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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.21 no.71 Curitiba out./dez. 2021  Epub 26-Jan-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.21.071.ds07 

Dossiê

Trajetória de vida docente e sua contribuição para a docência na educação profissional e tecnológica

Teacher Life Path and its Contribution to Teaching in Professional and Technological Education

La Enseñanza de la Vida y su Contribución a la Enseñanza en la Educación Profesional y Tecnológica

Mércia Freire Rocha Cordeiro Machadoa 
http://orcid.org/0000-0001-9401-1453

Roberta Valeska Santana Vieirab 

aInstituto Federal do Paraná (IFPR), Curitiba, PR, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: mercia.machado@ifpr.edu.br

bInstituto Federal do Paraná (IFPR), Curitiba, PR, Brasil. Mestre em Educação Profissional e Tecnológica, e-mail: robertappgifsul@gmail.com


Resumo

Esta é uma pesquisa qualitativa que busca o sentido dos fenômenos a partir do significado que as pessoas lhes atribuem. Como pesquisa formação, adotamos os estudos narrativos das histórias de vida de professores para investigar o comportamento humano dando especial valor à subjetividade como conhecimento científico. Propusemo-nos a questionar de que modo a trajetória de vida do docente que atua nos cursos da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) contribui para a sua prática pedagógica. Para a coleta de dados foram utilizados a pesquisa bibliográfica e a entrevista narrativa. Na pesquisa bibliográfica buscamos relacionar conceitos da pesquisa narrativa utilizados na construção da identidade profissional do docente da educação profissional e tecnológica e na entrevista narrativa o participante da investigação, ao narrar o vivido, pode ressignificar este tempo ao deixar transparecer o seu interior, seus desejos e frustrações. Os dados coletados através das entrevistas narrativas foram tratados por meio da análise de conteúdo fundamentada em Bardin (2011) e nos estudos de Jovchelovitch e Bauer (2002). Revisitar as memórias do passado é parte essencial da narrativa autobiográfica. Ainda que possa parecer penosa porque nos coloca frente a frente com os fracassos e as rupturas, também provoca a tomada de consciência e novas atitudes.

Palavras-chave: Educação Profissional e Tecnológica; Formação Docente; Prática Pedagógica; Histórias de Vida dos Professores

Abstract

This is a qualitative research that seeks the sense of the phenomenon from the meaning that people attribute to it. As a training research, we adopted the narrative studies of teachers' life stories to investigate human behavior, giving special value to subjectivity as scientific knowledge. We proposed to question how the life trajectory of the teacher who works in EPT courses contributes to their pedagogical practice. In the bibliographic research we seek to relate concepts of narrative research used in the construction of the professional identity of the teacher from professional and technological education and in the narrative interview, the research participant, when narrating their lived experiences, can re-signify that moment by letting his interior, his desires and frustrations appear. The data collected through the narrative interviews were treated through content analysis based on Bardin (2011) and on the studies by Jovchelovitch and Bauer (2002). Revisiting past memories is an essential part of autobiographical narrative.

Keywords: Professional and Technological Education; Teacher Training; Pedagogical Practice; Teachers' Life Stories

Resumen

Esta es una investigación cualitativa que busca el sentido de los fenómenos a partir del significado que las personas les atribuyen. Como investigación formativa, adoptamos los estudios narrativos de las historias de vida de los docentes para investigar el comportamiento humano, dando especial valor a la subjetividad como conocimiento científico. Propusimos cuestionar cómo la trayectoria de vida del docente que trabaja em los cursos del EPT contribuye a su práctica pedagógica. Para la recopilación de datos se utilizó investigación bibliográfica y entrevista narrativa. En la investigación bibliográfica buscamos relacionar conceptos de investigación narrativa utilizados en la construcción de la identidad profesional del docente de educación profesional y tecnológica y en la entrevista narrativa, el participante de la investigación, al narrar la experiencia, puede dar un nuevo sentido a este tiempo dejando traslucir su interior, sus deseos y frustraciones. Los datos recolectados a través de las entrevistas narrativas fueron tratados mediante análisis de contenido basados en Bardin (2011) y en los estudios de Jovchelovitch y Bauer (2002). Revisar los recuerdos pasados es una parte esencial de la narrativa autobiográfica.

Palabras clave: Educación Profesional y Tecnológica; Formación de profesores; Práctica pedagógica; Historias de vida de los profesores

Introdução

A presente pesquisa versa sobre a docência na Educação Profissional e Tecnológica (EPT), apontando para a prática pedagógica considerando que a trajetória de vida docente constrói e reconstrói seus conhecimentos a partir das suas experiências e dos seus percursos formativos de vida e profissional.

A formação de professores está atrelada à expansão do sistema de ensino e à própria organização da carreira docente. Entretanto, a estratégia de dar voz aos professores, observar as características dos seus saberes e suas práticas pedagógicas, de igual modo, auxilia na formação da identidade dos professores da educação profissional e tecnológica. É por isso que o questionamento motivador desta pesquisa busca saber: De que modo a trajetória de vida do docente que atua em cursos técnicos de uma instituição pública da EPT do Paraná contribui para a sua prática pedagógica na educação profissional e tecnológica?

Alcançar uma formação humana resguardando a necessidade de transmissão de conhecimento historicamente acumulado, articulado à possibilidade de desenvolvimento integral do ser humano é o fundamento desta pesquisa. É importante ressaltar que concordamos na formação omnilateral como base para conquista de uma sociedade pautada na justiça, que forneça igualdades de oportunidades, na qual o trabalho e a instrução estejam fundidos como ferramenta eficaz para a transformação social.

A prática pedagógica no ambiente escolar tem força no seu discurso: esclarecendo ou escamoteando realidades. E é por esta razão que a valorização da subjetividade através do método (auto)biográfico torna-se tão importante para a educação na medida em que o trabalho com a narrativa implica a forte participação do indivíduo (narrador), que, por sua vez, compromete-se com todo o processo de reflexão e, por conseguinte, tende a compreender o seu itinerário de formação. Assim dizendo, “as narrativas (auto)biográficas são úteis para avaliar a repercussão das experiências de vida e da formação nas práticas profissionais” (SANTOS; GARMS, 2014, p. 07).

O ser humano está em constante processo de autoconhecimento e na ação de recobrar a memória, revisitar o vivido, além de ressignificar os fatos narrados com a experiência do contexto atual. Isso, possibilita a reflexão e a mudança de atitudes, arraigadas na autonomia e emancipação. E a pesquisa (auto)biográfica possibilita que cada pessoa mobilize seus conhecimentos, seus valores, dialogue com o seu contexto para a construção de si mesmo.

Diante do que foi destacado até aqui, esta pesquisa justifica-se, já que as investigações sobre a formação de professores da EPT apontam para: i) uma fragilidade na identificação dos saberes docentes e sua relação com a construção da identidade profissional na EPT e, ii) a ausência de contribuição para a construção da identidade profissional docente da EPT pelas suas narrativas de vida - o que pode contribuir para validar a subjetividade como conhecimento científico. Tudo isso demonstra a necessidade de investir em pesquisas com essas temáticas específicas.

Na busca de respostas para o problema que norteia esta pesquisa, temos como objetivo compreender a trajetória de vida do docente que atua nos cursos técnicos de uma instituição pública da EPT do Paraná e a contribuição para a sua prática pedagógica.

A subjetividade como movimento de ruptura e mudança na investigação dos fenômenos sociais

Nos estudos recentes sobre formação de professores identifica-se a ênfase na pessoa do professor - aspecto desprezado nos períodos anteriores à década de 1980. A partir desta década a literatura pedagógica foi invadida por obras e estudos sobre a vida dos professores, as carreiras e os percursos profissionais, as biografias e autobiografias docentes ou o desenvolvimento pessoal dos professores (NÓVOA, 1992). Novos métodos de pesquisa e de práticas de formação surgem para a abarcar uma nova base de proposta teórica na área educacional, qual seja, a subjetividade.

No decorrer do século XX, a educação passa a se interessar em explorar os aspectos da subjetividade adotando o método (auto)biográfico e os estudos com histórias de vida já que estratégias convencionais de investigação se mostram insatisfatórias para estudar esta dimensão do comportamento humano.

Pressões existem para desvalorizar a subjetividade como conhecimento científico. Elas são exercidas pelos defensores dos métodos que acompanham as exigências positivistas, pautados na busca da objetividade e da racionalidade. No entanto, segundo Bueno (2002), cresce a preocupação de propor modos alternativos de fazer ciência, não esquecendo de que é importante ter clareza que as mudanças e o desenvolvimento das chamadas abordagens qualitativas de pesquisa não fazem desaparecer os métodos quantitativos nem a preocupação de se construir, no âmbito das ciências humanas, teorias que deem conta da explicação dos fenômenos mais gerais.

O método (auto)biográfico é uma perspectiva metodológica que foi empregada pelos sociólogos entre os anos de 1920 e 1930, na Escola de Chicago, como alternativa à sociologia positivista e ficou adormecido, até que, em meados de 1980, foi novamente utilizado no campo da sociologia.

O método (auto)biográfico: i) apresenta-se como alternativa para fazer a mediação entre as ações e a estrutura, ou seja, entre a história individual e a história social; ii) tem especificidade heurística por seu caráter histórico e subjetivo uma vez que se trata da história de uma vida, sua unicidade; e iii) tem sido utilizado na formação continuada de professores, nos estudos que exploram aspectos da vida de ex-professores e com grupos de indivíduos que ainda não ingressaram na vida profissional (BUENO, 2002). Os autores Pierre Dominicè (1988), António Nóvoa (1988, 1992) e Christine Josso (2007, 2009, 2010) referem-se às (auto)biografias como biográficas educativas, por serem instrumentos de formação, que podem ou não estar aliados à pesquisa.

O método (auto)biográfico prioriza o papel do sujeito na sua formação, ou seja, a própria pessoa se forma mediante a apropriação de seu percurso de vida, ou do seu percurso de vida escolar (NÓVOA, 1992). A formação do professor é um processo cujo início se dá antes mesmo do seu ingresso no curso superior de licenciatura ou habilitação docente. Para Dominicé (1988) a história de vida passa pela família, é marcada pela escola e orienta-se para uma formação profissional, e em consequência beneficia o tempo de formação contínua (DOMINICÉ, 1988). A educação é feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida.

O método (auto)biográfico examina a história de vida e de formação intelectual dos professores em seus vários aspectos e fases, além de considerá-los os principais agentes desse processo. Pode servir para a pesquisa, para desenvolvimento de práticas de formação ou ambas. Como alternativa de formação, permite uma revalorização da noção de experiência (BUENO, 2002).

Com a crise de paradigmas na educação dos anos 1990, surge a valorização da prática cotidiana como lugar de construção de saberes. Ressalta-se a importância da formação do profissional reflexivo (aquele que pensa-na-ação), cuja atividade profissional se alia à atividade de pesquisa. Segundo André (2007) os cursos de formação ficaram em segundo plano e quem ganhou destaque foi o professor. Nos anos 2000, passam a ter destaques temáticas e métodos como: construção da identidade e profissionalização docente, o método (auto)biográfico para reconstruir a história de vida e memória dos professores, questões de gênero, relações de poder, etnia e raça (ANDRÉ, 2006; 2007).

No Brasil, com o incremento das narrativas na pesquisa em educação, grupos de pesquisadores vêm debruçando esforços para compreender e analisar este campo de pesquisa. O método (auto)biográfico por meio das narrativas de vida vem auxiliando as ciências da educação e da formação docente desde os anos 1970 no âmbito internacional e no Brasil. Numa dessas pesquisas internacionais, a subjetividade do professor ficou constatada depois da virada, em Paris, 1984, nos estudos sobre formação de professores de Ada Abraham, em particular no livro O professor é uma pessoa, tornando-se impossível separar o eu profissional do eu pessoal.

A formação do professor não se dá exclusivamente na graduação, mas durante toda a sua vida escolar e após a sua formação na própria prática docente. Cada um de nós carrega uma imagem, performance ou modelo de professor que é formado durante todo o nosso percurso escolar e, com acréscimo de outros saberes, constrói a sua identidade como profissional.

A identidade do professor é um lugar de lutas e de conflitos, é um lugar de construção de maneiras de ser e de estar na profissão (NÓVOA, 1992). Ainda segundo o autor, sua construção é um processo complexo que necessita de tempo e implica acomodar inovações, assimilar mudanças, repensar a prática pedagógica num processo de autoconsciência sobre o que faz, como faz e por que faz em sala de aula com os saberes (seus e de seus alunos) (NÓVOA, 1992).

A complexidade das práticas pedagógicas exige uma integração teórica e as histórias de vida propiciam práticas e reflexões extremamente estimulantes. Isto porque são fomentadas pelo cruzamento de diversas disciplinas e possibilidades de enquadramentos conceituais e metodológicos variados. A pesquisa narrativa, focada nas narrativas de vida, exige a elaboração teórica baseada na reflexão dessas práticas. É uma metodologia dinâmica que permite conjugar diversos olhares disciplinares, construir uma compreensão multifacetada e produzir um conhecimento que se situa no cruzamento de vários saberes (TARDIF, 2013).

Para Tardif (2013) existem quatro tipos de saberes implicados na atividade pedagógica: os saberes da formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica); os saberes disciplinares; os saberes curriculares; e os saberes experienciais. Mesmo reconhecendo que no fazer docente há diversos saberes imbricados, Tardif (2013) destaca os saberes experienciais em relação aos demais saberes dos professores. Diante disso, entendemos que há uma relação entre as experiências escolares e a formação da identidade do professor.

Por fim, na perspectiva de Tardif (2013) os saberes experienciais dos professores são resultado de um processo de construção individual, mas, ao mesmo tempo, são compartilhados e legitimados por meio de processos de socialização profissional. Nesse sentido, a interação entre os professores desencadearia um processo de valorização e de reconhecimento desses saberes como saberes de uma classe e não de um profissional em específico.

Procedimentos Metodológicos

Nesta investigação qualitativa, abordamos dois momentos distintos, mas entrelaçados da entrevista narrativa: i) sua construção - devido à especificidade desta entrevista para a metodologia (auto)biográfica, requereu o uso de um material de apoio, um roteiro sequencial para a entrevista narrativa; ii) e a discussão dos dados coletados pela entrevista narrativa que foi interpretada por meio da análise de conteúdo.

O procedimento de coletas de dados foi realizado por meio de uma entrevista narrativa com 02 professores de uma instituição pública da EPT, conforme descrição no quadro 01 abaixo:

Quadro 1 Perfil dos entrevistados 

Sexo Identificação Titulação Ingresso na Instituição EPT
Feminino Entrevistada 1 Especialista em Ensino da Língua Inglesa 2014
Masculino Entrevistado 2 Mestre em Ciências Sociais 2013

Fonte: elaborado pelas Autoras com base nos dados dos professores que aceitaram participar da pesquisa, maio 2021.

A seguir, passamos à análise descritiva da construção da entrevista narrativa, por meio da aplicação de um roteiro sequencial proposto.

1. Fase de Preparação e apresentação do tópico inicial

Preliminarmente, solicitou-se à Direção e Coordenadores dos Cursos Técnicos de uma instituição pública da EPT autorização por escrito para realização da pesquisa. Autorizada, foram realizados convites à alguns professores, mas devido à intercorrência da suspensão das atividades presenciais devido à crise pandêmica que assolou o Brasil (2020-2021), apenas 02 (dois) professores da EPT concordaram em participar das entrevistas narrativas. No primeiro contato, foram: i) explicitados os aspectos gerais da pesquisa; e ii) realizados o levantamento dos dias/horários disponíveis dos sujeitos-narradores. Foram enviados os convites por e-mail detalhando as informações sobre o processo de pesquisa, do formato do dia e hora para a entrevista narrativa e o termo de consentimento a ser assinado e devolvido para a pesquisadora.

Nele também procuramos nortear o que é uma entrevista narrativa, direcionando-os para percorrer suas memórias tendo em mente uma breve apresentação de si (Quem é? O que tem a dizer sobre si, onde nasceu, como foi a infância etc.); a narrativa reflexiva de suas experiências significativas do seu processo de escolarização (Onde estudou? Em que período? Escola? Como era a escola? Como eram os professores? Como aprendeu a ler e a escrever? Que expectativas profissionais tinha na juventude etc.); e considerações, apreciações e reflexões sobre a sua formação acadêmica e profissional (formação inicial/ graduação). Não necessariamente nesta ordem linear, mas da forma como queira conduzir a entrevista.

No convite, propusemos que o sujeito-narrador apresente, no dia marcado para entrevista narrativa, algum objeto de recordação de uma fração de sua formação (foto, carta, certificado...). Trata-se de um instrumento de revisitação que é retomado quando do início da entrevista narrativa. Este objeto é utilizado justamente para estimular que o sujeito-narrador se encontre consigo e a entrevista possa ser desenvolvida. Também incluímos os versos da música “A lista”, de Osvaldo Montenegro e Renato Teixeira (com indicação do link para audição). Nessa canção de melodia calma os autores falam de lembranças que todos nós, em algum momento, já vivemos. Ao fazer comparações do que fazíamos e do que fazemos, nos permite a reflexão do tempo vivido e nos provoca pensar em qual futuro estamos engajados ao finalizar os versos com: “Quantas canções que você não cantava, hoje assobia para sobreviver”.

Nessa preparação buscamos conhecer o curriculum lattes de cada participante e, no dia ajustado, foi reafirmado o comprometimento da pesquisadora quanto ao estudo, o sigilo das informações coletadas e todo o cuidado no ouvir a história de vida do outro.

As entrevistas narrativas foram realizadas e gravadas por videoconferência, com o recurso do Google Meet. A gravação de vídeo e/ou áudio é muito vantajosa porque permite ao observador “revisitar” os dados muitas vezes para se tirar dúvidas e refinar a teoria que se está construindo (BORTONI-RICARDO, 2008). A possibilidade de perder os dados da entrevista narrativa fez com que adotássemos um plano subsidiário, o auxílio do gravador de celular para garantir a integridade das entrevistas.

Nesta fase de apresentação foram indicados o uso de auxílios visuais (linha do tempo, gravuras, fotos, cartas, certificados dentre outros) para a realização da entrevista narrativa. Este auxílio visual é uma ferramenta adjutória. É da vontade do sujeito-narrador utilizá-la (ou não), segundo seu arbítrio.

2. Fase da narração central

A entrevista narrativa tem como característica principal a exploração dos relatos do sujeito-narrador sem a intervenção do pesquisador. Este propõe uma questão gerativa para encorajar uma narrativa livre. Nesta investigação científica, foram feitas 02 (duas) perguntas gerativas: “Me conta a tua trajetória de formação? Como chegaste a ser educador(a) da educação profissional?”. A partir disso, não houve mais interferência da pesquisadora.

No decurso da entrevista narrativa, foi de suma importância demonstrar que estávamos integrados com a história de vida dos sujeitos-narradores. Foram realizadas anotações apenas ao final e que serviram de apoio nos vários momentos de revisitação das gravações das entrevistas narrativas durante a análise de dados.

3. Fase de Questionamentos

Adotamos como eixo conceitual: a identidade docente da EPT; os saberes experienciais; a narrativa influenciada pelos percursos pessoais e profissionais. Estas ideias foram extraídas dos objetivos da pesquisa e importantes tanto para a definição da pergunta gerativa quanto para questões exmanente1. Foi nesta fase que aconteceram as possibilidades de lançar tanto as perguntas extraídas da narrativa do sujeito quanto aquelas que estão alinhadas aos objetivos da pesquisa.

Na fase de questionamento, foi realizado o uso exclusivo da linguagem dos entrevistados, buscando compreender o período de formação do participante por meio dos questionamentos: qual a sua formação inicial e continuada? qual a área do conhecimento que atua como docente? onde iniciou seus estudos de graduação, ensino médio ou técnico profissionalizante, ensino fundamental e educação infantil? (sempre nesta linha decrescente para que deixe transparecer qual o período de sua formação lhe traz mais recordações ou lhe sensibiliza); como era o seu espaço escolar (na infância, adolescência e juventude)? há lembrança de docentes que lhe marcaram a sua formação de conhecimento? que impacto esta figura marcou a sua prática pedagógica? como cada um se tornou professor? pode destacar algumas de suas práticas pedagógicas em sala de aula? há preocupação do tipo de profissional que é ou quer ser?.

4. Fase conclusiva e protocolo de memórias

Na fase conclusiva, perguntamos se o sujeito-narrador queria fazer algum comentário adicional sobre a sua trajetória de vida. No que diz respeito a comunicação verbal, como as entrevistas narrativas foram gravadas em áudio e vídeo, não houve necessidade deste tipo de apontamento. Esta estratégia permitiu a revisitação das gravações das entrevistas narrativas quantas vezes foi necessário.

Nesta pesquisa, o tratamento das informações foi realizado pela análise de conteúdo com base nos estudos de Bardin (2011) - com indexação, agrupamentos, disjunções e comparações das trajetórias de vida individuais - e de Jovchelovtch e Bauer (2002). Estes propõem três etapas para a análise das entrevistas narrativas: i) transcrição; ii) análise temática; e iii) análise estrutural.

Concluídas as gravações foi iniciado o processo de transcrição. Nesta fase, as pesquisadoras utilizaram também os apontamentos manuais - destaca-se que muitos diálogos e ressignificações podem aflorar neste momento. Dessa forma, foi possível interpretar a transcrição como uma pré-análise, isso porque, ao momento de transcrição, se somam os contextos anteriores, que se ampliaram. Nesta perspectiva, a transcrição das entrevistas narrativas ajuda na fluidez das ideias que irão incidir na interpretação do texto e foi útil para a compreensão geral do material analisado.

Adotando certa dose de bricolagem2, partimos da proposta de Jovchelovtch e Bauer (2002) e desenvolvemos quadros estruturantes do texto das entrevistas narrativas em quatro colunas. Foi o modo que se adaptou a nossa particular proposta e se revelou como melhor compreensão dos dados para as pesquisadoras.

Na primeira coluna estabelece-se a transcrição (com a indicação dos pontos da gravação para o caso de uma revisão direta no material de áudio e vídeo). A análise temática desenvolve-se por meio da construção de um referencial de codificação. Assim, a segunda e terceira coluna referem-se a análise temática, sendo que na segunda coluna são parafraseados os parágrafos e na terceira coluna apresentam-se as palavras-chave reduzidas como um sistema de categorias. As palavras-chave indicam eventos, situações, protagonistas, crises, inícios, rupturas... Todas extraídas a partir da linguagem e narrativa do entrevistado.

A etapa da análise estrutural está representada na quarta coluna e concentra-se nos elementos formais da narrativa. São eles: narração, descrição ou argumentação. O objetivo desta etapa é examinar, além do que foi narrado, a forma como a narrativa foi construída. Portanto, procuramos observar se a linguagem empregada pelos entrevistados apenas expunha fatos reais ou imaginários; fazia relato minucioso e circunstanciado dos fatos; ou apresentava razões lógicas que comprovassem suas afirmações.

Todos os possíveis elementos que aparecem na história de vida são ordenados, não por tempo cronológico, mas pelas categorias empregadas na análise temática. Num dos quadros estruturantes do texto das entrevistas narrativas nos valemos do uso de cores para uma melhor compreensão e discussão dos dados.

Análise dos dados coletados nas entrevistas narrativas

Em busca de compreender uma determinada realidade social, a pesquisa chega o mais próximo possível do entrevistado, indivíduo inserido na realidade social focalizada pela pesquisa e, portanto, capaz de (re)construir essa realidade, modificá-la, influenciá-la e sofrer influência de sua conformação (RAVAGNOLI, 2018).

A entrevista narrativa realizada com a entrevistada 1 foi marcada para as 20h e com o entrevistado 2, às 13h15min. A entrevista marcada no início da tarde precedia uma reunião de trabalho do entrevistado 2. Já no horário da entrevistada 1, ela estava em sua residência e mencionou ter concluído todas as suas tarefas laborais do dia.

A entrevista narrativa realizada com a entrevistada 1 fluiu com maior tranquilidade e aprofundamento. É importante destacar que deve-se ajustar a agenda de cada participante no momento para que ele possa estar de fato mais relaxado, sem os atropelos de outras tarefas. A entrevista narrativa exige uma dose elevada de revisitação da memória, então, o tempo não pode ser um fator condicionante.

Quando do convite, acrescentamos 02 (duas) fotos da pesquisadora relativas a sua formação - primeiro dia de aula no ensino fundamental e a pesquisadora e o grupo de docentes na instituição pública da EPT. Nenhum dos sujeitos-narradores apresentou algum recurso de revisitação. Todavia, percebemos que estes dois momentos da memória da pesquisadora instigaram os sujeitos-narrativos a buscar suas recordações.

O entrevistado 2 fez um esforço para rememorar o seu primeiro momento de aproximação com a escola ao lado da sua mãe. Já a entrevistada 1 iniciou sua trajetória de vida narrando sua vida em família, desde a tenra idade, antes mesmo do seu ingresso na escola formal. Ambos encerraram suas trajetórias de vida com o ingresso na carreira como docente EPT em uma instituição pública.

Encontrar o momento conclusivo dos sujeitos-narrativos não é uma tarefa tranquila. Sendo a ausência de interferência uma característica essencial da entrevista narrativa, por mais atenta que a pesquisadora estivesse à fala de cada participante, perceber a finalização da fase de narração é uma tarefa relativamente difícil, exigindo a prática do exercício de entrevista narrativa.

A preocupação em não interferir nas narrativas gerou a angústia de que o narrador, em poucos minutos, encerrasse a sua fala. Uma estratégia utilizada para minimizar este fato foi a utilização de um mapa mental durante a condução da entrevista. Também foi adotada a técnica de retomar a última fala para dar continuidade à entrevista narrativa.

Percebemos uma significativa diferença na linearidade das narrativas, posto que a entrevistada 1 mencionou que já tinha vivenciado, por mais de uma vez, o exercício de fazer o seu memorial formativo. O entrevistado 2 não mencionou experiência semelhante. Assim sendo, quando da análise de conteúdo do entrevistado 2, tivemos que trabalhar com a ordenação de sua narrativa para o alcance de uma lógica na subjetivação. Inclusive, fizemos uso de marcações, com o uso de cores diferentes, para a categorização. Quando das entrevistas narrativas adotamos o suporte tecnológico de gravação do áudio e vídeo, particularmente em razão do momento crítico pandêmico que exige o isolamento social. O aspecto positivo é que as observações frente aos silenciamentos, as reticências dos entrevistados, comunicação não verbais, puderam ficar gravadas em vídeo, auxiliando a pesquisadora quando das retomadas para análise das entrevistas narrativas.

Inicialmente, é possível perceber na narrativa da entrevistada 1 que a família estava unida na projeção do estudo como caminho para satisfação pessoal e profissional de cada membro. A narradora menciona as dificuldades dos pais na criação dos filhos, mas sempre destaca o desejo deles de proporcionar uma educação aos filhos.

O sonho do meu pai era sempre poder pagar uma escola particular para nós. Eu e meus irmãos. Mas isso nunca deu. Quando que pessoas trabalhadoras conseguem? Meu pai era motorista de ônibus, hoje é aposentado. Era muito difícil (entrevistada 1).

O entrevistado 2 fez menção unicamente de sua mãe, que o acompanhou no seu primeiro dia de aula, no ensino fundamental. A entrevista narrativa lhe fez lembrar de uma particularidade no seu primeiro dia de aula: o atraso em chegar à escola ao lado da mãe.

Era uma escola de madeira com uma varanda muito alta. Recordo que na minha cabeça e da minha mãe eu iria estudar a tarde, à uma e meia da tarde. Lembro de ser de manhã e estar brincando no portão da minha casa e o vizinho grita: Você não vai à escola no primeiro dia de aula? Eu respondo: vou à tarde, à uma e meia. E ele afirma: mas esta escola é somente de manhã, não funciona à tarde. Então eu e minha mãe fomos logo para a escola. Então, me recordo de estar com a minha mãe nessa varanda explicando à professora o porquê de eu ter chegado atrasado na escola (entrevistado 2).

Neste momento, de acordo com Josso (2009) as narrativas se tornam um testemunho das experiências vividas - uma das propostas de formação. Nos trechos representados a seguir, retratam o desejo de ser professor, que surge para um nas brincadeiras realizadas em seu cotidiano infantil e para o outro a partir da identificação com alguns dos seus professores.

Eu tenho bem-marcado quando eu quis ser professora [...] A gente foi morar do lado da casa dessa tia **. Ela era professora de primeiro ano. Ela chegou a batizar a minha irmã. E eu gostava de ir para a escola com ela. Eu não tinha o que fazer em casa. Meu irmão era pequenininho. Naquele tempo como tudo era diferente, ela falava: Ah comadre! Deixe a ** ir comigo para a escola, assim você fica mais tranquila. Tudo porque eu era um terror mesmo. Eu aprendi a ler bem cedo. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos de idade, porque eu ia para a escola. A minha brincadeira favorita era brincar de escolinha. Tanto que eu alfabetizei alguns amiguinhos brincando de escolinha (entrevistada 1).

Quando do Ensino Fundamental II, nas redações de língua portuguesa, me recordo que quando tínhamos de fazer uma projeção futura, eu me recordo disso: eu me colocava como professor. Me recordo de uma fala de uma professora de língua portuguesa não sei se do 5º, 6º ou 7º ano, dizendo: É! Realmente eu acho que você vai ser professor porque tudo que você escreve sinaliza para isso. Então me chamava a atenção isso (entrevistado 2).

Para Josso (2009) é parte do processo de conhecimento de formação de si recordações relativas a atividades, contextos e situações, encontros, pessoas significativas, acontecimentos pessoais, sociais, culturais ou políticos. Nesta perspectiva, o entrevistado 2 chegou a mencionar que se recorda muito do ensino fundamental II, inclusive dos nomes dos seus professores e das disciplinas. Isso, muitas vezes, acontece porque o professor não ensina apenas com suas palavras, mas também com seus gestos e suas afeições. É por isso que lembranças de professores também marcam o perfil de educador que não se quer ser.

Eu tinha uma professora de ciências, prof.**. Ela passava questionários que eram corrigidos no quadro. Na prova, as respostas deveriam ser idênticas ao que foi falado no quadro. Era pura decoreba. Lembro bem disso [...] Mas depois eu vi que ser professor não era ser como a prof. **(entrevistado 2).

Esta fala do entrevistado 2 nos remete a descrição de como os narradores vivenciaram o seu processo de aprendizagem.

Eu ainda não descobri como meu cérebro funciona. Ainda quero descobrir, é um negócio meio esquisito. Eu funciono muito bem com instruções, talvez por conta do período em que eu aprendi. Era tudo muito mecânico o ensino antigamente. Acho que por isso (entrevistada 1).

Do fundamental II eu recordo bem. Era uma coisa muito decorada (entrevistado 2).

O entrevistado 2, por diversas vezes, mencionou que não tem memória do seu ensino médio e já no início de sua narrativa ele refere isso.

Eu me recordo menos do ensino médio (que é mais próximo), mas tenho poucas memórias. O ensino médio parece que ele passou e pronto; o EM passou pela minha vida e pronto; não sei o porquê. Do ensino médio que é mais recente, eu não sei o que aconteceu, mas eu não me recordo (entrevistado 2).

Mais adiante da narrativa, foi possível identificar um fato marcante nesta época de sua vida: a reprovação no ensino médio em virtude do acometimento por uma doença. A expressão corporal e o modo de se expressar deixaram a entender que a reprovação foi constrangedora para o entrevistado 2, embora tenha sido motivada pela doença.

Na época que trabalhava e estudava no ensino médio eu tinha 16 ou 17 anos. Eu reprovei dois anos no ensino médio. Eu reprovei dois anos porque fiquei doente na metade do ensino médio. Como reprovei dois anos, meu ensino médio durou cinco anos. Quando eu fiquei doente eu parei de estudar, não tinha acompanhamento domiciliar e parei de estudar. Naquela época não tinha tanta coisa não. Fiquei doente, fiquei em casa e reprovei o ano. Talvez a legislação para acompanhamento domiciliar já existisse, mas ela não era efetivada. No primeiro e no segundo ano do ensino médio foi tudo ok. Eu fiquei doente no terceiro ano e parei. Depois reprovei duas vezes no terceiro ano (entrevistado 2).

Ambos os narradores estudaram em escola pública.

Sempre estudamos em escola pública [ela e os irmãos]. Mas foi excelente. Conseguimos chegar aonde queríamos, mas foi sempre através do estudo. Não tem como não estudar (entrevistada 1).

O entrevistado 2 concluiu a sua graduação e mestrado em instituição pública, enquanto a entrevistada 1 relata que na cidade em que morava, para o ensino superior somente existia uma instituição particular. Sendo assim, quando chegou o período de fazer o processo seletivo vestibular para ingresso na instituição de ensino superior encontrou obstáculos.

Nesta fase eu já sabia o que eu queira. Eu queria ser professora de biologia, porque eu amava na escola. Sempre me dei bem em todos os componentes. Eu tinha um pouco de dificuldades com as exatas [...] eu não pude fazer a faculdade de biologia. A faculdade de biologia que eu queria não pude fazer. Era um curso diurno e a faculdade aqui era particular. Eu tinha que fazer um curso noturno, para trabalhar e pagar a aula. A educação física tinha os componentes estudando o corpo humano, o movimento. Então, pensei que poderia ser a melhor escolha cursar educação física agora e, mais tarde, eu faço biologia (entrevistada 1).

A necessidade de trabalhar e estudar, concomitantemente, aparece cedo para os dois narradores. O entrevistado 2 trabalhava durante o dia, por isso fez o ensino médio noturno.

Nessa época eu trabalhava numa cooperativa de leite que tinha aqui na cidade. Eu trabalhava no escritório, só meio período, trabalhava na parte da manhã (entrevistado 2).

A entrevistada 1 teve seu primeiro emprego também na adolescência, como professora numa escolinha e especificou as tarefas que realizava na época:

Mas era trabalhar com os pequenininhos. Trocar fraldinha, dar o lanchinho, contar historinha, brincar, enfim. Mas eu gostava. Fiquei nessa escola um tempinho até chegar o período do vestibular (entrevistada 1).

É possível identificar momentos charneiras3 nas narrativas de ambos. A entrevistada 1, no quinto período do curso de educação física, começou a trabalhar numa escola particular de inglês, como secretária. Porém, por interferência da proprietária começou a estudar inglês, dedicando-se tanto a ponto de também cursar a graduação em Letras - inglês/português.

Eu nem gostava de inglês. Não queria ser professora de inglês. Queria aprender o inglês. Eu percebi que eu tinha muita facilidade para o inglês. Afirmei a ela que queria ser professora de educação física e de biologia. Nunca de inglês. Não me venha desvirtuar, dizia. Até hoje quando a gente se encontra ela fala: o que é uma pessoa na vida da gente (entrevistada 1).

“Foi o meu primeiro ano de economia que me fez resgatar o interesse de ser professor”, descreve o entrevistado 2.

Veja que interessante. Eu me recordo desse desejo, dessa vontade, desse interesse de ser professor no ensino fundamental II, no ensino médio não - não sei se eu não me identifiquei com algum professor, parece que esse desejo no ensino médio desapareceu - e depois eu retomei esse desejo na graduação de economia. Quando eu fui para as ciências sociais eu já fui para a licenciatura, depois eu fiz o bacharelado. Mas eu fui para cursar licenciatura. Somente no segundo ano é que uma professora me disse que eu poderia fazer também o bacharelado. E aí eu também fui para o bacharelado. Meu interesse já foi para a licenciatura (entrevistado 2).

Pensar sobre as experiências, seja as que nós mesmos criamos ou as que tivemos sem procurar, nos permite identificar momentos de mudanças em nossa trajetória de vida e, segundo Josso (2010), esses são os momentos charneiras. A aproximação com a docência em instituição pública foi diferente entre os narradores. A entrevistada 1 trabalhou, por muitos anos, em escolas particulares. Já o entrevistado 2, logo que concluiu o mestrado, foi lecionar num Instituto Estadual de Educação, no curso técnico de administração integrado ao ensino médio. Mas, é nesse momento das narrativas, em especial, que se torna possível identificar como cada um realiza e fundamenta a sua prática pedagógica.

A opção de experienciar o concurso público numa instituição de ensino não perpassa qualquer experiência anterior para a entrevistada 1. Num período em que residiu em outro Estado, a narradora prestou concurso público municipal e começou a lecionar em escolas públicas. Ela diz que hoje entende o porquê dessa experiência em sua vida.

Todos me falavam para fazer um concurso público. Mas eu resistia, pois ganhava muito bem nas escolas particulares. Gostava do que eu fazia, então não queria fazer concurso público. A gente é útil numa escola particular. Mas você faz a diferença é na escola pública. Eu comecei a entender a minha missão quando fiquei esse um ano e meio dando aula na escola pública (entrevistada 1).

Os narradores demonstraram preocupação com o perfil de professor que buscam alcançar. O entrevistado 2 refere que sempre procura se aperfeiçoar. Diz que foi apenas depois do mestrado que realizou leituras embasadas em Paulo Freire (1921-1997) e Miguel Arroyo (1935 - atual.). Ele ponderou que tem tentado se aproximar do docente reflexivo.

E tem me chamado a atenção a educação naquilo que está socialmente referendado, como diz Miguel Arroyo. É tentar entender aquele aluno que chega para nós, o modo como chegam. Principalmente porque a gente está numa instituição de educação inclusiva. Eu tenho procurado trazer um pouco da história desse aluno para a sala de aula. Tenho deixado o aluno falar em sala de aula. Sou professor de ciências sociais, então eu tenho que levar em conta os contextos sociais. É a coisa da educação crítica (entrevistado 2).

Formar professores reflexivos de acordo com Schön (1995) é uma prioridade. Ser um professor reflexivo é ser capaz de analisar e compreender o processo de aprendizagem de seus alunos, e mesmo, o seu próprio meio de aprender, além de relacionar-se e buscar alternativas para evoluir como pessoa e professor. Quando o processo educativo está fundamentado na reflexão-na-ação, o que realmente se ensina e o que realmente aprende, adquire um sentido intenso e dinâmico.

O professor reflexivo permite-se ser surpreendido pelo estudante e busca a razão de ser surpreendido. Ele concede a fala também ao estudante e apresenta situações problemas a eles. Esse processo não favorece apenas o estudante, mas também o professor se torna beneficiário desta ação.

A formação crítica-reflexiva permite desenvolver autonomia e isso contribui para a clareza no resgate à identidade do docente. Na visão de Nóvoa (1995, p. 25):

A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência.

A entrevistada 1 afirma cultivar o sentimento em sua prática pedagógica. Na atualidade, quando discutimos ciência, métodos e teorias, os sentimentos humanos, o amor, não vêm à mente. No entanto, a educação integral e omnilateral também envolve o afeto como papel fundamental na pedagogia.

Na escola pública conheci muitas realidades, alunos que eram rotulados. Nunca permiti rotulação de aluno, até mesmo quando dava aulas em escolas particulares. Trabalhei com as turmas que ninguém quer. Nunca neguei uma turma para dar aula. Eu amava e eles me amavam. Sempre odiei rotular turma, rotular aluno. Crianças que não são valorizadas em aspecto nenhum. É claro, elas vão fazer de tudo para incomodar em sala de aula, para chamar a atenção. Colocam na cabeça dessas crianças que elas não prestam e que só servem para isso mesmo. Eu comecei a querer a viver essa vida de escola pública, coloquei o meu propósito nisso (entrevistada 1).

“Quando ingressei na instituição pública da EPT, nunca me foi exigido qualquer capacitação em educação profissional e tecnológica”, mencionaram os dois narradores. A experiência com a educação básica, técnica e tecnológica é vivenciada pelo que criam em sala de aula, na proposta pedagógica, no seu cotidiano escolar.

Na instituição pública da EPT, muitos professores atuam tanto no ensino superior quanto no ensino técnico. Quanto à docência na educação profissional e tecnológica, para si e para os colegas, indicam:

Há uma diferença na docência no ensino médio integrado e no ensino superior. Percebo que alguns professores/colegas tem a visão mais clara de que há essa diferença. Outros colegas não delimitam essa diferença de nível. Temos os dois perfis de professores: aqueles que percebem a mudança de nível (superior e médio) e outros que não estão atentos a isso. E há ainda, aquele que cursou o bacharelado e não procura a se aprofundar da docência (entrevistado 2).

Agora que estou na coordenação de curso, percebo que tem muitos colegas que só querem dar aula no ensino superior e não no ensino médio. Isso eu não consigo admitir, fico furiosa. Ficam desprezando o ensino técnico. Ficam dizendo: eu não fiz doutorado para dar aula no ensino médio. Então por que não fez concurso para uma universidade? Esses dias um colega me dizia que não gostava de dar aula para o ensino técnico. Justificava que era a problemática da realidade do aluno. Bem, eu disse: é aí que você pode trabalhar com a realidade desse aluno. E aí cumpriria seu papel social como professor, como educador da instituição pública da EPT. Percebo nas reuniões de coordenação que há muita reclamação dos professores que não querem trabalhar com o ensino técnico. Devem me achar antipática, mas eu às vezes falo: então por que fez concurso para professor. Não consigo engolir isso (entrevistada 1)

Muito particularmente o entrevistado 2 identifica que não é só uma questão de didática (a falta ou não da didática).

São os fundamentos da educação. Percebo que há uma incompreensão quanto a legislação. Embora a legislação do ensino médio esteja dentro da mesma LDB, mas há diferenças. Há situações que não são as mesmas da graduação. Essa discussão dos fundamentos da educação é muito importante, mas a gente tem muito pouco, muito pouco. Até porque nas nossas chamadas reuniões pedagógicas, de formação pedagógica, mais da metade, não são pedagógicas. Elas são mais informes, questões burocráticas (entrevistado 2).

O sujeito narrador faz crítica à instituição de ensino pela falha na formação docente.

A instituição pública da EPT peca na formação continuada de professores. Nós não temos formação continuada. É muito pouco e deveríamos ter muito mais de formação continuada de professores, por conta do público que recebemos. É um público do interior. Nas graduações, é um público que deixou de estudar há muito tempo, são trabalhadores. Um público, de fato, de inclusão [...]. Ela recebe muitos profissionais bacharéis. É claro que não há motivo de existir uma separação entre bacharéis e licenciados. Não há motivo de existir uma formação para licenciatura e outra para bacharéis. Mas na prática sim, pois se o bacharel não for buscar entender o que é licenciatura passa a existir uma diferença (entrevistado 2).

A grande bandeira dessa instituição pública da EPT é a educação inclusiva, o que influencia na sua prática pedagógica - argumentação trazida por ambos os narradores.

Aqui na instituição temos alunos em situações de vulnerabilidade, situações de risco. Nosso público é bem amplo. A possibilidade de ser professor da EPT é bacana (entrevistada 1).

Eu tenho tentado me aproximar desse docente preocupado com a educação inclusiva. A gente recebe um público que é majoritariamente das classes populares, são filhos de trabalhadores (entrevistado 2).

A entrevistada 1, ao tratar da formação integral empregada nessa instituição pública da EPT, descreve que percebe diferença no senso crítico em muitos alunos da educação profissional e tecnológica. Alunos que também foram seus, anos atrás, quando da educação fundamental II em outras escolas da cidade.

Em 2015 iniciei com a minha primeira turma no ensino médio. E eu tive a oportunidade de dar aula para alguns alunos que antes eu já tinha dado aula na escola particular. É claro que o conhecimento de mundo deles sempre se transforma. A diferença no senso crítico deles, no conhecimento de mundo deles. Eu sempre brinco que sociologia é vida, E ampliou demais a visão de mundo deles. Foi aí que eu conheci o que é esta formação omnilateral, que a gente discute e é uma das missões do Instituto. Essa visão de mundo é fenomenal (entrevistada 1).

A pesquisa permitiu identificar, por meio da entrevista narrativa, a construção da identidade profissional do docente EPT e de que forma a prática pedagógica do docente é influenciada pelos seus percursos pessoais e de vida profissional.

Considerações finais

Para esta pesquisa optamos pela teoria histórico-crítica da educação para analisar a docência da EPT pelo viés da prática pedagógica. Para compreender a EPT valeu-se da reflexão crítica, onde a prática pedagógica não apareceu como mero momento de aplicação da teoria, mas foi vista entrelaçada à teoria. Considerando que na concepção histórico-crítica é a existência social dos homens que gera conhecimento, privilegiou-se pela consideração de suas experiências históricas e sociais, pelo encontro do estímulo do diálogo entre educador e estudante, pela reflexão e percepção da contrariedade da realidade histórica de suas relações sociais na sociedade como motivadores de transformação através da prática pedagógica docente.

Os estudos bibliográficos desta pesquisa canalizaram o entendimento de que o trabalho como princípio educativo supera a educação dicotômica e de que a aprendizagem significativa da realidade advém da visão de totalidade das disciplinas ao comunicá-las entre si. A recuperação do sentido do trabalho como libertação plena do homem deve estar fundamentada num processo educativo de formação omnilateral dos trabalhadores, cuja finalidade é de uma formação humana, de transformação e emancipação social.

Os resultados desta pesquisa evidenciam a potencialidade da subjetividade como conhecimento científico nas pesquisas em educação, particularmente nos estudos sobre formação de professores. Os educadores merecem ser acolhidos pela escuta sensível. A autoformação acontece porque o método (auto)biográfico examina a história de vida e de formação intelectual dos professores em seus vários aspectos, considerando-os agentes principais desse processo.

O potencial investigativo do método (auto)biográfico revelou-se na medida em que as entrevistas narrativas reconheceram os modos de ensinar e aprender dos entrevistados. Permitiu produzir conhecimento sobre a questão da diferença trabalhada por caminhos autônomos e individuais da prática pedagógica. Além disso, outro aspecto que se sobressaiu do processo de pesquisa com o método (auto)biográfico foi a identidade profissional do docente da educação profissional e tecnológica.

O método (auto)biográfico ao utilizar a entrevista narrativa como instrumento de coleta de dados permitiu a reflexão sobre a prática profissional dos entrevistados e da pesquisadora. Ela se desenvolveu no ritmo do entrevistado, que é quem faz a seleção do que quer dizer, como dizer e quando dizer. A interferência do pesquisador nesse momento é mínima, o que também permite se levar pelas suas memórias e reflexão.

Levando-se em conta o que foi observado com as entrevistas narrativas foi possível perceber a preocupação e clareza dos entrevistados quanto a formação continuada do docente na instituição pública da EPT. Mencionam ser esta ainda precária e necessário um maior aporte quanto aos fundamentos da educação e à legislação aplicada. Toda a reflexão quanto às individualidades em suas práticas pedagógicas caminha pelos exemplos (positivos ou negativos) de professores que fizeram parte de suas trajetórias de formação e a própria experiência de ser um estudante-trabalhador, ou seja, que desde a adolescência tinham a obrigação de trabalhar e estudar para sustentar-se e desenvolver-se. Mencionam ainda que o afeto faz parte da relação educacional, reforçando a educação integral e omnilateral como motores da transformação social.

Todas as experiências charneiras, momento truncados ou de escolhas vividas apontam tanto para reflexões individuais como interpretações sociais. Voltar a minha história de vida e me permitir falar um pouco da minha trajetória de formação, num processo assimilatório de pós-vivência, provoca reflexão sobre a minha prática pedagógica na educação profissional e tecnológica.

A autoformação é um trabalho sem fim. Aprender sobre as vivências, amplia a nossa capacidade de ser e estar no mundo com compromisso social. A pesquisa (auto)biográfica ainda desperta discussões no campo da metodologia científica. Os estudos com a (auto)biografia enquanto método de pesquisa ou ferramenta metodológica (fonte) não param por aqui. Ela nos instiga a permanecer na pesquisa científica com destaque a sua viabilidade no campo das Ciências Humanas e Sociais.

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1Questões exmanentes são as que emergem dos objetivos da pesquisa e são traduzidas em questões imanentes, que remetem ao relato do entrevistado (RAVAGNOLI, 2018).

2O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss adotou o termo para se referir a culturas ou aspectos de distintas culturas que se misturam e dão origem a um novo padrão cultural. E essa bricolagem é, afinal, o signo e a garantia de uma busca “humana” de compreensão e de conhecimento empreendida por seres singulares e endereçada a outros seres singulares (DELORY-MOMBERGER, 2012).

3Segundo Josso (2010) é uma passagem entre duas etapas de vida, um divisor de águas. São acontecimentos que separam, dividem e articulam as etapas da vida.

Recebido: 30 de Novembro de 2019; Aceito: 20 de Fevereiro de 2020

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