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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.21 no.70 Curitiba jul./set 2021  Epub 20-Abr-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.21.070.ds10 

Dossiê

Entre ser “a pessoa mais importante do lugar” e “apenas um professor”1

Between being “the most important person of the place” and “just a teacher”

Entre ser “la persona más importante del lugar” y “solo un profesor”

Valdete Aparecida Fernandes Moutinho Gomes, Mestra em Educaçãoa 
http://orcid.org/0000-0002-9096-9151

Célia Maria Fernandes Nunes, Doutora em Educaçãob 
http://orcid.org/0000-0002-2338-1876

Karla Cunha Pádua, Doutora em Educaçãoc 
http://orcid.org/0000-0003-0421-9897

aUniversidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Mariana, MG, Brasil. Mestra em Educação, e mail:

bUniversidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Mariana, MG, Brasil. Doutora em Educação, e mail:

cUniversidade do Estado de Minas Gerais, (UEMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Doutora em Educação, e mail:


Resumo

Neste artigo, discutimos a influência do contexto sociocultural em que a escola está inserida para a percepção de valorização docente conforme a narrativa de uma professora do ensino fundamental I. As reflexões ora apresentadas desenvolveram-se durante uma pesquisa que procurou investigar a valorização docente na narrativa de uma professora dos anos iniciais do ensino fundamental, que atua na rede municipal da cidade de Mariana, Minas Gerais. Como procedimentos metodológicos, desenvolvemos um levantamento bibliográfico acerca da valorização docente para compreendermos como a questão tem sido discutida pela literatura da área e contemplada pela legislação. Além disso, realizamos a entrevista narrativa, cujos achados evidenciaram que a valorização docente ultrapassa a dimensão objetiva (condições de trabalho e carreira, formação e remuneração), privilegiada nos estudos do campo. A pesquisa demonstrou a importância da dimensão subjetiva para a valorização, incluindo assim, as interações humanas vivenciadas no exercício da profissão e a percepção de reconhecimento social. Nesta direção, apresentamos os fatos mais marcantes da trajetória profissional da professora pesquisada e analisamos as suas percepções acerca do exercício da docência em uma escola do campo e em uma escola da periferia da cidade de Mariana-MG, procurando compreender como o contexto sociocultural influencia a percepção de valorização docente.

Palavras-chave: Narrativa docente; Valorização docente; Docência no campo; Docência na periferia; Ensino fundamental I.

Abstract

In this paper we discuss the influence of the sociocultural aspect wherein the school is placed for the perception of teacher valorization according to a narrative by an Elementary school (early years) teacher. The reflections presented here were developed during a study that aimed to investigate teacher valorization in narrative of Elementary school teacher (early years) working in the municipal education network of Mariana, State of Minas Gerais, Brazil. The methodology included a bibliographical survey on teacher valorization designed to understand how the issue has been discussed in the literature in the area and contemplated by legislation. Besides that, we conducted narrative interview, whose findings show that teacher valorization goes beyond the objective dimension (working conditions and career, development, and remuneration), that is privileged in related studies. The research demonstrated the importance of the subjective dimension for the valorization, thus including the human interactions experienced in the exercise of the profession, and the perception of social recognition. In this sense, we present the most prominent facts of the professional career of one of the teacher participating in the study, and analyze her perceptions of teaching both in a school located in a rural area and another one in the suburbs of Mariana, seeking to understand to what extent the sociocultural context plays an influential role in the perception of teacher valorization.

Keywords: Teaching narrative; Teacher valorization; Teaching in the countryside; Teaching in the suburbs; Early years of Elementary School.

Resumen

Para percibir la valorización docente en dos ambientes, este artículo discutirá la influencia de dos contextos socioculturales en que la escuela está inserida, de acuerdo al relato de una profesora de Enseñanza Fundamental I. Las reflexiones ahora presentadas surgieron durante una pesquisa que procuró investigar la valorización del docente según el relato de una profesora de los años iniciales de la enseñanza Fundamental, actuante en la red municipal de la ciudad de Mariana, Minas Gerais. Como procedimientos metodológicos, hicimos un levantamiento bibliográfico acerca de la valorización docente para que comprendamos cómo el asunto ha sido discutido por la literatura del área y contemplada por la legislación. Además, realizamos la entrevista relatada, evidenciado que la valorización del docente que ultrapasa la dimensión objetiva (condiciones de trabajo y carrera, formación, remuneración), privilegiada en los estudios del campo. La pesquisa demostró la importancia de la dimensión subjetiva para la valorización, incluyendo así, las interacciones humanas vividas en el ejercicio de la profesión y la percepción del reconocimiento social. En este sentido, presentamos los hechos más sobresalientes de la trayectoria profesional de la profesora participante de la pesquisa y analizamos sus percepciones acerca del ejercicio de la docencia en una escuela del campo y en una escuela de los alrededores de la ciudad de Mariana-MG, procurando comprender cómo el contexto sociocultural tiene influencia en la percepción de valorización docente.

Palabra clave: Relato docente; Valorización docente; Docencia en el campo; Docencia en la periferia; Enseñanza Fundamental I

Introdução

A valorização docente é um dos aspectos essenciais para a promoção da qualidade do ensino e para a satisfação profissional dos professores. Segundo Gatti, Barreto e André (2011), a docência é uma atividade complexa, que exige o domínio de múltiplos conhecimentos, bem como a necessidade de se respeitar e valorizar a heterogeneidade em meio às influências sociais, culturais e políticas do contexto onde a escola se insere. Além disso, esta complexidade está relacionada ainda à necessidade permanente de formação continuada, a realização de um trabalho que não se esgota em sala de aula, a natureza dos contratos e a intensificação da jornada de trabalho. Nesse sentido, ainda conforme Gatti, Barreto e André (2011), é preciso considerar a importância social da profissão docente em relação às demais profissões. É a partir desta perspectiva que orientamos aqui as discussões em torno da valorização docente.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 marca a emergência do conceito de valorização docente na política educacional (CIRILO, 2012). A partir de então, outras regulamentações foram implantadas para consubstanciar os princípios defendidos na carta magna: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), a Lei do Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN), as Diretrizes Nacionais para os Planos de Carreira e Remuneração dos Profissionais da Educação Escolar Pública Básica, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e o Plano Nacional de Educação (PNE). Nestas determinações, destaca-se a indissociabilidade entre formação, remuneração, condições de trabalho e carreira para a promoção da valorização docente. Essas dimensões, que se relacionam a aspectos objetivos da carreira, têm orientado a maioria dos estudos sobre a temática. Entretanto, conforme destaca Leher (2010), a valorização do magistério envolve também aspectos de natureza subjetiva, os quais compreendem o reconhecimento social e a satisfação profissional.

Os aspectos objetivos e subjetivos estão intrincados, uma vez que é por meio das políticas de valorização docente que o reconhecimento social da profissão se materializa. Além de promover maior atratividade para a inserção e permanência na carreira, essas regulamentações podem contribuir para incentivar um imaginário coletivo no que diz respeito à docência, como apontam Nunes e Oliveira (2017). Segundo esses autores, o reconhecimento social do/a professor/a pressupõe a garantia de apoio administrativo e pedagógico no interior das instituições, bem como a implantação das políticas de valorização docente:

É necessário apoio sistemático de outros profissionais da educação que dão suporte ao trabalho do professor, além das condições sociais favoráveis, com valorização do trabalho docente, compreendida como condições adequadas de trabalho, incentivo à carreira e à formação e remuneração salarial compatível, e da escola como um todo, de modo que a ambiência nos contextos em que se inserem colabore para que as pessoas atribuam a ela um respeito coletivo, que contribua para elevar sua importância (NUNES; OLIVEIRA, 2017, p. 75-6).

Pode-se dizer, portanto, que há uma relação dialética entre os aspectos objetivos e subjetivos da valorização docente ou, em outras palavras, entre as respectivas políticas e o reconhecimento social da categoria. As regulamentações referentes à formação, condições de trabalho, remuneração e carreira expressam a materialidade do reconhecimento social da profissão, ao passo que contribuem para estimular esse sentimento entre a coletividade.

Acreditamos que há uma lacuna na produção da área que reside na escuta da voz dos professores acerca da temática para que, a partir da perspectiva dos/das docentes, sejam deslindados os fatores que contribuem para que os/as mesmos/as se sintam valorizados/as.

Esse pressuposto definiu a escolha por uma investigação qualitativa baseada na realização da entrevista narrativa. Nessa metodologia, a entrevista parte de uma questão gerativa que foi elaborada com o intuito de incentivar a entrevistada a expressar suas percepções e vivências no que se refere à temática da investigação. A entrevista foi acompanhada de aplicação de questionário para levantamento do perfil sociocultural dessa professora e anotações no caderno de campo para registro das impressões ao longo da investigação. Para a transcrição, recorremos às sugestões de Hartmann (2012), autora que recomenda maior proximidade com a linguagem oral. Na análise, adotamos uma perspectiva compreensivo-interpretativa (SOUZA, 2006) também conhecida como interpretação hermenêutica, na qual as falas são investigadas com o intuito de apreender o seu sentido no contexto em que se situam. Desse modo, em sua narrativa, a professora Raimunda4 salientou a importância do contexto sociocultural, tema relevante que será exposto ao longo artigo. Na primeira seção esclarecemos quais critérios definiram a escolha da participante da pesquisa e a apresentamos. Na segunda seção, analisamos os fatos mais marcantes da trajetória da docente na escola do campo, que enfatiza a proximidade do vínculo com os alunos e com a comunidade. Na terceira seção, a professora ressalta os desafios de se lecionar em uma escola situada em um bairro periférico considerado região de alta vulnerabilidade social.

Conhecendo a professora Raimunda: alguém que “ama a profissão, que gosta demais do que faz”

Eu me sinto muito feliz. Amo5 a profissão que eu tenho! Amo o que eu faço. Gosto demais mesmo.

A partir do objetivo geral da pesquisa, que consistiu em investigar a percepção de valorização docente na narrativa de uma professora do ensino fundamental I, procedemos à definição do/da participante da investigação. Esta seleção ocorreu a partir dos seguintes critérios: ser professor/a efetivo/a nos anos iniciais do ensino fundamental da Rede Municipal de Mariana6; estar na docência, há, no mínimo, sete anos, conforme as fases da carreira propostas por Huberman (1992) e lecionar em uma das escolas da zona urbana. A opção por um profissional com este perfil se deve ao fato de este possuir um vínculo mais estável com o sistema de ensino e algum tempo de experiência no exercício da profissão, de modo que pudesse relatar desafios e avanços para a valorização docente. Utilizamos a técnica conhecida como bola de neve, na qual um informante-chave indica outro para participar da pesquisa e, assim, chegamos à professora Raimunda que, de forma muito solícita, se disponibilizou a contribuir com a pesquisa.

Ao longo da entrevista, a professora demonstrou motivação pela docência e, ao mesmo tempo, percepção crítica em relação às desigualdades sociais presentes no bairro onde a escola em que atua está inserida. Professora da rede municipal de Mariana desde 1997, Raimunda encontra-se no período da carreira conhecido como diversificação ou questionamento, conforme os estudos de Huberman (1992). Este estágio ocorre entre os sete a vinte e cinco anos de profissão e caracteriza-se por um momento de experimentação, e, ao mesmo tempo, pela reflexão sobre a carreira profissional.

Raimunda ingressou na docência por interesse específico pela profissão e cursou o Magistério (nível médio) e a graduação no Normal Superior por meio do CEAD (Centro de Educação Aberta e à Distância), vinculado à Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Concluiu a Especialização Lato Sensu em área relacionada ao ensino no ano de 2007.

A professora tem mais de 45 anos e se considera parda. Seu pai concluiu o ensino médio e é almoxarife. Sua mãe concluiu o ensino fundamental e trabalha como empregada doméstica e auxiliar de serviços gerais. De acordo com Diniz-Pereira (2011) e Louzano et al. (2010), a maioria dos/das docentes no Brasil provém das camadas menos privilegiadas socioeconomicamente da população. Considerando a brevidade da trajetória escolar dos seus pais, é bastante provável que o exercício da profissão docente, ainda que permeado por muitos desafios e dificuldades, represente um tipo de ascensão sociocultural importante tanto para a professora Raimunda quanto para a sua família. Do mesmo modo, é possível que sua origem socioeconômica favoreça uma relação positiva com a remuneração obtida na docência, tendo em vista que, no grupo a que pertence, as ocupações exercidas pelas mulheres recebem salários inferiores aos da profissão docente.

Raimunda é casada e possui um filho adolescente. Seu esposo completou o ensino fundamental e é trabalhador da construção civil, o que sugere que a remuneração da professora representa uma participação importante nas despesas da família.

A professora atuou em uma escola do campo, localizada na cidade de Mariana, por oito anos. Depois, foi transferida para uma escola de um bairro periférico, situado em uma região de alta vulnerabilidade social do município. Atualmente, leciona para o 3º ano do Ensino Fundamental, em apenas uma escola.

Ser docente na escola do campo: “a pessoa mais importante do lugar7

Na zona rural, os pais chamavam os professores para ir almoçar na casa deles, né? E quando chegava na casa deles, pra almoçarem, era um banquete. ‘Cê’ tinha de tudo! Era como se o prefeito fosse lá almoçar, porque tinha de tudo. Às vezes, pessoas tão simples que não tinham o que comer durante a semana... Mas se um professor fosse, eles arrumavam um jeito e tinha de tudo e aqui8, cê não vê isso, né? Mal, mal, os pais vêm na escola pra saber como os filhos estão9.

Criado em meados do século XX, o subdistrito de Serras10 está localizado a 22 km da sede da cidade de Mariana, Minas Gerais, nascida no século XVII em decorrência das expedições dos bandeirantes paulistas à procura de ouro. A cidade se expandiu por conta da mineração, ainda considerada a principal atividade econômica do município. Em 2015, aconteceu o rompimento da Barragem de Fundão, de responsabilidade da Empresa Samarco, propriedade da Vale/BHP Billiton. A maior tragédia ambiental do país trouxe perdas humanas e prejuízos naturais e econômicos ao município. Outras cidades ao longo do Vale do Rio do Doce também foram afetadas pelos rejeitos de minério.

Entretanto, o subdistrito de Serras não foi atingido. Os moradores, em sua maioria, vivem da agricultura de subsistência. Por se tratar de uma comunidade vinculada a outro distrito, não localizamos dados oficiais referentes à localidade. É nesse meio que se inicia a experiência docente da professora Raimunda:

Eu iniciei [no magistério] em 1997. Comecei na zona rural [de Mariana]. Naquela época, a gente ia pra zona rural11, vinha de quinze em quinze dias, tinha que morar lá e foi muito difícil pra mim, no início, porque eu não tava [me] adaptando a trabalhar. Nunca tinha ido morar fora. Ainda mais numa zona rural pequena, bem longe de Mariana e pra gente adaptar, a princípio, com outros professores, né? A gente ficava meio perdida nas primeiras semanas. Mas, aí, depois a gente foi adaptando.

Corroborando a narrativa da professora, Huberman (1992) define o início ou entrada na carreira como um período de sobrevivência e de descoberta, o qual compreende entre 1 a 3 anos de atividade profissional. A sobrevivência se refere às primeiras dificuldades encontradas no exercício da profissão, ao passo em que a descoberta está relacionada à motivação inicial com a docência e as alegrias que a mesma proporciona. São frequentes, nessa fase, os sentimentos de insegurança e medo, bem como de encantamento e euforia, a depender das experiências que o/a professor/a vivencia em seu cotidiano profissional. No caso da professora Raimunda, além das adaptações relacionadas ao início da docência, há também aquelas referentes ao modo de vida em uma região do campo. Entretanto, aos poucos, a professora foi se acostumando e passou a gostar de lecionar neste meio, fato que decorre, sobretudo, do vínculo estabelecido com os alunos e a comunidade:

É um povo maravilhoso, muito carinhoso. Os alunos, em si, eles têm uma diferença muito grande: a atenção e o carinho que eles tinham pela gente era muito grande e eles tinham aquela coisa: nós éramos consideradas as pessoas mais importantes do lugar! Então, pra eles, pra comunidade, se um professor [ia] na casa do outro [...], faziam almoço, faziam as coisas ... Os alunos eram diferentes de hoje, os alunos respeitavam o professor, nós éramos autoridade, mas não era uma autoridade [do tipo] eles obedeciam e a gente falava. Não! Era diferente, era um carinho especial, era uma atenção que eles tinham com a gente. Era uma coisa “nó”, totalmente diferente! Para os alunos da zona rural, pelo menos na época que eu trabalhava lá, o professor é visto assim: aquela pessoa maravilhosa, aquela pessoa que não tem erros, aquela pessoa perfeita. É como se fosse uma mãe pra eles, né? É visto dessa forma, alguém que eles gostem demais.

Na narrativa supracitada, evidencia-se, entre outros aspectos, a importância que a professora Raimunda atribui à relação afetuosa existente entre professores/as e alunos/as na comunidade do campo. Nesta perspectiva, destaca-se a docência como uma profissão de interações humanas (ARROYO, 2004; TARDIF; LESSARD, 2005; TEIXEIRA, 2007) e, especialmente, a relação professor/a-aluno/a por seu caráter central no exercício da docência (TARDIF; LESSARD, 2005; TARDIF, 2012). Segundo Teixeira (2007), esta interação é aquilo que estabelece a docência, cuja atividade, no entendimento de Tardif e Lessard, (2005), pressupõe um mínimo de engajamento afetivo para com o “objeto de trabalho”: os/as alunos/as.

Além deste aspecto mais relacional referente aos/às alunos/as, a professora Raimunda destaca a percepção de ser reconhecida pela comunidade do campo como uma autoridade, como alguém respeitado pelas pessoas, aspecto considerado essencial para o prestígio social da docência. Nestas localidades, muitas vezes, a escola é um dos poucos espaços sociais, senão o único, de que a comunidade dispõe. Dessa forma, além de cumprir a sua função pedagógica, a escola também atende a outras finalidades, tais como: sediar reuniões comunitárias, festas, cultos religiosos, campanhas de vacinação, entre outros eventos. Portanto, a importância conferida ao/a professor/a está relacionada à própria importância com a qual a escola é considerada na comunidade do campo.

Embora a professora Raimunda já estivesse adaptada ao exercício da docência no campo e, além disso, tivesse construído relações positivas com os/as alunos/as e a comunidade, o exercício da profissão naquelas condições impossibilitava-lhe de estudar, algo que ela desejava muito fazer:

Você imagina: você, na zona rural, né? Eu tinha o magistério. O sonho meu era fazer uma faculdade, mas como fazer se eu precisava trabalhar? Ou eu não aceitava trabalhar e estudar, mas os meus pais não tinham condições de me manter, né? Então, eu precisava trabalhar e o estudo, sinceridade, eu achava que eu não ia ter. Que eu só iria fazer uma faculdade quando eu tivesse, talvez, aposentando ou quando eu tivesse chance de vim pra Mariana, porque, naquela época também você vim pra Mariana era dificílimo. Você conseguir uma vaga dentro da cidade era complicado. Aí, quando foi em dois mil e dois, se eu não me engano, [o Prefeito] propôs também junto com a universidade, o CEAD pra que a gente fizesse o curso superior à distância. Então, quando surgiu essa oportunidade, não foi só eu que comemorei, todos os professores da Rede Municipal se ‘sentiu’ assim: a gente estudava pra fazer essa prova. Era a chance que a gente tinha e a maioria queria agarrar com todas as forças, porque não tinha oportunidade, né? E nós tivemos essa oportunidade. Então, foi pra mim uma valorização muito grande, muito mesmo. A questão de ver que o professor necessitava... Não só quem tava na zona a urbana [mas também aqueles que estavam] na zona rural e que não tinham chance de estar estudando, né? Não tinham chance de fazer uma faculdade. Como fazer uma faculdade se a Prefeitura não dava suporte pra ônibus, nada? Tinha que morar lá. Então, com essa chance, modificou toda [a vida] não só a minha, mas de 90% dos professores que fizeram o CEAD, porque cê faz CEAD, cê já fez Pós-graduação, aí cê vai longe. Porque você teve essa oportunidade. E foi a valorização mesmo da gestão que estava na época.

A importância que a professora Raimunda confere à formação em nível superior vem ao encontro da ênfase dada a esse nível de ensino para atuação na Educação Básica, conforme previsto na LDB/1996 (Lei nº 9394/1996). Embora a formação em nível médio seja, até os dias atuais, permitida para atuação na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, a própria legislação ressalta a “preferência” pela formação em nível superior.

Os debates em torno da formação docente intensificaram-se a partir dos anos de 1980, quando o/a professor/a passou a ser considerado/a como um dos principais dos principais agentes de mudança para a qualidade do ensino e a democratização da sociedade brasileira (WEBER, 2003). Esse reconhecimento, no que diz respeito à centralidade docente (OLIVEIRA, 2003) justificou a elaboração das políticas de valorização docente, que além de outros aspectos, enfatizam a formação. A formação é um dos fatores essenciais para o processo de profissionalização do/a professor/a da educação básica (WEBER, 2003) e favorece a valorização docente, porque tende a promover a melhoria da sua remuneração (CIRILO, 2012).

No que diz respeito à formação em nível superior, conforme consta no Plano Municipal de Educação (2015-2024), destaca-se o mérito do CEAD/UFOP, que em parceria com a Prefeitura Municipal de Mariana, logrou a formação neste nível de ensino de todos/as os/as professores/as da rede municipal que ainda não o possuíam:

Um dos passos mais importantes da caminhada educacional municipal foi a estabilização do quadro funcional e a qualificação em massa dos educadores dos primeiros anos do Ensino Fundamental, em convênio com a UFOP, por meio do CEAD, alcançando, atualmente, 100% do quadro efetivo do magistério com formação superior (MARIANA, 2015, p. 42).

A organização da formação realizada pelo CEAD/UFOP no formato semipresencial possibilitou que professores/as que lecionavam no campo pudessem realizar o curso. Para viabilizar a participação dos/as docentes, a Prefeitura Municipal de Mariana fornecia o transporte. Entretanto, os riscos inerentes ao deslocamento expunham a segurança dos/as professores/as, como Raimunda relata:

Aí, quando foi em 2003, eu acidentei lá12 [lá no distrito mesmo]. A Kombi que levava a gente capotou, eu fiquei oito meses afastada. Depois, eu resolvi vir pra Mariana, porque eu queria ter um filho e a distância tava me impedindo disso.

A partir de então, a professora Raimunda deixou de atuar na comunidade do campo, mas a sua percepção em relação à docência nestas localidades ainda se mantém: “Tem muito tempo que eu não vou [lá]. [...] mas, eu acredito que no distrito [na zona rural, de modo geral] ainda acha essa atenção em relação aos professores [...]”.

A transferência da docente para uma escola situada em um bairro periférico da cidade de Mariana acabou impondo-lhe novos desafios profissionais, especialmente no que se refere à relação professor/a-aluno/a e à relação entre a família e a escola como exposto na próxima seção.

Ser docente na escola da periferia: “apenas um professor”

Aqui, o professor é visto [apenas] como um professor [indica, gestualmente, pouca importância]. Ele tá ali pra trabalhar e dar a sua aula...

Embora a professora Raimunda saliente a atuação na escola do campo como uma experiência profissional bem-sucedida, a sua transferência para a escola situada na zona urbana do munícipio trouxe-lhe benefícios de ordem pessoal, familiar e profissional, possibilitando-a a aproximação da família, a proximidade entre o local de trabalho e sua residência e a realização dos cursos de formação continuada. Entre estes, ela ressalta a importância da formação, pela possibilidade que a mesma oferece de promover a construção do conhecimento:

Aí, já tava no final do curso13, eu já estava em Mariana. Depois, nós fizemos vários cursos [...]. Aí, eu fiz minha Pós-Graduação em Psicopedagogia. E cada curso que eu fazia, eu me aperfeiçoava mais sempre em prol dos meus alunos, em prol de ajudá-los [...] Dependendo do curso que você faz, você traz um conhecimento, uma bagagem que você pode utilizar dentro de sala de aula ou até mesmo pra você.... Às vezes, tem alguma palestra lá que fala de algum aluno. Você: Pô! Eu tenho esse aluno. É desse jeito. Eu posso trabalhar desse jeito com ele. Quem sabe dá certo? Então, eu acho que os cursos eles valorizam, ajudam a gente a nos enriquecer cada vez mais dentro da sala de aula. O que eu aprendi, a bagagem que eu tenho dos cursos que eu fiz, isso me ajuda muito dentro na sala de aula, né? Contribui muito.

Em outras palavras, os cursos de formação continuada contribuem para os processos de ensino e aprendizagem porque promovem a reflexão docente acerca dos desafios que incidem sobre própria profissão, os/as alunos/as e a escola. Favorecem a compreensão das condições socioculturais nas quais a instituição está inserida.

A escola em que a professora Raimunda leciona atualmente situa-se em um bairro que apresenta boas condições de urbanização14, mas as possibilidades culturais restringem-se aos eventos promovidos pela escola. Trata-se de uma comunidade popular, com algumas áreas de ocupação irregular, onde muitas famílias convivem com condições precárias de moradia. A escola é uma instituição de médio porte (aproximadamente, 500 alunos/as matriculados/as) que recebe alunos/as da educação infantil, anos iniciais e anos finais do ensino fundamental. O prédio atende, satisfatoriamente, ao número de alunos/as recebidos pela instituição. Possui uma biblioteca (a única do bairro), de tamanho médio. Além dessas questões mais estruturais, a escola e os/as professores/as sentem as implicações do desprestígio social vivenciado pela comunidade:

muita discriminação. Muita. Às vezes, quando em curso ou qualquer coisa que eu faça: Você trabalha onde? Naquela escola? Você trabalha naquela escola? Cê tá doida! Então, sempre tem essa diferença, sempre teve esse preconceito com a comunidade, com o local. As pessoas questionam a gente: mas, como que cê tem coragem de entrar lá? Eu conheço várias pessoas que nunca tiveram coragem de entrar aqui. Não entram! E não é [só] mulher, não. Homem não tem coragem de entrar aqui, porque foi criada essa imagem errada do lugar. Isso trouxe pra própria escola, pra própria comunidade essa questão. Em outros lugares, o pessoal vai sem medo e aqui, a maioria não entra. A maioria tem medo, né? A comunidade tem um pouco de culpa? Tem.

Diante disso, em sua narrativa, a professora Raimunda expõe a sua resistência em ser transferida para a escola:

[Quando] eu vim pra Mariana, comecei a atuar nesta escola, [onde] tô até hoje. Tem doze anos que eu tô aqui. Então já veio a mudança completamente diferente. Uma escola que... não é a escola. A comunidade é taxada: Você vai trabalhar [naquele bairro]? Você tem coragem de entrar [naquele bairro]? Não era escolha minha, porque não foi minha opção. A única condição que a Secretaria15 me dava naquele momento era que eu viesse pra cá, [...] e que assim que surgisse vaga, eu sairia daqui e iria pra outra escola.

Os excertos supracitados demonstram que a professora atribui certa responsabilidade à comunidade pela forma desprestigiosa como o bairro é visto na cidade, mas não expressa nenhuma reflexão acerca do papel do Estado na garantia de políticas públicas que ofereçam melhores condições de vida aos moradores. A responsabilidade do Estado no desenvolvimento de políticas públicas não pode ser negligenciada, especialmente no que se refere ao acesso à alimentação, educação, saúde, lazer, segurança e a oportunidades de emprego. Essa omissão do poder público corresponde à violência estrutural, que se expressa no descumprimento de direitos básicos para que a população tenha uma vida digna, aspectos que configuram um grave quadro de exclusão social. “O agravamento dos problemas sociais e o aumento dos índices de delinquência vão, pouco a pouco, potencializando rancores que se expressam no preconceito, na intolerância e no medo” (NETO; MOREIRA, 1999).

No entanto, após a chegada da professora na instituição, ela acabou se surpreendendo:

Só que o que aconteceu aqui foi diferente, porque a partir do momento que eu entrei aqui, eu me apaixonei pelo lugar! Aí, foi totalmente diferente da visão que eu tinha: que [o bairro] era isso, que [o bairro] era aquilo, né? [...] Claro que é totalmente diferente a relação, porque os alunos de uma zona rural têm aquele carisma com você, eles te escutam, a palavra final é sua. E aqui já era um pouco diferente, mas sempre eles ‘teve’ carinho e atenção. Nunca tive problema nenhum com aluno nenhum aqui na escola! Sempre falo que é ‘os meus meninos’. Eu não vejo eles como meus alunos. Eu vejo eles como meus meninos!

Ao se referir aos/as alunos/as como “seus meninos”, a professora Raimunda demonstra toda a afetuosidade presente nesta relação. Para Teixeira (2007), a docência se manifesta como uma profissão com forte compromisso político e amorosidade em relação aos/as alunos/as. Segundo a autora, estes aspectos se evidenciam através da dimensão do cuidado para com o outro e sua formação. Portanto, a relação afetiva com os/as alunos/as não acontece de forma aleatória, tendo em vista que, na perspectiva dos/as professores/as, essa interação visa, sobretudo, o aprendizado do/a aluno/a e o seu desenvolvimento enquanto ser humano, enquanto cidadão.

As demais interações e atividades profissionais desenvolvidas pelos/as professores/as, tanto entre a equipe escolar ou com as famílias, decorrem da relação que se estabelece em sala de aula com os/as alunos/as. A professora Raimunda salienta a importância das relações construídas com a equipe de trabalho associando-as às suas práticas pedagógicas considerando, inclusive, as dificuldades socioemocionais com as quais muitos/as alunos/as convivem:

E, agora, aqui [nesta escola] também, não tenho do que reclamar. Gosto demais dos alunos. Meu pai brinca assim: que eu sou presa... que meu umbigo tá enterrado nessa escola [ri] devido ao fato de os professores, a equipe de trabalho é muito unida. E isso contribui muito pra que a gente permaneça no lugar, né? Essa valorização entre a gente, a pedagoga, é assim: um tenta ajudar o outro, né? Eu tenho uma atividade que não é pra mim, mas serve pra outra. Então, eu vou passar pra você. Então, a gente sempre tenta um ajudar o outro. E a gente se valoriza muito um com o outro dentro de sala, porque hoje eu tô no 5º (ano), amanhã, eu posso tá no 1º. Então, os alunos que vão vir pra mim ou que eu vou pegar e que vão pra outros professores... Então, a gente preocupa muito com isso, com essa valorização mesmo dos alunos, da gente, como da equipe mesmo. E a maioria que aqui estão, é dez, quinze, vinte... Toda a vida trabalhou aqui e continua, não têm vontade de sair daqui, né? Principalmente, nós de 1ª a 4ª, por causa da questão da equipe mesmo. Por causa da questão de estarmos sempre juntas, contribuindo, né? Pra tentar, pelo menos, sanar um pouco das dificuldades que essa comunidade enfrenta, que são muitas: a falta de carinho, alunos com vários problemas...

Esse relato nos remete ao conceito de socialização entre pares, ou seja, às trocas estabelecidas entre a equipe docente no espaço escolar, que possibilitam a construção de saberes didático-pedagógicos ao longo da trajetória profissional. Essas interações contribuem para a transmissão das “culturas do ensino” (HARGREAVES, 1994). Nesta direção, Tardif (2012) define a experiência docente como fonte de saberes experienciais, os quais se caracterizam por serem práticos, interativos, sincréticos, plurais e heterogêneos. Constituem-se como “conhecimentos utilitários” (ARROYO, 2011, p. 172). Por possuírem tais características, estes saberes se relacionam ao cotidiano das práticas docentes. De acordo com Tardif e Lessard (2005), de modo gral, os/as professores/as não discutem teorias pedagógicas, nem tampouco, a própria atividade docente.

Nessa direção, Imbernón (2011) afirma que é importante que a socialização entre os pares favoreça a valorização dos saberes docentes, a realização do trabalho coletivo, a articulação entre teoria e prática e a inclusão das questões morais, éticas, sociais e políticas na reflexão docente. Esses pressupostos suscitam o protagonismo da equipe pedagógica na percepção, avaliação e construção coletiva de estratégias para os desafios que a escola enfrenta. No caso específico da escola onde a professora Raimunda atua, um dos desafios enfrentados pelos/as docentes reside nas questões sociais, especialmente a violência urbana que provoca transformações nas famílias, dificultando a relação entre estas e a escola:

Eu tenho aluno de todos os tipos dentro de sala. Eu tenho que ter um jogo de cintura muito grande com eles, porque tem alunos com pais drogados, tem alunos com pai preso. Então, assim, quando eu vim pra cá, eu tinha muita dificuldade nisso, porque, às vezes, eu falava: eu vou mandar chamar seu pai! Aí, vinha (um aluno) e falava: Ah, ô tia, o pai dele tá na cadeia. Roubou não sei o “quê”. Então, até eu (me) adaptar a esse mundo diferente do que eu vivia antes foi um pouco difícil.

Esta compreensão do contexto social e, mais especificamente, das dificuldades vivenciadas pelos/as alunos/as e suas famílias corresponde àquilo que Arroyo (2004) definiu como uma necessária reeducação do olhar docente, que se justifica por conta de imagens idealizadas que muitos/as professores/as têm acerca dos/as alunos/as e de si próprios enquanto professores/as.

De modo geral, os/as professores/as consideram a indisciplina como sua maior dificuldade em sala de aula, como destacam Tardif e Lessard (2005). Segundo os autores, às vezes a indisciplina se expressa na ausência de silêncio por parte dos/as alunos/as durante as aulas, bem como dificuldade em manterem o interesse e a participação nas atividades. No entanto, em situações mais extremas, a agressividade e rebeldia de alguns/as alunos/as deixa de se caracterizar apenas como manifestações de indisciplina e sim de violência escolar/urbana, como observamos no relato da professora Raimunda:

Os alunos ‘tão’ naquela fase que de rebeldia tão grande porque é aluno [sussurra com medo de ser ouvida por pessoas que estão na rua e completa]: que usa droga dentro da escola. Leva droga pra quadra, entendeu? [sussurra novamente]. E assim, não respeita os professores. Manda tomar no [...], fala coisas horrorosas com os professores. E eram alunos que eram nossos. Alunos que a gente conviveu desde pequeno. E ‘foi’ pro 6º ao 9º ano e se tornaram rebelde de uma tal forma... E isso a gente fica chateado, porque são colegas nossos de escola, né? E a gente a frustração deles. Pro cê ter uma ideia, neste ano, acho que todos [professores] ou se não ‘foi’ todos, quase todos, pediram transferência. Cê vê a dificuldade que está sendo, entendeu? Tá sendo trabalhado, a Prefeitura, a equipe da nova gestão tá ajudando? Tá. Tá participando? Tá. Mas, só que tem que estar mais junto deles, porque eles ‘tão’ tendo muita dificuldade mesmo. Como que você vai debater com um jovem que cá fora ele... [gesticula uma arma de fogo], né? Como que cê vai debater com um jovem que ele não tá nem aí? Se amanhã, ele te matar, pronto, né? Então, tem esses problemas muito graves aqui na escola, né? Na comunidade em si, não na escola. A comunidade. E os professores ficam frustrados, porque vai dar uma aula, não consegue dar uma aula, né? Tem dificuldade. Claro que tem N coisas que acontece, que poderia ser modificada até por eles também. Mas, só, que eles se sentem mesmo coagidos, eles se sentem assim, acho que decepcionados com as coisas que acontece... E nada tá sendo resolvido, porque... [demonstra que não tem jeito]. Várias entidades estão participando pra ver se faz alguma coisa pra comunidade escolar, pros alunos, entendeu? Ou seja, o delegado, a Ação Social, o CRIA, que faz parte da Ação Social, a Secretaria de Educação...

A violência escolar traz profundas implicações para o exercício da docência porque toca no “coração” da profissão, que é a relação professor/a-aluno/a (TEIXEIRA, 2007). Portanto, não se trata de um problema periférico. O esgarçamento do vínculo com os alunos pode representar também a ruptura dos vínculos com a escola, a comunidade e, inclusive, com a própria profissão. No entendimento de Nunes e Oliveira (2017), os conflitos decorrentes das transformações sociais impõem novas exigências sobre os professores, o que sugere a necessidade de uma constante qualificação para que o/a professor/a não perca o entusiasmo pela docência. Muitas vezes, os/as professores/as sentem-se impotentes por possuírem poucas possibilidades de intervenção no que se refere às necessidades dos/as alunos/as (TARDIF; LESSARD, 2005). Os pedidos de transferência, como expressa o relato acima, evidenciam essa impotência do/a professor/a no enfrentamento da violência escolar. Além disso, como destacam Priotto e Boneti (2009), o próprio fato de alguns professores não quererem permanecer na instituição é, em si mesmo, um exemplo de violência da escola para com os alunos.

Charlot (2014), afirma que a violência escolar é um dos maiores problemas que o/a professor/a enfrenta na atualidade. Esse fenômeno, segundo o autor, pode caracterizar-se por ameaças, agressões físicas e verbais, ofensas racistas e assédio, comportamentos que incorrem sobre a escola, a família e a sociedade. No âmbito da escola, a equipe pedagógica procura definir estratégias para tentativa de preservação da rotina escolar em situações de violência urbana que invadem o espaço da instituição:

Há pouco tempo agora, a polícia teve aqui dentro da escola, armada [abaixa o tom de voz]. Eu tava dentro de sala. Minha porta tava aberta, eu achei que era o PROERD16. Quando eu vi o policial armado, eu fechei minha porta. Nisso, [...] eu acho que ele pensou que tinha aluno... pessoal da comunidade aqui dentro da minha sala. Aí, ele abriu a porta assim, armado [representa o gesto]. Os meninos assustaram! Eles jogaram spray de pimenta dentro do banheiro. Imagina! Crianças. Spray de pimenta? Eles pegaram dois [jovens] dentro da escola. Eles tão presos até hoje. Não são alunos da escola, não. Eles ficam aqui na porta porque não tem quadra pra eles. O único lugar que eles têm pra esporte é aqui na quadra da escola. Aí, eles entram por trás. Só que a polícia tava chegando. Não sei se estavam armados... Sei que eles correram. E pra onde que eles correm? Pra escola. Aí, correram e esconderam aí. Tava cheio de polícia e foi aquela confusão. Só que a gente já tem uma estrutura, porque sempre foi passado pra gente que quando acontecer alguma coisa na comunidade, fecha a sala sua, fica dentro de sala, acalma os meninos, finge que nada tá acontecendo. Então, a gente já é preparada ‘com’ isso. Sempre a gente conversou sobre isso. Então, nós ficamos dentro de sala de aula. Tranquilo. Só que na hora que eu abri a minha sala, eu assustei porque... A minha sala é aqui em cima [aponta a sala]. E jogou o spray de pimenta lá, mas o vento trouxe o cheiro. O cheiro veio até a mim. Eu não parava de tossir! Eu não parava. Imagina as crianças que estavam aqui... Porque jogaram o spray de pimenta no banheiro da escola procurando esses dois. Esses dois meninos. É rapaz... Eles acharam que tavam escondidos no sótão. E não eram alunos da escola. Foram alunos da escola, mas, no momento, não eram. Entendeu? (Professora Raimunda).

A narrativa da professora evidencia também a forma truculenta com que os policiais têm adentrado os espaços escolares, especialmente nas comunidades das periferias urbanas. Segundo Neto e Moreira (1999), nesses contextos, o Estado tende a intensificar as ações de repressão policial atendendo aos apelos das camadas mais privilegiadas por segurança. Cabe-nos refletir acerca das possíveis implicações de ações dessa natureza nos ambientes escolares sobre a equipe escolar e, sobretudo, os alunos. Enquanto sujeitos em formação, alijados de tantos direitos em decorrência da violência estrutural, crianças e adolescentes acabam sendo revitimizados pela agressividade da abordagem policial. Nesse cenário, a violência pode expressar um modo de sobrevivência em um meio marcado pela desigualdade social e pelo preconceito. Entre os tipos de violência caracterizados por Minayo (1994), conforme Ristum e Bastos (2004), destaca-se a violência de resistência, que se constitui como reação à violência estrutural. É importante destacar que as relações estabelecidas entre os profissionais da segurança pública e a comunidade, sobretudo os sujeitos dos ambientes escolares podem ser mais construtivas.

De acordo com a professora Raimunda, algumas instituições do poder público, entre as quais a docente destaca a Secretaria Municipal de Educação e a Secretaria de Assistência Social, começam a se articular para elaborarem estratégias coletivas de prevenção e combate aos diversos problemas sociais e urbanos do bairro, como a ausência de espaços adequados para atividades de cultura, lazer e esporte. “Evitar o acirramento das questões sociais é tarefa e desafio de todos os setores da sociedade envolvidos na construção da democracia como um valor humano de garantia universal de direitos sociais, políticos e jurídicos” (NETO; MOREIRA, 1999, p. 51).

São questões importantes que interferem na qualidade de vida dos/as moradores/as e nas interações das crianças, adolescentes e jovens tanto no espaço escolar quanto fora dele e que acabam incidindo sobre o trabalho docente. A esse respeito, destaca-se a violência escolar, que por relacionar-se com problemas sociais, demanda soluções coletivas a partir da participação de professores, pais e alunos, direção escolar, líderes da comunidade e poder público. A violência escolar não é exclusivamente escolar, uma vez que, através desta, muitas vezes o/a aluno/a manifesta o seu direito ao reconhecimento em situações de exclusão ou de estigma (PRIOTTO; BONETI, 2009).

Considerações finais

Destacamos a contribuição da metodologia da entrevista narrativa ao longo da pesquisa. Através da sua narrativa, a professora Raimunda mostrou-nos a complexidade dos fatores compreendidos no conceito de valorização docente. Consideramos a importância das políticas docentes por materializarem a valorização através das regulamentações referentes à formação, remuneração, condições de trabalho e carreira. Essas determinações contribuem para o reconhecimento social da categoria, que compreende a dimensão subjetiva e constitui-se como um aspecto muito significativo para os/as professores/as.

Analisamos as diferenças e semelhanças entre o exercício da docência em uma escola do campo e em uma escola de periferia. Os aspectos ressaltados pela professora Raimunda referem-se, sobretudo, à interação com os alunos e com a comunidade nestes espaços, aspectos que podem ser vistos como parte da dimensão subjetiva da valorização docente, mas que estão, fortemente, articulados às condições objetivas do contexto social e cultural da escola, das famílias, das comunidades e da profissão docente.

Na percepção da professora pesquisada, a relação estabelecida com os/as alunos/as e as famílias na escola do campo é permeada por afeto e, ao mesmo tempo, por uma noção muito clara de respeito à autoridade do/a professor/a. Do mesmo modo, nesta comunidade, a Professora Raimunda salientou o fato de ser vista com distinção pelos familiares dos/as alunos/as. A valorização do/a professor/a neste espaço, na perspectiva dessa docente é uma dimensão fundamental para compreender sua relação com a valorização da escola. De modo geral, as escolas nas comunidades do campo exercem outras funções além de atenderem à educação formal, uma vez que abrigam reuniões de moradores, campanhas de vacinação, realização de festividades, cultos religiosos, entre outros.

Na escola da periferia, ainda que a professora Raimunda destaque a qualidade dos vínculos construídos com os alunos, esta relação acaba sendo influenciada por diversos problemas sociais. Entre os principais desafios do exercício da profissão neste contexto, a docente ressaltou a indisciplina e a violência escolar/urbana. São aspectos que remetem à importância do trabalho da equipe pedagógica, incluindo a formação continuada. Destaca-se também a necessidade de políticas intersetoriais articuladas e mais efetivas de inclusão social, as quais suscitam a responsabilidade do poder público na garantia da oferta de serviços de cultura, esporte, lazer e segurança urbana para comunidade.

4Conforme projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto e compromisso firmado com a professora pesquisada, utilizamos um pseudônimo para preservar a sua identidade. O nome da Professora Raimunda foi escolhido em homenagem à primeira professora da primeira autora.

5De acordo com Hartmann (2012), os trechos em negrito foram pronunciados com ênfase pela entrevistada.

6A escolha da cidade se deve ao fato de o município abrigar o Instituto de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Federal de Ouro Preto, destacando-se, assim, o compromisso social da pesquisa.

7Entenda-se: “A pessoa mais importante da comunidade”.

8Escola onde a professora leciona atualmente, situada em bairro periférico na cidade de Mariana.

9Todos os excertos da fala da professora pesquisada são apresentados no texto na forma como foram proferidos objetivando-se, assim, uma maior aproximação com o seu relato oral.

10Optamos por utilizar um pseudônimo para preservar a identidade da professora Raimunda. Escolhemos o nome Serras em alusão à beleza dos vales montanhosos de Minas Gerais.

11Atualmente, os professores das escolas do campo no município possuem transporte para deslocar-se diariamente, não havendo mais a necessidade de permanecerem nas respectivas comunidades durante a semana.

12Os deslocamentos realizados pelos professores que trabalham nas escolas de campo podem ser compreendidos como aspectos que compõem as condições de trabalho docente. Ainda que essa questão seja muito importante porque se relaciona à segurança desses profissionais, de modo geral, percebe-se que é um fator ainda pouco discutido pelos estudos da área e pelos sistemas de ensino, o que suscita a necessidade de maiores investigações. Algumas indagações parecem-nos muito pertinentes: em que condições os professores têm se deslocado até as escolas do campo? Há projetos de manutenção das vias de acesso a essas instituições? É oferecido algum tipo de assistência do sistema de ensino e/ou do poder público em caso de acidentes ocorridos ao longo dos deslocamentos?

13Normal Superior (Parceria CEAD/UFOP e Prefeitura Municipal de Mariana).

14Ruas asfaltadas, energia elétrica, coleta regular de lixo, água canalizada, rede de esgoto, rede telefônica, posto médico, creche, transporte coletivo e pequenos comércios. Dispõe de um campo de futebol, mas não possui área de lazer ou quadra no bairro.

15Secretaria Municipal de Educação de Mariana.

16Programa Educacional de Resistência às Drogas - PROERD.

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Recebido: 16 de Maio de 2020; Aceito: 25 de Maio de 2021

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