Natural - Psicologia e Lógica. 2ª série: Alemão ou Inglês - Física - Química - História Natural - Sociologia - Desenho.” (BRASIL, 1932, Art. 6.)

Naíde, que voltara para Sirinhaém com cerca de 14 anos e convivera novamente com os seus moradores e trabalhara no armazém do pai até os 15 anos, voltou ao Recife para terminar os estudos. O desejo de estudar Matemática5 era latente a época, como deixa claro em entrevista já adulta, porém o único modo de estudá-la era cursar a Faculdade de Engenharia, localizada na região metropolitana de Recife. Mas o curso era pago, caro e, por à época não ter condições financeiras favoráveis, acabou escolhendo um curso que estivesse mais próximo das suas “tendências”. A faculdade de Direito, apesar de ser uma alternativa viável, não a agradava e por isso escolheu o curso de Medicina e assim prestou vestibular, em 1937, para a Faculdade de Medicina de Pernambuco. Passou nos exames e ingressou no curso, uma vitória feminina para a época, visto que o curso era frequentado, em sua maioria, por homens.

Esta escolha é reveladora do poder das circunstâncias e de como as condições financeiras podem ser determinantes nos destinos de alguém. A escolha também revela o grau de racionalidade da nossa personagem que não recuou, mas abraçou os estudos de modo decisivo. O curso superior transcorreu com certas dificuldades, pois precisava de dinheiro para suprir suas necessidades pessoais e ajudar a família, que nessa época era composta por três irmãs mais novas, uma mãe e o pai que estava doente. Teve, por isso, que trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Sobre isso rememora:

Agora o meu curso superior transcorreu com muitas dificuldades financeiras, porque eu trabalhava para sobreviver e para sustentar a minha família [...] então tinha que me desdobrar em uma luta para a sobrevivência e isso dificultava muito as condições de estudo. Só consegui realizar, porque tinha realmente uma resistência física e mental impressionante. Eu era capaz de passar toda a minha noite em claro estudado e no dia seguinte ninguém percebia que eu estava indormida. Nesse aspecto eu sou uma pessoa altamente privilegiada pela natureza, que viveu no mercado de trabalho e resistiu aos excessos de atividade, o que raramente as pessoas têm. (TEODÓSIO, 1983)

Assim, Naíde, que teve infância “privilegiada”, na adultez, por conta da doença do pai, teve que, como boa parte dos brasileiros e brasileiras, trabalhar enquanto estudava. Ela era secretária do Hospital Corrêa Picanço em Recife e dava aulas de Francês, Biologia e Matemática. Por isso, “passava noites sem dormir” para estudar e assim conseguiu cursar até o quinto ano de medicina.

A medicina e a opção política

Contra a política do Estado Novo, instaurado em 10 de novembro de 1937 por Getúlio Vargas, cujas práticas assemelhadas às do fascismo italiano causaram inúmeros conflitos, sobretudo por temas relacionados a liberdade, direitos e garantias individuais, vários foram os sujeitos que se rebelaram. A participação política de Naíde começou a se evidenciar a essa época, pois, com vistas a combater o governo Vargas e tudo que ele representava, iniciou sua participação na ANL, organização antifascista destinada, principalmente, a combater a influência fasci-integralista. A essa época ficaram evidentes as medidas anticomunistas tomadas pelo governo, sobretudo a partir da ascensão de Luiz Carlos Prestes e do Partido Comunista, uma vez que a polícia de segurança brasileira começara relações com a Gestapo, a polícia política de Adolf Hitler, visando coordenar medidas anticomunistas.

Filinto Müller, um dos principais articuladores desta relação, viajou à Alemanha a fim de reunir-se com Heinrich Himimier, chefe da Gestapo, e aprender, dentre outras coisas, técnicas de torturas. David Nasser, no prefácio de seu livro "Falta Alguém em Nuremberg", (1947, p. 1), assim expôs a situação:

As atrocidades praticadas no Brasil pela polícia-política do capitão Filinto Strubling Muiler excederam em alguns pontos, as torturas inflingidas pela Gestapo aos judeus, antinazistas e prisioneiros aliados. Difícil é comparar a maldade com a maldade, a barbaria com a barbaria, o perverso com o perverso. Os nazistas alemães retiravam a pele tatuada dos condenados para o fabrico de "abatjours". Os policiais brasileiros esmagavam testículos com uma espécie de alicate, a que chamavam pelo diminutivo de "anjinhos", corruptela de Higino, nome do escrevente da Polícia que o inventou. Os nazistas alemães matavam seus presos e faziam sabão com os cadáveres. Os policiais brasileiros do Sr. Getúlio Vargas enfiavam arames nos ouvidos dos presos. Os nazistas alemães faziam experiências científicas com os recolhidos aos campos de concentração. Os policiais brasileiros enfiavam arames nas uretras dos presos e com um maçarico aqueciam esse arame até ficar em brasa. Os nazistas alemães executavam os presos em câmaras de gás. Os policiais brasileiros apertavam os crânios dos presos até que eles morressem ou enlouquecessem.

A filiação de Naíde à ANL para combater tais práticas e sobretudo o que elas representavam, a assistência aos presos políticos do período, na Casa de Detenção do Recife, bem como os cursos de formação política que fez, renderam-lhe uma série de contratempos, a começar pela convocação, em 1940, para prestar depoimentos no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), junto com vários intelectuais e cientistas pernambucos6 acusados de “manter ligações com elementos comunistas”, sendo a única mulher registrada na lista de depoentes. Passou, por isso, a sofrer discriminações e ficou proibida de estagiar em hospitais, a despeito do fato de ser acadêmica de Medicina. Entretanto, como à época era funcionária da “Assistência aos Psicopatas”, conseguiu driblar a vigilância, entrando nas Unidades de Saúde, conforme a exigência da Faculdade. (VAINSENCHER, [20--]).

A ação feminista destacada pela lista de depoentes também foi registrada no prontuário de n° 9621 (apud COMISSÃO DA VERDADE, 2001) do seu já marido, o médico Bianor Silva Teodósio, que assim expõe: “Trabalhou para o partido comunista certamente inspirado por sua mulher, NAÍDE REGUEIRA TEODÕSIO, que tem capacidade de liderança e não ele”. Tal registro contribui significativamente para não somente desmistificar a história de mulheres passivas, submissas e influenciáveis, mas para, como sugere Perrot (2017) tecer uma “história outra” que contemple práticas cotidianas e resistências que “derrotam” a racionalidade do poder.

Era 1942, quando a vida a fez interromper os estudos e também a participação política em Pernambuco. Casando-se civilmente com o recém-médico Bianor Teodósio teve que se mudar para Santarém, no estado do Pará. Nesta cidade, o marido atuava como médico clínico, em um consultório próprio, e Naíde, na condição de quintanista de Medicina, o ajudava na parte clínica, além de servir também como auxiliar de enfermagem e realizar exames laboratoriais dos pacientes, como teste de hemograma, sumário de urina, dentre outros. Isso era possível porque conseguiram alugar os equipamentos necessários para a realização dos exames, de modo que este foi o seu “estágio” durante a sua “pausa”, aprendendo assim, segundo ela, a “praticar medicina”.

Transcorridos quatros anos, regressou a Recife, voltou a cursar Medicina, uma vez que ainda faltava o sexto ano do curso para a sua conclusão. Teve como um de seus professores Nelson Chaves, que na época era assistente de terapêutica e que de acordo com Naíde “[...] ministrava aulas a estudantes com muita objetividade, ao lado de doente e procurava estimular muito a todos nós para o estudo” (TEODÓSIO, 1983). De acordo com Garcia (1989), a essa época as ciências médicas já não mais tinham como enfoque a

[...] pesquisa bacteriológica e parasitológica vigente no período de 1880 até 1930, quando predominou a pesquisa sobre as doenças tropicais e prevaleceram institutos de pesquisa de bacteriologia, desenvolveram-se, até os anos 50, a pesquisa básica e a clínica, ambas conectadas ao crescimento hospitalar, impulsionado pela industrialização. No primeiro período considerado, a saúde pública constituiu o centro das ações, ao passo que a atenção médica assumiu papel preponderante a partir de 1940, marcando "o triunfo da concepção cientificista" (GARCIA, 1989, p. 194).

E foi sob tal proposta que Naíde Regueira Teodósio se formou em 1947, sendo a única da turma do curso de Medicina na antiga Universidade do Recife - período também em que iniciou a maternidade. Profissionalmente, decidiu continuar ser professora, desta vez do ensino superior, e foi com tal intuito que, em 1948, passou a fazer parte do quadro docente da Faculdade de Medicina onde estudou. Nela se dedicou a dar aulas e fazer pesquisa, dedicando-se à fisiologia, área que cultivou desde sua graduação. Segundo ela:

[...] desde o curso de graduação em medicina estava definida pela fisiologia, sabia que queria ser fisiologista, eu não queria ser outra coisa, estava convicta que essa era a área que eu iria abarcar e encaminhava sempre o pouco tempo que eu tinha para estudar, para me inteirar da ciência fisiológica (TEODÓSIO, 1983).

Já professora, sua participação política foi intensificada e uma das principais marcas desse período está na assinatura, em 1949, do “MANIFESTO em defesa da Paz, por ocasião da Fundação da Associação Pernambucana de Defesa da Paz e da Cultura” (SSP-PE, 1949), atrelada à campanha nacional em função da invasão norte-americana à Coreia. Tal assinatura a identificava ideológica e politicamente e, por mais que a sua carreira na área do ensino e da pesquisa da medicina fosse cultivada, a participação política continuava tendo destaque em suas atuações. Uma outra prática política se deu com a assinatura, em 1952, do abaixo-assinado de convocação do Congresso Nacional em Defesa do Petróleo, compondo a defesa da campanha “O petróleo é nosso” que culminou, dentre outras coisas, na criação da Petrobrás. Também entrou no rol das suas causas uma “organização de caráter esquerdista” de convocação das mulheres para uma “Assembleia Regional de Mulheres dos Estados do Norte e Nordeste do Brasil”, com o objetivo de encetar “medidas práticas e concretas em defesa dos filhos” (COMISSÃO DA VERDADE, 2001).

Tais engajamentos e redes de sociabilidade decorrentes de microcosmos criados revelam não somente práticas de resistência, militância e engajamento, mas de coragem para expor seus ideais e contribuir para a melhoria da qualidade de vida de um país marcado por medidas austeras, violentas e intransigentes, e, por isso, um cenário de atuação de personagens fortes, ativas, propositivas, militantes dos direitos humanos, como Naíde, que como afiançaria Levi, nos faz evitar

[...] abordar a realidade histórica a partir de um esquema único de ações e reações mostrando, ao contrário, que a repartição desigual do poder, por maior e mais coercitivas que seja, sempre deixa uma margem de manobra para os dominados; estes podem então impor aos dominantes mudanças nada desprezíveis. (LEVI, 1996, p. 180).

As experiências da pesquisadora e militante

Em 1956, Naíde fez estágio/curso de especialização com o professor, prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1947, Bernardo Houssay (1887-1971), no Instituto de Biologia e Medicina de Buenos Aires, Argentina, com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes. Houssay, médico, pesquisador e professor argentino, foi responsável por vários estudos na área da fisiologia, especificamente, do sistema endócrino. Dedicou-se ao longo de sua vida a estudar a hipófise, glândula localizada na base do cérebro e responsável pela regulação de outras glândulas do sistema endócrino. Foi o ganhador do prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina por sua pesquisa sobre a hipófise, ao descobrir que seu lóbulo anterior secretava um hormônio responsável pelo metabolismo do açúcar, ou seja, um hormônio que seria o responsável por neutralizar e equilibrar os efeitos da insulina no organismo. (BERNARDO, 1947a; BERNARDO, 1947b) Esse estágio de acordo com Naíde foi “decisivo para a minha formação de pesquisadora” (TEODÓSIO, 1983), constituindo outra “região giratória” muito representativa da sua interconexão com a estrutura social (FERRAROTTI, 1991). Isto porque sua “veia” de pesquisadora fora aflorada e a partir de então ganha centralidade na sua carreira, aliando-a à causa social.

A partir da experiência no Instituto argentino e trabalhando na Faculdade de Medicina com professores-pesquisadores renomados, a exemplo do sociólogo Josué de Castro7, pesquisador da temática da fome, dedicou-se ao estudo da nutrição, chegando a criar um composto alimentar a partir do sangue bovino que serviu como suplemento nutricional a mulheres grávidas e crianças desnutridas. Atuou também como pesquisadora membro do grupo de pesquisa do seu antigo professor, o cientista Nelson Ferreira de Castro Chaves8, investigando de modo sistemático o campo da fisiologia e histologia, inclusive colaborando com “participação e cooperação internacional de alguns Prêmios Nobel da Medicina e Fisiologia”, a exemplo do próprio Bernardo A. Houssay e do “sueco Ulf S. von Euler9 ganhador do Nobel em 1970” (ESPAÇO CIÊNCIA, 2017).

Nesse mesmo grupo de pesquisa, orientado pelo professor Nelson Chaves, fizeram pesquisas com farinhas alimentícias, tentando verificar se misturas de alimentos vegetais seriam uma boa complementação para uma alimentação de base que fosse realmente eficiente para garantir um estado nutricional adequado das populações pobres. Essas pesquisas foram necessárias, pois estavam tentando dar uma contribuição para a melhoria do problema nutricional da região nordestina utilizando uma associação de alimentos típicos do Nordeste. Esse trabalho permitiu que, ao descobrirem a ineficiência de alguns produtos, eles não fossem produzidos em larga escala e distribuídos à população brasileira, como ponderou Naíde em entrevista em 1983:

[...] uma certa indústria alimentícia nos mandou um produto a ser testado quanto ao seu valor nutritivo, que era uma farinha de semente de algodão, essa farinha tinha um aspecto excelente, altamente requintado de preparação industrial [...] chegamos à conclusão que esta não deveria ser usada para as populações humanas, simplesmente porque o seu valor nutricional não podia se equiparar a uma alimentação bem balanceada por fontes proteicas de origem animal associada a uma parte de origem vegetal. Então o fato, de nossas pesquisas terem definido esse valor biológico medíocre, num desagrado, evidentemente, da indústria interessada. Para complementar, eu lembraria que ao mesmo tempo que eles nos pediam para fazer este estudo, eles pediam também a um outro laboratório de pesquisas do sul do país, que inclusive chegou aos mesmíssimos resultados nossos. Eles, então, não tiveram outra saída a não ser receber o produto e não lançarem para as populações humanas [...] (TEODÓSIO, 1983).

Outro aspecto importante rememorado por Naíde a respeito da indústria alimentícia foi a parceria entre o Brasil e os Estados Unidos, na década de 1950. A parceria tratava da troca de alimentação bovina por mistura proteica vegetal e sobre isso ela assim analisou a situação:

[...] acontece que uma grande multinacional de produtos alimentícios fez uma proposta ao governo brasileiro, da qual o governo brasileiro era, na época da década de [19]50, que era o seguinte: funcionários americanos estavam na Europa e precisavam ser abastecidos com carne bovina, e os nossos estoques de carne bovina no Brasil eram razoavelmente grandes [...] Mas essa grande indústria se comprometia a produzir em grande escala essas misturas e distribuir a preço muito baixo para o Brasil em troca de todo estoque de carne bovina serem entregues a eles para distribuição na Europa a seus soldados [...]

[...] o Departamento de Fisiologia, da Universidade de Recife, [...] chegou a evidência de que tais misturas vegetais são excelentes e podiam ser usadas pela população, mas era óbvio, porque eram de alimentos que comeríamos habitualmente [...]. (TEODÓSIO, 1983).

Contudo, com estudos mais complexos, esse mesmo departamento chegou à conclusão que não se poderia suprir totalmente, na alimentação humana, carne por misturas, pois estas últimas poderiam complementar a alimentação e não substituí-la, como a indústria americana pretendia fazer. Após os resultados obtidos, a pesquisa foi apresentada no Congresso Nacional de Higiene, que ocorreu no fim da década de 1950. O professor responsável pela Coordenação Federal de Nutrição, na época, veio a falar com os pesquisadores sobre o assunto e nossa personagem revela que “[...] procurou dizendo que nosso trabalho tinha-o impressionado muito e tinha-o convencido que ele agira certo quando houve a proposta de trocar toda a quantidade de carne bovina que nós possuíamos por essas misturas [...]”. (TEODÓSIO, 1983).

Embora o grupo de que Naíde fazia parte tivesse conquistas significativas na área da pesquisa nutricional, para ela as pesquisas estavam à mercê da indústria interessada e numa análise coerente assim explica:

[...] os resultados foram muito bons, mas me deixaram a consciência de que esses alimentos, essas misturas de alimentos vegetais seriam apenas uma boa complementação para uma alimentação de base, que fosse realmente eficiente para garantir um estado nutricional adequado das populações pobres. Tínhamos perfeita consciência disto, mas na prática mesmo, pouco se teve nesse sentido. Porque todos esses trabalhos recebem o impacto e interesses outros, extra universitários mais ligados aos interesses das grandes indústrias alimentícias mundiais. E eu considero que esses estudos que tinham como o orientador principal Nelson Chaves e que realmente ocuparam um grande número de anos em nossa vida de pesquisador não tiveram uma aplicação prática desejável exatamente por causa disso, na minha opinião (TEODÓSIO, 1983).

Logo, a militante política, médica, professora e pesquisadora demonstrava a dificuldade de implementar os resultados dos estudos e pesquisas no Brasil, mesmo naquela época em que esse tipo de pesquisa poderia ter um impacto decisivo no enfrentamento de um dos principais problemas do país: a fome e tudo que dela decorre - desde a desnutrição, passando por todos os seus sintomas e consequências, dentre eles a morte, até o impacto do crescimento desse mal que até hoje assola boa parte dos brasileiros. Sobre a relação entre pesquisa cientifica e mercado, assim analisou a então pesquisadora:

Então, percebemos o seguinte: o pesquisador está à mercê dessas pressões e dessas interferências de potências econômicas em matéria de alimentação, como em outras áreas também. Então, fica essa que o pesquisador precisa ter muita consciência de sua responsabilidade perante a comunidade a que serve para não se deixar influenciar por essas pressões. (TEODÓSIO, 1983)

Foi com tal consciência política e médica que, em 1962, pleiteou o título de livre docente em Fisiologia e foi aprovada com distinção com o trabalho “Contribuição ao estudo fisiológico da hipoglicemia (Atuação do fator hipoglicemiante do anacardium occidentale)”. Sobre o ofício professoral, assim analisou:

[...] o magistério foi a minha vocação inicial, desde os tempos de criança que o meu brinquedo predileto era ser professora de escola primária e evidentemente no percurso do meu desenvolvimento eu tive oportunidades de sobreviver ensinando particularmente e depois ensinando nos cursos secundários, de nível médio. Eu ensinava francês, biologia e matemática [...]

E a grande meta minha era exatamente de ingressar numa vida universitária, ser professora universitária. Então eu via no magistério associado a pesquisa na universidade, digamos, um ponto culminante de realizações a que eu me propunha. Então, dei o melhor de mim mesma no sentido de ser professor […] que transmitisse algo. Não somente do ponto de vista de conhecimentos atuais, mas também transmitisse algo acerca do que eu pensava sobre a leitura de onde nós vivíamos. (TEODÓSIO, 1983).

Assim se dedicava ao ensino na universidade, não separando esse da pesquisa e esta das causas sociais. Achava que assim transmitia aos alunos seus conhecimentos de mundo e ciência para que eles saíssem da universidade bem preparados para a vida profissional. Sobre isso também ponderou:

[…] eu não separaria pesquisar de lecionar, eu acho que, eu ainda não consegui perceber a vantagem do pesquisador se encerrar na sua pesquisa sem estabelecer o contato do jovem que está aprendendo, está precisando dominar a técnica. Eu acho que uma coisa complementa a outra. E na realidade lecionar só tem um turno de realização quando está associado, por exemplo, a determinadas práticas, quer dizer, a teoria e a prática estarem intimamente relacionadas para que uma seja complementação da outra. E num outro canto, eu colocaria lecionar e pesquisar, como sendo… lecionar seria, evidentemente, fazer a aplicação prática de conhecimentos que vão realimentar a pesquisa. Na minha opinião. (TEODÓSIO, 1983)

A presa política

Com João Goulart na Presidência da República de 1961 a 1964, muitas das causas defendidas por Naíde e vários outros correligionários foram pautadas e postas em discussão com efetivo ganho para questões que envolviam problemas populares. O “famoso” “Plano Trienal de Desenvolvimento econômico e social” pensado por Celso Furtado, à época ministro do Planejamento, foi decisivo para a mudança de rumo que seguiu o país. Isto porque o plano tinha por finalidade manter as taxas de crescimento da economia e reduzir a inflação, e para tanto seria necessário pautar reformas nas áreas da educação, agrária e dos bancos.

Como previsível, o plano não agradou a oposição nem seus apoiadores capitalistas, daí o início de uma série de levantes que culminou no golpe militar de 1964. Outra região giratória para Naíde, pois à época o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, um dos apoiadores de Goulart e de suas causas, a tinha convidado, em fevereiro de 1963, para assumir o cargo de Diretora do Departamento de Reeducação e Assistência Social do Serviço Social Contra o Mocambo10, onde trabalhou por um ano, quando pediu exoneração. Segundo a própria Naíde em depoimento ao DOPS: “aquêle Serviço de Reeducação e Assistência Social (DRAS), tinha a seu cargo vinte e seis (26) ambulatórios médico-dentários, catorze (14) escolas profissionais e catorze (14) escolas de alfabetização de adultos” (apud COMISSÃO DA VERDADE, 2001). Isso inclusive a ligava ao Movimento de Cultura Popular que, iniciado em 1960, foi extinto durante o regime civil militar em 1964.

Deixou também registrado em seu depoimento

[...] que além da colaboração que deu ao doutor Arraes, quando Governador, teve também oportunidade de dar outra colaboração, fazendo pesquisa científica sobre mistura de alimento vegetais, como fontes de proteínas, com o objetivo de distribuição dos produto aos escolares do Recife; que esse trabalho foi executado pelo Instituto de Fisiologia e Nutrição da Faculdade de Medicina da Universidade do Recife. (TEÓDOSIO in SSP-PE, 1964 apud COMISSÃO DA VERDADE, 2001)

Suas atuações de pesquisadora, com artigos publicados, e tais explicações não foram suficientes para livrá-la da prisão e, como parte do golpe militar impetrado, foi presa no dia 13 de abril de 1964, assim como outros militantes políticos, inclusive o próprio Arraes, e vários outros políticos brasileiros contrários ao novo regime. Foram presos e exilados pelo regime que, tal qual o primeiro governo Vargas, caracterizava-se pelo autoritarismo, violência, cassação de direitos civis e políticos e intransigências partidárias. Na prisão, vários foram os problemas, desde a privação da família, sobretudo dos filhos menores, e a prisão do próprio marido e do filho Mano Teodósio, com muita crueldade, para além de ter, ao seu lado, muitos dos seus companheiros definhando por conta das torturas sofridas (TEODÓSIO, 1991).

Na prisão e depois, fora dela, continuou enfrentar os problemas, continuou a se constituir, a se impor perante os imponderáveis da vida e a se fazer presente nos espaços em que escolheu atuar. Foi reintegrada à Universidade, orientou no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Medicina, continuou a pesquisar e a escrever, a ser mãe, esposa e aquela a quem a história não esquecerá, pois, longe de se deixar abater, constituiu um caminho longo de trabalho que, embora findado em 2005, com sua morte, constituiu-se de várias outras experiências que estas páginas não permitem expor, mas em outras o faremos, pois sua história muito tem a ensinar.

Considerações finais

Os fatos da vida de Naíde Regueira Teodósio aqui expostos nos acenam para uma possível resposta à pergunta inicial deste artigo. Isto porque, ao reunirmos os seus condicionantes, as suas escolhas e algumas de suas práticas, seja na militância política social, seja na pesquisa, atentamos para elementos de cunho individual, mas que, condicionados pelo contexto político social, expressam a relação formação-atuação profissional-enfrentamento a regimes autoritários.

Vimos que se por um lado o mapeamento e a análise de suas ações expõem as atrocidades de um regime político autoritário, por outro revelam as limitações desse poder na medida em que ela, mulher, membro de uma organização de enfrentamento e resistência (ANL), trilhou um caminho formativo que culminou em uma produção acadêmica-científica de relevância na área médica, pouco significando as pechas e marcas deixadas pelos regimes que, não raro, tratavam as mulheres militantes, dentre outras coisas, como “putas comunistas” (COLLING, 2004).

Em suma, atentar para trajetórias de vida como a de Naíde Teodósio, que ignora o lugar a ela historicamente reservado e adentra os espaços públicos de diversas formas, seja na militância, seja na carreira médica, seja como professora universitária, colabora com uma escrita da história menos androcêntrica e mais feminista, uma vez que desqualifica os discursos em que predominam a subserviência e subjugação das mulheres. E, se saber é poder como interpretou Foucault (2013), a médica pernambucana demonstrou que os saberes não estavam associados aos sexos, mas ao trabalho, à formação. Como conclui Colling:

[…] a condição das mulheres não está determinada pela natureza, pela biologia ou pelo sexo, mas é resultante de uma invenção, de uma engenharia social política. A ideia do gênero, diferença de sexos baseada na cultura e produzida pela história, secundariamente ligada ao sexo biológico e não ditada pela natureza, tenta desconstruir o universal e mostrar a sua historicidade. São as sociedades, as civilizações que conferem sentido a diferença, portanto não há verdade na diferença entre sexos, mais um esforço interminável para dar-lhe sentido, interpretá-la, cultivá-la. (COLLING, 2004, p. 5)

Se considerarmos que é justamente o reconhecimento das diferenças que confere a igualdade entre os sexos e que os papéis socialmente atribuídos a um e a outro gênero não foram necessariamente aceitos historicamente, e se também considerarmos as resistências, as distintas formas de enfrentamento e vitórias, conseguimos perceber que Naíde são muitas, estão em diversos lugares, têm diversas cores, diversos credos, atuam em vários setores e portanto dão ao gênero feminino mais do que elementos tradicionalmente simbólicos: dão empoderamento real, histórias que merecem ser contadas. Se podemos arriscar uma resposta categórica à nossa pergunta inicial, esta seria a sensibilidade. Sensibilidade de aprender, com a família, na escola, na profissão, na militância, com as pesquisas, que a construção de um país considera muito mais o trabalho e a ação do que o discurso que, embora poderoso, deve ser relativizado sob pena de continuar a oprimir seus muitos sujeitos históricos.

Referências

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1Este artigo, cuja concepção, pesquisa, análise e interpretação dos dados foram feitas em parceria por ambas as pesquisadoras, está vinculado ao Projeto de Pesquisa “A educação de mulheres ao longo dos séculos XIX e XX”, que conta com financiamento do edital da Chamada Universal MCTIC/CNPq 2018 e com bolsa PIBIC/CNPq.

2Paulo Cavalcanti (1915-1995), advogado, parlamentar, militante do PCB, jornalista e escritor pernambucano. Admirador dos ideais de Luís Carlos Prestes. Participou do diretório estudantil, enquanto estudante de direito, na Faculdade de Direito do Recife. Engajou-se na política contra o Estado Novo e o Governo de Agamenon Magalhães. Foi nomeado promotor público, em 1946, no município de Goiana, Pernambuco. Cumpriu dois mandatos de deputado estadual, entre os períodos de 1947 a 1954, e como vereador, em 1992. Durante o regime civil militar, foi preso onze vezes, por ser considerado comunista, esquerdista e comunizante, sofrendo assim aposentadoria compulsória, pelo Ato Institucional nº 2, passando a advogar para os presos políticos. Engajou-se, articulou e participou de campanhas de eleição de diversos nomes conhecidos do cenário pernambucano, como Pelópidas Silveira e Miguel Arraes. No ano de 1959, foi premiado pela Academia Pernambucana de Letras e pela Câmara Brasileira do Livro pelo seu livro Eça de Queiroz: agitador no Brasil, se tornando conhecido nacionalmente pelas suas obras publicadas (VAINSENCHER, 2005).

3Seu filho Manoel Silva Teodósio Neto, conhecido como Mano Teodósio, seguindo o caminho da mãe, foi um militante assíduo contra o regime ditatorial, sendo preso por duas vezes: uma no mesmo período que a mãe, acusado de subversão, e a outra em 1973 junto com outros acusados de estarem desenvolvendo atividades ilegais contra a segurança nacional (COMISSÃO DA VERDADE, 2001).

4Além das disciplinas obrigatórias as instituições poderiam, respeitando a carga horária semanal, oferecer também outras disciplinas.

5No entanto, mesmo tendo conquistado tantas vitórias em sua carreira profissional ela ainda continuou com o desejo de cursar Matemática, como demonstrou na entrevista de 1983 “[...] jamais consegui fazer o estudo da Matemática como eu achava que deveria fazer, que me gratificaria fazer, então isso é realmente uma frustação na minha vida intelectual, certo? [...]”

6Paulo Cavalcanti (1980 apud COMISSÃO DA VERDADE, 2001) registra esses nomes como presos à mesma época em que Naíde foi depoente: Ulisses Pernambucano, Paulo Fonseca Lima, Alberto Costa Campos, Pina Júnior, João Inácio Cabral de Vasconcelos Filho, José Carlos Santana, Antônio Aureliano da Silva, Heitor Maia Filho, Bruno Maia, Gumercindo Cabral de Vasconcelos, o pintor Hélio Feijó, Alcedo Coutinho, Cristiano Machado, dentre outros.

7Josué Apolônio de Castro (1908 -1973), médico, geógrafo, parlamentar, escritor, professor e cientista de renome internacional. Pernambucano, nascido em Recife, se tornou um estudioso da fome ao trabalhar em uma fábrica, como médico, e descobrir que a fome era a doença que mais acometia aos operários. Escreveu vários livros a respeito do tema, publicando, em 1946, o livro Geografia da fome, e em 1948, lançou o livro Geopolítica da fome, tornando-se uma referência internacional no tema e um dos maiores estudiosos das causas da miséria no Brasil e no mundo. Porém, seus estudos não eram apenas para relatar o problema da fome e sua incidência, mas o de buscar as causas dele, a ameaça que representava e as sequelas tanto social como intelectual na humanidade. Recebeu prêmios internacionais por suas pesquisas, como o Prêmio Internacional da Paz, em 1954. Foi embaixador chefe da delegação do Brasil junto a ONU, de 1962 a 1964. Contudo, com o golpe militar, em 1964, foi exilado na França e perdeu todos os direitos de representatividade do Brasil junto a ONU. Entretanto foi reconhecido internacionalmente, dando aulas em universidades da França. Faleceu em Paris, em 1974, como símbolo de luta contra a fome no mundo (ANDRADE, 1997).

8Nelson Ferreira de Castro Chaves (1906-1982), médico nutrólogo e pesquisador do campo da nutrição no Brasil. Foi professor titular da cátedra de fisiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Recife, recebendo o título de Professor Emérito pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1978. Sua importância na área acadêmica e, consequentemente, da saúde, se deu a partir de seus estudos sobre desnutrição infantil e saúde pública, pois conseguiu desenvolver um nutriente à base de feijão, farinha de milho, cálcio e vitaminas, o Nutriente V, que serviu para combater os efeitos da desnutrição infantil. Também foi um dos responsáveis pela institucionalização da nutrição, ao criar o Instituto Álvaro Ozório de Almeida, mais tarde denominado Instituto de Nutrição da Universidade do Recife, hoje UFPE (VASCONCELOS, 2001).

9Ulf S. von Euler (1905-1983), fisiologista sueco, estudava o sistema nervoso, especificamente as transmissões dos impulsos nervosos, assim como as substâncias que auxiliam essas transmissões. Além de descobrir a norepinefrina, hormônio e neurotransmissor responsável pela ativação do sistema cardíaco, que controlaria a pressão arterial no organismo, dedicou-se ao modo como essa substância seria armazenada, liberada e inativada. Em parceria com outros pesquisadores, ganhou o Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1970. (LORO, 2018)

10Associação criada em Recife, durante o governo de Agamenon Magalhães, em 12 de julho de 1939, com o nome de Liga Social Contra o Mocambo, A necessidade da Liga decorreu do fato de que a cidade contava com 45 mil mocambos erguidos em áreas alagadas da região, uma vez que grande parte da população estava desempregada e sem condições de ter uma moradia digna, além de preocupações com as condições de higiene e saúde desses moradores, pois os mocambos eram habitações precárias, erguidas sobre palafitas em áreas alagadas. Com vistas à modernização da cidade, foi criado o programa com o objetivo de extinguir os mocambos e incentivar a construção de casas populares para esses habitantes, transferindo-os para outros locais. No entanto, esse programa foi extinto em 1945, e em seu lugar foi criado o Serviço Social contra o Mocambo, este dividido em três comissões: a de estudo e aquisição de terrenos, a de organização de empresas e a de propaganda e ação social contra o mocambo. Os fundos para o funcionamento desse programa vinham de donativos do governo, de sindicatos, de empresas privadas e de doações, isso tudo para a construção de casas e programas sociais. Para tanto houve uma grande campanha da Prefeitura do Recife contra a construção de mais mocambos e a demolição daqueles que já estariam erguidos, uma vez que se tinha o incentivo para a compra de casas populares para esses moradores, com condições favoráveis a eles, como por exemplo pagar a prazo pela casa. Tal inciativa deu origem as vilas populares na região metropolitana do Recife e programas sociais que atendessem a essas famílias. (FGV, 2009; CÉZAR, 1985; PERNAMBUCO, 2019)

Recebido: 31 de Agosto de 2020; Aceito: 03 de Outubro de 2020

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