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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.21 no.68 Curitiba jan./mar 2021  Epub 11-Maio-2021

https://doi.org/10.7213/1981-416x.21.068.ds07 

Dossiê

A docência universitária e suas interfaces didáticas: movimentos de aprendizagens

University teaching and its didactic interfaces: learning movements

Roselane Duarte Ferraza 
http://orcid.org/0000-0003-1731-0120

Lúcia Gracia Ferreirab 
http://orcid.org/0000-0003-3655-9124

Carla Carolina Costa da Novac 
http://orcid.org/0000-0002-8640-4668

aUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Itapetinga, BA, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: rduarte@uesb.edu.br

bUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Amargosa, BA, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: luciagferreira@ufrb.edu.com

cUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Cachoeira, BA, Brasil. Mestre em Educação, e-mail: novacarol48@gmail.com


Resumo

A docência universitária é focalizada nesse artigo a partir das relações didáticas empreendidas nas aulas. Ela é discutida com interfaces dos saberes e práticas pedagógicas, buscando conhecer os elementos presentes nesse movimento didático. Assim, este artigo buscou verificar os desafios e perspectivas presentes nas relações didáticas de docentes universitários em um curso de formação em serviço e os saberes construídos e mobilizados na prática pedagógica. A pesquisa foi realizada no ano de 2014, através das observações de aulas universitárias, com descrição em notas de campo, no curso de Licenciatura em Pedagogia, que se configurava como formação em serviço, por ser específico para professores. Com a análise dos dados produzidos, constatamos que as aulas observadas eram problematizadas e contextualizadas e traziam aspectos da realidade social dos alunos. Assim, verificamos que nessas aulas vinha sendo realizado o movimento de construção e desconstrução de conhecimentos e saberes e que o processo de ensinar-aprender vinha se dando em meio às resistências e insistências. Constatamos, ainda, que as relações didáticas abarcavam novidades pedagógicas, metodológicas, ideológicas, humanas, culturais, entre outras. Nas aulas, desafios foram revelados e perspectivas emergiram em meio à construção da formação. Dessa forma, a docência universitária é analisada e construída nas interfaces entre os saberes e práticas pedagógicas como movimentos de aprendizagens.

Palavras-chave: Docência Universitária; Saberes; Práticas Pedagógicas; Aprendizagens

Abstract

University teaching is focused on this article from the didactic relationships undertaken in class. It is discussed with interfaces of knowledge and pedagogical practices, seeking to know the elements present in this didactic movement. Therefore, this article sought to verify the challenges and perspectives present in the didactic relationships of university teachers in an in-service training course and the knowledge constructed and mobilized in pedagogical practice. The research was carried out in 2014, through the observations - with field notes description - of university classes in the Pedagogy undergraduate course, which is conceived as an in-service training course for it is specific for teachers. With the analysis of the produced data, we found that the observed classes were problematized and contextualized, and brought aspects of the students’ social reality. Thus, we verified that in those classes the movement of construction and deconstruction of knowledge was taking place and that the process of teaching-learning was developing in the midst of resistance and insistence. We also found that didactic relationships included pedagogical, methodological, ideological, human and cultural news, among others. In those classes, challenges were revealed and perspectives emerged in the midst of the training construction. Thus, university teaching is analyzed and built on the interfaces between pedagogical knowledge and practices as learning movements.

Keywords: University Teaching; Knowledge; Pedagogical Practices; Learning

Resumen

La enseñanza universitaria se centra en este artículo desde las relaciones didácticas emprendidas en clase. Se la discute con interfaces de conocimiento y prácticas pedagógicas, buscando conocer los elementos presentes en este movimiento didáctico. Por lo tanto, este artículo buscó verificar los desafíos y las perspectivas presentes en las relaciones didácticas de los docentes universitarios de un curso de capacitación en servicio y el conocimiento construido y movilizado en la práctica pedagógica. La investigación se llevó a cabo en 2014, a través de observaciones de clases universitarias, con descripción en notas de campo, en el curso de Pedagogía, que se configuró como capacitación en servicio, ya que es específico para los docentes. Con el análisis de los datos producidos, encontramos que las clases observadas fueron problematizadas y contextualizadas y trajeron aspectos de la realidad social de los estudiantes. Así, verificamos que en estas clases el movimiento de construcción y deconstrucción de conocimientos estaba teniendo lugar y que el proceso de enseñanza-aprendizaje estaba desarrollándose en medio de la resistencia y la insistencia. También identificamos que las relaciones didácticas incluían novedades pedagógicas, metodológicas, ideológicas, humanas, culturales, entre otras. En las clases, se revelaron desafíos y surgieron perspectivas en medio de la construcción de la capacitación. Por lo tanto, la enseñanza universitaria es analizada y construida en las interfaces entre el conocimiento pedagógico y las prácticas como movimientos de aprendizaje.

Palabras clave: Docencia Universitaria; Conocimientos; Prácticas Pedagógicas; Aprendizajes

Introdução

O artigo em questão tem como foco os saberes, as práticas e as relações didático-pedagógicas dos professores universitários para o ensino. É originário de uma investigação maior, cujo objeto de estudo era a prática pedagógica de professores universitários na formação superior de professores em exercício, visando formar o profissional prático-reflexivo. Intentava saber se o trabalho pedagógico desenvolvido por formadores de professor, em sala de aula da universidade, ou seja, no contexto da formação em exercício, promovia práticas docentes que expressassem uma formação reflexiva.

O estudo desenvolveu-se à luz de pressupostos teóricos sobre formação docente, reflexividade e prática pedagógica (SCHÖN, 1995; ZEICHNER, 1993; GATTI; BARRETO, 2009; NÓVOA, 1995; ALARCÃO, 2011; PIMENTA, 1995, 2002), entendendo que formar professores reflexivos na sociedade da incerteza (IMBERNON, 2011) é urgente e exige mudança de práticas. A escuta, o olhar mais amplo, a inteireza no momento da aula, as posturas de acolhimento, a compreensão e a valorização da pergunta e da resposta, ou seja, os modos de fazer-saber-ser diante dos variados movimentos de aprendizagens que circulam em uma sala de aula universitária são exemplos dessas novas práticas.

Neste artigo, objetiva-se ampliar a pesquisa citada, incidindo o olhar nos professores universitários e suas práticas elaboradas ou construídas com e para professores em um curso de formação em exercício. Ou seja, trata-se de um processo de continuidade da mesma investigação, com o intuito de verificar os desafios e as perspectivas presentes nas relações didático-pedagógicas de docentes universitários, em um curso de formação em serviço, e os saberes construídos e mobilizados na prática em sala de aula. Para tanto, reportou-se à docência universitária e suas interfaces didáticas, principalmente, a interação. Ainda, analisaram-se aspectos da aula universitária, a qual deve possibilitar implicação entre os participantes do processo de ensinar e aprender.

A docência universitária, por ser uma prática social, requer sentido para os sujeitos que a exercem. Concomitantemente, o professor, para construir ou desconstruir situações ou lógicas que cogitem retirar esse sentido, precisa refletir sobre possíveis arranjos que o envolvem no cotidiano da sua prática. Segundo Franco (2017), existem parâmetros que afligem a ação docente: o desejo e a importância da pergunta no desenvolvimento do ensino para que ocorra a criação de ato intelectual, que é a aula, e, ao mesmo tempo, a responsabilidade do professor e a expectativa dos alunos e a explicação dos conteúdos de maneira pedagógica. Em muitos momentos, essas questões podem se tornar dicotômicas e, por isso, a importância de a lógica reflexiva estar presente e transversalizar os saberes docentes.

Quanto aos saberes e às práticas pedagógicas, estes devem conduzir o processo de ensino-aprendizagem porquanto compõem e modificam esse processo e, também, por se constituírem na mediação e inter-relação com o outro, desafiando os professores não só a assumirem um perfil profissional investigativo, crítico, reflexivo e problematizador das suas práticas, mas, também, a ampliarem as reflexões para o âmbito do contexto social em que estão inseridos, constituindo-se como um profissional empoderado, capaz de ressignificar as práticas e, consequentemente, os saberes (FRANCO, 2015).

Metodologia

Atendendo ao objetivo do trabalho, optou-se por uma pesquisa exploratória, com ênfase na abordagem de natureza qualitativa, considerando a viabilidade metodológica que esta abordagem proporciona para compreensão do objeto de estudo. Para tanto, foi necessário estabelecer contato direto com o contexto e os sujeitos colaboradores da investigação (BOGDAN; BIKLEN, 1994).

O recorte analítico resultou da reinterpretação de dados originários da investigação realizada em 2014, cujo foco era a análise das práticas dos formadores de professores em exercício do ponto de vista da formação reflexiva. A pesquisa realizou-se no contexto de uma proposta emergencial de formação para professores, respaldada pela Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério, posta em vigor pelo Decreto n. 6.755/2009 e pelo Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), que tem como objetivo garantir aos professores a formação estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com a implantação de turmas especiais de formação em serviço (BRASIL, 2009).

Em 2019, considerando os dados daquela investigação, buscou-se ampliar o estudo, voltando o olhar para os professores universitários, com o objetivo de verificar os desafios e as perspectivas presentes nas relações didáticas de docentes universitários em um curso de formação em serviço e os saberes construídos e mobilizados na prática pedagógica.

E, por qual motivo ter como objeto de estudo as práticas pedagógicas dos professores universitários na formação de professores em serviço? Justamente por observar as particularidades que esse contexto formativo apresenta para esses profissionais, os desafiando a promover situações de ensino para professores, que, embora não tenham uma formação exigida por lei, trazem para a sala de aula experiências problematizadoras e enriquecedoras, provenientes do exercício da profissão docente.

A reinterpretação dos dados possibilitou um olhar mais aguçado para a docência universitária, os desafios postos nesse nível de ensino, as situações específicas relacionadas aos modos de saber-fazer, as perspectivas e as novas construções postas e, muitas vezes, exigidas desses docentes, ainda mais em se tratando de formação em serviço, em que o público-alvo é de professores que atuam sem a formação.

Para realizar a investigação, recorreu-se à observação participante, como técnica fundamental, por viabilizar aproximações com os sujeitos colaboradores da pesquisa, no contexto das relações pedagógicas estabelecidas na formação docente.

Por demandar um olhar criterioso sobre o fenômeno, a utilização da obsevação participante requisitou o uso do Diário de campo, associado ao recurso do gravador de áudio para registrar as diversas situações da investigação, sobretudo os diálogos estabelecidos entre os professores universitários e os cursistas. Nesse processo, seguiu-se um roteiro preestabelecido para que se pudessem analisar e descrever, nas interações estabelecidas, mediadas pelo diálogo, os indícios advindos das ações dos docentes universitários que evidenciassem a mobilização dos seus saberes.

Particularmente, optou-se por enriquecer o registro das sessões de observação dos Diários de campo com os diálogos capturados pelo uso de gravador de áudio, por se considerar que os diálogos deslocados do contexto resultariam em falas desconexas, ausentes de sentido. Assim, os registros foram feitos durante as aulas no decorrer das observações e, posteriormente, transcritos as Notas de campo.

Vale esclarecer que, ao realizar a pesquisa em 2014, contou-se com a colaboração de 09 professores formadores. Entretanto, constituíram-se sujeitos da pesquisa os professores universitários que estavam ministrando aulas na turma do 5º semestre no período da realização das observações. No recorte feito, houve a colaboração de três professores universitários, ministrantes dos componentes curriculares: Instrumentação e Prática de Ensino na Educação Infantil; Estágio no Ensino Fundamental; e Educação no Campo.

A definição dos colaboradores para a realização deste artigo foi estabelecida segundo o seguinte critério: ser docente universitário efetivo, isto é, ser professor universitário de carreira. Isso se justificou pela excepcionalidade que o projeto de formação de professores em exercício apresenta quanto à contratação de professores formadores. O edital de contratação dos formadores possibilitou a participação de professores da educação básica, com alguma experiência no ensino superior. Portanto, no universo de 09 professores, havia apenas 03 que atendiam a esse critério, sendo todas do sexo feminino.

Assim, embora a fase de observação tenha ocorrido nos dois semestres do ano de 2014, para o desenvolvimento deste trabalho as análises se concentraram no primeiro semestre, período em que houve a participação das três professoras universitárias que ministravam aulas para os alunos do 5ª semestre.

As observações foram realizadas durante todas as aulas das disciplinas citadas com a captação de áudio e complementadas por anotações no Diário de campo a respeito de expressões, posturas, atitudes e gestos dos professores para complementação das análises posteriores, caso fosse necessário. A duração das gravações variou conforme a carga horária das disciplinas: Educação no Campo (24 horas de observação); Instrumentação e Prática de Ensino na Educação Infantil (28 horas de observação); Estágio no Ensino Fundamental (40 horas de observação). Educação no Campo foi a primeira disciplina do 5º semestre a ser ministrada e deu-se de maneira modular, concentrada, por isso as notas são todas do mesmo mês. As outras ocorreram de maneira regular.

As gravações foram transcritas e, posteriormente revisadas sendo retiradas as repetições e os vícios de linguagem. O conteúdo das transcrições compôs as Notas de campo, que foram analisadas e discutidas a partir da alocação de escolha temática, como “desafios e perspectivas”, destacando-se os saberes (construção e mobilização) nesses temas.

A análise de conteúdo, como uma técnica de pesquisa, foi utilizada para tratamento dos dados, recorrendo-se à técnica da análise temática, que permitiu a constituição das categorias empíricas (BARDIN, 2010).

Sobre a Docência Universitária

Alguns autores (D’ÁVILA, VEIGA, 2012; VEIGA, 2016; MASETTO, 2002; PACHANE, 2003; D’ÁVILA, FERREIRA, 2016, entre outros) vêm chamando a atenção para a necessidade de estudos sobre a docência universitária que tragam discussões no âmbito social, histórico, político, institucional e pedagógico. Nessa perspectiva, Isaia (2006, p. 63) afirma que “a docência superior é um processo complexo que se constrói ao longo da trajetória docente e que esta envolve, de forma intrinsecamente relacionada, a dimensão pessoal, a profissional e a institucional. Na tessitura das três, dá-se a constituição do ser professor”. Assim, envolvido no trabalho docente no ensino superior, há muitas variáveis, pela própria natureza das atividades - ensino, pesquisa, extensão e gestão -, que intensificam os desafios do exercício profissional e das especificidades da universidade. “Portanto, os desafios da docência superior decorrem de sua complexidade e da multiplicidade de questões/pressupostos que a constituem” (p. 64).

Desse modo, a docência universitária passa por muitas tensões e contradições diretamente ligadas aos processos de vinculação com as instituições formais onde atua, ou seja, em sua grande maioria, universidades públicas e instituições particulares. Mas também passa pela dubiedade que acompanha a sua identidade: ser formadora de professor ou ser formadora de pesquisador. As mudanças contextuais nas diversas passagens da história da educação no Brasil revelam que essa ambivalência se apresenta como um pêndulo que, em certos momentos, vai para um lado e, em outros momentos, vai para o lado oposto. A questão das circunstâncias atuais é que os dois pesos do pêndulo, as duas ambiguidades, estão sendo questionados, deslegitimados e cada vez mais precarizados do ponto de vista do saber-fazer, mas, também, do ponto de vista da epistemologia.

A docência do ensino superior é um tipo de atuação do trabalho de magistério dos mais específicos, entre todos os tipos existentes. Possui a especificidade de não ter um lócus para a formação do docente e, portanto, a grande maioria desenvolve a aprendizagem e consolida a sua identidade com base nas experiências cotidianas em sala de aula; outra particularidade é a alta exigência em relação à formação formal, sendo reconhecida apenas aquela legitimada pela pós-graduação e, portanto, pelo título de mestre ou doutor; e, para compor o conjunto das especificidades, à docência universitária não cabe apenas o magistério, ou seja, o ensino em sala de aula. Entre as suas atribuições estão o ensino, a pesquisa, a extensão, a gestão institucional e, muito intensamente, a divulgação do capital simbólico que justitfica a universidade, os chamados resultados científicos.

Sem pretender aprofundar em cada um desses aspectos, a constatação desses contrapontos dilemiza, tensiona e, muitas vezes, cristaliza identidades por conta das escolhas do tratamento dado aos saberes profissionais. As expectativas em torno do profissional do ensino se entrelaça quase como um bordado com as expectativas em torno da universidade: detentora e transmissora do saber cientifico, acadêmico, consagrado e inegavelmente importante para a sociedade; qualitativamente crítica, questionadora e criativa para que o saber acadêmico científico se movimente; aberta à recepção da diversidade que a cerca, caminhando na linha fina da costura, que é a curiosidade e o reconhecimento pelo que já fora construído. Mas existe um aspecto que se manifesta quase como uma idiossincrasia, que é o compromisso público que esta docência tem com a história, com a política, com os aspectos sociais e com as subjetividades daqueles que frequentam as suas salas de aula.

Ao mesmo tempo em que o docente universitário atua em um contexto específico, ou seja, o acadêmico-científico, ele tem a responsabilidade de desenvolver as competências, as habilidades e os saberes necessários para a construção da aula. Neste sentido, os saberes específicos do campo acadêmico precisam ser transversalizados pelos saberes específicos da docência, os saberes didático-pedagógicos, para que os estudantes tenham a possibilidade de construir sentidos e significados.

Dessa forma, a legitimação da universalidade dos conhecimentos científicos não se distancia da necessidade de aprendizagem dos conhecimentos profissionais. Esse nível de magistério não pode renunciar ao conhecimento do seu campo de saber, da capacidade crítica e da realidade que intervém nesse conhecimento (VASCONCELOS, 2009). Atua, portanto, em um contexto que requer conhecimentos, competências, habilidades, saberes específicos. Trata-se do âmbito da universidade, espaço de universalidade de conhecimentos e de legitimação destes e de formação de profissionais e cientistas, que requer especificidades

A universidade, nos últimos tempos, tem conseguido um avanço admirável na esfera dos saberes necessários para a pesquisa. Entretanto, os saberes imprescindíveis para o professor universitário desenvolver uma aula com sentido didático-pedagógico ainda é uma questão pouco empreendida. A sala de aula e o desenvolvimento do ensino ou a tessitura da aula demandam saberes didático-pedagógicos que lhes são medulares.

Saberes, como planejar, contextualizar o conhecimento, relacionar o desenvolvimento histórico do conhecimento específico com o momento atual, fazer a interação professor-aluno e aluno-aluno, adaptar as condições de infraestrutura ao desenvolvimrnto da aula, conhecer o significado da relação entre objetivos e técnicas de ensino, a diversidade de aprendizagem, a relação entre avaliação e objetivo de ensino, as diversas possibilidades de avaliação, relacionar o cotidiano com o acadêmico e a multidimensionalidade da aprendizagem, e por fim, um saber que é dos mais difíceis para a docência: ter ciência de que a aprendizagem ocorre no outro, no estudante, e que, portanto, a imprevisibilidade desse processo é intrínseco a ele e demanda que o docente se coloque com certo despojamento do controle.

As novas, urgentes e imprevisíveis necessidades pedagógicas requerem amplitude no arsenal de saberes para a escolha de estratégias. A tensão exercida pelo imediatismo, pelo produtivismo, pela descontextualização, muitas vezes, seduz esse nível de docência a atuar individualmente, com dúvidas sobre seu lugar do saber, sobre as concepções de planejamento e de estratégias que dialoguem com os objetivos. A consequência disso é que a docência é escolhida como uma atividade baseada no “amadorismo pedagógico” (VASCONCELOS, 2009), ou desenvolvida por meios burocráticos e repetitivos (FRANCO, 2017), acarretando esvaziamento do sentido da sua identidade, do seu lugar na estrutura do sistema educacional.

A substancialidade dos fundamentos didáticos para a prática docente (FRANCO, 2017) identifica, como cruciais na composição dos saberes profissionais: o saber cognitivo, ou como se aprende; o saber afetivo, ou como a postura do professor influencia no andamento da aula; o saber prático, ou quais escolhas procedimentais, estratégicas são coerentes com as concepções de planejamento; o saber de gestão da sala de aula, ou como dispor tudo que envolve a aula do ponto de vista material e imaterial; o saber comunicativo, ou como transformar o conhecimento disciplinar, acadêmico em pedagógico ou compreensível; e, por fim, o saber político docente, ou a explicitação para ele mesmo sobre o seu papel naquele espaço específico, naquela instituição específica e assumindo uma profissão singular.

Assim, depara-se com um desafio nesse nível de ensino, sinalizado por Isaia (2006), que é a realização da transposição didática do conhecimento científico, disciplinar, fronteiriço do fazer universitário, ou seja, passar do saber científico para o acadêmico e, deste, para o profissional. Essa ainda é uma preocupação que exige dos professores disposição e esforço para a mudança, além de conhecimentos pedagógicos, conhecimentos do conteúdo, das técnicas de ensinar, de estratégias, entre outros (VASCONCELLOS; OLIVEIRA, 2013).

Ampliando essa discussão, segundo Bolzan e Isaia (2010, p. 16), a construção de ser professor universitário é um movimento que se faz colaborativamente. Assim,

A construção da aprendizagem de ser professor, portanto, é colaborativa, faz-se na prática de sala de aula e no exercício de atuação cotidiana da universidade. É uma conquista social, compartilhada, que envolve trocas e representações. Com essa postura, o professor está produzindo sua professoralidade, o que implica não só em dominar conhecimentos, saberes, fazeres de determinado campo, mas também na sensibilidade em termos de atitudes e valores que levem em conta os saberes da experiência. Esta, contudo, precisa ser entendida a partir de uma ótica de reflexão sistemática na qual o foco está nas relações interpessoais, componente intrínseco ao processo de ensinar, aprender, formar-se e, consequentemente, desenvolver-se profissionalmente.

As autoras consideram que essa construção se dá na prática, no exercício do magistério, no âmbito do saber-fazer docente, e nenhum destes se faz de modo solitário; é preciso atuação cotidiana com as pessoas - alunos, professores e outros colaboradores do processo. E, acrescentam:

Nessa direção, discutir a aprendizagem de ser professor exige-nos entendê-la a partir de seus movimentos construtivos que se constituem como um conjunto de movimentos produzidos pelo docente à medida que ele atua. Essa atividade é marcada pelas trajetórias formativas que são incorporadas à docência a partir da tomada de consciência das dimensões pessoais e profissionais que permeiam tal processo. Os diferentes movimentos construtivos dos professores dependem da interação e dos processos formativos que eles colocam em andamento e da própria aprendizagem da docência que os acompanha ao longo de toda a carreira, não há linearidade nesse processo; esses movimentos correspondem a momentos de ruptura ou oscilação, responsáveis pelo aparecimento de novos percursos que podem ser por eles trilhados (BOLZAN; ISAIA, 2010, p. 19).

O cenário em que estamos ao escrever este artigo é de profunda crise mundial1, na qual estão sendo questionadas muitas referências sociais, morais e políticas, estruturadoras da sociedade e, em consequência, compositoras dos processos educacionais formais. Os desafios que estão sendo colocados são de, não apenas enfrentar o aspecto agudo da crise, mas, também, manter uma boa saúde mental e física, por sermos pessoas e por sermos professores. Para além desses, os enfrentamentos no âmbito econômico, social, político e cultural, por conta das perdas irreparáveis, nos atordoam e, ao mesmo tempo, se corporificam com grandes incitamentos. O setor educacional de nível superior está sendo provocado a recolocar nas pesquisas e nas salas de aulas a prioridade e o protagonismo da vida humana.

A expectativa sobre o que haverá como ordenação mundial depois dessa pandemia é assunto dos diversos meios de comunicação e informação e passa a ser pauta para reflexão nas instituições com forte atribuição cultural, entre elas a universidade. Portanto, nessa conjuntura, como instituição representante da ciência e legitimada para desenvolver pesquisas e os respectivos docentes e pesquisadores são conclamados a propor movimentos construtivos sobre a prática e identidade do ser professor. A urgência de elaborar e reconstruir modos que tencionem e apontem possibilidade do rompimento da unicidade da lógica instrumental da sociedade, como eixo principal adotado pela globalização, precisa consubstanciar, por meio de disposições, profissionais para aprender e reaprender neste nível de docência e que possuam elevada formação científica e acadêmica.

Desde 2016, as instituições universitárias brasileiras e, em especial, seus docentes, têm vivenciado rompimentos e bruscos enfrentamentos no sentido de retrocessos quanto ao reconhecimento do seu papel na sociedade. Esse nível de magistério continua a ser desafiado para romper com várias práticas cristalizadas, muitas escolhas impostas pelo cotidiano e para ampliar a compreensão sobre o ser professor na universidade, mergulhar na incerteza de desvelar o oculto e propor a estranheza para assumir a posição pedagógica e política de intervenção nos processos que cabem à universidade e ao professor universitário reflexivo. Portanto, a docência universitária deverá se mostrar comprometida com novos caminhos.

Sobre os Saberes e Práticas pedagógicas na aula universitária

Nas análises postas na seção a seguir empreenderam-se esforços para conhecer as inter-relações didáticas presentes na aula universitária. Esta aula, para Lima (2000), é lugar de produção e revelação de conhecimentos científicos, é uma forma didática, estética e ética de combinar outros gêneros discursivos; pode (e deve) ser criativa e criadora e é, dessa forma, que ela tem potencial de ser reflexiva. Para a autora,

O projeto de uma aula não é apenas uma manifestação do pensar a ação e do agir, ou seja, não é só movimentos de idéias, mas idéias em movimento. A aula constitui, também, o desvelar do novo, do imprevisto, que surge na própria ação e que faz da aula um ato de criação e expressão de valores científicos, estéticos e éticos do professor, dos alunos, de um tempo, de uma cultura (2000, p. 159).

Nessa perspectiva, a aula é um campo fecundo de criação e divulgação, em que a arte e a ciência podem (e devem) ter sempre encontro marcado. Como lugar de aprendizagem, se posiciona também como lugar do novo e da inovação; lugar de movimento de ideias e de ideias em movimento, como bem-dito pela autora. Veiga (2011) também compartilha desse mesmo pensamento ao afirmar que:

A aula é concebida no âmbito das relações humanas e sociais que proporcionam um conjunto de experiências e interações a professores e alunos Trata-se de um projeto de construção colaborativa entre ambos. Mais do que isso, é um ato técnico-político, criativo, expressão de beleza e dos valores científicos e éticos de cada um dos envolvidos no processo de ensino. Enfim, a aula é um espaço de formação humana e de produção cultural (VEIGA, 2011, contracapa).

A autora concebe a aula como uma construção histórica, que vem sendo transformada ao longo dos anos, e que está vinculada a convenções, como espaço físico (isso já vem se modificando), perspectiva colaborativa; espaço de formação humana, de proposição de interações e experiências; um ato que é político e, ao mesmo tempo, técnico, científico e, também, criativo, de expressividade e de racionalidade.

Além do mais, não se pode perder de vista que a aula abarca o ensinar e o aprender, que são ações recíprocas do ato pedagógico. A aula é a concretização da tarefa de ensinar do professor, ou seja, do trabalho docente (FERREIRA; ZEN, 2018).

Desse modo, uma aula não se faz sem interação que, por sua vez, não se faz sem pessoas. A aula é a concretização do processo ensino-aprendizagem, em que professores e alunos estão juntos e se vinculam a outros elementos que são pedagógicos, metodológicos, ideológicos, culturais, políticos etc. Nesse âmbito, conforme declara Franco (2015), a aula deve transformar-se em práticas pedagógicas. Assim,

uma aula só se torna uma prática pedagógica quando ela se organiza em torno: de intencionalidades, de práticas que dão sentido às intencionalidades; de reflexão contínua para avaliar se a intencionalidade está atingindo todos; de acertos contínuos de rota e de meios para se atingir os fins propostos pelas intencionalidades. Configura-se sempre como uma ação consciente e participativa (FRANCO, 2015, p. 605).

A prática pedagógica, para existir, exige reflexão, diálogo. A intencionalidade é um dos seus elementos, e é necessário, pois precisa ser antecedido por alguma coisa. Essa prática é influenciada por vários fatores. Assim, “aulas que se revestem apenas de reprodução de discursos áridos, de manipulação de textos prontos, de ausência de diálogo criativo e de reflexão em processo deixam de ser práticas pedagógicas, perdem o sentido e a razão de ser para os alunos” (FRANCO, 2015, p. 613).

Ainda, se recorreu aos estudos de Franco (2015) para evidenciar dois dos três princípios que regem as práticas pedagógicas: o primeiro se refere à intencionalidade, ou seja, toda e qualquer prática pedagógica organiza-se em torno de finalidades, que irão direcionar as situações de ensino criadas para promover as aprendizagens dos alunos. Assim, as intencionalidades educativas, confrontadas com as aprendizagens, irão mover as peças do tabuleiro do processo formativo, requerendo avaliar, ressignificar as situações de ensino, os planejamentos estabelecidos, a gestão da aula, do tempo, das interações pedagógicas.

De acordo com o segundo princípio, as práticas pedagógicas são marcadas por situações de resistências e desistências. E aqui reside outro desafio para o docente, pois, ao planejar e materializar situações de ensino, as variáveis e os condicionantes que permeiam esse processo podem desencadear práticas esvaziadas de significados e sentidos. E, quando se destaca o desafio é porque, dependendo dos condicionantes que estão interferindo nas intervenções docentes, recairá sobre a figura do professor a função de superar esses obstáculos. Pergunta-se, então: o professor se encontra preparado para responder a essas situações? Está suficientemente seguro para resolver os conflitos?

Para responder a esses questionamentos, recorreu-se aos estudos dos saberes docentes, por entender que a prática docente é permeada por eles e, ao mesmo tempo, mobilizadora deles. As contribuições de Tardif (2002) trazem esclarecimentos a respeito da composição do saber docente, que, sendo plural, constitui-se de variadas matrizes, origina-se de diferentes fontes e sofre alterações, ao tempo em que é problematizado e, consequentemente, analisado e validado pela relação estabelecida junto às condições e interações no contexto de trabalho.

Assim, entender a configuração dos saberes docentes requer compreender suas origens e aquilo que os caracteriza, identificando cada um deles. Entre esses saberes, estão os saberes da formação profissional, os saberes disciplinares, os saberes curriculares e os saberes da experiência.

Os saberes da formação profissional consistem em um “conjunto de saberes transmitidos pelas instituições de formação de professores (escolas normais ou faculdades de ciências da educação)”. Assim, tendem a se transformar em saberes destinados à formação teórico-científica dos professores (TARDIF, 2002, p. 36).

Os saberes disciplinares são constituídos segundo as áreas de conhecimento, as quais “emergem da tradição cultural e dos grupos sociais produtores de saberes”, apreendidos nos cursos de formação, materializados em forma de componentes curriculares, que constituem determinado projeto formativo (p. 38).

Entretanto, não basta ter o domínio dos saberes disciplinares. O professor necessita saber mobilizar esses conhecimentos para criar situações de ensino que viabilizem a aprendizagem dos alunos. Os saberes curriculares vão contribuir para esse processo, pois “correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos”, definidos pelas instituições escolares, sistematizados para os professores como métodos, conteúdos, projetos e programas curriculares, os quais devem dominar (p. 38).

Contudo, esses saberes encontram-se em uma situação de exterioridade em relação ao trabalho docente, limitando a autonomia dos professores na interferência e definição deles. Isso será contornado pelo desenvolvimento de saberes que emergem do trabalho docente e do processo de construção e reconfiguração das práticas da profissão - é o que Tardif (2002) denomina de saber experiencial ou prático, pois origina da experiência dos professores e é por ela validado.

Segundo Tardif (2002, p. 36), os diferentes conhecimentos interligados às habilidades constituídas no trabalho, no exercício da profissão docente, constituem-se a “amálgama, mais ou menos coerente, de saberes”. É nesse sentido que, para o autor, no exercício do trabalho o professor:

se serve de sua cultura pessoal, que provém de sua história de vida e de sua cultura escolar anterior; ele também se apóia em certos conhecimentos disciplinares adquiridos na universidade, assim como em certos conhecimentos didáticos e pedagógicos oriundos de sua formação profissional; ele se apóia também naquilo que podemos chamar de conhecimentos curriculares veiculados pelos programas, guias e manuais escolares; ele se baseia em seu próprio saber ligado à experiência de trabalho, na experiência de certos professores e em tradições peculiares ao ofício de professor (TARDIF, 2000, p. 14).

Essa variação e heterogeneidade dos saberes profissionais ampliam o campo de formação e de desenvolvimento das práticas pedagógicas no trabalho da docência, pois eles:

não formam um repertório de conhecimentos unificado, por exemplo, em torno de uma disciplina, de uma tecnologia ou de uma concepção do ensino; eles são, antes, ecléticos e sincréticos. Um professor raramente tem uma teoria ou uma concepção unitária de sua prática; ao contrário, os professores utilizam muitas teorias, concepções e técnicas, conforme a necessidade, mesmo que pareçam contraditórias para os pesquisadores universitários. Sua relação com os saberes não é de busca de coerência, mas de utilização integrada no trabalho, em função de vários objetivos que procuram atingir simultaneamente (TARDIF, 2000, p. 14).

Nesse aspecto, recorreu-se a Franco (2015) quanto à necessidade de o profissional da docência constituir-se como um sujeito investigativo, crítico, dialogante, pois os saberes só serão mobilizados e organizados por meio desse professor-pesquisador, problematizador, reflexivo e criativo. Assim, esse profissional, “para integrar e potencializar tais saberes em sua prática profissional, precisa constituir-se em um sujeito empoderado, ou seja, com capacidade de diálogo e contato consigo próprio, com disponibilidade de aproveitar-se da crítica e do coletivo para recompor e atualizar tais saberes” (2015, p. 609, grifo da autora).

Análises das relações didáticas: desafios, perspectivas e mobilização de saberes

As relações didáticas de uma aula universitária envolvem aspectos complexos, muitas vezes imprevisíveis, visto que a realidade sempre interfere nas interações e requer a emergência e o diálogo de elementos objetivos e subjetivos. Assim, as análises ajudam a pensar a docência universitária e as produções ou contribuições do trabalho do professor no processo de ensinar e aprender em um curso de formação em serviço e, também, a conhecer os saberes mobilizados na prática pedagógica. Isso foi possível porque se conseguiu identificar os desafios e as perspectivas presentes nas inter-relações didáticas das aulas observadas, destacando os saberes (construção e mobilização) nessas categorias.

Desafios foram revelados com as observações. O primeiro a ser apresentado e ao qual se dará maior destaque é o da tentativa de superação da dicotomia teoria-prática, desvelado nas aulas das três docentes, conforme Notas de campo a seguir.

Em meio uma discussão sobre a importância da realização do estágio, a professora questiona para uma das duplas se o estágio era o momento de colocar em prática tudo que aprendeu em sala. Ao finalizar a questão, uma aluna se adiantou respondendo “não”. Mas a dupla solicitada afirmava ter dúvidas, pois como obter a resposta já no final do processo formativo? Uma aluna respondeu: mas ali se vivencia a realidade, aqui na parte teórica é uma coisa, mas quando a pessoa parte para a realidade é outra (Nota de Campo 1 - dia 06/02/2014. Estagio Ensino Fundamental - grifo nosso).

No momento da discussão, uma das alunas se posiciona “No papel é tudo lindo, mas será que aquele teórico foi para sala vivenciar aquilo? Ele se sentou com uma sala de 40 crianças que não estão no mesmo nível? Será que ele tentou passar pelo mesmo problema? A professora logo argumentou: Mas se você for desmerecer o conhecimento teórico, estaremos fazendo a dicotomia entre teoria e prática. Insistia a aluna: “É lindo a tese, mas quando falamos da realidade não é aquilo ali” (Nota de Campo 2 - 29/01/2014. Educação no Campo - grifo nosso).

Outro aspecto também aludido pela professora foi a necessidade e importância de se trabalhar com a educação infantil de forma interdisciplinar. Nesse ponto, ela englobou toda a disciplina para trazer à tona o significado da relação teoria e prática. Ao fazer referência às leituras e aos teóricos estudados, ela argumentava: “Qual a relação que faço deste texto com a minha prática e com a minha vida pessoal? Se só reproduzimos o que os teóricos dizem não vivenciamos uma aprendizagem significativa. Nossa formação foi por muito tempo só reprodução, sem relacionarmos aquelas teorias com as nossas práticas pedagógicas. E se não tem utilidade com a prática não sabíamos usar. E muitos dos nossos alunos também estão aprendendo assim. Por exemplo: fazem as continhas, mas não fazem relação com o seu contexto. Nossa aprendizagem também é relacionar o texto com a nossa prática, e não, apenas, memorizar” (Nota de Campo 3 - dia 28/01/2014. Instrumentação e Prática de Ensino na Educação Infantil - grifo nosso).

As narrativas revelam aspectos das aulas universitárias. Pela exposição e em uma primeira análise, inferiu-se que eram contextualizadas, discutidas conforme o conhecimento disciplinar e estavam sendo ministradas com coerência, quanto aos apelos específicos da área. Percebeu-se que as problematizações eram constantes, as docentes investiam muito nos questionamentos e no empreendimento de discussões. No entanto, constatou-se, conforme relatos em destaque nas Notas de campo, que, apesar de conceberem e tentarem tecer a relação teoria-prática como um processo indissociável, no momento da execução do planejamento permanecia a dificuldade em compreender essa relação.

A relação teoria e prática, de acordo com a própria concepção de Vázquez (2011), Pimenta e Lima (2011), Pimenta (1995, 1998, 2002), Duarte Neto (2013), Veiga (1989), Medeiros (2016), Tinti (2015) e Sácristán (1999), entre outros, não é um encadeamento linear. Ela precisa estar imbuída da imprevisibilidade própria dos processos sociais. Por isso, muitas vezes a compreensão por parte dos cursistas pode não acontecer no momento em que a aula está se desenvolvendo, porque essa é uma relação com a aprendizagem e com a concepção de professor e de conhecimento dos cursistas.

Sendo assim, há um impasse entre a prática e a formação docente - tessitura do significado da mudança -, o qual decorre do vínculo que os professores cursistas têm com o conhecimento disciplinar e do ideal de formação, impulsionado pela expectativa de um modelo dominante. Essa perspectiva ainda é um desafio muito presente na formação profissional docente. Segundo Sácristán (1999), sustentar essa dicotomia é correr o risco de chegar ao processo de esvaziamento do sentido da prática. Manter o formalismo e a cobrança sobre si e sobre os estudantes em demasia é contribuir para o esvaziamento ainda existente sobre a compreensão do que seja a relação teoria e prática na sala de aula. Considera-se necessária essa superação, por meio do desvelamento dos impasses, para a construção de uma formação profissional com viés e abordagem crítica, favorecendo a reflexão docente.

Foram três diferentes disciplinas analisadas. E, na problematização da relação teoria-prática, enquanto as professoras faziam emergir discussões sobre um grande desafio - a indissolubilidade teoria-prática, fragmentada em muitos processos de ensinar-aprender, os alunos insistiam na dicotomia. Evitar contradições nas aulas é divergir do próprio caráter do saber científico, que é complexo e requer familiaridade com a atitude de relacionar enfoques diversos e variados. Dessa forma, a construção e a mobilização de saberes suscita novas aprendizagens.

As aulas, embora realizadas em interação com os alunos, estes resistiam ao tema (em entender, em aprender, muitas vezes), o que revela ser a relação teoria-prática um tema insurgente. Chama a atenção o desafio de que as aulas devem ser permeadas de intencionalidades para empreender práticas pedagógicas capazes de possibilitar (des)construções de saberes.

Neste sentido, o docente universitário que se propõe a desenvolver uma prática social se situa na posição de mediador de saberes didáticos, ampliando a intencionalidade da intervenção inerente ao ensino-aprendizagem. Franco (2016, p. 545) considera que “é possível [...] falar em saberes pedagógicos como saberes que possibilitam aos sujeitos construir conhecimentos sobre a condução, a criação e a transformação dessas mesmas práticas”. Então, a busca pela integração formativa de um espaço coletivo, a contribuição para induzir, motivar, potencializar a capacidade intelectual e afetiva dos alunos contribuem no trabalho do professor de modo que a ambiência seja sempre de possibilidades e de autonomia.

Outro aspecto discutido em uma das aulas foi o modelo de formação artesanal, em que a reprodução era o foco, e a prática era memorística - modelo ainda em superação. Isso também foi identificado na narrativa a seguir, juntamente com a problematização da diversidade como uma demanda atual.

A professora continuou chamando a atenção dos alunos para os termos imitação, observação, modelos a serem seguidos. Ela afirmava que é comum esperarmos modelos para aplicarmos no contexto das escolas, mas, segundo ela, era preciso refletir e pensar a prática para além da imitação de modelos. Dizia ela: “Eu proponho fazer uma reflexão para pensarmos para além da imitação de modelos. É bem verdade que, como a colega colocou, temos na escola muitos problemas que são comuns, mas precisamos compreender que a escola que está localizada nesse bairro é bem diferente da escola da Nova Itapetinga2, por exemplo. Os sujeitos que frequentam a escola aqui são diferentes dos sujeitos que frequentam a escola da Nova Itapetinga. Temos que ter muito cuidado com essas questões, idealizar modelos não encaixa naquela realidade. As pessoas são diferentes, e graças a Deus que somos diferentes. Essa diferença precisa ser potencializada, não marginalizada. Essa perspectiva do modelo que tanto desejamos. E essa relação teoria com a prática está convergindo na práxis pedagógica. Não existe essa separação de aqui ter teoria e lá ter a prática” (Nota de Campo 4 - dia 06/02/2014. Estágio Ensino Fundamental - grifo nosso).

Além de continuar o debate sobre o fato de a teoria e a prática andarem juntas, a professora avançou para a perspectiva da práxis. A práxis, entendida como atividade humana conscientemente orientada, social e transformadora, é uma “atividade teórico-prática, isto é, tem um lado ideal, teórico, e um lado material, propriamente prático” (VÁZQUEZ, 2011, p. 264). Assim, práxis é relação teoria-prática, é ação-reflexão.

Para a professora, a formação não se faz por meio de modelos, que devem ser seguidos, com receitas adaptáveis a qualquer situação. Ela chamou a atenção para a necessidade de considerar a diversidade como um divisor de águas na sociedade, um elemento que precisa ser potencializado para que se possa aprender a viver nessa sociedade complexa.

Não são os contextos que devem ser encaixados na perspectiva de ação pedagógica, mas as práticas é que devem ser adaptadas a cada contexto e situação, porque se está lidando com realidades diferentes. Não considerar as diferentes realidades é marginalizá-las e sucumbir à diversidade (de contextos), que, na sala de aula, pode potencializar a reprodução de práticas.

A professora, em Nota de campo, levou em consideração, para explicar o conteúdo, a realidade dos alunos, explorando o conhecimento prévio deles. O tema da diversidade é um desafio da contemporaneidade, demasiadamente difícil de lidar, pois exige esforços individuais e colaboração coletiva, mudança de pensamento, aceitação e inclusão; exige construção de novos saberes, novos modos de fazer. Essa é uma discussão que deveria fazer parte de todas as disciplinas por se tratar de um desafio, uma perspectiva e por ser propulsora de saberes.

Na narrativa seguinte, observam-se aspectos dessa discusssão:

Quando a professora afirmava que a formação do docente não se limitava apenas à acadêmica, mas que, junto a ela, também era necessária a experiência escolar, um aluno, lá no final da sala, afirmava que a formação que eles recebiam era uma formação com muito conteúdo. Ele dizia que na universidade prevalecia uma formação “conteudista”. Assim foi o termo utilizado por ele. Pegando a afirmação do aluno, a professora continuava: “Já que vocês estão sentindo isso na pele, como a gente pode mudar essa situação aqui e, também, lá na escola?” A maioria dos alunos só ouvia. Então a professora afirmava que estávamos, enquanto docentes, passando por um desafio muito grande, visto que há necessidade de se colocar na posição de aluno. A professora afirmava: “Eu também estou refletindo na minha condição de professora, sobre até que ponto eu estou vivenciando a pesquisa na minha prática docente, não só no contexto acadêmico de mestrado e doutorado. E é interessante essa sua fala, que também faz com que eu reflita sobre a condição de vocês enquanto professores/acadêmicos. Assumimos uma postura, às vezes, completamente diferente, pois muitas vezes não conseguimos nos colocar na posição do aluno (Nota de Campo 5 - dia 06/03/2014. Estágio Ensino Fundamental - grifo nosso).

Encontra-se, nessa narrativa, uma aula problematizadora, que conecta conteúdos com realidade social e cultural, que instiga o aluno a discutir a formação. Nessa perspectiva, esse debate suscita outra discussão - a da mudança como um desafio.

A quem cabe a mudança? A professora levanta também o questionamento sobre como se pode mudar aquilo que incomoda, tanto na universidade, quanto na escola, e chama os alunos para assumirem essa responsabilidade. Este é um dos desafios do presente século, que tem de ser enfrentado. Imbernón (2011) propõe uma formação docente para a mudança e a incerteza, já que é preciso estar atento às necessidades de mudanças e às possibilidades de transformação social.

Nessa aula, o sentimento de empatia foi evocado como uma necessidade da contemporaneidade. Ou seja, colocar-se no lugar do outro e refletir. Dessa maneira a professora contextualizou a formação docente, chamando a atenção dos alunos para a premência de ser professor pesquisador, que, segundo Diniz-Pereira e Allain (2006), é aquele que reflete sobre sua própria prática. Observou-se, na professora uma identidade profissional docente, porque a docência se faz a partir desse lugar, isto é, do compromisso com a transformação social.

Nas relações didáticas, perceberam-se aulas problematizadoras, em que as professoras faziam questionamentos que exigem reflexão dos alunos para argumentar e buscar soluções para os problemas e que são também contextualizadas com a realidade dos alunos, conforme Notas de campo 6, 7 e 8, a seguir.

Logo depois ela colocou as charges para os alunos, cada charge trazia uma referência, uma crítica referente ao contexto do cotidiano escolar. (A primeira charge tratava da questão da burocratização do processo de leitura: primeiro pegar no lápis, depois, traçar os pontinhos, etc. etc.). Então ela pergunta: Gostaram da charge? Que relação podemos fazer? Teve gente que escolheu essa charge? Alguns se posicionaram criticando o modelo tradicional de aquisição da escrita, outros afirmaram que a aquisição passa por um processo. Uma aluna dizia como ela demorou muito tempo para se adaptar às mudanças dos processos de formação dos anos atuais, sair de trabalho com as partes (BA.BE.BI.BO.BU) para trabalhar com uma produção mais contextualizada. A professora reforçou a questão ao relacionar com o que Freire diz, então ela mesma relacionou com o livro “Ensinar exige rigorosidade na escola. Paulo Freire diz que precisa de rigorosidade, mas não essa rigorosidade burocratizada, metódica, como a charge apresenta. É preciso planejamento, traçar objetivos” (Nota de Campo 6 - dia 13/03/2014. Estágio Ensino Fundamental - grifo nosso).

A Nota 6 trata da aula que utilizou o gênero charge. Os alunos se posicionaram, pois o tema suscitou muitas discussões, principalmente relacionadas ao modelo tradicional de aquisição da escrita. Apontou-se a necessidade de mudança para atender às demandas da sociedade, mas também se destacou a dificuldade de mudar, já que toda mudança exige reflexão e, em se tratando de mudanças metodológicas, dos modos de ensinar-aprender, é necessário planejamento. A seguir a Nota de campo 7:

Os alunos após planejarem as oficinas deveriam apresentar suas propostas em sala de aula. Assim o fizeram; algumas equipes apresentaram. Estava programado que, na próxima semana, os alunos iriam fazer a intervenção pedagógica em algumas creches do município. Percebi muito interesse dos alunos na socialização das suas oficinas. Houve muita criatividade nas apresentações. Alguns colegas não conheciam determinadas técnicas e diziam que iriam trabalhar em suas salas. Após as apresentações, a professora abriu para o debate. Os alunos foram se posicionando quanto às apresentações das oficinas de arte visual, movimento e música. Alguns diziam que o trabalho com o lúdico dependia muito da boa vontade do professor, outros afirmavam que a arte, através da criatividade, libertava os alunos e os docentes da rotina. As apresentações se basearam em técnicas e nas experiências desenvolvidas por esses cursistas, em seus contextos de trabalho (Nota de Campo 7 - dia 25/03/2014. Instrumentação e Prática de Ensino na Educação Infantil - grifo nosso).

Considerada uma aula inovadora e em que houve interação, aprendizagens, construção de perspectivas (usar as aprendizagens em suas salas), problematização, a experiência de construção e criação foi tomada para o debate. Perceberam-se, nitidamente, a construção e a mobilização de saberes. A seguir, Nota de campo 8:

Ao tratar da legislação da Educação no Campo, a professora apresentou cinco documentos referentes à educação no campo, porém afirmando que alguns desses documentos eram bastante omissos em relação a essa modalidade, o que deixava esse segmento à margem de muitos direitos. Ao apresentar o artigo da Constituição de 1988 sobre o direito de todos à educação, uma aluna questionou se esse direito era, realmente, garantido. Antes da professora responder, outra colega se adiantou: “direito todos têm, mas muitos não têm interesse de participar!”. Outros alunos afirmavam que o direito existia, mas nem todos tinham acesso, dando exemplos das filas nas escolas para conseguir matrícula e de fechamento de salas e turmas de educação infantil. Depois, a professora passou a discutir as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica do Campo. No documento, a professora retomou a ideia do direito à educação, como direito público, conforme a constituição e LDB. Além do currículo, a professora procurou exemplificar as situações de invisibilidade social vivenciada pela educação no campo. Nesse ponto, ela exemplificou com a situação das escolas da zona rural de Itapetinga. Dizia ela: “Itapetinga só tem Educação Infantil e Ensino Fundamental nas séries iniciais se o aluno quiser dar continuidade aos estudos, ele deve vir para a cidade”. Alguns alunos ficavam espantados, pois desconheciam a realidade; outros confirmavam e criticavam tal situação. Ela continuou: “as diretrizes, gente, se contradizem em vários momentos. Como ela diz que deve garantir a educação, mas em algumas modalidades, diz que basta o acesso. Ou seja, o acesso se configura no transporte da zona rural para a cidade”. Uma aluna disse: “o problema é quando o ônibus quebra”. Retornou a professora: “Não, mas todo santo dia quebra” (Nota de Campo 8 - dia 10/02/2014. Educação no Campo - grifo nosso).

Nessa aula, os alunos discutiram com entusiasmo, interagiram, mostraram o que sabiam e falavam que estavam aprendendo coisas novas. Eles perguntavam, e eles mesmos respondiam dada a interação. Discutiram legislação, direitos, políticas públicas, realidade social, a realidade em que viviam. A professora mostrou conhecimento da realidade, problematizou e refletiu a partir de uma construção técnica, proporcionando acréscimos à formação e à construção de outros conhecimentos.

Todas essas aulas (Notas de Campo 6, 7 e 8) apresentaram novidades de ordem didática, metodológica, ideológica, cultural, interdisciplinar (entre outras) e foram problematizadas com a realidade dos alunos. Foram perceptíveis a construção e a mobilização de saberes diversos -- culturais, docentes, didáticos, pedagógicos, experienciais, práticos, crítico-contextuais (TARDIF, 2002; GAUTHIER, 1998; PIMENTA, 1995; SAVIANI, 1996, ALTET, 2000) - possíveis por causa das relações didáticas empregadas pelas docentes e porque essas aulas se configuravam como práticas pedagógicas.

No estudo realizado com professores universitários, Bolzan e Isaia (2010) constataram que os professores pesquisados vinham construindo conhecimento pedagógico compartilhado, agregando saberes ao processo formativo e construindo a professoralidade docente. Declararam que:

Um aspecto importante a destacar ainda diz respeito à busca de um desenho alternativo de atividades pedagógicas que proporcionem a interação entre os sujeitos, de modo que as tomadas de decisão, o pensamento crítico, a autonomia crescente, o manejo de variadas informações e a elaboração de estratégias sejam fontes de protagonismo pedagógico. E, ao mesmo tempo em que favoreçam a compreensão das diversidades dos sujeitos em processo formativo e dos contextos culturais aos quais estão vinculados (BOLZAN; ISAIA, 2010, p. 22).

Assim como no estudo de Bolzan e Isaia (2010), neste estudo também foi possível perceber essas características - diferentes modos de fazer que proporcionam interação, pensamento crítico, autonomia crescente, modos de lidar com variadas informações, diferentes estratégias de ensino, favorecimento de compreensão sobre as diversidades e contextos - que proporcionam diferentes situações de ensino-aprendizagem e resultados positivos desse processo. As Notas de campo já postas são reveladoras disso.

A aula participativa também compõe a Nota de campo 9 a seguir, que é carregada de subjetividade, questionamentos, aprendizagens e de produções proveitosas e formativas:

Um colega reforçou a importância da composição coletiva dos segmentos da escola, não só no aspecto da individualidade de cada profissional. “o aprendizado se concebe em um todo”. Ele afirmava: “a maioria das discussões que estamos falando aqui retrata uma questão política”. Chamava a atenção para a responsabilidade de todos neste processo. Continuou: “Mas precisamos ter em mente que a escola é um lugar onde se discute política e compreender que o professor é um ser que pode transformar o meio que vive. Diga que estou errado?”. A não ser que tenha alguém aqui que não trabalhe na sala e não perceba isto. A professora afirmou: “A ideia do vídeo é exatamente esta, não tem como você não criticar, se posicionar. Reconhecer que não se sabe, mas antes reconhecer que é difícil, pois é um lugar onde se ensina. Precisamos compreender essa interconexão de que os problemas da cidade e os problemas da escola se refletem uns nos outros. A ponto da filosofa dizer que enquanto não resolvermos os problemas da escola, não teremos nem escola, nem cidade, nem mais nada” (Nota de campo 9, dia 29/01/2014. Educação no campo - grifo nosso).

Trata-se de uma aula didatizada, construída em colaboração, com conhecimento compartilhado. Mostra a concretização de uma docência construída na perspectiva do diálogo. Nessa aula, os alunos problematizaram, fizeram questionamentos, discutiram, construíram argumentos. Houve relação do tema com a realidade, valorização dos conhecimentos prévios dos discentes e relação do tema com os recursos didáticos utilizados (vídeos). Os sujeitos participantes do processo de ensinar-aprender se colocaram no ponto de reconhecimento do posicionamento de todos no processo de mudança. Assim, mudar é um desafio, mas é também uma perspectiva, porque é esperança futura - presente na reflexão.

Observa-se, nas Notas apresentadas, o entendimento de Ribeiro e Ribeiro (2011) de que a relação estabelecida entre professor e aluno, além de cultural, é pedagógica, e que nesse espaço (da aula) constroem-se e circulam conhecimentos, que “são, intencionalmente, ensinados e aprendidos, desconstruídos, construídos ou reconstruídos em atividades que colocam esses sujeitos frente a frente produzindo teorias, discutindo conceitos e experiências [...]” (p. 71). É assim que a docência universitária vem ocorrendo em suas interfaces didáticas, visando à construção de saberes e práticas pedagógicas.

Os desafios e as perspectivas foram desvelados nas aulas, e ocorreu a produção de conhecimento. Houve proximidade com a fala de Masetto (2003, p. 75), para quem “a aula funciona numa dupla direção: recebe a realidade, trabalha-a cientificamente, e volta a ela de uma forma nova, enriquecida com a ciência e com propostas novas de intervenção”. Quando esta última acontece, é porque houve mudança, reflexão sobre a ação.

A perspectiva de mudança, embora nasça de práticas mais singulares, precisa atingir pessoas, pois, no âmbito da coletividade, é possível visualizar o caminho para traçar práticas pedagógicas mais democráticas, potencializadoras do processo de mobilização e ressignificação dos saberes profissionais, da identidade e da profissionalização docente.

Considerações finais

Com a análise dos dados produzidos, foi possível responder ao objetivo do artigo. Verificou-se que a docência universitária como construção se faz com interfaces, sendo uma delas, a didática. Os desafios encontrados e problematizados neste estudo residem na superação da dicotomia teoria-prática, na busca pela mudança, no retorno dos investimentos sobre as situações de ensino e no apelo ao aluno para a construção de sua própria aprendizagem (lendo, participando, compartilhando). Observou-se que desenvolver o trabalho docente no ensino superior diante de suas variáveis (ensino, pesquisa, extensão e gestão) já é um desafio.

Percebeu-se, nas relações didáticas, a busca da superação dos desafios, mas, também, (re)construção e mobilização dos saberes. Os alunos, ao compartilharem experiências e as relacionarem com o conteúdo proposto, mobilizam saberes, ao mesmo tempo em que constroem outros. Dessa maneira, dá-se a construção/mobilização de saberes gerais - do senso comum, profissional, pedagógico, didático -, que são revelados nesse processo.

As relações didáticas se estabelecem com a interação professor-aluno, a partir da realidade dos estudantes, tomando como base conhecimentos prévios, discussões teóricas, compartilhamento de experiências, manipulação de materiais, realização de planejamento, diálogo, intervenções. Essas relações são profícuas, carregadas de subjetividades, respeito mútuo, responsabilidade, cuidado e afeto. Há o desvelamento de produções proveitosas e formativas. As perspectivas, como metas de futuro, se fazem presentes, os alunos buscam aprender; aprender é um desafio e uma perspectiva ao mesmo tempo. Tudo isso se configura como pistas que revelam os movimentos de aprendizagens.

As aulas foram problematizadoras, contextualizadas e portavam aspectos da realidade social dos alunos. Dialogavam com o contexto social, e nelas se construíam e mobilizavam saberes de diversos âmbitos. Assim, verificou-se que, ao realizar o movimento de construção e desconstrução dos conhecimentos e saberes, o processo de ensinar-aprender ocorre em meio a resistências e insistências.

Observou-se o quanto os saberes e as práticas pedagógicas são fundamentais no processo de ensino-aprendizagem por comporem e modificarem esse percurso. Entretanto, não se pode ter a ilusão de que a solução de todas as questões que envolvem o ensino na universidade reside nos saberes pedagógicos. A ideia de que os saberes didáticos-pedagógicos devem ser prescrições ou teorias estáticas, idealizadas, coloca em risco todo o trabalho pedagógico do professor, podendo desencadear práticas de ensino esvaziadas de sentidos. Os sujeitos docentes que conduzem a aula mobilizam esses saberes como mediadores entre os diversos saberes que circulam e os conhecimentos sistematizados, de modo que a aula universitária deixe se constituir como um momento exógeno ao modo de vida.

Constatou-se, enfim, que as relações didáticas abarcam novidades pedagógicas, metodológicas, ideológicas, humanas, culturais, entre outras. Com e nas aulas, desafios são revelados e perspectivas emergem em meio à construção da formação. Assim, a docência universitária é construída nas interfaces com os saberes e práticas pedagógicas como movimentos de aprendizagens.

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1Referimo-nos ao contexto da Pandemia do COVID-19.

2Nova Itapetinga é um bairro do município pesquisado.

Recebido: 29 de Fevereiro de 2020; Aceito: 21 de Maio de 2020

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