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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.20 no.67 Curitiba out./dez 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.7213/1981-416x.20.067.ao01 

Artigos

O protagonismo da mulher no suplemento feminino do jornal O Estado de S. Paulo

Women’s protagonism in the suplemento feminino by the O Estado de S. Paulo newspaper

El protagonismo de las mujeres en el suplemento femenino del periódico O Estado de S. Paulo

Gizeli Fermino Coelhoa 
http://orcid.org/0000-0001-7777-1215

Raquel dos Santos Quadrosb 
http://orcid.org/0000-0002-8686-8956

Maria Cristina Gomes Machadoc 
http://orcid.org/0000-0002-7359-4562

aUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: gizelifermino@gmail.com

bUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: rqraquelquadros@gmail.com

cUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil. Doutora em Filosofia e História da Educação, e-mail: mcgm.uem@gmail.com


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o modo como o Suplemento Feminino do jornal O Estado de S. Paulo propagava ideais que contribuíram para mobilizar as mulheres paulistas a apoiarem o Golpe Civil-Militar de 1964 sem, contudo, alterar seu papel no meio familiar e social. Investiga-se a postura adotada por esse suplemento em relação à questão política na primeira metade da década de 1960; para isto, são estudados textos e propagandas publicados entre os anos de 1960 e 1964. A hipótese é a de que as matérias publicadas pelo Suplemento Feminino deste jornal expressavam opiniões com o intuito de justificar a necessidade da intervenção militar, bem como convencer o seu público de que as atitudes dos grupos militares eram necessárias para a manutenção dos princípios democráticos no país. Neste sentido, entende-se que o discurso veiculado pelo Suplemento Feminino era duplamente ideológico: ao mesmo tempo que dava voz às mulheres nas decisões políticas, construindo um sujeito político feminino, procurava convencê-las de que o seu lugar se restringia ao lar, espaço em que desempenharia a função de protetora do lar, da família e da pátria, ou seja, reiterava o papel submisso da mulher na sociedade.

Palavras-chave: Imprensa; Mulher; Golpe Militar de 1964

Abstract

The objective of this article is to analyze the way the Suplemento Feminino (Feminine Supplement) by the O Estado de S. Paulo newspaper propagated ideals that contributed to mobilize São Paulo’s Women to support the Civil-Military Coup of 1964 without changing their role in the family and social environment. It investigates the posture adopted by this section in relation to the political question of the first half of the decade of 1960. In this sense, texts and advertisements published between the years 1960 and 1964 are studied. The hypothesis is that the articles published by the Suplemento Feminino of this newspaper expressed opinions in order to justify the need for military intervention and convincing their audience that the attitudes of the military groups were necessary for the maintenance of democratic principles in the country. In this way, it is understood that the discourse disseminated by this section was doubly ideological. In other words, it gave women a voice in political decisions, building a female political subject to convince them that their place was restricted to the home. Thus, this space would play the role of protecting the home, family and homeland. The Woman’s submissive role in society was reiterated.

Keywords: Press; Woman; Military Coup of 1964

Resumen

El objetivo de este artículo es analizar la forma en que el Suplemento Feminino (Suplemento Femenino) del periódico O Estado de S. Paulo propagó ideales que contribuyeron a movilizar a las mujeres de Sao Paulo para apoyar el Golpe Civil-Militar de 1964 sin cambiar su papel en el entorno familiar y social. Investiga la postura adoptada por esta sección en relación con la cuestión política en la primera mitad de la década de 1960. En este sentido, se estudian textos y anuncios publicados entre los años 1960 y 1964. La hipótesis es que los artículos publicados por el Suplemento Feminino de este periódico expresaron opiniones con el fin de justificar la necesidad de intervención militar y convenciendo a su público de que las actitudes de los grupos militares eran necesarios para el mantenimiento de los principios democráticos en el país. Por lo tanto, se entiende que el discurso difundido por la sección era doblemente ideológico. En otras palabras, dio a las mujeres una voz en las decisiones políticas, construyendo un sujeto político femenino para convencerlas de que su lugar estaba restringido a su vida. Por lo tanto, este espacio jugaría el papel de proteger la vida, la familia y la patria. Es por eso que se reiteró el protagonismo sumiso de las mujeres en la sociedad.

Palabras-clave: Prensa; Mujer; Golpe Militar de 1964

Introdução

Nosso objetivo, neste estudo, é analisar como o Suplemento Feminino do jornal O Estado de S. Paulo propagou ideias que contribuíram para mobilizar as mulheres paulistas a apoiarem o Golpe Civil-Militar de 1964, tendo em vista a sua militância em nome dos direitos individuais, da família, das tradições e dos bons costumes. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de caráter analítico e descritivo, cujas fontes são os duzentos primeiros números do Suplemento Feminino publicados no jornal O Estado de S. Paulo entre os anos de 1960 e 1964, os quais encontram-se disponíveis no acervo digital do periódico.

Os editoriais que versam sobre o tema foram selecionados em etapas. Inicialmente, separamos todas as matérias dentro do limite temporal da pesquisa, 1960 a 1964; em seguida, selecionamos os artigos publicadas no Suplemento Feminino; por fim, procuramos organizar os artigos por temáticas, sobretudo aquelas que tratavam sobre política, religião e questões econômicas, totalizando cinquenta e sete editoriais. Dentre estes artigos, utilizamos, para a elucidação das questões desenvolvidas neste estudo, aqueles que tratavam de conteúdos relacionados às palavras família; religião; comunismo; Deus; Pátria; revolução; ordem e liberdade.

Como suporte teórico, pautamo-nos nas produções intelectuais de Capelato e Prado (1980), de Buitoni (1986), de Nóvoa (1997), de Abreu et al. (1996) e de Martins (2011). O tema justifica-se pela relevância da imprensa feminina como fonte histórica e pela importância em ampliar e enriquecer as definições de história e de memória no âmbito da educação brasileira.

A área da educação apresenta várias divisões possíveis de estudo, dentre elas História e Historiografia da Educação, a qual possibilita discussões em consonância com o contexto histórico no qual se inserem as propostas de ensino, as práticas pedagógicas e as ações políticas e sociais envolvidas nesse processo (MACHADO; DORIGÃO; COELHO, 2016).

Dentre os caminhos possíveis de análise para o estudo da História da Educação, encontra-se a imprensa feminina, cuja produção pode ser utilizada como fonte ou como objeto de pesquisa. Para tanto, é necessário que o historiador da educação, ao tomar a imprensa como fonte de pesquisa, leve em consideração o seu caráter ideológico, de modo a desvelar o modelo de homem, de educação e de sociedade que ela busca incutir no seu público, uma vez que se constitui veículo de interesses individuais e coletivos, cujo objetivo é fazer com que suas mensagens e seus anseios sejam incorporados por outros grupos sociais (NÓVOA, 1997). Apesar de a imprensa não ser neutra e imparcial, em geral, esta característica não é explicitamente assumida. Vejamos o trecho a seguir publicado pelo Suplemento Feminino (8/1/1960, p. 2):

Os assuntos relacionados com qualquer setor do Suplemento Feminino serão aqui tratados. Sugestões, comentários, crítica favorável ou contrária, a tudo acolhemos com igual imparcialidade, uma vez revestidos de caráter construtivo e tendo por fundamento a veracidade dos fatos, pois como não poderia deixar de ser temos em alta consideração a opinião do leitor, para o qual foi feito o jornal.

A imprensa é tomada como fonte historiográfica na medida em que “[...] os estudiosos analisam os processos históricos nela contidos, extraindo de suas páginas fatos registrados em ocasiões diferentes, mas que explicitam o modelo educativo informal empreendido na formação dos homens” (ROCHA, 2014, p. 23). Sob esta condição, a imprensa é responsável por fornecer ao pesquisador as ações humanas produzidas em contextos específicos. Além disso, cabe ao historiador desvelar os discursos nela produzidos, os quais são condicionados por fatores políticos, econômicos e culturais; por isso, é relevante analisar a imprensa mediante a configuração social do espaço e do tempo em que foi produzida (MACHADO; RODRIGUES, 2017).

Para contextualizar o Suplemento Feminino como fonte de pesquisa, consideramos necessário evidenciar que Júlio de Mesquita Filho, dono e diretor do jornal O Estado de S. Paulo, foi procurado por chefes militares, em 1962, para lavrar o chamado Roteiro da Revolução, o qual deveria ser aceito como diretriz pelo governo militar após a tomada do poder. O jornal O Estado de S. Paulo publicou o roteiro no dia 12 de abril de 1964, doze dias após a deflagração do Golpe Civil-Militar, com a seguinte nota introdutória:

Há mais ou menos dois anos, o Dr. Júlio de Mesquita Filho, instado por altas patentes das Forças Armadas a dar a sua opinião sobre o que se deveria fazer caso fosse vitoriosa a conspiração que então já se iniciara contra o regime do sr. João Goulart, enviou-lhe em resposta um roteiro de como o novo governo deveria proceder perante a Nação (MESQUITA FILHO, 12/4/1964, p. 144).

Neste documento, Júlio de Mesquita Filho salientou a responsabilidade que recaía sobre as Forças Armadas por estarem na administração pública; uma administração que deveria durar apenas o tempo suficiente para afastar a herança ditatorial varguista e a ameaça comunista. O governo militar deveria agir com absoluta segurança e definir os critérios a serem seguidos antes que entrasse em ação, porque acreditava-se que a decomposição política, administrativa e social de amplas proporções em que estava assolado o país seria resolvida em, no máximo, dois ou três anos.

Ao restabelecerem os controles político e social do Brasil, as Forças Armadas deveriam entregar a administração do país a um governo fiel à “[...] filosofia política [...] que tem por base o respeito à pessoa humana, aos direitos inalienáveis que nos legaram os nossos mestres, cujos fundamentos estão nos princípios da Revolução Francesa” (MESQUITA FILHO, 12/4/1964, p. 144). Isso significa que, na concepção de Mesquita Filho, o exército deveria intervir na administração pública para livrar o país do “perigo comunista”, entregando-o a uma administração regida por princípios liberais.

Ao perceber que o governo militar não tinha a pretensão de transmitir a administração do país para um governo senão ao da junta militar, Mesquita Filho rompeu com o governo que ele próprio ajudou a constituir.

[...] porque este acabou fugindo às ideias centrais do movimento de 1964, claramente articulado dois anos antes pelo ‛Roteiro da Revolução’, evitando as rápidas reformas que se faziam necessárias e diluindo a Revolução em falso legalismo cuja finalidade era perpetuar o militarismo no poder (MESQUITA FILHO, 13/12/1968, p. 4).

É evidente que, além do Roteiro da Revolução, Mesquita Filho contribuiu com discursos ideológicos para ampliar a falsa propaganda de que o país se encontrava perante a ameaça comunista. Essa ideia foi amplamente difundida pelo jornal O Estado de S. Paulo com o intuito de convencer a classe média de que o Golpe Civil-Militar seria a melhor solução para combater o comunismo, bem como para afastar a crise econômica que assolava o país. Apesar da relevância deste jornal para a compreensão das questões políticas e sociais da época, neste artigo, limitamo-nos à análise de seu Suplemento Feminino, a fim de desvelar como tais ideias foram veiculadas por uma publicação destinada ao público feminino.

O Golpe Civil-Militar de 1964 reuniu vários segmentos, grupos e instituições privadas da sociedade brasileira, no entanto, pouco se diz sobre uma das participações determinantes para a deposição do então presidente da República João Goulart ‒ a das mulheres.

Os anos da década de 1960 foram um marco na luta pela emancipação feminina. A descoberta da pílula anticoncepcional provocou uma verdadeira revolução comportamental, possibilitou à mulher buscar prazer nas relações sexuais, já que, ao permitir separar as funções recreativa e procriadora do coito, entregou-lhe o controle sobre a maternidade. A descoberta contraceptiva fortaleceu o movimento feminista; mulheres de várias partes do mundo, por exemplo, queimaram sutiãs em praças públicas em sinal de protesto (BUITONI, 1986).

No Brasil, na década de 1960, a participação das mulheres nas lutas políticas seria escrita de outra forma: muitas delas, especialmente as de classe média, permaneciam conservadoras e empenhadas em desempenhar os papéis sociais constituídos sob os princípios e os conceitos da família e da religião, em nome dos quais elas deixariam o papel de coadjuvantes para se tornarem uma voz poderosa nas decisões políticas do país. Organizadas em entidades políticas, como a União Cívica Feminina (UCF), a Liga da Mulher Democrática (LMD) e a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), as mulheres foram utilizadas e manipuladas pela direita conservadora, “[...] com o apoio da Igreja Católica, de empresários e latifundiários, devidamente instruídos por entidades financiadas pelos Estados Unidos como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)” (TELES, 2014, p. 10), para servirem de sustentação política em favor do Golpe Civil-Militar.

Com rosário nas mãos, muitas mulheres marcharam pelas ruas dos principais estados conspiratórios - São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais -, exigindo, inicialmente, a deposição de João Goulart. Uma vez concretizado o Golpe Civil-Militar, elas aplaudiram-no, chamando, confortavelmente, o ato golpista de ‘Revolução de 1964’ (CODATO; OLIVEIRA, 2004).

A imprensa foi um importante instrumento ideológico na preparação do cenário para o Golpe Civil-Militar ao forjar a ameaça de caos, assim como o clima de insegurança que levaram às Marchas constituídas, em sua maioria, por mulheres pertencentes à classe média. Em todo o país, foram realizadas 49 manifestações desse tipo: “ Nas capitais, como Rio, São Paulo e Belo Horizonte, ajuntaram-se multidões de mulheres, chegando a espantosas cifras de 300 a 500 mil pessoas” (TELES, 2014, p. 10).

Com o intuito de alcançarmos o objetivo proposto neste estudo, o texto está organizado em duas partes: na primeira, abordamos matérias contidas no Suplemento Feminino do jornal O Estado de S. Paulo, bem como refletimos acerca da sua importância cultural e do seu caráter ideológico. Na segunda parte, apresentamos a postura conservadora de mulheres brasileiras e como o Suplemento Feminino utilizou tal posicionamento para mobilizá-las a favor dos militares.

O Suplemento Feminino e o seu caráter cultural e ideológico

A primeira edição do jornal O Estado de S. Paulo foi publicada em 4 de janeiro de 1875, sob o título A Província de São Paulo. Foi idealizado por um grupo que, unido por laços de parentesco e identidade cultural, pela amizade e por interesses econômicos centrados na defesa da economia cafeeira e na adesão ao seu ideário, desejava implantar o regime republicano no Brasil. Por isso, o jornal tinha como lema: “fazer da independência o apanágio de sua força” (OESP, 25/5/1975, p. 137).

Inspirado pelo modelo democrático norte-americano já solidamente implantado, o grupo de idealizadores teve o cuidado de criar uma das poucas instituições da época que se declarava abolicionista e apartidária. Em seu primeiro número, fez o seguinte anúncio: “[...] a redação aceita informações justas e autorizadas relativas a serviços públicos e desmandos da administração e do governo” (OESP, 25/5/1975, p. 137). Observamos, portanto, que o jornal nasceu como defensor das ideias liberais e, ao longo de sua existência, participou - e continua participando - ativamente dos principais debates políticos, sociais e econômicos do país.

O Estado de S. Paulo passou por várias inovações gráficas; o Suplemento Feminino foi fruto de uma delas. Criado no dia 25 de setembro de 1953, em substituição à Página Feminina, a nova seção “[...] enquadrava-se na tendência dos jornais modernos: dedicar-se, de maneira mais racional, a ser uma atração especial aos diversos setores do público e às especializações” (SUPLEMENTO FEMININO, 27/10/1963, p. 5). Esse período era o Pós-Guerra, momento em que os jornais brasileiros passaram por grandes transformações. A imprensa, impulsionada sobretudo pelo crescimento da lavoura, do comércio, da indústria e do transporte, o qual potencializou o consumo em todos os setores, passou a focar em informações, em propagandas e em publicidades de novos produtos e de elementos dos mais variados setores e das mais variadas formas (MARTINS, 2011).

Ao longo da década de 1950, os órgãos de comunicação tornaram-se empresas comerciais detentoras de poder econômico, introduzindo inovações técnicas, gráficas e editoriais. Os grandes jornais brasileiros, entre os quais estavam O Estado de S. Paulo, Gazeta do Povo, O Globo, A Gazeta de São Paulo e Jornal do Brasil, empenharam-se em criar colunas alternativas que elegeram, bem como produziram públicos específicos interessados na leitura de temas literários e esportivos, no debate de ideias em cadernos e em espaços do leitor com o objetivo de divulgar novas ideias, novos projetos e as últimas novidades literárias e políticas (ABREU et al., 1996).

Nesse cenário, foram criados os “[...] encartados nos jornais diários, abrigando um grupo de notícias que se transformou em jornais à parte, como se fossem anexo do jornal matriz” (ROCHA, 2006, p. 2), ou seja, nasceram os suplementos. Eles se configuravam como um material informativo que, em outro contexto, não conquistaria espaço nas edições diárias dos órgãos de comunicação escrita; seriam um acréscimo às informações veiculadas pela imprensa que ficariam em segundo plano.

A função do suplemento, para além da segmentação da informação, é dialogar com o significado de realidade, no sentido de ampliar as condições de produção de formas simbólicas de campos sociais que solicitem voz, ou seja, que busquem mais espaço de visibilidade na mídia (ROCHA, 2006, p. 2).

A estrutura editorial dos suplementos constituía-se de diversas seções ou rubricas voltadas à vida familiar, em um contexto em que a mulher era consumidora da produção literária, de poesias, de crônicas e de romances (ABREU et al., 1996). Os suplementos publicavam, quase exclusivamente, literatura, história, arte, música, cinema e teatro, todavia os intelectuais brasileiros pretendiam levar as pessoas a tomarem consciência dos problemas sociais e, em decorrência, a agirem politicamente. Tais espaços, portanto, passaram a ser vistos como meios fundamentais para a construção, para a formação e para a informação de um público específico, isto é, um perfil de leitor cujas expectativas ideológicas estavam alinhadas às almejadas pelos veículos de comunicação dos quais os suplementos faziam parte (SOSA, 2007).

A imprensa era utilizada, por exemplo, para que um grupo reforçasse uma imagem ou um ideário a outros grupos, atuando como um meio de demonstração de poder e reprodução de ideais que, embora atendessem a interesses particulares, eram propagados como se fossem coletivos (MARTINS, 2011). Ao longo do século XX, os veículos de comunicação de massa se tornaram mercadorias rentáveis que serviam para noticiar, entreter, informar, bem como

[...] instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social. Suas ações ultrapassam aquela perspectiva que a tomam como mero ‛veículo de informações’, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se insere (CAPELATO; PRADO, 1980, p. 19).

A manipulação na e pela imprensa demanda controle direto do poder, quer seja pelo Estado, quer seja pelos proprietários de jornais, pelos grupos, pelas classes e pelas instituições sociais. Nossa análise do Suplemento Feminino de O Estado de S. Paulo orienta-se por esta perspectiva, já que o referido periódico foi veículo da articulação do Golpe Civil-Militar de 1964, ou seja, de ideais que mobilizaram parte das mulheres em defesa e em apoio aos militares.

Idealizado pela jornalista Maria do Carmo de Almeida, a Capitu, pseudônimo machadiano com o qual assinava suas matérias, o caderno foi um dos primeiros a ser dirigido por mulheres. “Era uma época em que não era comum ver mulheres na redação. Além de Capitu, o Suplemento tinha na equipe uma repórter, uma cronista social e uma fotógrafa” (MANIR, 18/1/2015, p. 180).

O fato, porém, de um veículo de comunicação ser coordenado por mulheres não o qualifica como imprensa feminina; o elemento definidor para esta condição é o público leitor ao qual é dirigido. Diferentemente da imprensa destinada a pessoas de ambos os sexos, a imprensa feminina veio a se constituir somente em razão da segmentação de mercado. “Desde que surgiu no mundo ocidental no fim do século XVII, já trouxe as mulheres como destinação no próprio título - prática a persistir até hoje”, diz Buitoni (1986, p. 7). A mulher, então, faz parte da caracterização da imprensa feminina, seja como receptora, seja, às vezes, como produtora. Além disso, a imprensa feminina é caracterizada pelo conteúdo que transmite.

Poesias, receitas de bolo, reportagens, figurino, consultório sentimental, artigos de psicologia, entrevistas, testes, horóscopo, contos, fofocas, maquiagem, plantas de arquiteturas, moldes, saúde, educação infantil, tudo parece caber dentro da imprensa feminina. Sua área de abrangência parece infinita: embora frequentemente ligados ao âmbito doméstico, seus assuntos podem ir da dor de dente no filho de sete anos à discussão de política de controle da natalidade, passando pelos quase inevitáveis modelos de roupa e pelas receitas que prometem delícias (BUITONI, 1986, p. 8).

A imprensa feminina é continente que se relaciona à mulher e à família. Isso não significa que ela não lida com o fato político e ideológico. O Suplemento Feminino de O Estado de S. Paulo apresentava todos esses elementos, sem esconder a intencionalidade de formar a opinião do público feminino em favor das ideias liberais defendidas pelos donos do jornal e por seus colaboradores.

Inicialmente, o Suplemento era composto por dezesseis páginas e publicado às sextas-feiras, sob a forma de tabloide. Levava às mulheres brasileiras dicas de moda, de perfumes e de cosméticos chegados diretamente de Paris, de culinária, bem como crônicas, poesias, resenhas, moldes, modelos de vestidos e receitas de trabalhos com agulha. Além disso, o caderno possuía um espaço reservado à educação infantil, no qual publicava literatura infantil e assuntos ligados à puericultura e à psicologia. “E a seção de grafologia responderia no fino do traço à curiosidade feminina que gosta de conhecer os ‛segredos’ revelados pela própria letra ou pela de outrem [...]” (MANIR, 18/1/2015, p. 180).

Maria do Carmo de Almeida foi responsável pelo Suplemento Feminino até 1958, quando Francisco Lima passou a dirigi-lo até dezembro de 1959. Em janeiro de 1960, esta função foi assumida por Clycie Mendes Carneiro que nela permaneceu por quatro meses; na sequência, sua sucessora, Maria Cecília Vieira de Carvalho Mesquita, comandou o suplemento até janeiro de 1967, ano que teve um novo diretor, Delmiro Gonçalves, o qual ficou em seu comando até 2011, quando se findou a publicação do caderno (SUPLEMENTO FEMININO, 18/1/2015, p. 180).

Vale esclarecer que, em 1967, o Suplemento Feminino deixou de circular sob a forma de tabloide, adotou a mesma medida do jornal e diminuiu o número de páginas de dezesseis para oito. Além disso, “deixou de circular nas sextas-feiras, para chegar às leitoras aos domingos. Em 1971, retomou o formato de tabloide, ganhou cores, saiu da impressão tipográfica e passou à off set” (SUPLEMENTO FEMININO, 24/12/1972, p. 2).

Ao longo de seus 58 anos de existência, o Suplemento participou da formação da opinião do público feminino, especialmente da elite conservadora, tendo em vista o projeto de uma “mulher brasileira” caridosa, elegante, religiosa e dedicada; uma mulher que ocupasse um lugar específico - o ambiente doméstico - e que além disso, transmitisse esta visão de mundo às novas gerações de modo a perpetuá-la. Este projeto ganhou visibilidade nas páginas do Suplemento Feminino particularmente na década de 1960, servindo de alicerce para ações públicas contra a falsa ameaça comunista e de apoio ao Golpe Civil-Militar (TELES, 2014).

Por meio de fotografias, de caricaturas e de imagens, o Suplemento Feminino ensinava às mulheres da elite as maneiras consideradas mais adequadas para o desempenho do papel social de esposa, de mãe e de dona de casa, tornando-as aptas para compor o modelo ideal de família burguesa. Modelo a ser seguido também pelas mulheres pobres.

De acordo com um levantamento realizado e divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1988, o Suplemento Feminino atingia um público de 354 mil leitoras e de 46 mil leitores pertencentes às classes A e B, com instrução de nível superior. Desse total, 63% estariam na faixa etária de 20 até 59 anos; a maioria desses leitores era formada por mulheres que se preocupavam com a aparência. Segundo publicação do próprio periódico, essas mulheres “[...] compram todas as novidades que aparecem no mercado - de produtos de beleza e perfumaria a secadores e depiladores. São mulheres dinâmicas e sofisticadas, que gostam de boa comida e sabem escolher sua bebida” (SUPLEMENTO FEMININO, 25/9/1988, p. 3). Ainda de acordo com o levantamento, a maior parte do público leitor do Suplemento Feminino era formado por donas de casa cujo estilo de vida era bastante contemporâneo - possuíam automóveis e conta corrente individual. Essa mulher com perfil moderno, diante da falsa ameaça comunista, viu-se na obrigação de defender seus direitos, seus privilégios e seu modo de vida.

Feminismo à brasileira: do lar para a Revolução?

A figura feminina na política brasileira, como eleitora e como sujeito da política, começou a se ampliar a partir de 1930, momento em que a mulher conquistou “[...] o direito ao voto e a aquisição dos direitos iguais perante a lei [...] (QUADROS, 2018, p. 29). No entanto, a participação da mulher na sociedade não tornou unânime a ideia da emancipação feminina. Ao contrário, à medida que os movimentos populares se enriqueceram com a participação da mulher e com a propagação de movimentos feministas, “[...] mulheres de grupos sociais privilegiados também se organizaram e, inclusive, pressionaram o governo para a extinção desses movimentos, tomando-os como escandalosos e subversivos” (SESTINI, 2008, p. 57).

Em nome da família e dos bons costumes, mulheres de classe média, brancas, a maior parte delas ocupando o lugar de dona de casa, de esposa de militar e de empresário e fervorosas católicas organizaram-se para manter a ideia de superioridade do homem em relação à mulher, ou seja, para mantê-lo “[...] como figura pública, responsável pela manutenção do lar, mantenedor e provedor e a mulher restrita ao ambiente doméstico, desempenhando o papel de esposa e mãe dedicada” (SESTINI, 2008, p. 58). No entanto, havia um elevado contingente de mulheres pobres, empregadas domésticas e moradoras das periferias que foi enganado pelo discurso religioso, anticomunista e pelo medo dos ateus que foram reproduzidos por indivíduos cujo acesso a esse conteúdo noticioso era notório (CODATO; OLIVEIRA, 2004).

O conservadorismo, que reafirmava a superioridade masculina para gerir a família, estava previsto no Código Civil de 1916, retratava a sociedade da época, marcadamente tradicionalista e patriarcal, a qual “[...] tomava por referência a família romana, na sua maior característica de delegar ao ‛pater’ a função política, judicial, econômica e religiosa do lar” (MOURA, 1/3/1963, p. 60). Por este Código, a mulher, inclusive, era proibida de exercer uma função profissional caso não fosse autorizada pelo marido.

Um dos primeiros passos para romper a hegemonia masculina foi dado, em 1962, no governo de João Goulart, com a promulgação da Lei n.º 4.121, de 27 de agosto, conhecida como “Estatuto da Mulher Casada”. A Lei permitia, entre outras coisas, que a mulher casada exercesse livremente sua atividade profissional, concedendo-lhe maior liberdade no interior da família (SESTINI, 2008).

Além disso, os bens adquiridos com o produto do seu trabalho passaram a constituir patrimônio de reserva, dos quais poderia dispor livremente. Independentemente do consentimento do marido, a mulher passou a poder aceitar heranças, tutela e curatela, tal como o homem. Ela somente precisava de consentimento para atos que também o marido não poderia praticar sem sua aquiescência, como venda de imóveis, prestação de fianças e doações de bens e de rendimentos comuns (OLIVEIRA, 16/7/1972, p. 16). Apesar de as modificações na Lei terem representado um avanço, não significou, igualmente, a emancipação da mulher, sobretudo daquelas pertencentes às camadas mais favorecidas da sociedade que mantinham o discurso de que a mulher pertencia com exclusividade ao ambiente doméstico.

Para o Suplemento Feminino de O Estado de S. Paulo, o “Estatuto da Mulher Casada” seria uma das várias maneiras de o Estado moderno tomar para si os poderes político, legislativo e judicial sob rigoroso monopólio, fazendo do núcleo familiar um centro de condenação destinado à promoção dos seus membros, bem como garantir, gradativamente, a obtenção da igualdade da mulher casada perante seu marido.

A equiparação dos sexos sob ângulo jurídico social é cada vez maior e sem retrocessos. Contribui para isso forte e acentuadamente o trabalho da mulher fora do lar, através do qual alcança uma maior emancipação econômica, podendo então cooperar com o marido no sustento e educação da prole. Emancipação econômica traz como consequência natural a emancipação psicológica que a dependência impede. As consequências em cadeia não se fazem esperar, pois cria outras reponsabilidades não só perante o cônjuge, como também aos filhos (MOURA, 1/3/1963, p. 60).

Na perspectiva do Suplemento Feminino, a independência financeira conquistada pela mulher acarretaria sua independência psicológica que, aos poucos, destruiria sua sensibilidade e sua delicadeza, modificando sua forma de ser e de agir no interior do sagrado ambiente familiar. Por ter sido sancionada por João Goulart, considerado, naquele momento, simpatizante de ideias comunistas e subversivas, a nova lei era acusada pelo periódico de atentar contra as tradições da família brasileira.

Podemos perceber a postura conservadora e machista do Suplemento Feminino por meio do artigo publicado, em 29 de julho de 1960, sob o título Esportes úteis à Mulher. Nele, é apresentada uma lista de esportes considerados aconselháveis à mulher, dentre os quais se destacam os seguintes: ginástica, natação, tênis, vôlei e atletismo. Esse mesmo artigo indica esportes vistos como inadequados ao sexo feminino, em particular aqueles que impõem contato físico e movimentos bruscos, como o futebol e as lutas marciais, apresentando como justificativa a fragilidade da formação óssea e muscular feminina. Por isso, o periódico afirmava que o serviço doméstico seria a melhor ginástica e mais eficaz para a mulher, conforme podemos observar no excerto a seguir:

Recomendamos o tipo ideal de ginástica para a mulher, que é o serviço doméstico, misto de ginástica e dança, experimentando, selecionando e praticando com prazer. Esses exercícios diários e continuados no aproveitamento total dos movimentos de andar, subir e descer escadas, baixar-se e outros são mais úteis do que passar três ou quatro horas num campo de esportes. Devem ser praticados com a mesma espontaneidade e consciência de quem está andando, subindo, ou descendo escadas, baixando-se e etc. deixando o corpo mover-se sozinho, sentindo-o na sua expressividade natural, concentrando-se no movimento para deixar de pensar no romance que está lendo ou no que irá preparar para as refeições (SUPLEMENTO FEMININO, 19/7/1960, p. 9).

Tais posicionamentos são importantes para compreendermos que a imprensa contribuiu para difundir o ideário de submissão feminina no imaginário social e se utilizou dessa postura conservadora e submissa da mulher para mobilizá-la em apoio ao Golpe Civil-Militar de 1964.

No entanto, o preparo ideológico que levou as mulheres brasileiras à participação de atos públicos, como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, decorreu de manifestações que se avolumaram no país nos primeiros anos da década de 1960, com destaque para a “Cruzada do Rosário em Família”, fundada nos Estados Unidos, em 1942, pelo Padre Patrick Peyton. Esse movimento chegou ao Brasil no início dos anos de 1960 e “[...] tinha como lema principal: a família que reza unida permanece unida. E se a família for unida, Deus reinará no meio dela. E reinando na família Deus reinará no Mundo” (SESTINI, 2008, p. 71).

Por seu discurso religioso e fortemente anticomunista, a referida Cruzada rapidamente ganhou repercussão nacional. Repleta de alusões a uma batalha entre o bem e o mal, cristalizou a ligação entre Deus, pátria e família, que passou a representar, no imaginário social, o elo fundamental - ameaçado pela Geopolítica da Guerra Fria - de combate ao comunismo (SIMÕES, 1985). A “Cruzada do Rosário em Família” defendia que “[...] o diálogo com Deus é o caminho para a salvação da nossa família e com ela da nossa própria pátria, contra as ameaças do mundo moderno” (SUPLEMENTO FEMININO, 16/8/1963, p. 8). O movimento pregava também a união entre as classes sociais e a manutenção do status quo social; por isso, contou com o apoio do Suplemento Feminino e com a cobertura total dos locais de eventos e de reuniões. A Cruzada fazia parte de um projeto liderado pelo Padre Peyton, em parceria com a CIA, cujo objetivo era desestruturar as ideias comunistas na América Latina. Como o catolicismo era a base indenitária de boa parte da população latino-americana, sobretudo a do público feminino, a religião foi o veículo, por excelência, para a luta anticomunista (SESTINI, 2008).

A “Cruzada do Rosário em Família” era capaz de gerar um grande fervor religioso entre a população; por esse motivo, foi um movimento significativo, especialmente no preparo das mulheres que participariam das Marchas, as quais chegaram a reunir 1,5 milhão de pessoas no Rio de Janeiro (SUPLEMENTO FEMININO, 16/08/1963, p. 8).

Além da “Cruzada”, o pronunciamento do presidente João Goulart no Comício de reformas, em 13 de março de 1961, foi outro elemento utilizado pelo Suplemento Feminino para mobilizar as mulheres a participarem das “Marchas”. Em sua exposição, Goulart teceu críticas a respeito da direita por utilizar símbolos religiosos como instrumentos políticos de oposição a seu governo (TELES, 2014), fazendo alusão a uma manifestação de protesto contra a sua reforma de bases ocorrida, realizada por mulheres ligadas à LIMDE, em Belo Horizonte, em janeiro de 1961. Após esse episódio, o Suplemento Feminino passou a divulgar a ideia de que João Goulart almejava transformar o Brasil em um país comunista, ação que corromperia as tradições brasileiras, dentre elas o liberalismo e o cristianismo.

O Suplemento Feminino criou uma espécie de chamamento popular contra o governo de João Goulart, bem como contra a “ameaça comunista”. Para conquistar o apoio da população aos militares, esse movimento via na mulher a principal figura de influência. Dessa forma, seria possível oficializar e dar legitimidade ao Golpe Civil-Militar, cujo discurso que o ancorava era o de que este seria o único meio de salvar a democracia brasileira.

Podemos observar, portanto, que o tabloide utilizou o universo católico, ou seja, os símbolos e as doutrinas da Igreja embasados pelo discurso anticomunista para mobilizar as mulheres conservadoras a apoiarem o Golpe Civil-Militar. O Suplemento Feminino reforçava a ideia de que as mulheres, mediante a sua própria visão de mundo, “[...] dentro do recôndito de seu lar, cuidando da casa, dos filhos e da família, participa de movimentos patrióticos com devoção, representando seu lar e sua Pátria, cumprindo o papel que lhe atribui a sociedade” (SUPLEMENTO FEMININO, 29/7/1963, p. 7). Veiculava, assim, a concepção de que a mulher brasileira, religiosa, mãe e dona de casa precisava defender a pátria do perigo comunista, como escreve Andrade (21/5/1961, p. 2), em uma edição do Suplemento: “Caberia a elas, então, sair do lar, de onde já eram protetoras da família, para agora proteger a nação e as liberdades”.

Em nome da liberdade, o Suplemento relacionou o comunismo com o satanismo, a conquista da democracia com a salvação eterna e as liberdades individuais com a purificação da alma e o perdão divino.

O comunismo é um verdadeiro atentado aos povos do mundo livre. Vamos nós católicos, nós que temos liberdade que Deus nos deu, lutar pela continuidade dessa liberdade, dessa vida sã que temos. Deus não deu esse poder ao homem satânico de querer subordinar e humilhar ao próximo. Nós católicos, nós brasileiros, temos que fazer um protesto veemente, contra a vinda de quem quer que seja do satanismo, à nossa querida Pátria, que é tão livre, tão cristã e tão pura. Deixemos de lado estas ideologias exóticas do satanismo. O comunismo é contra tudo e contra todos, porque é contra as leis de Deus, contra o sagrado princípio da família e contra a liberdade dos povos (ANDRADE, 21/5/1961, p. 2).

O Suplemento articulou, com efeito, conceitos que representavam para a mulher conservadora valores sentimentais e ideológicos, como Deus, pátria e família, tomando-os como elementos propulsores da motivação feminina em prol da intervenção militar. Fez isso ao afirmar que, nas sociedades comunistas, conquistas históricas, como direitos, liberdades individuais, tradições e costumes, tão caros à família, seriam suprimidas pelo Estado. Isso fica evidente em artigo publicado no dia 16 de dezembro de 1960, intitulado Na União Soviética o Estado não reconhece a festa do Natal, no qual se insinuava que comemorações sagradas como o Natal tenderiam a desaparecer nas nações comunistas.

O Natal na União Soviética torna-se cada vez mais um apagado eco do passado, é pouco comemorado nos lares russos. O governo não reconhece o dia santo e numa sociedade em que o Estado tudo dirige, desde sorveterias até as fábricas de brinquedos, as festas de Natal passam desapercebidas. O povo soviético ainda costuma dar presentes, reunir para jantar festivos e assistir a cerimonias religiosas especiais. Mas os que o fazem tornam-se minoria. Muita gente sem fé participa da comemoração, porque, como se ouve dizer, é ocasião para uma festa (MOSEY, 16/12/1960, p. 4).

Em uma nação dirigida pelo Estado comunista, inclusive o direito ao credo religioso seria suprimido. O povo seria levado à total descrença e as comemorações religiosas seriam praticadas não mais por ser um símbolo sagrado, mas por se tratar de uma festa.

O povo distanciar-se-ia da fé, porque em uma “[...] sociedade sem democracia e dirigida por um grupo materialista, o povo é tratado como um objeto, como um fantoche, pois faz parte da gigantesca máquina de ferro, em que o homem se torna incapaz de distinguir o bem do mal” (DUPRÊ, 4/3/1961, p. 4). Diferentemente, na sociedade democrática, cuja essência está na concepção espiritualista do homem com alma imortal, “[...] o espírito do pensamento democrático é cristão e, esse pensamento cristão, é a base da edificação moral, política e social da civilização ocidental” (DUPRÊ, 4/3/1961, p. 4).

Disseminava-se a crença de que, na democracia fundamentada pelo pensamento cristão, o homem comandaria os fatos; já em uma sociedade alicerçada no materialismo, o homem seria comandado por esses fatos. Neste sentido, popularizava-se que “[...] a democracia coloca o homem como fator da história e os extremistas, por almejar uma sociedade sem classes, colocam o homem como objeto da história” (SUPLEMENTO FEMININO, 26/5/1961, p. 2). Por isso, o periódico alertava as mulheres sobre a importância de saírem do comodismo e aprenderem sobre as verdadeiras intenções da sociedade sem classes, de modo a ajudarem a elucidar seus familiares e seus amigos. Trechos bíblicos são utilizados para cumprir essa finalidade, como podemos ler na edição de maio de 1961: “[...] de acordo com as palavras de São Lucas: você não será julgada pelos seus fracassos, mas pela ausência dos seus esforços” (SUPLEMENTO FEMININO, 26/5/1961, p. 2).

Desse modo, o Suplemento recorria ao caráter natural de mulher brasileira protetora e religiosa, convocando-a para desempenhar o papel de agente contra o comunismo, alertando-a para o fato de que, devido ao alastramento de ideologias dissolventes e malsãs, a família teria urgência de se unir para se defender dos inúmeros perigos e ameaças vindos de todos os lados, porque “[...] ela já está contagiada pelo amoralismo contagiante da vida moderna, o que vai levando ao vértice da confusão pública e, consequentemente, aos golpes implacáveis da foice e do martelo” (SUPLEMENTO FEMININO, 20/5/1963, p. 4).

Caberia à dona de casa velar pela liberdade da pátria, zelar pela tranquilidade do marido no trabalho e na rua, bem como cumprir o seu destino de mulher brasileira, constituindo-se como protetora do lar ‒ espaço em que se encontravam os filhos e as pessoas que ela mais estimava na vida (SUPLEMENTO FEMININO, 7/8/1962, p. 8).

À medida que incitava a participação da mulher nas mobilizações, o suplemento dava total cobertura às “Marchas” realizadas pelas “mulheres democratas”, que pediam a intervenção militar e a deposição de João Goulart (TELES, 2014). Com entusiasmo e em letras garrafais, o Suplemento Feminino anunciava a ocorrência de atos públicos, convocando a população para deles participar, como podemos ler na seguinte passagem: “[...] em defesa da lei e do regime enviamos apelo a todos os municípios do estado e do país para que se façam representar por delegações na manifestação, pedindo-lhes que realizem, nas respectivas cidades, à mesma hora atos públicos com propósitos idênticos” (SUPLEMENTO FEMININO, 17/4/1964, p. 2).

Após as mobilizações, noticiavam-se, com satisfação, as lutas que se avolumavam contra o “comunismo”, a “subversão” e a “corrupção” (SESTINI, 2008). Isto se evidencia, por exemplo, no artigo que noticiou a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, ocorrida no dia 19 de março de 1964, sob a seguinte manchete: “Comício de sexta-feira última gera movimento de envergadura em defesa da Lei e da Ordem”. Por meio desse artigo, o periódico afirma que cerca de 500 mil democratas de todas as condições sociais, na mais perfeita ordem e harmonia, teriam desfilado durante horas pelas ruas do centro de São Paulo, “[...] transformando a ‛Marcha da Família com Deus Pela Liberdade’ na maior manifestação cívica jamais realizada na metrópole paulista em resposta ao comício realizado seis dias antes na Guanabara [estado do Rio de Janeiro] pelo caudilhete João Goulart” (SUPLEMENTO FEMININO, 17/3/1964, p. 4)

De acordo com o Suplemento Feminino, o dia 19 foi escolhido pela irmã Ana de Lurdes, neta de Rui Barbosa e criadora do “Movimento de Desagravo ao Rosário”, por ser o dia de São José, padroeiro da família. “Entendia ela que a família paulista deveria sair à rua para protestar contra as palavras do presidente João Goulart, todos de rosário nas mãos, para salvar o país de um destino incerto e cruel” (SUPLEMENTO FEMININO, 17/4/964, p. 2). Somente o movimento de massa contra a atuação do

[...] Governo caudilhete forçou o exército extremamente legalista a agir, portanto a ‛Marcha’ abriu caminho à Revolução, para a jornada que se tonaria vitoriosa em 31 de março, contornando todos os problemas e conservador o maior tesouro da Nação: a liberdade (SUPLEMENTO FEMININO, 19/4/964, p. 2).

As defesas e ações ocorridas nos possibilitam compreender que as publicações veiculadas pelo Suplemento Feminino transmitiram discursos que, por um lado, davam voz a um grupo até então marginalizado pela sociedade, oportunizando mostrar ações políticas sob outro prisma; por outro lado, enalteciam o papel submisso desempenhado socialmente pela mulher ao longo da história no Brasil, enfatizando como verdadeiramente dignas as características ditas femininas que se restringiam à família e ao lar.

Considerações finais

A imprensa, direcionada para a mulher desempenhou um papel significativo na deflagração do Golpe Civil-Militar de 1964. Neste período, mais do que informar e dar dicas sobre o universo feminino, o Suplemento Feminino do jornal O Estado de S. Paulo, na condição de veículo disseminador de opiniões, ampliou os motivos que desencadearam o Golpe Civil-Militar. Suas publicações revelam um tom opinativo cujo intuito era convencer os leitores de que as atitudes impostas pelos militares seriam benéficas para a sociedade brasileira.

Neste sentido, podemos dizer que o jornal O Estado de S. Paulo propagou ideias que contribuíram para mobilizar as mulheres paulistas a apoiarem o Golpe Civil-Militar de 1964, já que a ideologia política veiculada pelo suplemento deixa claro seu objetivo de divulgar a percepção de que um período de exceção deveria ser adotado a fim de assegurar o bem-estar da população, assim como manter as estruturas democráticas. No discurso ideológico adotado pelo Suplemento Feminino, podemos perceber dupla finalidade: dar voz à mulher, tentando construir um sujeito político feminino e, ao mesmo tempo, procurava convencê-la de que seu lugar se restringe ao lar, de onde seria perfeitamente possível desempenhar o papel de protetora do lar, da família e da pátria, sem, contudo, deixar de valorizar seu papel submisso. O jornal contribuiu, portanto, para um movimento de resistência às mudanças sociais em prol de um modelo de sociedade que já se desenvolvia no âmbito político-econômico e moral-religioso-católico, julgado ideal por setores da sociedade, os quais tinham interesse em retirar João Goulart do poder.

Em se tratando da participação das mulheres nas mobilizações, o Suplemento Feminino deu total cobertura às “Marchas” realizadas pelas “mulheres democratas”. Dessa forma, com a construção de um inimigo oculto, o periódico divulgava a ideia de comunismo, com um forte cunho ideológico e tendencioso, com o objetivo de atingir o inconsciente de seu público leitor e de provocar, no universo feminino, um sentimento de incerteza e de intranquilidade, dando, assim, legitimidade ao Golpe Civil-Militar de 1964 e naturalizando a submissão feminina no âmbito não só da família como da sociedade.

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Recebido: 30 de Novembro de 2019; Aceito: 20 de Fevereiro de 2020

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