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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.21 no.71 Curitiba oct./dic. 2021  Epub 26-Ene-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.21.071.ds08 

Dossiê

Pedagogias de (re)existência: narrativas da docência na educação profissional técnica com/na diversidade

Pedagogies of (re)esistence: narratives of teaching in technical professional education with/in diversity

Pedagogías de (re)existencia: narrativas de la enseñanza en la educación técnica profesional con/en la diversidad

Graziela Ninck Dias Menezesa 
http://orcid.org/0000-0002-8879-5471

aInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, Ilhéus, BA, Brasil. Doutora em Educação e Contemporaneidade, e-mail: ninckgdm@gmail.com


Resumo

O artigo discute como professores/as vêm construindo pedagogias que insurgem como modos de (re)existência (WALSH, 2013) ao silenciamento de sujeitos da diversidade e da ausência de políticas de integração com a comunidade. Aponta no debate como a diversidade se constitui enquanto campo de disputa e de luta por direitos e como isso reverbera no cenário educacional e tensiona os/as docentes a atuarem em direção às demandas advindas desse contexto. O trabalho resulta de uma pesquisa que cartografou a profissão docente na educação profissional técnica a partir de experiências educativas com/na diversidade. Produzido em dois campi do Instituto Federal da Bahia, inscreve-se como pesquisa narrativa, tendo como dispositivos as rodas de conversa e as cartas pedagógicas, como espaços narrativos que propiciaram revelar as interpretações de uma realidade, mapeada pelas experiências e pelos modos como os sujeitos que nela habitam dão significados aos acontecimentos e como estes reverberam na profissão docente. A cartografia produzida revela como experiências educativas com a diversidade colocam os/as docentes na condição de escuta, de compreensão sobre como seus/suas estudantes vivem e enfrentam situações de discriminação e preconceito. Ainda revelam como em suas práticas de (re)existência favorecem a integração com a comunidade ou promovem na escola a cultura que dela emerge e geram construção de relações mais horizontais tendo-os/as como atores/atrizes, copartícipes e corresponsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem.

Palavras-chave: Pedagogias de (re)existência; Diversidade; Docência

Abstract

The article discusses how teachers have been building pedagogies that emerge as ways of (re)existence (Walsh, 2013) to silence subjects of diversity and the absence of integration policies with the community. It points out in the debate how diversity is constituted as a field of dispute and struggle for rights and how this reverberates in the educational scenario and tensions teachers to act towards the demands arising from this context. The work results from a research that mapped the teaching profession in technical professional education from educational experiences with/in diversity. Produced on two campuses of the Federal Institute of Bahia, it is part of a narrative research, having as strategies, conversation rounds and pedagogical letters, as narrative spaces that allowed to reveal the interpretations of a reality, mapped by the experiences and the ways in which the subjects, who inhabit it, give meaning to the events and how they reverberate in the teaching profession. The cartography produced reveals how educational experiences with diversity place teachers in the condition of listening, of understanding how their students live and face situations of discrimination and prejudice. They also reveal how in their (re)existence practices they favor integration with the community or promote in the school the culture that emerges from it and generate the construction of more horizontal relationships with them as actors/actresses, co-participants and co-responsible for the teaching process learning.

Keywords: Pedagogies of (re)esixtence; Diversity; Teaching

Resumen

El artículo discute cómo los docentes construyen pedagogías que emergen como formas de (re) existencia (Walsh, 2013) para silenciar sujetos de diversidad y ausencia de políticas de integración con la comunidad. Señala en el debate cómo la diversidad se constituye como campo de disputa y lucha por los derechos y cómo esta repercute en el escenario educativo y las tensiones docentes para actuar frente a las demandas que surgen de este contexto. El trabajo es el resultado de una investigación que mapeó la profesión docente en la educación técnica profesional a partir de experiencias educativas con/en la diversidad. Producida en dos campus del Instituto Federal de Bahía, es parte de una investigación narrativa, teniendo como dispositivos las ruedas de conversación y las letras pedagógicas, como espacios narrativos que permitieron revelar las interpretaciones de una realidad, mapeada por las experiencias y por los caminos en que los sujetos, que lo habitan, dan sentido a los hechos y cómo repercuten en la profesión docente. La cartografía elaborada revela cómo las experiencias educativas con diversidad colocan a los docentes en la condición de escucha, de compreensión a respeto de cómo viven y enfrentan sus alumnos situaciones de discriminación y prejuicio. También revelan cómo en sus prácticas de (re) existencia favorecen la integración con la comunidad o promueven en la escuela la cultura que surge de ella y generar la construcción de relaciones más horizontales con ellos como actores / actrices, copartícipes y corresponsables. para el proceso de enseñanza aprendizaje.

Palabras clave: Pedagogías de reexistencia; Diversidad; Enseñanza

Introdução1

O texto apresenta reflexões geradas em uma pesquisa que teve como objetivo cartografar a profissão docente a partir de experiências educativas com/na diversidade. O recorte aqui proposto apresenta como professores e professoras têm (re)existido na sua profissão diante de questões da diversidade que atravessam o cotidiano escolar. Esta pesquisa ocorreu no âmbito do Instituto Federal da Bahia - IFBA, em dois campi do interior situados em territórios de identidade2 distintos, com docentes que atuam em cursos do Ensino Médio Integrado - EMI.

Atenta aos desafios provocados pela emergência do reconhecimento das singularidades que constituem nós humanos, me intriguei acerca dos desafios que a docência enfrenta no EMI ao atuar com sujeitos da diversidade. Cabe salientar que nessa pesquisa os sujeitos da diversidade são reconhecidos como pessoas que, por carregarem em suas existências corporais e culturais marcadores das diferenças, foram configuradas como pessoas inferiores face aos efeitos da colonialidade do saber, do poder e do ser (QUIJANO, 2010) imposta aos povos do sul global. Com a política de expansão e interiorização dos diversos institutos e democratização de acesso às vagas3, observa-se a entrada na instituição destes sujeitos da diversidade que historicamente estiveram à margem das políticas educacionais.

Consideramos que esse movimento se aliou à luta e ao protagonismo dos sujeitos da diversidade que por meio de seus coletivos conseguiram garantir, via implementação do poder público federal, a criação de diversos marcos normativos4 para assegurar o acesso ao direito à educação, bem como debater, por meio de currículos e de ações de atendimento e atenção, uma política nacional de educação inclusiva e que valorizasse os saberes e fizesse emergir diversas matrizes culturais e epistemológicas do povo brasileiro.

Entretanto, em meados da década de 2010, observa-se um desmonte e o enfraquecimento de muitas destas políticas, com a tentativa de retirada de direitos por meio de projetos tais como os Projetos de Lei (PL) nº 867/2015, conhecido como Escola Sem Partido, além de outras medidas como a Reforma do Ensino Médio, por meio da Lei nº 13.415/17 e as medidas de contenção de gasto público, por meio de Projeto de Emenda Constitucional (PEC) nº 55/2016. Atualmente, foi publicada a Portaria nº 983/20 que regulamenta as atividades docentes no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, pela qual ampliou-se a carga horária docente em aulas, prejudicando o desenvolvimento de ações de pesquisa e extensão.

O cenário descrito chama a atenção para o contexto macroestrutural no qual os/as docentes estão circunscritos. Ele revela um conjunto de medidas apontadas para a desvalorização e a precarização do trabalho docente, para o aumento do controle sobre o processo formativo e a autonomia dos/as professores/as, para a fragilização das políticas de diversidade na educação, assegurando o distanciamento das instituições educacionais dos valores das comunidades que integram. Tal realidade impõe aos/às docentes desafios de articular seu trabalho face aos contextos de diversidade e aos conflitos das relações de poder e exclusão inerentes a esta questão.

Cabe desatacar que a profissão docente vive esse cenário sob uma disputa por sua autonomia. Nóvoa (2009) provoca essa discussão ao afirmar que as últimas décadas do século XX, no que tange à educação e à formação de professores/as, se caracterizaram por: racionalização do ensino (década de 1970), as reformas educativas, centradas na estrutura dos sistemas escolares e dos currículos (década de 1980) e nas organizações escolares e seu funcionamento, administração e gestão (década de 1990). Esses processos acentuaram os investimentos em políticas curriculares e de formação de professores/as, que passam a ter um caráter prescritivo, ditadas por especialistas.

Esse movimento construído de atenção especial aos/às professores/as coloca a docência no centro das políticas e dos organismos internacionais, o que é considerado por Nóvoa (2009, p. 15) como “inflação discursiva”, pois gerou sobre ela “maior visibilidade social, o que reforça o seu prestígio, mas provoca também controlos estatais e científicos mais apertados, conduzindo assim a uma desvalorização das suas competências próprias e da sua autonomia profissional”.

Porém, por sua constituição, a profissão docente também é produzida a partir das condições existenciais que atravessam a indissociável relação pessoa-professor inscrita na trilogia “vida-profissão-escola” (NÓVOA, 2002). Assim, é importante fazer um exercício e pensar a própria historicidade do sujeito como marcada por suas experiências (LARROSA BONDIA, 2016), um aspecto que funda a sua identidade profissional. É preciso, ainda, considerar que a existência de um sujeito é talhada dentro de uma realidade sócio-histórica demarcada pelas relações construídas entre as pessoas, em suas dimensões políticas, éticas, econômicas, sociais e culturais, e nas maneiras como essas dimensões delineiam seus processos de subjetivação.

Assim, compreendo que o/a professor/a é um ser implicado/a na própria realidade. Seu modo de inserir-se no mundo deriva da própria forma como o lê e de onde o lê. Nessa direção, a pesquisa em tela propôs pensar como os/as professores/as produzem, modificam e transfiguram a profissão e o exercício do seu trabalho, a partir das experiências construídas com/na diversidade. Nesse sentido, entendo que poder visibilizar pedagogias construídas pelos/as professores/as do EMI possibilita pôr em discussão saberes pedagógicos construídos por docentes no chão da escola, a partir do que lhes afeta e faz sentido diante dos desafios postos no seu trabalho.

O caminho metodológico da investigação se caracterizou como pesquisa narrativa (CLANDININ; CONELLY, 2015), que, por seu caráter de adentrar ao mundo subjetivo dos sujeitos, potencializou a construção de espaços de escuta dos/das docentes, para que suas histórias, experiências, práticas e saberes ganhassem formas e fossem reverberados como possibilidades de se repensar a docência no IFBA. Assim, por meio das narrativas, é possível compreender o mundo escolar habitado pelos/as docentes, posto que, enquanto uma comunidade que compartilha uma realidade comum, a leitura acerca do trabalho, dos conflitos e decisões revela as experiências produzidas marcadas pelos modos de ser e atuar dos/das docentes do contexto em discussão.

A escuta das experiências de docentes se constitui então nessa pesquisa assumir a aderência aos princípios que conduzem às Epistemologias do Sul5, pois as mesmas visam reposicionar o lugar, a voz daqueles/as que ao longo da história foram invisibilizados/as pela cegueira abismal (SANTOS, 2010a) produzida na hierarquização do mundo, que elegeu grupos a serem considerados como críveis e outros a quem não foi reconhecida a condição de construtores de conhecimento e até de possuidores de humanidade. Nesse sentido, entendemos que a escuta das vozes dos/as professores/as expressa a escuta das vozes de autores/as de saberes pedagógicos, de intérpretes de realidades complexas que atravessam o cotidiano escolar e a profissão docente, mas que são alijados/as dos espaços decisórios e construtores de políticas curriculares, de formação e de organização do próprio trabalho docente.

Como espaços narrativos, elegemos as rodas de conversas, nas quais contamos com a participação de trinta e oito docentes, e as cartas pedagógicas, pelas quais seis professores/as revelaram suas experiências. São espaços narrativos que promovem condições em que é possível a constituição da autoria docente em ação colaborativa e horizontal, onde um movimento de reflexão coletiva, em torno dos textos narrados nas cartas e diálogos construídos nas rodas de conversa, pode aflorar as experiências docentes acerca do exercício de sua profissão no contexto da diversidade.

São essas experiências docentes que emergem como pedagogias de (re)existência, pedagogias que para Walsh (2013, p. 28) “incitan posibilidades de estar, ser, sentir, existir, hacer, pensar, mirar, escuchar y saber de otro modo, pedagogías enrumbadas hacia y ancladas en procesos y proyectos de carácter, horizonte e intento decolonial”. Assim, reconhecemos que as experiências destacadas são modos de produzir o trabalho pedagógico numa ação humanizadora dos/as estudantes frente às estruturas materiais e simbólicas que inferiorizam grupos humanos e também de produzir tempos-espaços de encontro de saberes e de redução da colonialidade do saber, do ser e do poder.

O texto apresenta três pedagogias de (re)existência apontadas por docentes que foram analisadas como práticas insurgentes que reescrevem os modos de ser/estar na profissão: (re)conhecimento do outro e de si como sujeitos da diversidade, (re)significar a relação com a comunidade e (re)posicionar-se na relação ensino-aprendizagem.

(Re)conhecimento do outro e de si como sujeitos da diversidade

A presença de sujeitos da diversidade ganhou destaque nas narrativas docentes durante as rodas de conversa e nas cartas pedagógicas. Essa afirmação de reconhecimento dos sujeitos da diversidade desencadeou algumas reflexões sobre como a atuação com sujeitos de matrizes culturais identitárias tão distintas cria situações de desafios diários aos/as professores/as.

Nesse sentido, professores/as manifestaram que tais desafios começam pelo reconhecimento dos sujeitos da diversidade e de suas demandas que emergem no cotidiano escolar. Apontaram que em suas aulas vivenciam situações em que o preconceito e a produção de estigmas perpassa tanto as relações entre discentes-discentes como entre docentes-discentes. Entre diversas situações a professora Célia narra:

mas a escuta anônima6 aponta para alguns casos de discentes, o menino que diz que sofre preconceito por ser negro, o outro por ser gordo, a outra por ser lésbica, o outro por ser gay, não é? Então de alguma forma, a questão da diversidade, ela atravessa esse instituto federal, ela perpassa o nosso fazer docente, mas não é dada a devida atenção. (Professora Célia7, Rodas de Conversa, 2019)

Nessa direção vários/as docentes problematizaram que a presença de sujeitos da diversidade nos campi gera incômodos, confronta visões homogeneizantes e, por muitas vezes, são percebidas tentativas de silenciamento e invisibilização sobre as existências/presenças dessas pessoas. Assim, chamaram atenção para o fato de que não observam uma ação articulada dos campi no que tange a fomentação de um projeto pedagógico e formativo que reflita sobre como a escola deve ser pensada para constituir-se em um espaço onde as pessoas que ali transitam, sejam estudantes, seus familiares ou a comunidade, se vejam e construam uma cultura compartilhada.

Entendo que o ideário moderno de uma identidade humana, de uma condição única - constante, repetível, universal -, caracterizou o ser humano, ignorando suas culturas, sua forma de apreensão e relação com o mundo. Assim, toda diversidade de crença, valores, costumes, ao ser constatada pelo modelo colonizador, ao invés de ser enxergada como um aspecto constitutivo da humanidade, foi vista com suspeição e necessidade de adequação, sendo traduzida como estigma. Tubino (2016b, p. 23) trata do estigma como uma “marca socialmente menosprezada, que desumaniza quem a encarna”. O filósofo reflete sobre esse processo como construção de atributos dados a sujeitos ou grupos diante de seu pertencimento social, cultural, econômico, étnico, religioso, sexual, de gênero, etário, entre outros. Os sujeitos que têm encarnado estigmas se tonam desprezíveis, desqualificados.

Diante dessa realidade, os/as docentes se manifestaram sobre os movimentos que constituem para escutar, ver e abrir espaço para os sentidos produzidos pelos sujeitos da diversidade. Assim, estes/as professores/as revelaram que atuam nos seus campi a partir do reconhecimento de que, além de legítimo, é fundante construir espaços abertos ao diálogo entre sujeitos que vivem e pensam de modos distintos.

Em suas cartas, os/as professores/as manifestaram o quanto pensar a escola, a partir deste movimento, potencializa o trabalho docente. Entretanto, olhar esta escola neste viés somente foi possível devido à abertura dos/as docentes para a experiência da diversidade, como manifestou o professor Raul, ao refletir sobre como foi se encontrando com situações em que os conflitos advindos dos processos de exclusão vividos pelos/as alunos/as mostraram que o primeiro passo para construir esse olhar é o reconhecimento de que a diferença nos constitui.

Em suas cartas, o professor Raul narrou que a experiência construída nas relações que estabeleceu com estudantes negros/as, nas discussões sobre matrizes religiosas e gênero, o levou a ver os processos de violência que ocorrem no espaço escolar, como apontou também em seus escritos:

No IFBA, devido às características étnicas dos alunos, fui me apropriando, por exemplo, dos problemas relacionados ao racismo, tema com o qual, evidentemente, eu já me havia confrontado antes, mas não de modo tão “de perto”. Nesse sentido, a vivência e o testemunho dos alunos, durante as aulas ou nos eventos institucionais, me foi levando a pensar nas práticas de violência que a escola perpetua, muitas vezes de modo silencioso ou inconsciente. Certamente que o campus Ilhéus possui graves diferenças políticas entre os funcionários e alunos, o que ajuda a tornar o debate em torno do racismo e da diversidade ainda mais urgente e patente. A pretensa tranquilidade política esconde preconceitos e comportamentos violentos, que vez ou outra, se tornam manifestos ou públicos. (Professor Rodrigo, Campus Ilhéus, Carta Pedagógica, 28.06.19)

Diante desta experiência, o professor Raul considera a necessidade de romper com o silenciamento e com a invisibilidade que paira sobre os sujeitos da diversidade, com os estigmas produzidos, bem como pelas práticas de violência que ali são vividas e reverberam na vida dos/as estudantes. Entretanto, é preciso salientar que pensar no problema não significa entregar-se a uma atitude meramente intelectual ou teórica, mas, para o professor, entregar-se ao diálogo. Assim, constitui-se na relação dialógica e comunitária com os outros, compreendendo as singularidades que se apresentam nos modos de cada um existir.

Nessa perspectiva, o professor Raul faz a defesa de que, ao afetar-se pelas histórias e subjetividades dos/as estudantes, pode compreender o quanto as discussões em torno deste debate são fundantes e necessárias; pois somente com a escuta das histórias e com a presença deste debate no cotidiano escolar torna-se possível fazer o enfrentamento da violência que ocorre nos processos de exclusão e discriminação. Tal reflexão aproxima-se da proposta por Fleuri, ao afirmar:

Ao abrir espaços nas relações educacionais para a escuta solidária do que o outro tem a nos dizer estamos proporcionando um ‘entrelugar’ onde o respeito às diferenças e a construção cooperativa e ecológica, de novas alternativas de convivência, sejam não só possíveis, mas, sim realizadas. (FLEURI, 2017, p. 169).

Refletindo sobre este movimento, a professora Célia revela como compreende que a escuta de sujeitos da diversidade é uma ação de empatia, de alteridade e compromisso com os/as educandos/as:

[...] a diversidade é o reconhecimento da alteridade e da diferença como possibilidades múltiplas de existência, o debate e reflexão sobre tais questões é de caráter político e, apesar das tensões e contradições, pode contribuir para uma ampliação democrática da escola, de um empoderamento daqueles que são subalternizados e inferiorizados. Mas, claro, isto depende da nossa disposição para saber auscultar, de experienciar, de cultivar o diálogo sobre a diversidade. (Professora Célia, Campus Ilhéus, Carta Pedagógica, 22.072019).

Os/as professores/as em outros momentos também revelaram a compreensão de que a primeira condição para atuar na escola com as questões da diversidade é enxergar, dar atenção à singularidade de cada pessoa, constituir alteridade, um movimento de sentir-se parte, de deslocar-se para estar junto do outro. Trata-se de ver e escutar o/a estudante, chegar perto da vida dele/a.

Compreendemos que estes/as professores/as constroem caminhos para a formação de subjetividades democráticas (SANTOS, 2011), já que estas podem ser produzidas quando se concretizam condições plurais de respeito e garantia da dignidade e da existência, como preceito primeiro das relações humanas nos espaços sociais. Passa pela possibilidade de negociação de sentidos entre as várias experiências constituídas pelos sujeitos e pela realização de práticas que gerem espaços propícios a estas negociações.

Além disso, é fundamental destacar que este movimento possibilita a conexão dos professores com os/as estudantes. Fleuri (2017, p. 159) considera que a relação entre os sujeitos educacionais se dá, inicialmente, pela reciprocidade, que, para o autor, se revela quando “o educador-educando interage como educando-educador e ambos com o ambiente educacional em que se encontram mergulhados”. Assim, os/as professores/as buscam construir espaços de diálogo nos quais se organizam enquanto uma comunidade, onde as relações se pautam, antes de tudo, no respeito e na solidariedade, especialmente no que se refere às dores produzidas na vida dos alunos pelas marcas da colonialidade.

Nessa direção, relataram como a construção dessa escuta, abertura à diversidade, é atravessada por processos identitários que lhes constituem. Assim, mostraram também que reconhecer-se como sujeitos da diversidade é fundamental para entender como o trabalho educativo é potente na superação de estigmas e na construção de mundos possíveis aos sujeitos. Nesse caminho, a professora Renata, que também atua em licenciaturas, revela

Minha trajetória de vida, sendo minha família extremamente desprovida de recursos, filha de uma guerreira solteira, feirante, e conseguir chegar a uma universidade pública, fizeram as minhas experiências constatar que a educação e a escola são canais de possibilidades sim e de mudanças de vida para os estudantes, principalmente para aqueles que fazem parte da minoria, e, isso agregou um olhar carinhoso, mas real para mim ao atuar na educação com pessoas com deficiência. Hoje tenho o privilegio de ser professora do Instituto Federal da Bahia, de trabalhar com pessoas Surdas e ensinar as pessoas nos cursos de licenciaturas à necessidade de ter um olhar humanizado para as pessoas com deficiência, principalmente nas salas de aulas regulares, promovendo uma inclusão com ensino de qualidade. (Professora Renata, Carta Pedagógica, 08.04.2019).

Em sua narrativa a professora mostra como seu processo de encontro com diversidade se deu pela própria experiência de ser/estar em uma condição na qual os marcadores sociais, que a constituíam, impuseram sobre ela desafios pessoais, tanto para entender como para afirmar sua condição existencial. Assumindo-se ao longo de suas cartas como mulher, negra e pobre, a professora revela que atuar hoje na docência como um espaço de defesa dos direitos de todos e todas à educação, em condições que respeitem suas singularidades, tem gênese na sua formação pessoal e acadêmica e nos modos como ressignificou sua vida.

Outras cartas também mostraram como as experiências individuais são relevantes para a constituição da organização de práticas que tragam, para centralidade do trabalho pedagógico e da formação docente, temas com os quais sempre tiveram que lidar na própria vida. Assim, entender a condição de ser singular, de ser distinto, faz com que internalizem a diversidade como um campo natural, constitutivo, afirmativo da profissão docente. Nessa direção, Nóvoa (2017, p. 1113) problematiza a pergunta “como formar um professor?” O autor responde afirmando que é necessário fazer a pessoa pensar, sentir e agir como um professor/a. Sendo assim, compreendemos que a experiência da diversidade e de sua condição de espaço de disputa das existencialidades humanas é fundante para a constituição de subjetividades democráticas de docentes, posto que lidar com os estudantes como seres singulares já é, em si, um desafio da profissão. Além disso, se, em seu processo formativo, a diversidade é esquecida, subsumida, anulada pelo entendimento de que ensinar é apenas compor processo avaliativos, curriculares e administrativos, a docência fica fadada à reprodução e à manutenção dos processos de colonialidade.

As experiências narradas mostram que as pedagogias de (re)existência começam pelo reconhecimento da diversidade como campo de disputa das existencialidades que são atravessadas por marcadores sociais da diferença. Ao realizar a escuta, perceber os conflitos vivenciados pelos/as estudantes diante dos desafios da diversidades, estes/estas professores/as rompem com o silenciamento imposto pelas práticas homogeneizantes ou discriminatórias. Nessa direção, Walsh (2013, p. 31) afirma que pedagogias de (re)existência “provocan e inspiran nuevas reflexiones y consideraciones pedagógicas y, a la vez, nuevas re-lecturas en torno a la problemática histórica de la (des)humanización y (des)colonización”, ou seja, pedagogias que se movem para interromper conceitos herdados e para produzir subjetividades democráticas e práticas de libertação.

(Re)significar a relação com a comunidade

Outras pedagogias de (re)existência foram narradas no campo de práticas educativas por docentes. Foi nos modos como articulam práticas de integração com as comunidades que mostraram potencialidades de um fazer que garante saberes e apreensões das realidades circundantes dos mundos que abrigam os/as educandos.

Cabe destacar que o exercício da docência nos institutos federais apresenta demandas muito específicas, preconizadas por alguns objetivos expostos no art. 7º da Lei nº 11.892/08 que cria os Institutos Federais - IFs. Tais objetivos demarcam um complexo de relações diante da particularidade dessa modalidade educacional que é a formação profissional de adolescentes, jovens e adultos. Além disso, as exigências atuais do projeto da Educação Profissional Técnica, na qual o Ensino Médio Integrado está articulado, coloca os professores diante de desafios que os mobilizam a pensar a própria profissão. Segundo Fartes (2008), a docência na EPT enfrenta mudanças na cultura profissional que perpassam tanto o seu alinhamento interno quanto a sua relação com o contexto de complexidade.

Assim, alinhados com as políticas de ações afirmativas presentes na educação, também é exigido dos/as docentes o compromisso com questões de ordem ética frente aos reposicionamentos identitários que emergem no contexto da escola. Dessa forma, os processos educativos precisam ser organizados para garantir que todos/as estudantes, por meio dos conhecimentos produzidos e construídos no processo escolar, possam apropriar-se de ferramentas que lhes possibilitem empoderamento para lutar pela garantia de seus direitos sociais e pelo reconhecimento de suas identidades.

Nessa direção, o espaço da pesquisa e da extensão que está presente na concepção de atividade educativa e política nos IFs, é sustentada no tripé ensino-pesquisa-extensão, como é apresentado nas diretrizes curriculares, promulgadas em 2012, que discutem a concepção da Educação Profissional Técnica de Nível Médio, entre outros documentos que discutem sobre a concepção dos Institutos Federais.

De acordo com Pacheco (2011, p. 16), a orientação pedagógica deve realizar-se por “pensamento analítico, buscando formação profissional mais abrangente com menos ênfase na formação de ofícios e mais compreensão do mundo do trabalho e em uma participação qualitativamente superior nele”. Assim, a integração entre ciência, tecnologia e cultura está prevista como dimensão intrínseca à vida humana e orienta a indissociabilidade de ensino-pesquisa-extensão, sendo instituída como um aspecto estruturante do projeto pedagógico dos Institutos Federais, pois reflete a compreensão de que o processo educativo deve favorecer a aproximação entre as instituições de ensino e a sociedade. A concretização destes princípios supõe a realização de projetos coletivos de trabalho que atendam as questões emergentes a partir de uma prática interativa com a realidade e que levem em conta o interesse da maioria da sociedade.

Destaca-se que ao longo das rodas de conversas os/as docentes revelaram que há pouco incentivo para o trabalho com extensão e pesquisa, pois além de falta de financiamentos e de valorização, a instituição no período8 tinha suspendido a regulamentação sobre a carga horária que orientava o trabalho docente. Assim, os/as professores sentiam-se inseguros quanto à realização dos trabalhos, já que não tinham mais parâmetros para o teto de horas-aula que teriam de assumir a cada ano letivo.

Entretanto, mesmo com esse cenário, os/as docentes revelaram como observam a importância da articulação de suas propostas educativas com as comunidades. Assim, nas reflexões trazidas nas cartas, os/as professores/as apresentaram saídas produzidas por eles/as quando, se dirigindo às comunidades, se envolvem no desafio de gerar ações institucionais que favoreçam conhecê-las e valorizar seus saberes e manifestações culturais, religiosas, artísticas e produtivas. Assim, foi notável o esforço dos/as professores/as para ampliar a relação da instituição com a comunidade, propiciando o fomento do caráter público da escola.

A professora Renata mostrou como busca possibilitar uma ação de integração com a comunidade via o trabalho de extensão no ensino de Libras para agentes de saúde do município onde atua, como mostra em uma de suas cartas:

Em paralelo a isso, desde 2014, desenvolvo alguns projetos de extensão para trazer a comunidade para nosso instituto. Entre eles, desenvolvo um projeto de extensão com o tema “Libras como facilitador da Humanização” onde dou o curso básico de Libras, junto com um monitor das minhas turmas de licenciaturas aos agentes de saúde do município. Isso tem facilitado os agentes conversarem com os próprios Surdos em sua língua, ao invés de ficar perguntando aos parentes ouvintes deles, isso tem feito com que alguns agentes de saúde façam um trabalho diferenciado e humanizado (Professora Renata, Carta Pedagógica, 21.04.2019).

Ativar o caráter público da escola é também submetê-la às demandas da comunidade, dar-lhe um sentido político e social. Como alerta Tubino (2016a), a construção de um espaço democrático atravessa, do mesmo modo, a ação nos microespaços sociais, tais como a escola. É no sentido de tornar público o saber ali constituído, e colocá-lo a serviço do processo de inclusão social, que os professores também vão construindo outros propósitos para a educação profissional técnica.

Ao retratar esta ação, a professora Renata revela um compromisso que atravessou outras experiências registradas pelos/as docentes. Assim, também foi observado um movimento inverso, que é o de apresentar estas comunidades na escola, envolver os estudantes na cultura popular, nos movimentos político-sociais que são desenvolvidos nas comunidades e que a colonialidade, por meio da implantação de modelos hegemônicos, tem tornado invisíveis. Assim, compartilho a experiência escrita em carta pelo professor Érico:

[...] conheci o Grupo Cultural Viola de Bolso. Tratava-se de uma banda de músicas brasileira (chamada de regional) que fundou um espaço cultural que ganhou o edital de Ponto de Cultura do Estado da Bahia. Ali passavam mais de duas centenas de jovens anualmente para fazerem aulas de pintura, violão, teclado, teatro etc. E foi neste espaço que eu me aprofundei nas práticas artistas e culturais. Passei a conhecer os terreiros da região, acompanhar as manifestações culturais das comunidades tradicionais, visitar vilarejos, assentamentos etc. Esta vivência me deu a dimensão prática que minha didática ainda não tinha. Se eu falava por estudos dos terreiros e dos reisados, agora os via, conhecia seus mestres etc. Conseguia, então, fazer estudantes visitarem comunidades, pesquisarem in loco as práticas ancestrais etc. Tudo isto veio carregado de uma crítica sistemática dos conteúdos. Para mim era precisa de menos para ter mais. Ou seja, menos conteúdos, mais vivências e experiências (Professor Érico, Carta Pedagógica, 22.04.2019).

O movimento apontado pelo professor Érico mobiliza nosso pensamento para entendermos que integrar os processos educacionais às comunidades significa, concretamente, experienciar e fazer experienciar outras lógicas e epistemologias que a ciência normativa não agrega à escola. Trazer os saberes e a cultura popular para escola é também propiciar a presença física e simbólica da comunidade, fazendo com que a mesma, e os/as estudantes que a ela pertencem, se reconheçam na instituição e, a partir daí, possam se imaginar compartilhando e disputando o espaço público e privilegiado das instituições, como alternativas viáveis para o desenvolvimento político, econômico e social das comunidades.

Pensar e agir para garantir um processo pedagógico que atenda às necessidades de aprendizagem, bem como coloque os recursos materiais a favor dos estudantes, que igualmente são excluídos por conta de suas condições econômicas, tem um papel na garantia de uma educação intercultural, pois não se constrói cidadania sem condições materiais para os sujeitos. Assim, os/as professores também refletiram sobre o papel dos IFs neste processo, sobretudo, pelo entendimento de que a rede federal, ao capilarizar seu atendimento por meio da interiorização dos campi, estendeu o acesso às populações que não poderiam alçar vagas nessa rede. O professor Érico, ainda nas rodas de conversa, chamou a atenção de que o processo de cidadania na educação passa igualmente por entender que é necessário garantir direitos aos estudantes.

Eu acho que o IFBA não é uma escola exatamente, é um campus, é um instituto e tal. Eu estou falando assim, para a comunidade é uma espécie de ilha de cidadania. Cidadania tem a ver com vestir-se, comer, ser bem tratado, ter saúde. Se você for observar, lá fora é o caos, [...] O cara que precisa de atendimento, entra na fila lá no espaço de saúde, agora aqui vai tirar os cubanos, ainda vai ser pior. Aí chega aqui, Luciano, o médico da gente, quinta e sexta aqui é o tempo inteiro, atendendo-os. Luciano faz visitas em casa, quando o pessoal está doente. Sabe assim? Aí se chega lá fora aonde é que são os centros digitais? Para ele ter acesso ao computador? Aqui tem, mano. [...] Então ele não enxerga isso daqui, como se fosse só uma escola. E para alguns deles, isso aqui foi o ápice da cidadania, foi um momento em que ele se sentiu mais gente, foi quando ele veio para cá. Então o processo de aprender ou não aprender, ele é também decorrente desse elemento. Tem gente falando assim “tá vendo isso aqui? Essa dose? Tem muitos mais se você seguir adiante com esses estudos”. Eu tenho uma aluna que era do alto do São Roque, é um dos bairros periféricos mais violentos aqui, e ela está em relações internacionais na UFRJ, virou bolsista de iniciação científica, o IFBA virou o jogo, velho, para ela. Um rapaz aqui do Tento está fazendo engenharia elétrica na UESC, muito pobre, muito trabalhador. (Professor Érico, Roda de Conversa, 2018).

A questão narrada acima, durante a roda de conversa, reforça a posição de que o movimento - político, social e cultural - não pode estar desatrelado do campo econômico, nem tampouco se reduzir a este, como alertou Dussel (2017) ao discutir que a reinvindicação popular, na disputa de um projeto anti-hegemônico, passa, ainda, pela possibilidade de ter articuladas às suas reivindicações políticas as demandas por melhores condições materiais da vida econômica. Assim, é importante reconhecer que, atravessados por questões étnicas, de gênero, religiosas, sexuais e de deficiência, os sujeitos da diversidade igualmente são, em quase sua totalidade, sujeitos economicamente pobres, e que, ao buscarem uma formação profissional, também buscam o reconhecimento do seu direito econômico para viver.

Desde o começo do processo colonial, a expropriação das condições materiais também foi um fator que gerou colonialidade, tal como assinalou Santos (2010b), ao mostrar que os diferentes modos de produzir inexistência ou invisibilidade são indissociáveis uns dos outros.

Os/As professores/as sinalizam aqui para os movimentos que caminham para disputar uma outra lógica ou pelo menos inserir outros pilares na Educação Profissional Técnica. Assim, compreendo que apontam para um projeto de escola que toma como base o reconhecimento da existência das pessoas com suas singularidades e que a defesa pelo direito a diferir-se institui um princípio norteador de suas ações. Além disso, se anunciam como atores/atrizes de um movimento de descortinamento dos processos educacionais e sociais que permeiam a escola e mantêm as práticas de colonialidade. Nesse sentido, defendem e promovem a escola como espaço público e democrático, na qual os saberes e as manifestações culturais ganham sentido e espaço para reconhecimento e disputa do campo político que a Educação Profissional Técnica realizada nos IFs pode exercer. Mas os professores e as professoras ainda nos apontam outras saídas, nos mostram que caminham ao lado dos estudantes e se posicionam na fomentação de práticas dialógicas nas quais (re)posicionam seu papel na docência.

(Re)posicionar-se na relação ensino-aprendizagem

Outro modo de construir pedagogias de (re)existência foi revelado por meio de narrativas que trouxeram à tona a compreensão dos/as estudantes como protagonistas do processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, os/as professores/as fizeram relatos em cartas pedagógicas mostrando como organizam suas práticas educativas no ensino criando espaços de escutas e de partilhas na construção do processo.

Assim, nas práticas docentes descritas, os/as professores/as mostram-se não apenas como aqueles que compreendem a importância de os/as estudantes atuarem no processo de aprendizagem, mas reconhecem que este processo só é possível se gerado pelos próprios sujeitos. Em vista disso, também questionam que a docência esteja na centralidade da produção do saber.

Observei nas cartas como os/as docentes foram revelando os movimentos que fazem, posicionando-se em um lugar em que se instaura uma relação de horizontalidade entre o educador e o educando. Pensar o protagonismo juvenil para estes/as docentes significa reconhecer os/as jovens como pessoas ativas no processo, não por uma concessão de espaço possibilitada pelos/as professores/as, mas pelo reconhecimento da condição do/a estudante como possuidor/a de interesses e de projetos pessoais ou coletivos, vinculados ao mundo que os/as circunscrevem. Assim, a relação de reciprocidade se estabelece entre sujeitos que podem definir, mutuamente, os caminhos do processo de conhecimento ali realizado, favorecendo a construção de uma consciência de si, em uma relação de corresponsabilidade, portanto, de compromisso com o outro que também participa ativamente da relação. Nessa direção, o professor Érico apresenta nas suas cartas que o foco de sua condução pedagógica está na possibilidade de os alunos produzirem coletivamente, construírem algo que faça sentido diante da realidade e confira significado aos conhecimentos.

Pois bem, eu percebi uma espécie de tripé na minha prática: (1) eu preciso me aperfeiçoar cada vez mais, estudar muito, ler jornais, literatura [...] eu tinha que decidir se lia ou se fazia planejamentos robustos. Se assistia o que os jovens assistem e ouvia o que os jovens ouvem, ou gastava intermináveis horas fazendo slides e outras coisas. Para mim, era essencial eu estar preparado para a relação com a turma, mais do que preparado para uma atuação. Eu preciso diminuir o protagonismo em sala. Quando o tenho, acabou se revelando uma espécie de interação cheia de sagacidade e humor. Algo entre reflexões pesadas e muitas formas de rir. (2) as práticas dos estudantes é que conferem o aprendizado significativo. Não há nem deve haver nada especial na minha fala para que eles não esqueçam ou esqueçam pouco. O que eles farão nos horários de minha aula é que devem ser marcadores (chamo de totens) de memórias. Então é sempre essencial que eles façam coisas. Em geral projetos que envolvam povos, culturas, tradições e que eles precisem praticar, usar o corpo. Então, fazer artesanato, produzir uma peça, criar uma música, ensaiar um canto, tudo isso é mais eficiente do que ouvir uma aula. Neste aspecto os conhecimentos históricos importam menos. [...]. (3) a absorção das tradições negras e indígenas não é um conteúdo, mas uma ferramenta. Então eu uso cantos coletivos não para que entendam sobre maracatu ou samba, mas para conectar os estudantes uns aos outros. Quero que eles cooperem. Eu uso movimentos corporais não para entender o balé afro, mas para gerar empatia, respeito, zelo pelo corpo alheio. A repetição de um canto coletivo como na capoeira, no maracatu, no coco ou no lundu não é sobre cultura negra. É um mantra, repetir, ouvir outro verso, repetir, entender outra história, repetir o mesmo verso. A repetição não como ferramenta da memorização didática tradicional, mas como interiorização de um sentido mais sutil do aprendizado (Professor Érico, Carta Pedagógica, 26.04.2019).

Em sua escrita, o professor Érico aponta um caminho que perpassa o protagonismo do/a estudante, mas que se agrega às experiências das práticas vividas em sala, como se cada proposta de construção - teatro, música, artesanato, entre outros - se convertesse em um catalisador das construções epistêmicas. Além disso, ele revela um aspecto fundante que é a não didatização de saberes comunitários e ancestrais, mas a devida vivência de valores pautados nesses saberes.

Ao conferir às práticas o lugar de passagem do processo educativo, compreendo que o professor se conecta com os processos de aprendizagem que se constituem de práticas com as quais convivemos. Assim, é no experienciar que os/as estudantes vão conferindo sentidos às aprendizagens e produzindo saberes significativos. Nessa direção, Fleuri (2017) afirma que

A educação passa a ser entendida como o processo construído pela relação tensa e intensa entre diferentes sujeitos, criando contextos interativos que, justamente por se conectar dinamicamente com os diferentes contextos em relação aos quais os diferentes sujeitos desenvolvem suas respectivas identidades, se tornam ambientes criativos e propriamente formativos, ou seja, estruturantes de movimentos de identificação subjetivos e socioculturais (FLEURI, 2017, p. 106).

Compreendo que ao construírem uma relação de ensino-aprendizagem pautada na confiança, nas potencialidades dos/as estudantes, e reconhecê-los/as também como protagonistas deste processo, os/as professores/as abrem clareiras, ajudando a construir outras trilhas pelas quais os/as estudantes possam gerar experiências de aprendizagem baseadas na reciprocidade, que se configura como um modo de (re)existir.

Faço lembrar que a base de uma educação para (re)existir reside também na formação de subjetividades democráticas, que saibam lidar com a diferença, com o confronto, mas que, no debate, não atue para anular o outro, mas para compor modos possíveis de convivência política e social. Sendo assim, entendo que atuar pelo protagonismo dos/as estudantes mostra-se como um caminho para a construção de pedagogias de (re)existência.

Considerações finais

As experiências escritas e narradas nas cartas e nas rodas de conversa anunciam os movimentos insurgentes dos/as docentes. São modos de irrupção, de desvelamento, de produção de (re)existências. Mesmo diante de uma instituição onde ainda se vê a produção de silenciamentos e invisibilidades sobre sujeitos da diversidade, observa-se que os professores se movem, se reorganizam nos espaços onde as ausências foram instaladas. Eles/as criam e recriam caminhos para a profissão, buscam redefinir valores, saberes, modos de agir e atuar junto à comunidade, dão outros sentidos ao fazer docente na educação profissional técnica, em destaque, no Ensino Médio Integrado. Vão instituindo pedagogias de (re)existência, pois compreendem o mundo a partir do Sul, a partir da valorização de outras narrativas e outras epistemologias, e transformam isso em práticas, experiências de insurgência e irrupções de subjetividades mais democráticas. Longe da acomodação, os/as professores/as revelaram que não aceitam passivamente a realidade na qual se encontram. Nessa direção, por meio de suas autorias no trabalho desenvolvido, faço lembrar Freire (2000)

O discurso da impossibilidade de mudar o mundo é o discurso de quem, por diferentes razões, aceitou a acomodação, inclusive por lucrar com ela. A acomodação é a expressão da desistência da luta pela mudança. Falta a quem se acomoda, ou em quem se acomoda e fraqueja, a capacidade de resistir. É mais fácil a quem deixou de resistir ou a quem sequer foi possível em algum tempo resistir, aconchegar-se na mornidão da impossibilidade do que assumir a briga permanente e quase sempre desigual em favor da justiça e da ética (FREIRE, 2000, p. 41).

Nesta direção, entendo que eles/as (re)existem. Eles/as não apenas querem revelar o processo de enfrentamento, de confronto e de permanência na luta pela justiça social, mas, também, a compreensão de que é nesse processo que nos reencontramos, reinventamos nossa existência e nos conectamos uns aos outros, como modo de existir solidariamente.

Nas rodas e nas cartas, foi possível observar que muitos/as docentes não se iludem e sabem que caminhar por tantos obstáculos requer de cada pessoa um tipo de compromisso que transcende a realização de um papel meramente didático. Desse modo, os/as docentes vão construindo práticas e ações que se anunciam como pedagogias que insurgem à lógica mercadológica, meritocrática e excludente, por meio do reconhecimento do direito à existência de todos; da integração com os saberes comunitários e pela descentração do papel do/a professor/a em práticas educativas que reconfiguram a relação do ensino-aprendizagem, trazendo o protagonismo estudantil para a cena.

Estes fazeres são pedagogias de (re)existência, pois enxergo como as questões da diversidade são tomadas como possibilidades, são apontadas como campos de disputa, tanto no que se refere à compreensão e ao desvelamento das estruturas que hierarquizam os sujeitos, como são espaços híbridos, em construção permanente das identidades dos sujeitos e da própria profissão docente. Nesse sentido, esta (re)existência passa pela construção de uma nova territorialidade de ação e de cultura docente, de modo a incidir sobre a compreensão do projeto da escola como espaço para a construção de outra regulamentação produzida pelos docentes, estudantes e comunidades, em ação de partilha e negociação.

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1O presente texto é resultante da Tese de Doutorado intitulada Professores e Professoras do Sul: cartografias da profissão Docente em contexto de diversidade na Educação Profissional Técnica, 2020.

2O estado da Bahia, desde 2007, reordenou o espaço geográfico a partir de Territórios de Identidade com objetivo de elaborar uma caracterização socioeconômica e ambiental dos territórios, tentando identificar suas principais potencialidades e vulnerabilidades. Assim, os territórios são caracterizados por critérios multidimensionais e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade, coesão social, cultural e territorial (BAHIA, 2015). Nos territórios onde os campi da pesquisa atuam registram-se a presença de 34 aldeias indígenas, 80 comunidades quilombolas, além de populações ribeirinhas, assentados e comunidades rurais.

3Observando o cenário do Instituto Federal da Bahia, entre 2008 e 2021, a instituição saltou de 05 campi para 22 campi, 01 Núcleo Avançado, 05 Centros de Referência e 01 Polo de Inovação, atingindo entre cursos presenciais e à distância 113 cidades baianas. Disponível em: https://portal.ifba.edu.br/acessoainformacao/institucional. Acesso em: 22 jul. 2021.

4Entre esses marcos normativos, no início dos anos 2000, foram implementadas a Lei nº 10.639/03, que torna obrigatório o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (Resolução nº 1, de 17/06/2004), instituída pelo Conselho Nacional da Educação (CNE) para regulamentar a lei anterior, além da Lei nº 11.645/2008, que incorpora as discussões ao ensino e às Diretrizes Curriculares de Matriz Indígena. Foram criados também o Decreto nº 5.296/04, referente ao atendimento das pessoas com deficiência e o Decreto nº 5.626/05, que regulamenta a Língua Brasileira de Sinais (Libras).

5Refere-se à diversidade epistemológica defendida como modo de insurgência das lógicas e conhecimentos produzidos em diversas sociedades que foram ignoradas pelas práticas colonialistas. As Epistemologias do Sul partem do princípio de que a pluralidade de compreensão, interpretação e intervenções existentes representa um enorme enriquecimento das capacidades humanas, tendo em vista conferir inteligibilidade às experiências sociais (SANTOS, 2010a).

6A professora refere-se a um projeto de extensão que abre espaços para narrativas anônimas de discentes que queiram contar histórias de assédios e discriminação vividos na escola ou fora dela. O projeto traduz essas narrativas sob forma de apresentações teatrais em eventos do campus.

7Em respeito às normas do Comitê de Ética, serão utilizados codinomes para os/as professores/as integrantes da pesquisa.

8A pesquisa de campo foi realizada entre os anos de 2018 e 2019, ainda sob antiga gestão do IFBA. Atualmente, a instituição tem nova gestão que trouxe como lema a construção de uma escola mais democrática e integrada com a comunidade.

Recebido: 30 de Julho de 2021; Aceito: 20 de Setembro de 2021

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