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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.21 no.69 Curitiba abr./jun 2021  Epub 11-Jun-2021

https://doi.org/10.7213/1981-416x.21.069.ao02 

Artigos

O dilema da autoridade educacional num mundo “fora dos eixos”

The dilemma of authority in the world is out of joint

El dilema de la autoridad en el mundo “fuera de los ejes”

Cleriston Petrya 
http://orcid.org/0000-0001-8900-6633

Angelo Vitório Cencib 

aUniversidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Doutor em Educação, e-mail: cleripetry@hotmail.com

bUniversidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutor em Filosofia, e-mail: angelo@upf.br


Resumo

No presente artigo, apresentamos uma reflexão acerca do dilema da autoridade educacional que se estruturou num mundo “fora dos eixos”. Tal mundo, apesar disso, exige a autoridade docente para introduzir os “recém-chegados”, porque a essência da educação é a “natalidade”, isto é, o fato de os seres humanos nascerem no mundo. Porém, a crise da Modernidade é caracterizada pelo fim da Tradição e da autoridade e o problema da educação é não poder abrir mão de ambas. Assim, o problema reside no fundamento da autoridade educacional num contexto em que a autoridade chegou ao fim. O dilema se complexifica, pois a autoridade é confundida com o “autoritarismo”, oriundo das experiências totalitárias, as quais exigiam ou estimularam uma “obediência cega” por meio da violência e do terror (Arendt) e com as formas destrutivas de autoridade, como o paternalismo e a autonomia (Sennett). Argumentamos que a autoridade deve ser fundamentada na responsabilidade dos adultos pela criança e pela continuidade do mundo. Ademais, defendemos não haver educação sem transmissão, do mesmo modo que não há educação sem autoridade. A educação é uma relação geracional em que adultos introduzem os “novos” e lhes permitem experimentar o mundo e a si mesmos como novidade.

Palavras-chave: Autoridade; Educação; Crise

Abstract

On this article, we present a reflection about the dilemma of educational authority that has been structured in an "amiss world". This world, although that, demands the academic authority to introduce the “newcomers”, because the essence of education is the “natality”, i.e, the fact that human beings are born for the world. However, the crisis of Modernity is favored by the end of the tradition and the authority, and the problem of education is not to be able to occur without them both. Thus, the problem resides on the basis of the educational authority in a context that the authority itself has ended. The dilemma becomes more complex, because “authority” has been confused with “authoritarianism” (derived from totalitarian experiences, that required or stimulated a “blind obedience” or through violence and terror) and, also, with the destructive forms of authority, according to Sennett, like the paternalism and the autonomy. Therefore, we argue that the authority must be based on the responsibility of adults upon children and their development and the continuity of the world. Furthermore, there is no education without transmission, as well as that there is no education without authority. Education is a relation between generations in which adults insert the “youngs” and allow them to experiment the world and themselves as newness.

Keywords: Authority; Education; Crisis

Resumen

En este texto, presentamos una reflexión sobre el dilema de la autoridad educacional que se ha estructurado en un mundo “fuera de los ejes”. Este mundo, a pesar de eso, exige la autoridad docente para introducir los “recién-llegados”, porque la esencia de la educación es la “natalidad”, o sea, el hecho de que los seres humanos nazcan para el mundo. Pero, la crisis de la Modernidad es caracterizada por el fin de la Tradición y de la autoridad y el problema de la educación es que no puede ocurrir sin ambas. Así, el problema está en el fundamento de la autoridad educacional en un contexto en que la autoridad ha llegado al final. El dilema se torna más complejo, pues la autoridad es confundida con el “autoritarismo”, que proviene de las experiencias totalitarias, las cuales exigían o estimulaban una “obediencia ciega” (Arendt), por medio de la violencia y del terror y con las formas destructivas de la autoridad, como el paternalismo y la autonomía (Sennett). Así, defendemos que la autoridad debe ser fundamentada en la responsabilidad de los adultos por el niño y por la continuidad del mundo. Además, no hay educación sin transmisión, de la misma manera que no hay educación sin autoridad. La educación es una relación entre generaciones en que los adultos introducen los “nuevos” y permiten a ellos experimentar el mundo y a sí mismos como novedad.

Palabras clave: Autoridad; Educación; Crisis

O tempo está fora dos eixos. Ó ódio maldito ter nascido para colocá-lo em ordem.

Hamlet, Shakespeare1.

O grau em que os clichês penetraram na nossa linguagem e discussões quotidianas talvez indique o grau em que não só nos espoliamos da faculdade de falar, como estamos dispostos a usar meios violentos, mais eficazes que os maus livros (e só os maus livros podem ser boas armas), para fazermos vingar as nossas posições.

HannahArendt (2001, p. 232).

Introdução

Talvez a palavra dos últimos tempos mais utilizada e propagada pela mídia e em nossas discussões habituais seja “crise”. Há uma percepção de que ela permeia todos os aspectos de nossa existência: crise econômica, crise política, crise moral, crise de valores, crise da família, crise das instituições, crise na educação e crise da autoridade. Talvez essas duas últimas estejam, agora, fora da “relevância” pública, porque as primeiras se referem diretamente à nossa “vida”, isto é, dizem respeito a questões de sobrevivência que implicam urgência e afetam diretamente nossa liberdade. Porém, essas primeiras “crises” constituem possíveis argumentos para alterar a configuração do Estado e seu papel como garantidor de direitos fundamentais prefigurados na Constituição Federal de 1988. A crise é, também, segundo os estudos de Dardot e Laval (2016), um argumento estratégico.

Seria equivocado deixar de refletir sobre essas crises ignorando a oportunidade para voltar “às questões mesmas”, pois a crise “dilacera fachadas e oblitera preconceitos” (ARENDT, 2007, p. 223), nos exige respostas e requer que “paremos para pensar” para que ela não se torne um desastre, o que ocorre “quando a respondemos com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos” (ARENDT, 2007, p. 223). Nesse sentido, a crise exige de nós um tempo, o tempo do pensamento, ou seja, um tempo distinto do “tempo produtivo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013). A crise se constitui como um tempo privilegiado para buscar o sentido daquilo que acontece, rompendo com clichês, frases feitas e preconceitos. Para Arendt, esses últimos “têm a função socialmente reconhecida de proteger-nos da realidade, ou seja, da exigência da atenção do pensamento feito por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência” (2009, p. 19).

A crise, portanto, exige-nos a atividade do pensamento, na medida em que o pensar não produz, não traz conhecimento, não resolve os enigmas do universo e não nos dota diretamente do poder de agir, como explicita Arendt com a epígrafe de Heidegger, em sua obra A vida do espírito (2009). É possível que, após pensar, não tenhamos nada de útil para aportar aos problemas, no sentido de que teremos um receituário próprio para aplicar em situações concretas. Mas, ao menos, haverá condições de responder à crise a partir da evidenciação da natureza das questões fundamentais.

A crise marca a ruptura no seio de um processo e, no caso da autoridade, representa que ela deixou de existir no mundo, mesmo que seja necessária para a educação. Arendt argumenta que a educação hoje nos aporta um problema de primeira ordem, qual seja, por sua natureza, “não pode abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição” (2007, p. 245-246). Tal é o dilema da autoridade. Qual é, assim, a natureza da educação que exige a autoridade? E qual o sentido da autoridade num mundo que nega sua relevância política? Nesse sentido, estaremos às voltas com o problema da legitimidade da autoridade docente num contexto em que os ventos democráticos adentraram a todas as esferas da vida, relativizando o valor e a importância da autoridade em detrimento da igualdade. Para Arendt, a autoridade na educação exige uma relação hierárquica fundada na responsabilidade do adulto frente à criança e ao ‟mundo”. É o professor que deve introduzir os alunos no ‟mundo”, sob sua proteção e o seu cuidado. As relações igualitárias são típicas de adultos que se encontram num espaço público mediados pela persuasão. Por outro lado, a violência também restringe a realização da autoridade, porque a autoridade retém a liberdade, diferentemente da violência que coage e atinge a obediência pelo medo ou temor.

Hoje, contraditoriamente, nos deparamos com a inversão na hierarquia possibilitada pelo “consumismo”, na qual a escola é vista como uma empresa, os alunos e pais como consumidores e o serviço da escola como especificamente atrelado à “linguagem da aprendizagem”. Nessa, os alunos são vistos como consumidores de um produto, a educação, e, os professores, como funcionários dedicados à satisfação dos clientes, na medida em que a educação foi substituída pela aprendizagem, mais individualista e focada nas exigências imediatas do mercado, sob a égide de ‟aprender a aprender” (BIESTA, 2013). O foco é aprender a não depender de outrem e a consequência é a relativização da importância do passado. Sem passado não há autoridade. Portanto, cabe indagar sobre a fonte da autoridade docente diante de uma crise na educação e do fim da autoridade.

I

D´Allonnes (2011) afirma que a crise é também um momento da verdade, uma revelação. Dito de outro modo, a crise não tem apenas um aspecto negativo - em que nossas crenças, práticas ou teorias deixaram de ser válidas ou evidentes -, mas é, ao mesmo tempo, uma oportunidade, e, no que tange à educação, a oportunidade de compreender que “a essência da educação é a natalidade, o fato de que os seres humanos nascem para o mundo” (ARENDT, 2007, p. 223, grifo da autora). O que significa dizer que as crianças e os jovens nascem para o mundo? Eles são como recém-chegados vindos de lugar nenhum para um mundo que existe antes delas e, provavelmente, continuará a existir depois de sua partida. O homem não dispõe apenas da faculdade de começar, ele próprio é um começo, enquanto início2. O ser humano é um acontecimento e é capaz de acontecimentos ao mesmo tempo em que a crise é um evento que estabelece uma ruptura e a possibilidade do inédito (D´ALLONNES, 2011, p. 198). Assim, “ao entrar no mundo, saímos de algo e entramos em algo. Entrar no mundo é começar e todo começo é, então, saída: saída do estado de ausência de mundo” (BÁRCENA, 2006, p. 181, grifos do autor)3.

Desse modo, os “novos” nascem para o mundo e não apenas no mundo. Em primeiro lugar, é interessante refletir sobre o não dito dessa sentença: as crianças não nascem para o trabalho ou para a “vida”. É evidente que a existência acontece entre o nascimento e a morte. Porém, “vida” é um conceito restritivo se pensarmos que os homens não são apenas exemplares de uma espécie, mas seres singulares que aparecem por meio da ação e do discurso quando adentram ao mundo, no espaço público. O espaço público, o estar-entre, é a esfera da aparência que constitui a realidade (ARENDT, 2005, p. 72).

Nascer para o mundo é ter a possibilidade de aparecer como singular em meio à pluralidade de seres singulares e, ainda, de herdar o mundo no que diz respeito àquilo que foi constituído pela ação e construído por meio da fabricação. Desse modo, a educação se refere à transmissão e volta-se ao passado. Daí o dilema contemporâneo da educação: não poder abrir mão da tradição. Em segundo lugar, e relacionado ao ponto anterior, a educação não é treino e não se refere ao trabalho, porque, para Arendt, não nascemos para o trabalho nem o trabalho é constitutivo de nossa condição, isso é, não nos humanizamos por meio dele. Isso implica romper com a ideia de que o trabalho é um valor, argumento este muito presente nas teorias educacionais que defendem uma “educação para o trabalho” ou “por meio do trabalho”. Claro, a primeira sentença é facilmente apropriada por gestores que veem a escola como um espaço intermediário de preparação para a vida laboral, de formação de mão-de-obra. Num contexto de crise econômica e/ou de uma ideologia da crise, reformadores educacionais insistem em defender mudanças na estrutura escolar, tanto nos conteúdos quanto nas práticas.

Para Arendt, o trabalho como labor é uma relação de metabolismo com a natureza em que os homens não são singulares, mas buscam sanar suas necessidades vitais, isso é, buscam sobreviver. Uma vida unicamente laboriosa é uma vida sem sentido, porque não há liberdade nem espaço para que os seres humanos atuem e apareçam em sua unicidade. Por extensão, uma escola laborizada é aquela na qual as atividades são baseadas no critério da utilidade e do divertimento, em que o brincar substitui o estudar. Se as crianças e os jovens nascem para o mundo, a atividade principal da educação deveria ser o estudo, não o brinquedo. Esse último compromete a aquisição de saberes e a promoção ao estado de adulto (LOMBARD, 2003, p. 47), pois, infere Arendt, “a criança é um ser humano em desenvolvimento” e a infância, “é uma etapa temporária, uma preparação para a vida adulta” (2007, p. 233). O trabalho como fabricação, por seu turno, não garante realidade ao fabricador, mas ao produto, porque é esse que fará parte do mundo.

Se as crianças são como “recém-chegados” e nascem para o mundo, precisam ser introduzidas em suas linguagens específicas e em seus conteúdos e isso implica que o ensino se volte ao passado, no sentido de que a criança precisa aprender como o mundo é para poder tomar parte dele, atuando e, portanto, revelando sua unicidade. Segundo Bárcena, “como humanos, não partimos do zero, mas justamente de um legado e uma tradição que nos apropriamos criticamente, porque o homem é um ser em situação” (2005, p. 93, grifos do autor). A tradição é, portanto, fundamental na tarefa educativa, na medida em que ela garante uma continuidade de sentido no mundo e não só a continuidade de uma geração. O homem não pode começar do nada. Herda aquelas interpretações da realidade fundamentais para poder começar, isso é, atuar. A tradição implica uma transmissão e uma recepção, ou seja, os adultos transmitem um legado e as novas gerações recebem sua herança de sentido. Ademais, argumenta o autor, a transmissão não é passiva:

[...] transmittere, por seu turno, é um verbo que destaca o momento ativo, a atitude especifica do receptor das transmissões, o qual, porque está em seu espaço e em seu tempo concretos, tem que contextualizar o que se transmite, tem que reinterpretar, reelaborar e recriar o recebido para incrementar a ordem do sentido (BÁRCENA, 2005, p. 95, grifos do autor).

Não há educação sem transmissão. E boa parte da crise na educação deve-se ao fato de algumas teorias pedagógicas modernas renunciarem a essa tarefa específica em nome de uma defesa da atuação do estudante, nos termos de uma construção - no sentido de que se constrói o conhecimento a partir dos seus problemas, possibilitando a oportunidade de “aprender a aprender”. O fato é que a transmissão é uma relação entre gerações, típica e específica da relação pedagógica, e a questão não é se transmitimos ou não, mas o modo como transmitimos aquilo que devemos transmitir. E como na transmissão há um elemento de interpretação e de ressignificação - porque a tradição precisa ser contextualizada -, a disjunção entre transmissão e construção, justificada em termos de crítica da transmissão, é equivocada. “Se as gerações anteriores de professores que praticaram a ‘transmissão’ como forma pedagógica e, bem ou mal, obtiveram resultados é porque, de fato, não existiu a transmissão apenas e como tal, mas um investimento pessoal do educando no processo”, infere Brayner (2008, p. 89).

A crise na educação indica que determinadas práticas e pressupostos não dão conta mais da urgência educacional e a adoção de teorias e metodologias educacionais, sem a devida reflexão, apenas agudizam a crise. Nesse caso, há uma renúncia da tradição pedagógica em nome da novidade, como se tradição e novidade fossem fatores excludentes. Aqui deveríamos discutir o sentido da teoria na educação e compreender que uma boa teoria não é boa porque é nova. A novidade não é um critério da ética e possivelmente nem da educação no que diz respeito à adoção de teorias educacionais sem reflexão sobre seus pressupostos e sobre se se aproximam ou não da essência da educação. Trata-se do fascínio pelo novo presente em nosso contexto, maximizado pela indústria do consumo, e criticado também por Arendt no início de seu escrito sobre a educação.

Manuel Cruz argumenta que

vivemos em uma época na qual qualquer produto que se preze, na ordem que seja, deve ser capaz de aparecer como novo, sem necessidade alguma de especificar se tal novidade é positiva ou não. [...] O novo não é, em absoluto, sinônimo de bom” (2004, p. 33).

Adotar o último material didático, adaptar as salas de aula para os novos aparelhos tecnológicos e exigir dos professores que as aulas sejam agradáveis, divertidas, sem dúvida faz parte de um turbilhão de exemplos em que a novidade, pelo simples fato de ser nova, causa um entusiasmo irreflexivo naqueles responsáveis pela educação das crianças e pela continuidade do mundo. As novas teorias pedagógicas tantas vezes são desastrosas porque desconhecem os fundamentos da educação, sua importância política e, também, assim o são quando adotadas simplesmente por serem novidades.

Apesar de Arendt ser uma entusiasta da novidade que aparece a cada nascimento e a cada começo introduzido pela ação, sabia que a novidade pela novidade não é positiva em si mesma. O Totalitarismo foi um dos eventos Modernos marcados pelo novo e pela destruição dos juízos tradicionais acerca da política, do poder, da autoridade, da violência, do Estado, do direito, da moral, etc.

Por outro lado, quando as teorias educacionais são fundadas em utopias políticas, tendem a ser destrutivas da novidade de cada criança, porque as utopias estabelecem de antemão uma concepção de ser humano, de sociedade, de política e de moral que oblitera a possibilidade do inédito e do espontâneo. Renunciar às utopias escolares é renunciar à ilusão de que a escola pode, sozinha, assumir o avanço em direção a uma sociedade melhor (CORNU; POMPOUGNAC; ROMAN, 1990, p. 20). Quer dizer, a escola precisa assumir que não pode tudo e a crença de que ela poderia livrar a sociedade dos seus problemas transformou-a num foco de críticas, porque se envolveu de promessas irrealizáveis e irrealizadas. Além disso, a ideia de que é possível reformar o mundo por meio da educação concerne a uma “intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto, e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli, isto é, como se o novo já existisse”, afirma Arendt (2007, p. 225). Nesse sentido, “preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo” (ARENDT, 2007, p. 226).

Na primeira parte de seu artigo A crise na educação, Arendt ressalta o problema do autoritarismo no que tange à tarefa educacional: ele fecha a possibilidade da ação e dos “novos” experimentarem o mundo e a si mesmos como novidade. O autoritarismo nega a liberdade e maximiza a força do adulto em relação às crianças. E a questão “por que Joãozinho não sabe ler?” (ARENDT, 2007, p. 227) não se refere apenas à leitura de textos escritos, mas também ao fato de que ele não sabe “ler” o fundamental para entrar no mundo. Uma resposta desastrosa para a crise da autoridade é controlar os limites da realidade das outras pessoas.

Se a criança é um ser humano em desenvolvimento, o autoritarismo não permite a ela ser outra coisa que não carente, isso é, necessitada da atenção e dos cuidados dos adultos. Controlar os limites da realidade das crianças é tarefa das ideologias de cunho totalitário que não ensinam como o mundo é, mas como deveria ser. Trata-se da prática do paternalismo, na qual a figura do professor se mistura com a do pai e amplia sua significação, deturpando a responsabilidade e a tarefa do primeiro. O paternalista é, também, um protetor material e emocional, porém, a relação que estabelece com os outros é de controle. Por isso, Sennett define o paternalismo como uma “autoridade de falso amor”: trata-se de uma mescla de altruísmo e egoísmo que se converte num vínculo destrutivo. Por outro lado, “a necessidade de autoridade é básica. As crianças necessitam autoridades que as guiem e as deem segurança. Os adultos realizam uma parte essencial de si mesmos ao serem autoridades; é uma forma de expressar sua atenção aos outros” (SENNETT, 1980, p. 23). Sennett argumenta, ainda, que “nenhuma criança poderia madurar sem o sentimento de confiança e proteção que procede de sua fé na autoridade de seus pais” (SENNETT, 1980, p. 12). É a responsabilidade do professor que estabelece uma relação de autoridade: proteger e cuidar a criança para que ela possa crescer e se desenvolver com segurança.

II

Embora Arendt não considere que a autoridade seja uma interpretação das condições de poder, concordaria com Sennett em relação à proteção e ao cuidado relativos à responsabilidade docente. É, afinal, nisso que se fundamenta a autoridade dos professores: “pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo” (ARENDT, 2007, p. 235). Desse modo, a escola é um espaço de proteção no qual a criança não está submetida aos olhares, às escutas e aos julgamentos do espaço público. A criança ainda não é responsável pelo mundo, por isso, a família e a escola são os lugares cruciais para que os “novos” possam aprender como o mundo é.

Nesse aspecto reside a crítica de Arendt em relação a uma das “desastrosas medidas educacionais” a qual pressupõe que existe um mundo da criança, uma sociedade formada e governada por crianças (2007, p. 230). Essa ideia, tão incisivamente enfrentada por Arendt, advém das críticas relacionadas ao autoritarismo pedagógico e ao excesso de atuação e interferência do professor no mundo da criança, especialmente na sua autoridade, que é vista como um impeditivo para o livre desenvolvimento das capacidades e habilidades. O professor perde autoridade em detrimento de se transformar num “mediador” ou “facilitador”. Arendt considera essa medida uma negação, por parte do adulto, em assumir sua responsabilidade, porque a autoridade passa a ser exercida pelo grupo das crianças. Nessas condições, “a autoridade de um grupo, mesmo que este seja um grupo de crianças, é sempre consideravelmente mais forte e tirânica do que a mais severa autoridade de um indivíduo isolado” (ARENDT, 2007, p. 230). Lombard, nesse sentido, argumenta:

[...] a autoridade do mestre não pode ser verdadeiramente transferida ao grupo porque por natureza ela não é da ordem do poder, mas da competência e da responsabilidade. A autoridade do educador e a competência do professor são duas noções distintas, mas ligadas uma à outra. Essa «consiste em conhecer o mundo e transmitir esse conhecimento. Aquela é o exercício da «responsabilidade do mundo» (2003, p. 53).

Segundo o autor, a autoridade do professor não se transfere, de fato, ao grupo, porque desse só poderia emergir o poder, nunca a autoridade. Essa constatação se baseia na distinção arendtiana entre ambos os conceitos. O poder “corresponde à capacidade humana não somente de agir mas de agir em comum acordo. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e existe somente enquanto o grupo se conserva unido” (ARENDT, 2006, p. 123). Assim, a autoridade do professor não é transferida ao grupo se pensarmos arendtianamente mesmo contra Arendt (por exemplo, ARENDT, 2007, p. 230). Primeiro, porque a autoridade se fundamenta no passado e, estritamente falando, na tradição. O poder, por seu turno, diz respeito ao presente, isso é, à ação levada a cabo entre indivíduos na condição de igualdade e liberdade num espaço público. Ora, o espaço público que se estabelece entre as crianças é uma fraude: “a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo” (ARENDT, 2007, p. 238). Por isso, a autoridade do educador é importante para preservar as crianças da visibilidade do espaço público para que possam livremente desenvolver as qualidades, talentos pessoais e aparecer. Ademais,

[...] a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça por parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração (ARENDT, 2007, p. 235).

Em segundo lugar, as crianças ainda não são cidadãos, e a “ação educativa”, que acontece na escola, se refere ao fato de que elas atuam em relação ao mundo representado pelo conteúdo sob a tutela do professor. Nesse sentido, talvez seja equivocado falar que, na ausência da autoridade do professor, surge o poder. Em tais circunstâncias, esclarece Arendt, as crianças não podem nem argumentar, nem escapar da tirania do próprio grupo. E a condição para o surgimento do poder é a ação. O poder, pensa Arendt, “só é uma realidade onde a palavra e a ação não se separaram, onde as palavras não são vazias e os feitos não são brutais” (2005, p. 226). O poder surge quando as palavras servem para descobrir realidades, não camuflá-las, e essa é a função dos clichês, das frases feitas, ou, ainda, de uma retórica que visa à garantia da obediência pelo medo e não pelo respeito e confiança. Pode-se considerar a “tirania” do grupo como a expressão de uma “força”, no sentido de que Saint-Just falava que “les malheureux sont la puissance de la terre” (apudARENDT, 2014 p. 92, grifos da autora). E essa “força” ou “potência” pode ser uma das expressões do autoritarismo4.

A autoridade, ao contrário do autoritarismo e distinta da força, “implica obediência na qual os homens retêm sua liberdade” (ARENDT, 2007, p. 144). Há um paralelo entre autoridade e poder nesses termos, na medida em que ambos pressupõem a liberdade, ou seja, a capacidade de agir. Porém, a ação que gera o poder não gera autoridade. A autoridade que retém a liberdade implica o contrário de uma obediência cega ou uma coação por meio da violência. A questão da autoridade, em Arendt, é especialmente tratada “sob o enfoque dos malefícios que ocorrem quando alguém obedece mecanicamente, como ocorreu com Eichmann, no Nazismo” (SCHIO, 2011, p. 94).

Eichmann foi um jovem limitado, mas ambicioso que viu no Nazismo a possibilidade de ascender socialmente e de ter uma identidade, na medida em que vislumbrava a perspectiva de uma carreira. Tornou-se um “perito nas questões judaicas” porque queria ajudar os judeus e considerava que a deportação era a solução mais adequada, embora depois tenha mudado de posição e atuado diretamente na logística do transporte de judeus para os campos de concentração e, posteriormente, na “solução final”. Ele tinha a convicção de que não era um “bastardo imundo” e “se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam” (ARENDT, 2013, p. 37). O problema era sua incapacidade de compreender as consequências de “tudo aquilo”. Falava por meio de clichês, frases prontas ou o “oficialês”, incapaz de se comunicar quando esses não serviam mais. Havia obedecido ordens e se orgulhava disso. O seu mundo era, assim, dependente das ordens do Füher e em um momento passou a viver sabendo que não podia mudar qualquer coisa, especialmente quando foi encarregado da “Solução Final”. O argumento da obediência, contudo, não valia para o desresponsabilizar por seus atos.

Eichmann é um exemplo do que se passou com vários alemães que simplesmente obedeceram sem qualquer convicção às doutrinas e à moralidade do regime. Não era preciso ser um nazi convicto para obedecer (VALLÉE, 1999, p. 70) e a educação totalitária nunca estimulou a formação de convicções (ARENDT, 2011, p. 520), pois as convicções fornecem princípios para a ação e, no plano social, à adoção de papéis. No totalitarismo era urgente eliminar a espontaneidade dos indivíduos e, também, a estabilidade que a convicção exige, na medida em que o movimento destruía toda a permanência e o carrasco de hoje poderia ser a vítima de amanhã. Compreender o totalitarismo em suas “verdades” implica não se desresponsabilizar pelo que aconteceu, adotando personagens “diabólicos” em que se projeta o mal. Segundo Vallée,

[...] o que Arendt enuncia e denuncia é pois uma moral que já nada tem de uma moral e não passa de mero conformismo. Quando se toma o hábito de aplicar regras mecanicamente, sem as compreender nem as interrogar, é grande o risco de nunca mais ver a diferença entre o que tem autenticamente um valor e o que não tem nenhum, ou mesmo o que é francamente criminoso, por pouco que isso seja considerado uma obrigação social (1999, p. 73).

A autoridade se refere a uma reflexão sobre as condições da obediência e da validade das regras. Em política, argumenta Arendt, “obediência e apoio são a mesma coisa” (ARENDT, 2013, p. 302). Os crimes das “pessoas comuns” no nazismo foram a obediência e a falência do juízo (VALLÉE, 1999, p. 106). Eichmann era incapaz de pensar e de se colocar no lugar do outro. Esse “outro” não é alguém em específico, mas a pluralidade de seres humanos. Os “crimes de gabinete” foram possíveis porque não havia relação próxima entre os assassinos e as vítimas. Os primeiros foram incapazes de se colocar no lugar daquelas pessoas totalmente inocentes, imaginando-se na mesma situação. Ademais, “se Auschwitz foi ‘traçado pelo ódio’, ele foi ‘pavimentado pela indiferença’”, argumenta Vallée (1999, p. 18). É por isso que Arendt utiliza o conceito de “banalidade do mal” para evidenciar que não havia criminosos essencialmente maus, mas indivíduos incapazes de pensar, de julgar e de serem afetados pelo que fazem e por suas consequências.

A indiferença, aliás, é um problema educacional de primeira grandeza: o professor não se preocupa pelo aluno, não lhe presta a atenção e o devido cuidado, tampouco garante a proteção que exige sua responsabilidade docente5. Para esse tipo de professor, não importa quem são os alunos, suas especificidades, angústias ou anseios. São apenas números ou uma massa que se deve ensinar para as provas, ou, ainda, quando converte a educação em um labor como outro qualquer, isto é, um meio para ganhar a vida e sobreviver. É claro que a indiferença do professor não é simplesmente comparável com a indiferença dos alemães no período nazista. No Nazismo, a questão do Terror e da aniquilação das pessoas nos surpreende pela “normalidade” com que tais ações foram encaradas. Porém, o aspecto da indiferença que impera em ambos os casos diz respeito à singularidade dos indivíduos e à dispensa da pluralidade como um fator humano fundamental.

III

Sennett (1980) fala da “autonomia” como uma autoridade sem amor. Diferentemente do paternalismo, o indivíduo inscrito sob o tipo de autoridade autônoma não pretende cuidar de ninguém. Ele pensa que se basta a si mesmo, ainda que na vida social ninguém possa bastar a si mesmo. A autonomia significa também o fato de que, em vários aspectos, o indivíduo tem pleno domínio de si, não se deixa influenciar pela situação ou pelas demandas das outras pessoas. Para o sociólogo, “o que parece senhor de si mesmo tem uma força que intimida aos demais” (1980, p. 85)6. Por isso, nesse caso não se trata, arendtianamente falando, de autoridade, mas de uma demonstração psicológica de força que o afasta dos demais e estabelece uma espécie de “feitiço” de atenção nos dependentes. Quantos professores que conhecemos são indiferentes às demandas dos alunos e, ao mesmo tempo, são admirados e temidos? Esse tipo de “atração” pela força de outra pessoa adquire uma forma simples, a possessão de uma especialidade, e uma complexa, a estrutura da personalidade. No que tange ao nosso problema, a força da segunda forma evidencia um indivíduo que é indiferente porque não busca desesperadamente a aprovação dos demais e, por isso, não necessita prestar-lhes atenção. Ele é indiferente, inclusive, em relação à responsabilidade e está interessado apenas em seus motivos e na manutenção de sua dominação. Sennett interpreta esse fenômeno argumentando que “quem é indiferente desperta nosso desejo de que nos reconheça; queremos que essa pessoa admita que temos suficiente importância para que nos advirta. Podemos provocá-la ou denunciá-la. Mas a questão a conquistar é que reaja” (1980, p. 87).

Nem sempre a dominação da autonomia, nos termos sennettianos, ocorre sem conflito. Pelo contrário, ela estimula um vínculo de rechaço, pois o indivíduo submetido à autoridade não suporta depender abertamente de quem lhe é indiferente, não lhe presta atenção. É necessário enfrentá-lo, mas sem romper com a dominação. Seu mecanismo é o do indivíduo que domina a si mesmo e a seus recursos e aparenta não necessitar dos outros, impulsionando-os a sentir vergonha de si mesmos. Segundo Sennett (1980, p. 95), “a vergonha substituiu a violência como forma rotineira de castigo nas sociedades ocidentais”. Podemos imaginar algumas consequências de semelhante educação organizada na indiferença e no sentimento de vergonha. Paulatinamente, as pessoas vão desenvolver um temor à dependência. E isso repercutirá na vida pública e nas decisões coletivas, especialmente nas relativas à adoção de um tipo de Estado, o neoliberal.

Tal como se deve aprender que depender não é uma vergonha, a própria vergonha é problemática quando utilizada com o fim de causar um auto rechaço em relação à nossa condição de seres vulneráveis. A ideia da dominação pela autonomia se baseia numa ilusão: a sociedade, a política, o trabalho e a família existem porque os indivíduos dependem uns dos outros. Para Sennett, não conceder autonomia às pessoas em situação de dependência implica transformá-las em espectadoras de suas próprias necessidades, como se fossem incapazes de entendê-las e de pensar algo a respeito. Assim, a preocupação em manter a “ordem” dos espectadores em sala de aula nem sempre é pedagogicamente valiosa. Pode, pelo contrário, causar mais conflitos do que se pretende evitar, além de ser socialmente destrutiva quando os estudantes adentrarem na vida adulta.

Mencionamos aqui Sennett porque nos parece instigante seu estudo sobre a autoridade a partir da constatação de que abertamente tememos depender, pois vivemos num contexto em que depender é sinônimo de vergonha. Sob essa ótica pode-se compreender o desmanche do Estado Social e a propagação do individualismo neoliberal no contexto atual. Isso aporta um problema a mais à autoridade, pois, com o avanço do “novo capitalismo” na escola, e, especificamente da “linguagem da aprendizagem” que tende a substituir a “linguagem da educação” (BIESTA, 2013 e LAVAL, 2004), o que se está ensinando às crianças é gradualmente aprender por si mesmas, sem depender. Se a questão da autoridade se coloca dessa forma, ela está equivocada. Em razão de que a educação necessita da autoridade - na medida em que o professor é responsável pelo desenvolvimento da criança, pelo seu cuidado, segurança e proteção -, essa relação é temporária, porque a educação é uma tarefa que possui um fim. A autoridade na educação implica uma superioridade temporária, pois a condição da criança é “nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; e é um novo ser humano em formação” (ARENDT, 2007, p. 235). O paternalismo do professor é prejudicial porque ele nunca deixará de ser professor, isto é, os alunos sempre serão dependentes dos professores, que controlam a realidade. Não houve, nesse sentido, a passagem da família para o mundo e a criança é mantida sempre num estado infantil. Certamente, a autoridade na educação defendida por Arendt não é esta.

Voltando ao problema que o caso de Eichmann põe à educação, evidentemente que o adulto ordena e deseja a obediência, pois sabe mais sobre o mundo e sobre a vida do que a criança. Mas, se a escola deve realizar a transição para a vida adulta, o hábito de se “retirar para pensar”, compreender e interrogar é fundamental na educação. A dificuldade reside no dado de que a autoridade implica obediência e é distinta da persuasão e da violência. A persuasão se refere ao convencimento por meio do diálogo entre iguais, a maneira política de se relacionar. A violência entra em cena quando a autoridade já ruiu. Contudo, por não se tratar de uma “obediência cega” ou indiferente, na educação as crianças devem paulatinamente compreender as condições da autoridade e os fundamentos das regras a que obedecem. E o caso de Eichmann é ainda mais problemático para pensar a autoridade quando se constata que a obediência pode ser um crime: “se o <<crime de gabinete>> é um crime de obediência, só podemos pensar e julgar como tal se admitirmos um direito à desobediência” (VALLÉE, 1999, p. 77).

Nesse sentido, o caso de Eichmann nos obriga a voltar à questão da natureza da autoridade. Nosso temor à autoridade é oriundo de experiências que perverteram sua essência, confundindo-a com o autoritarismo. A autoridade docente funda-se no passado e na responsabilidade do professor em relação ao mundo e às crianças. Ela aumenta e confirma a responsabilidade e a capacidade do docente como representante do mundo em relação aos “novos”, visto que possui um maior conhecimento do mundo e, por questões óbvias, está mais próxima do passado do que seus alunos. Porém, a autoridade não está justificada e legitimada no mero fato da obediência. Um professor que faz com que seus alunos obedeçam não é, necessariamente, uma autoridade. Por essa razão, nem o “paternalismo” nem a “autonomia” são formas de autoridade no sentido normativo. Privilegiar a obrigação e valorizar a obediência implica um risco:

ora o perigo de privilegiar a obrigação e de valorizar a obediência é o risco de se habituar à existência de uma ordem (em todos os sentidos do termo) sobre cujo conteúdo já ninguém se interroga. [...] O perigo da obrigação é a confusão que ela pode induzir entre legitimidade e legalidade, ou mesmo entre a regra social e a vontade de um qualquer líder carismático (VALLÉE, 1999, p. 112).

Obedece-se ao professor não porque a obediência é um valor ou uma virtude. O professor é um guia para o estudante no mundo, cuja atividade terá um fim previsto: a vida adulta. É por isso que Pennac distingue o pedagogo do demagogo e o guardião do le passeur. O pedagogo abre nossa curiosidade, nosso desejo de aprender, estimulando nosso pensamento crítico, exercendo uma influência que não se refere à dominação, mas “contribui a fazer de nós indivíduos reflexivos, abertos e tolerantes” (PENNAC, 2017). O demagogo, por outro lado, “confisca ao seu benefício o sentimento de solidão suscitado por nosso insucesso, nossas faltas, nossas frustrações, nossas infelicidades, nossos temores e nossos ressentimentos” (PENNAC, 2017). Ele substitui o dogma ao espírito crítico, o slogan ao pensamento, o rumor à verdade fatual, as convicções às dúvidas, as crenças aos saberes, etc. Paralelamente, le passeur abre as fronteiras do conhecimento, dá acesso ao mundo e não conserva sobre seu domínio perene os alunos. O professor como guardião de um templo decreta, deplora e não faz passar. Transforma o mundo num tipo de conhecimento cirúrgico privado que não diz respeito ao mundo comum. Por isso, ele guarda esse saber e limita o acesso a uns poucos que ele considera privilegiados (do latim privilegium, os que possuem um direito privado sobre algo).

Sobre a relação da autoridade e da obediência, Arendt tece uma crítica ao funcionalismo porque perguntar sobre qual é a função da autoridade não nos permite compreender o que é a autoridade, muito menos dar uma resposta adequada à crise na educação. A atenção do funcionalismo

[...] recai apenas sobre as funções, e o que quer que preencha a mesma função pode, conforme tal ponto de vista, ser englobado sob a mesma denominação. É como se eu tivesse o direito de chamar o salto de meu sapato de martelo porque, como a maioria das mulheres, o utilizo para enfiar pregos na parede (ARENDT, 2007, p. 141).

Além disso, a eficácia da ordem não é o critério moral da autoridade, muito menos do poder, pois “se a essência do poder [e da autoridade] está na eficiência da ordem então não há maior poder [e autoridade] que aquele que nasce do cano de um fuzil e seria difícil dizer ‘de que modo a ordem dada por um policial é diferente da dada por um pistoleiro’” (ARENDT, 2006, p. 117).

IV

Por ter a autoridade desaparecido do mundo Moderno (ARENDT, 2007, p. 127) o dilema da educação é depender dela e da Tradição, cujo final é um fato acabado (2007, p. 54). Em se tratando da tradição, seu fim não resulta diretamente no esquecimento do passado. Se considerarmos que a crise é, também, uma oportunidade, o fim da tradição significa que poderemos “olhar sobre o passado com os olhos desobstruídos de toda tradição, com uma visada direta que desapareceu do ler e do ouvir ocidentais desde que a civilização romana submeteu-se à autoridade do pensamento grego” (ARENDT, 2007, p. 56). Não há educação sem passado. Somos seres capazes de memória, não somos apenas problemas e equações, mas é de histórias que estamos feitos (BARCENA, 2005, p. 100). Todas as disciplinas e conteúdos que formam parte do mundo têm um passado, narrativamente preservado. Em educação, cabe narrar cada uma dessas disciplinas e vinculá-las com o presente, para que tenham sentido ou para que seu sentido seja renovado pelas novas gerações. Talvez essas narrativas fossem elaboradas pela Tradição, mas o fim da Tradição não é o mesmo que o fim da narratividade ou o fim do passado. Embora o passado esteja constantemente ameaçado - especialmente pela “linguagem da aprendizagem” (BIESTA, 2013) que adentra na escola e pelo “novo capitalismo” (SENNETT, 2006; 2009) - em todos os aspectos de nossa vida ele precisa ser refundado pela lembrança e pela narração escolar. Por essa razão, Bárcena define a educação como iniciação: “a iniciação nas formas de conhecimento público compartilhado” (2005, p. 99).

Na educação, portanto, o professor pode selecionar o passado mais significativo para si, comunicando-o aos alunos e permitindo que eles busquem o sentido do conteúdo que é estudado. Evidentemente que o Estado define os conteúdos fundamentais que todo cidadão tem direito ao acesso, mas o professor deve ter certa liberdade de buscar no “tesouro” do passado aquilo que foi desconsiderado pela tradição ou ler como se nunca alguém tivesse lido, isso é, a partir da novidade: do mundo em relação aos novos e dos novos em relação a si mesmos. Desse modo, o fim da tradição não é uma tragédia. A tradição era o fio condutor que nos conduzia no passado, legando os acontecimentos e obras fundamentais. Em certo sentido, a tradição coagia. Sem ela, se abre a possibilidade da liberdade e do alargamento da atividade do pensar. Arendt define a condição atual de “pensar sem corrimões”, isto é, “enquanto você sobe e baixa as escadas sempre se apoia em corrimões para não cair. Mas perdemos esse corrimão” (1995, p. 171).

Embora argumentemos que o professor escolhe a parte do passado que lhe é significativa, isso é apenas parcialmente correto. A educação é um problema político, porque Arendt a atrela à continuidade do mundo. Cabe aos adultos definirem, diante do fim da tradição, aqueles aspectos do passado que devem ser legados às crianças e aos jovens, pois estudar todo o passado é impossível. Nesse sentido, considerando a advertência de Arendt de que a educação deve ensinar como o mundo é (ARENDT, 2007, p. 246), é pertinente ponderar: quais os aspectos do mundo devem ser ensinados para garantir tal dever? Essa decisão não caberia apenas a especialistas nos diversos elementos do mundo, muito menos somente aos educadores profissionais. Trata-se de um debate que envolve todos os adultos, porque eles são os responsáveis pela continuidade do mundo e pelo desenvolvimento das crianças. Quem recusa essa responsabilidade precisa ser proibido de tomar parte na educação ou ter filhos, assevera Arendt (2007, p. 239).

Em relação à autoridade, qual o seu sentido se não é mais possível dizer o que ela é? (ARENDT, 2007, p. 127). O fim da autoridade na Modernidade é de origem política, mas podemos perceber sua profundidade e seriedade por ela ter se espalhado em áreas pré-políticas, como a educação. Nesta, a autoridade sempre foi aceita como uma necessidade natural, dado tanto o desamparo das crianças quanto o fato de ser e uma necessidade política, a continuidade do mundo (ARENDT, 2007, p. 128).

A autoridade é uma necessidade porque a criança precisa estar amparada pelo adulto para poder adentrar no mundo que desconhece. O sentido da autoridade educacional reside na responsabilidade e em suas qualificações, isto é, em seu conhecimento em relação ao mundo que, na escola, assume a forma de conteúdos. Nisso reside a crítica da autora em relação à segunda “desastrosa medida” que agudizou a crise da educação: o professor se converte num mestre do ensino e não no domínio de qualquer assunto particular (ARENDT, 2007, p. 231). Como a responsabilidade do professor está em guiar os “novos” no mundo, converter-se em “facilitador” ou “mediador” ou, ainda, naquele que ensina a “aprender a aprender”, implica abandonar as crianças aos seus próprios recursos, bem como negligenciar a fonte mais legítima da autoridade docente: saber mais e poder mais do que os estudantes. O professor não se converte num “corrimão” que conduz com segurança os alunos pelo passado e os introduz no mundo. E Arendt é explícita: não há educação e autoridade educacional sem o passado. Isso significa, inclusive, que a tarefa do educador é apresentar o mundo à criança e transmitir os elementos fundamentais para que ela possa “lê-lo”. A crise na educação, como vimos, se agrava quando o professor se desresponsabiliza pelo mundo e sua preservação, deixando de ser uma “autoridade” no assunto para se converter num “técnico do ensino”, isso é, em alguém que sabe ensinar qualquer coisa porque também ensina os outros a aprender.

Diretamente relacionado a isso está o fato de que a relação pedagógica é uma relação hierárquica, porque fundada na autoridade entre gerações: os mais “velhos” educam e ensinam os mais “novos”, estabelecendo uma continuidade dos viventes e a consequente preservação do mundo. Isso se justifica, em primeiro lugar, em razão de que há uma desigualdade de conhecimentos e toda relação pedagógica se baseia nesse princípio. Em segundo lugar, isso ocorre porque, como os “novos” são “recém-chegados”, precisam ser introduzidos e familiarizados no mundo. Por isso, a educação precisa ter um final previsível: não se pode educar adultos nem tratar as crianças como se elas fossem maduras (ARENDT, 2007, p. 246). “Em educação”, comenta Arendt, “lidamos sempre com pessoas que não podem ainda ser admitidas na política e na igualdade, por estarem sendo preparadas para ela” (2007, p. 160).

Se a tarefa da escola é a de realizar a transição entre a vida privada e a vida pública (cujo sentido da educação reside na futura admissão das pessoas na política), não deve haver nela relações de igualdade entre adultos e crianças, porque as segundas precisam do cuidado, da segurança e da atenção das primeiras. O fim da autoridade na política que repercute educacionalmente concerne à intromissão de relações igualitárias no seio das relações pedagógico-educacionais num contexto de “liberação da criança”, isso é, de uma era em que as crianças ganharam direitos, entrando na “onda emancipatória” que ocorreu a partir das revoluções modernas. Porém, o que resultou no acesso à vida pública aos adultos “constituiu abandono e traição no caso das crianças que ainda estão no estágio em que o simples fato da vida e do crescimento prepondera sobre o fator personalidade” (ARENDT, 2007, p. 238).

Nesse sentido, a autoridade do professor se fundamenta no dever de pressuposição da distinção entre público e privado, apesar da dissolução dessas esferas com o advento do social7. Mesmo que a autoridade tenha desaparecido no mundo Moderno, a escola se constitui como um espaço específico de introdução dos “novos” no mundo e, por isso, necessita se fundar noutra lógica que não a da sociedade, da política ou da família. O fim da autoridade não implica sua generalização, porque, como argumentamos, ela está justificada na responsabilidade do adulto em relação à criança e ao mundo.

Tanto para Sennett como para Arendt, a autoridade não é uma possessão de um indivíduo, mas uma relação que se estabelece entre eles. Nesse sentido, ninguém tem autoridade e um indivíduo isolado não exerce autoridade. A autoridade educacional é uma relação hierárquica vinculada ao cuidado e a proteção. Num mundo “fora dos eixos”, é uma tendência confundir “autoridade” e “autoritarismo” ou “dominação”. Nesse sentido, os vínculos de rechaço, estudados por Sennett, são, pensamos, dominação (no sentido weberiano) e não autoridade, visto que o sociólogo evidencia os aspectos negativos de tais vínculos num contexto em que as pessoas têm vergonha de depender. O autoritarismo fecha a possibilidade do novo e do aparecimento da singularidade. Mantêm as crianças pequenas e os professores sempre professores, ou seja, guardiões de um conhecimento negando a autonomia dos alunos. Apesar de não ser uma obediência cega, como pareceu ser alguns casos típicos do totalitarismo (ou obediência por medo), a “autoridade” como autonomia ou paternalismo implica uma relação em que se rebela dentro da autoridade (ou dominação).

A pergunta sobre a essência da educação que necessita da autoridade nos conduziu a compreender que a educação diz respeito ao mundo, à introdução dos “novos” nas coisas públicas. A educação é uma tarefa que exige uma relação geracional fundada na responsabilidade do adulto frente à criança e o mundo e essa responsabilidade assume a forma de autoridade. Autoridade que se funda no passado, nas capacidades dos professores e na condição de possibilidade da ação, pois é, também, uma reflexão sobre as condições da obediência. Como tal, a autoridade educacional é uma condição temporária, em que os estudantes aprendem que a dependência é uma condição importante para seres que são plurais e vulneráveis, cuja consciência da imperfeição permite a constituição de formas democráticas de vida.

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1“The time is out of joint. O cursed spite that ever I was born to set it right” (SHAKESPEARE apud ARENDT, 2007, p. 242).

2Arendt conclui Origens do Totalitarismo explicitando esse fator que é, ao mesmo tempo, uma esperança: “‘o homem foi criado para que houvesse um início’, disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse novo começo; ele é, na verdade, cada um de nós” (ARENDT, 2011, p. 531).

3Todas as traduções são de nossa autoria.

4O temor de Arendt acerca da “força” dos grupos é um paralelo à crítica de Adorno à “identificação cega aos coletivos”. Tal identificação que, também, tornou possível Auschwitz. “Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização” (ADORNO, 1995, p. 127). Qual é o problema dessa coletivização? Além da anulação do indivíduo pelo grupo, porque é uma identificação sem reflexão, acrítica, o coletivo tende a usurpar a capacidade de pensar sobre suas ações, além de desresponsabilizar o indivíduo pelo que faz. De outro modo, quem está no coletivo não se sente “um”, mas “mais um” ou “qualquer um”, frente a uma massa maior que ele, absorvendo-o e aparentando ter uma existência própria - transformando-o num simples “que”. Além dessa adesão cega ser capaz de gerar a barbárie, em se tratando da educação de crianças a reação pode ser “ou o conformismo ou a delinquência juvenil, e frequentemente é uma mistura de ambos” (ARENDT, 2007, p. 231).

5Em sentido um tanto próximo a este Andreas Gruschka chama a atenção para o fenômeno da frieza burguesa. De acordo com este autor, a ontogênese desta forneceria “a chave para a interpretação do fracasso da educação para o sentimento humano porque a escola é malsucedida em conduzir para a maturidade, para a resistência à dominação excessiva, para o juízo crítico, para a distância em relação ao preconceito e à insubordinação” (2014, p. xii).

6É evidente o distanciamento de Sennett para com a Modernidade no que diz respeito ao conceito de autonomia. Porém, para o sociólogo se trata de evidenciar que o indivíduo autônomo, inscrito nessa “tipologia” (Weber) da autoridade possibilita relações de obediência e rechaço em virtude do contexto social em que estão inseridos. Anos mais tarde, com a publicação de Respect, Sennett insere a autonomia como condição para o respeito, isto é, a autonomia como capacidade para tratar as pessoas como diferentes de si mesmo (2012, p. 127) e como a concessão que se faz àquelas pessoas que sabem mais de si mesmas do que nós pretendemos saber (2012, p.129): por exemplo, o médico que concede autonomia ao paciente, o professor ao aluno, ou um grupo de policiais e assistentes sociais à menores em condições de vulnerabilidade social.

7Na perspectiva arendtiana, o social é uma esfera híbrida, em que as preocupações com a “vida” ganham relevância pública, descaracterizando a esfera política, na medida em que essa era o espaço da liberdade e da igualdade. Com a ampliação da sociedade, a necessidade se converteu numa pauta fundamental dos assuntos humanos. Nesse contexto, as pessoas passam a se preocupar unicamente com seus interesses privados, tornando-os assunto público e exigindo do Estado sua proteção. No caso da autoridade, o auge do social implica que a igualdade, característica da esfera pública, invadiu espaços em que a distinção e a hierarquia eram o que caracterizava as relações humanas, pervertendo determinadas lógicas e produzindo consequências desastrosas. A sociedade de massas, para Arendt, é a última fase de desenvolvimento do social e a crise da educação é um problema difícil “por ter surgido sob as condições de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências” (Arendt, 2007, p.228). Além disso, como a necessidade é o fator preponderante de existência e preocupações da sociedade, o passado perde seu sentido e a autoridade deixa de desempenhar um papel na educação. Trata-se do consumo que destrói tudo, destruindo as relações naturais entre adultos e crianças, que são relações pedagógicas, em relações de consumo, em que o cliente sempre tem a razão.

Recebido: 24 de Março de 2020; Aceito: 19 de Janeiro de 2021

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