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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.21 no.71 Curitiba out./dez. 2021  Epub 26-Jan-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.21.071.ao02 

Artigos

Currículos Outros, Sujeitos Outros: novas paisagens no território curricular a partir de uma narrativa-experiência docente

Curriculum Other, Subjects Other: new landscapes in the curriculum territory from a narrative-teaching experience

Otros currículos, otros sujetos: nuevos paisajes en el territorio curricular desde una experiencia narrativa-docente

Danilo Araujo de Oliveiraa 
http://orcid.org/0000-0003-3222-3172

Anderson Ferrarib 
http://orcid.org/0000-0002-5681-0753

aUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Doutorando em Educação, e-mail: danilodinamarques@hotmail.com

bUniversidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG, Brasil. Doutor em Educação, e-mail: aferrari13@globo.com


Resumo

Nosso foco de problematização se inscreve nas relações entre currículo e subjetividades, tomando como provocação a narrativa-experiência de uma professora universitária no encontro com o imprevisível da sala de aula. Perseguindo esse foco de problematizar as relações entre o currículo e as subjetividades, organizamos o texto em três partes: a expectativa, o encontro e a mudança. Todas essas partes dizem e dão forma à narrativa-experiência da professora junto às alunas e aos alunos e seus questionamentos em torno do currículo e de si mesma como resultado desse currículo, mas, sobretudo, nos conduzem para as potencialidades da sala de aula na construção de outros currículos e outros sujeitos. As perspectivas teórico-metodológicas que orientam nossas análises são a pós-critica de currículo e a inspiração dos estudos de Michel Foucault. A narrativa-experiência aqui acionada por nós para pensar o território curricular mostra que, entre os seus ordenamentos, o currículo demanda um tipo específico de professora e professor, aquela e aquele que busca se munir de ferramentas e garantir a realização de um plano e conduzir sua conduta de certo modo, mas, no encontro com o imprevisível do currículo, essa posição de sujeito professora esvanece. Nossa defesa é de que, na sala de aula, emergem possibilidades de constituição de novas paisagens no território curricular que, como efeito, permitem a constituição de currículos outros e sujeitos outros.

Palavras-chave: Currículos; Sujeitos; Narrativa-experiência

Abstract

Our focus of problematization is inscribed in the relations between curriculum and subjectivities, taking as provocation the narrative-experience of a university professor in the encounter with the unpredictable of the classroom. Pursuing this focus of problematizing the relationships between curriculum and subjectivities, we organize the text in three parts: the expectation, the encounter and the change. All these parts tell and shape the teacher's narrative-experience with the students and their questions about the curriculum and themselves as a result of that curriculum, but above all they lead us to the potentialities of the classroom in the construction of other curricula and other subjects. The theoretical-methodological perspectives that guide our analysis are the post-critical curriculum and the inspiration for Michel Foucault's studies. The narrative-experience that we have triggered here to think about the curriculum territory shows that, among its ordinances, the curriculum demands a specific type of teacher, the one who seeks to equip herself with tools and ensure the realization of a plan and conduct in a certain way, but in the encounter with the unpredictability of the curriculum, this position of subject teacher fades away. Our defense is that, in the classroom, possibilities emerge for the constitution of new landscapes in the curricular territory that, as an effect, allow the constitution of other curricula and other subjects.

Keywords: Curricula; Subjects; Narrative-experience

Resumen

Nuestro foco de problematización se inscribe en las relaciones entre el currículum y las subjetividades, tomando como provocación la experiencia narrativa de una profesora universitaria en el encuentro con lo impredecible del aula. Siguiendo este enfoque en problematizar las relaciones entre el currículo y las subjetividades, organizamos el texto en tres partes: la expectativa, el encuentro y el cambio. Todas estas partes dicen y dan forma a la experiencia narrativa de la profesora con las alumnas y los alumnos y sus preguntas sobre el plan de estudios y de si misma como resultado de este plan de ese currículo, pero, sobre todo, nos llevan a la potencialidad del aula en la construcción de otros currículos y otros sujetos. Las perspectivas teórico-metodológicas que guían nuestros análisis son la postcrítica del currículo y la inspiración de los estudios de Michel Foucault. La experiencia narrativa aquí desencadenada por nosotros para pensar sobre el territorio curricular muestra que, entre sus ordenanzas, el currículo exige un tipo específico de profesora y profesor, aquela y aquele que busca equiparse con herramientas y garantizar la realización de un plan y conducir su conducta de cierta manera, pero, en el encuentro con lo impredecible del currículum, esta posición como sujeto profesor se desvanece. Nuestra defensa es que, en el aula, surgen posibilidades para la constitución de nuevos paisajes en el territorio curricular que, en efecto, permiten la constitución de otros planes de estudio y otras materias.

Palabras clave: Currículos; Sujeitos; Narrativa-Experiência

Introdução

O título que adotamos - Currículos Outros, Sujeitos Outros - pode passar, equivocadamente, uma ideia de causa e efeito, que não intencionamos, ou melhor, não acreditamos que haja uma relação unilateral entre currículos e sujeitos em movimentos que vão exclusivamente do primeiro para o segundo, mas sim que essas relações se dão em vias de mão dupla. Currículos outros podem criar sujeitos outros, assim como sujeitos outros também podem criar currículos outros a partir dos tensionamentos que causam, dos conhecimentos que colocam sob suspeita, das imagens que acionam e questionam. Dito isso, esse título é uma aposta nas transformações possíveis entre currículos-sujeitos-currículos, nas potencialidades para a educação e para os sujeitos a partir do imprevisível, daquilo que nos tira do lugar e que, inicialmente, pode causar medo, ansiedade e tensão, mas também descobertas, prazeres e mudanças. Isso nos remete, imediatamente, aos sentidos de currículo e de sujeitos a que estamos vinculados. Sentidos que nos aproximam da perspectiva pós-crítica de currículo associadas ao arcabouço teórico de Michel Foucault, duas perspectivas que têm como tarefa o investimento em outra maneira de pensar a partir da problematização das formas como pensamos e como agimos, em que as linguagens, as verdades, os currículos e os sujeitos são entendidos como resultados dos jogos de força atravessados por relações de saber-poder, o que faz com que estejam em constante construção e disputas.

Esses são alguns esclarecimentos iniciais importantes e que dialogam com o nosso argumento de que, apesar dos investimentos históricos no currículo como conhecimento, que busca responder as questões “quem eu penso que o sujeito é?” e “o que ele deve ser?”, emergem possibilidades de constituição de novas paisagens no território curricular que, como efeito, permitem a constituição de currículos outros e sujeitos outros.

O território curricular é amplo e diversificado, sempre aberto a novas paisagens, a intervenções dos sujeitos e a relações de poder. Território é um conceito utilizado em muitas áreas do conhecimento, como nos mostra Rogério Haesbaert da Costa (2009):

Enquanto o geógrafo tende a enfatizar a materialidade do território, em suas múltiplas dimensões [...], a Ciência Política enfatiza sua construção a partir de relações de poder [...]; a Economia, que prefere a noção de espaço à de território, percebe-o muitas vezes como um fator locacional ou como uma das bases da produção (enquanto ‘força produtiva’); [...] a Sociologia enfoca a partir de sua intervenção nas relações sociais, em sentido amplo, e a Psicologia, finalmente, incorpora-o no debate sobre a construção da subjetividade ou da identidade pessoal, ampliando-o até a escala do indivíduo (COSTA, 2009, p. 37).

Nesse contexto de amplos usos do conceito de território, se insere também a teoria curricular para pensar o currículo na prática, conforme sugerido por Miguel Arroyo (2013) no seu livro Currículo, território em disputa. Para o autor, o currículo é o núcleo central das práticas pedagógicas, é o espaço onde se vivenciam nossas realizações, mal-estares, crises, é o espaço concreto onde nosso trabalho concreto se materializa e particulariza. Todo território está exposto a ocupações e disputas, todo território sacralizado está exposto a profanações, é isso que defende Arroyo, para quem o território curricular está submetido a essas tensões. Mas é isso que movimenta e dá vida ao currículo e traz, por exemplo, “a possibilidade de que as histórias-memórias dos diversos sujeitos sejam contadas, ainda que por meio de outras linguagens” (FAVACHO, 2012, p. 920). É uma outra linguagem não convencionalmente autorizada no currículo oficial que movimenta o território curricular analisado neste texto. Acreditando na potência desses movimentos, acionamos uma narrativa-experiência, porque, também, compartilhamos com Marlucy Paraíso (2009, p. 290) a ideia de que “no território do fazer curricular é possível ver improvisações, encontros, emoções”.

A partir dessas considerações, queremos provocar a pensar o território do currículo a partir de alguns aspectos: suas múltiplas dimensões, as relações de poder, sua força de produção e inventividade, a abertura, a intervenção nas relações sociais e a ligação com as subjetividades. Discussões de uma interdisciplinaridade que nos oferece pontos de vista interessantes para pensar a relação entre currículos outros, sujeitos outros, visto que é nesse território que se configuram a vida e as experiências educativas. As novas paisagens no território curricular que queremos problematizar serão desenvolvidas a partir da narrativa-experiência de uma professora universitária sobre uma prática docente construída em primeira pessoa do singular, assumindo, assim, o desafio de se narrar e se inquietar consigo mesma, com suas formas de pensar e agir, que dizem de um currículo incorporado do/a outro/a e de si mesma, mas também assumindo o lugar de abertura e de construção permanente. A partir dessa narrativa-experiência, queremos problematizar essa prática docente para pensar o currículo, diretamente ligado às subjetividades. A narrativa-experiência que aqui tomamos para reflexão, vivida no ano de 2018, é de uma professora vinculada à Universidade Federal do Acre (UFAC).

Uma realidade e uma narrativa-experiência em que estão implicados os “três elementos fundamentais de toda experiência: um jogo de verdade, das relações de poder, das formas de relação consigo mesmo e com os outros” (FOUCAULT, 2006, p. 231). Experiência que vai constituindo essa mulher como professora. Trata-se de uma atuação da docente no Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) no município de Taraucá, interior do Acre. O programa é definido pela CAPES como uma ação que visa induzir e fomentar a oferta de “educação superior, gratuita e de qualidade, para profissionais do magistério que estejam no exercício da docência na rede pública de educação básica e que não possuem a formação específica na área em que atuam em sala de aula” (CAPES, 2010). Esse programa, no Estado do Acre, que atende a diversos municípios (com formação, principalmente, nos cursos de Pedagogia e de Letras), tem um público oriundo das reservas indígenas, da comunidade ribeirinha e dos próprios municípios contemplados pela iniciativa. A referida professora, que substituía outra docente, fora ministrar a disciplina Linguística Aplicada ao ensino de língua materna, no curso de Licenciatura em Letras-Português, pelo PARFOR.

Perseguindo esse foco de problematizar as relações entre o currículo e as subjetividades, organizamos o texto em três partes: a expectativa, o encontro e a mudança. Todas essas partes dizem e dão forma à narrativa-experiência da professora junto às alunas e aos alunos e seus questionamentos em torno do currículo e de si mesma como resultado desse currículo, mas, sobretudo, nos conduzem para as potencialidades da sala de aula na construção de outros currículos e outros sujeitos.

A expectativa: a imagem do/a outro/a diz de um currículo

É a narrativa que constrói a experiência, que, na perspectiva foucaultiana, adquire um adjetivo, tratando-se de uma experiência histórica (FOUCAULT, 1988). Essa experiência histórica é o resultado de uma certa tensão estabelecida na trama de discursos e práticas que vão dando forma àquilo que somos. Portanto, lembrar, ressignificar o que aconteceu, rever e narrar são processos que ocorrem na relação entre saber, poder e subjetividade. Ao lembrar, no depoimento escrito, a professora vai dando vida ao que viveu, a si mesma como professora, aos sujeitos, aos saberes que a antecederam e possibilitaram viver o que viveu. Nesse jogo entre lembrar e narrar, ela organiza uma linearidade dos fatos e nos traz o saber que antecede o encontro, as imagens que tinha e que foram construídas a partir do que conhecia. Antes mesmo de pensar a aula e o público específico, ela traz uma visão da sala de aula, que diz da professora que ela é. “É de se esperar que uma sala de aula apresente suas complexidades. Complexidades acentuadas na projeção de quem seja o eu e de quem seja o outro, num determinado espaço compartilhado de tempo”.

“É de se esperar”, “complexidades” e “projeção de quem seja o eu e de quem seja o outro” são expressões que nos permitem dizer de uma certa expectativa com o que significa ser professora e o que representa estar na sala de aula no exercício da docência. É um tipo de conhecimento que forma essa professora e que diz de um currículo de formação que ensina “o que ela é” (ou deveria ser) e “o que o/a outro/a é”, assim como o que é a sala de aula e o que esperar desse espaço de encontros. Esse saber que antecede o encontro de fato cria expectativas que antecipa o encontro nas imagens e nas projeções, algo que diz da preparação da professora como uma ação que constitui professoras e professores de forma geral. No entanto, para Foucault (1988), não é a experiência de forma geral que interessa, mas sim a experiência concreta e historicamente situada, ou seja, aquela que ocorre em condições concretas capazes de organizar um tipo particular de experiência.

Essa experiência particular, de acordo com a professora, começou com um planejamento, o qual envolveu muitas leituras, elaboração de um plano de curso acadêmico com base em uma ementa institucional e referências bibliográficas previstas nesse ementário. Preparação e planejamento que vão constituindo essa professora como tal, vão estabelecendo suas relações com o que ela é a partir do encontro com o outro e com os saberes que elege para a sala de aula, local em que essa preparação e esse planejamento serão colocados em prática na expectativa de “dar certo”, fortalecendo-se, assim, como professora, com aquilo que aprendeu do que é ser professora. É essa experiência que cria o sujeito “professora”, não um sujeito universal, mas, antes um sujeito singular professora de uma turma do “PARFOR no município de Taraucá, interior do Acre”. Um sujeito singular, uma subjetividade, um tipo particular de subjetividade que serve para dar vida à experiência histórica (FOUCAULT, 1988). Dessa forma, é importante deixar claro que a questão não é “descobrir a verdade” a partir do sujeito, mas sim problematizar esses jogos de verdade, de saber-poder e de práticas concretas que são defendidas e entendidas como constituidoras dos sujeitos. O planejamento e a preparação, porém, tomam outra forma no encontro, quando saem da expectativa e se transformam em algo concreto.

Na narrativa-experiência da professora, a linearidade, na sequência dos acontecimentos que ela nos relata, anuncia uma ruptura quando ela chega para ministrar a disciplina:

No espaço reservado como sala de aula para os efetivos encontros da disciplina, cheguei munida de datashow, de material didático, previamente selecionado por mim e disponibilizados pela secretaria do Programa, de plano de curso, entre tantos recursos levados por conta própria. Dessa “munição”, que, claramente, parece defesa de um planejamento, a lição: nem tudo cabe num plano.

Por mais que essa lição - “nem tudo cabe num plano” - pareça óbvia, segundo a professora, a obviedade da lição de algum modo não foi mais forte que a preparação e o planejamento, que é parte constitutiva do “ser professora”, que diz da sua experiência como professora. É interessante observar que a expressão utilizada é de guerra: “cheguei munida” e “munição”, expressões que dizem da preparação para uma guerra. E a munição era “datashow, material didático, plano de curso” e outros recursos para a batalha da sala de aula. Pensar em batalha e guerra significa olhar para a sala de aula como espaço de confronto, de relações de força e, sobretudo, significa uma aposta numa vitória. Acionando o currículo como território, podemos dizer que essa sala de aula está inserida na constituição de determinado currículo. Pela narrativa-experiência, podemos perceber que a vitória ocorreria na concretização do que tinha planejado, de maneira que dar aula e ser professora, a princípio, dizem do cumprimento de um planejamento, dessa vitória no território currículo. Mas, numa guerra, na sala de aula e no currículo, o imprevisível é parte do processo e, muitas vezes, representa o grande “medo” das professoras e dos professores que, pelo planejamento, buscam afastar o imprevisível da sala de aula e do currículo, não conseguindo identificar nele um ponto positivo, algo que pode ser explorado e valorizado.

A professora afirma que, entre as complexidades que uma sala de aula pode apresentar, a percepção antecipada de quem seja o eu e de quem seja o/a outro/a ganha certa proeminência. Se pensarmos essa sala ligada a um projeto educativo, podemos vincular a afirmação da docente à questão de que, assim como no cinema, a educação, em espaços convencionais, opera com “modos de endereçamento”. Os “modos de endereçamento” advêm dos estudos do cinema, mas foram explorados por Elizabeth Ellsworth (2001) no encontro com a educação, que é o que nos interessa neste artigo. Para ela, tanto o cinema quanto a educação lidam com endereçamentos, o que nos convida a pensar que trabalhar com o processo educativo significa pensar a ação da professora como resposta a duas questões: quem eu penso que a minha aluna e o meu aluno são?”, “quem eu quero que elas e eles sejam? Dessa maneira, os “filmes, assim como as cartas, os livros, os comerciais de televisão”, até mesmo os projetos educativos e os currículos “são feitos para alguém” (ELLSWORTH, 2001, p. 13) com certos pressupostos que visam e imaginam o sujeito como alguém dado. Na tentativa de ampliar essa análise, queremos estabelecer um diálogo com as pesquisas de Elisabeth Macedo (2012), no campo do currículo, que tem defendido que propostas educacionais definem como o outro deve ser e como se deve proceder para produzi-lo da maneira desejada. Na ansiedade de “descobrir” quem é o/a outro/a, ela busca a experiência da professora que assumia a turma antes. “Não esqueci ainda de considerar a fala da colega a qual substituía, que assim dizia: ‘Aline, é uma turma heterogênea por constituição, muito diferente’. O que acentuava a pertinência de trabalhar, implicitamente, com uma noção ampla de letramento na disciplina”. Mas experiência não é algo que se transfere, tem que ser vivida para se constituir como tal.

A partir da fala de uma amiga, a professora vai estabelecendo “quem eu penso que o meu aluno e minha aluna são”, mas também “quem eu quero que eles e elas sejam”. Trabalhar com essas duas questões significa investir num processo de mudança social, de transformação dos alunos e alunas a partir da ação como professora. Construir outros sujeitos a partir das suas aulas é uma forma de se constituir como professora. Nesse sentido, a narrativa-experiência traz uma importante discussão colocada no campo curricular: a ênfase que tem se dado ao vínculo entre currículo e conhecimento. De acordo com Elisabeth Macedo (2012, p. 720), “as questões em torno do que ensinar se tornaram centrais e se vinculam à preocupação do campo do currículo com o conhecimento”. Isso persiste, segundo a autora, nas mais diversas perspectivas curriculares até a contemporaneidade. Se as teorias críticas questionam as tecnicistas no que se refere às relações de poder no interior da sociedade, as quais influenciam as decisões curriculares, elas fazem isso dando centralidade ao conhecimento como ferramenta de emancipação. Assim, há, de algum modo, uma continuidade de pensamento da redução do currículo ao conhecimento. Processos de seleção e organização do conhecimento, questionamentos de por que determinados conhecimentos são legitimados em detrimento de outros, relação entre conhecimento científico, escolar, popular e senso comum são temas que continuam habitando o contestado território curricular. Ainda que, na década de 1990, as teorias pós-críticas tenham deslocado o foco do conhecimento para cultura, isso é feito de maneira tímida. Dadas essas considerações, a autora sustenta que uma parte considerável das teorias curriculares toma o “conhecimento como categoria central - não o conhecimento como prática de significação, mas como coisa, como produto sócio-histórico que, uma vez selecionado, passa a fazer parte do currículo” (MACEDO, 2012, p. 727).

No entanto, esse movimento tem implicações para a própria definição de educação que acontece em espaços convencionalmente instituídos, concebendo educação resumidamente à ideia de ensino. A construção e a cristalização dessa ideia têm fortes impactos para a educação, desde a “diminuição dos custos da educação pelo estreitamento das expectativas da escola” (MACEDO, 2012, p. 727) até a exclusão no pensamento curricular “de tudo o que é não é passível de ser previamente determinado, e transformando a educação em mero reconhecimento, em inserção no já existente, em uma cultura dada” (MACEDO, 2012, p. 727). O que ganha relevo, quando se vincula currículo a conhecimento/ensino, é a universalidade e a instrumentalização do conhecimento e a definição do currículo como projeção de identidades, contexto que produz uma ação que “busca impedir o surgimento do imprevisto e a manifestação da alteridade” (MACEDO, 2012, p. 733). Algo que também compõe, de certo modo, os modos de endereçamento destacados por Elizabeth Ellsworth (2001), pois operam com “concepções de posições fixas, conhecíveis, localizáveis e, portanto, endereçáveis” (ELLSWORTH, 2001, p. 46).

Quando o currículo é reduzido a conhecimento, com suas pretensões de se produzir, como meta, objetivo ou uma identidade, ele faz isso com tom otimista, desconsiderando, na maioria das vezes, as complexidades das relações assimétricas que acontecem nos espaços escolares. Aqui o conhecimento é visto como parte selecionada da cultura que deve ser ensinada na escola, assumindo um caráter instrumental e técnico, como faz a professora antes de entrar em sala de aula. Assim, a produção da identidade demandada por esse currículo é “vinculada ao domínio de conhecimentos sociais selecionados de fontes diversas por critérios que privilegiam certa universalidade do conhecimento” (MACEDO, 2012, p. 733). O que se deixa de fora, nessa perspectiva, é a ampliação dos sentidos de educação e os processos de subjetivação em nome de uma certa garantia ao sujeito de uma construção de uma identidade que se julga importante conforme os modelos previamente estilizados. Constituem-se, aqui, até nos projetos mais progressistas de inclusão, o outro, o inimigo, conforme defende a autora. Se a identidade projetada nesse currículo deve ser algo para todos os sujeitos, “o inimigo é um sujeito individual, e o que o caracteriza como tal é o não domínio de algo que lhe é externo e que pode ser adquirido” (MACEDO, 2012, p. 735). Esse modo de operar produz a exclusão sustentada na falta, sendo, pois, o inimigo, o indivíduo. Parece que, dado esse funcionamento, não há escapatória para aquelas/es que não respondem de modo desejado àquilo que é demandado nesse currículo. Mas, conforme defendido por Corazza e Tadeu (2003), todo currículo é constituído por relações de poder, de modo que as totalizações estão sujeitas ao fracasso, tornando os deslocamentos e escapatórias possíveis. A narrativa-experiência que acionamos aqui para pensar o currículo se junta ao compromisso de “potencializar tais deslocamentos, reinserindo o jogo da diferença em um discurso que se pretende unitário” (MACEDO, 2012, p. 735).

Se o tema conhecimento tem se tornado central nas teorizações curriculares, a questão “o que ensinar?” tem orientado os currículos. As problematizações e respostas a essa pergunta de algum modo têm se preocupado em produzir políticas de reconhecimento do sujeito na cultura. No entanto, tais políticas são universais e estão inscritas em um regime que busca controlar as formas de representação, produzindo enquadramentos normativos concomitantes ao sujeito não-reconhecível. O currículo funciona aqui como “parte da própria prática de ordenar e regular os sujeitos de acordo com as normas pré-estabelecidas” (BUTLER, 2015, p. 202), estando o reconhecimento atrelado à propriedade de um determinado conhecimento oferecido pelo currículo. Produz-se, desse modo, segundo a autora, uma certa distribuição da vulnerabilidade, pois são ignoradas as singularidades culturais e individuais. É perguntando sobre as formas de ação do poder regulatório que se reconhece a violência da norma. Na contramão desse modo de funcionamento curricular, a autora propõe uma epistemologia não representacional. Esta entende as instituições educativas como lugar de inter-relações e o conhecimento como um vazio que passa estimular atos de construção e descobertas sempre em relação ao/à outro/a. Nessa epistemologia “algo acerca do que somos se revela a nós, algo que desenha os laços que nos ligam ao outro, que nos ensina que estes laços constituem o que somos” (BUTLER, 2009, p. 48). Para problematizar esse modo de reconhecimento no território curricular, propomos, através da narrativa-experiência da docente, compreender que “a educação fala do outro como aquilo que ainda não foi inventado e esse/a outro/a não cabe numa lógica do re-conhecimento” (MACEDO, 2012, p. 541). Por mais que a expectativa seja importante para a professora, que tenha antecipado esse “outro” a partir de um saber, ela demonstra a abertura à novidade, ao imprevisível.

O encontro: o currículo com o/a outro/a

A multiplicidade de alunas/os e seus diferentes desejos constituíram o primeiro impacto para alçar o plano linear da docente a descontinuidades:

Naquela sala tinha: alunos ribeirinhos, alunos do município e alunos indígenas de três diferentes etnias (Shanenawa, Yawanawa, Huni Kuin), um público que se ligava pelo mesmo desejo, o de formação, mas por representações diferentes desse desejo. O que me fez perceber que meu plano sairia do plano.

Assim, o encontro com a sala de aula e com sua diversidade fez a professora “perceber que o seu plano sairia do plano”, como ela afirma. Se o planejamento da aula faz as professoras e professores trabalharem com as questões “quem eu penso que a minha aluna e o meu aluno são”, “quem eu quero que elas e eles sejam”, como defende Ellsworth (2001), é o encontro com as alunas e os alunos e seus desejos que nos mostram que nem sempre quem eu penso que elas e eles são corresponde ao que elas e eles são, assim como o que eu quero que elas e eles sejam significa um acordo com o que elas e eles querem ser. As possibilidades de erro estão postas o tempo todo e isso não é um problema. Além disso, outra marca provoca tensões no plano da docente, o modo como cada aluna/o se relacionava com a língua portuguesa. A língua portuguesa não se constituía como primeira língua para algumas/alguns dessas alunas e desses alunos. No que se refere ao contato com a leitura e escrita dessas/es discentes, esse contato não vinha de uma ordem que pressupunha uma escolarização linear (alfabetização, ensino fundamental e ensino médio). Apesar de a questão da heterogeneidade da linguagem ter feito parte da constituição dessa docente enquanto professora, a possibilidade de pressupor o uso de outras práticas de linguagem que não são previamente estabelecidas em seu plano não ocorreu. Logo no primeiro encontro com a professora, as alunas e os alunos relataram a dificuldade enfrentada por elas/es no trabalho com leitura e escrita em língua portuguesa, principalmente as alunas e os alunos indígenas, muitas/os delas/es tendo passado por dificuldades nos processos de alfabetização. A professora ainda tentou viabilizar algumas de suas propostas com leitura e escrita, mas só pôde confirmar essa dificuldade. Mas essas alunas e alunos tinham algo em comum, o modo como elas e eles se aproximavam das letras envolvia prática de oralidade da linguagem. Um dos alunos, em um retorno das atividades escritas, sugeriu haver uma temporalidade que separava a prática da professora do modo como elas/es aprendiam. Esse conjunto de narrativas surge como reflexão para a professora que passa a questionar os lugares que professora/or e aluna/o ocupam em um processo de ensino/aprendizagem:

[…] a teoria, necessária e que seria ali aludida, só faria sentido se antes reconhecêssemos o que fazia nós estarmos partilhando aquele espaço de tempo. Não se tratava só de ir formar novos professores, muitos deles já atuavam, mas sem essa formação em nível superior. Para mim, envolvida por diversas teorias que (re)definem nossas práticas em sala de aula, tratava-se de reconhecer o lugar que essa formação ocupava na vida daqueles alunos/comunidades.

O contato com a turma e a intervenção de um aluno a partir dos seus lugares e experiências e a reflexão da professora fizeram os planos iniciais serem alterados, conforme complementa a docente:

Ainda sobre esse dizer (que evocou diferentes temporalidades do aprender a ler e a escrever), ele foi o gatilho que precisava para reconstruir novamente o plano de curso num intervalo curto de tempo, porque a disciplina tinha uma duração de praticamente duas semanas.

A partir dessas falas, voltamos às reflexões de Macedo (2012) que defende a redefinição dos sentidos de currículo para além do conhecimento. Não se nega aqui a importância do ensino, mas uma instituição educativa “não pode se contentar em ensinar a linguagem dessa comunidade, em transformar o sujeito em representante dessa linguagem, sob pena de torna-lo um sujeito genérico” (MACEDO, 2012, p. 734). A educação pode se entrelaçar com a possibilidade da emergência do sujeito como aquele que surge do inesperado. Dessa maneira, poderemos ampliar nosso olhar para o currículo para entendê-lo como “instituinte de sentidos, como enunciação da cultura, como espaço indecidível em que sujeitos se tornem sujeitos por meio de atos de criação” (MACEDO, 2012, p. 735-736). Aqui não se trata de uma perspectiva de reconhecimento, mas de uma maneira de lidar com o sujeito singular.

A ação inicial da professora se inscreve e se relaciona com a perspectiva curricular que está vinculada ao conhecimento. Ela, assim como muitas/os de nós, procura assegurar a realização de um plano que tem por base a importância do conhecimento a ser ensinado. É isso que move a professora e constitui seu plano inicialmente desenhado, o que, de certo modo, mostra como havia um modo de operar com o endereçamento e, ao mesmo tempo, com um certo projeto de constituição de uma aluna e um aluno que o currículo do PARFOR demanda. Para isso, ela se cerca de uma certa munição para garantir que esse plano ocorra conforme desejado, sendo essa munição precedida de muitos estudos teóricos no âmbito de sua própria formação para produção de um currículo para essa turma de ensino. A mensuração nessa forma de organizar o pensamento não somente é possível, como desejável. Isso parece compor a “obviedade” de como comumente entendemos a sala de aula, conforme defendido pela docente, e, também, os currículos. Obviedade pode ser entendida como fatos dados e cristalizados que não somente informam, mas sancionam as experiências curriculares.

O prelúdio da organização de um currículo que pretende, na experiência da professora aqui explorada, ministrar a disciplina Linguística Aplicada ao ensino de língua materna, no curso de Licenciatura em Letras-Português, pelo PARFOR, trata-se de um processo que visa que o indivíduo se reconheça na cultura. Nesse processo, a linguagem é central, visto que é com ela que se opera para esse reconhecimento, com uma certa prioridade para as práticas de leitura e de escrita. Afinal, são elas que têm sido tomadas como formas de representação que atestam a aprendizagem da aluna e do aluno, devendo todo aprendizado não somente ser demonstrável, mas também reconhecível. A condição de docente está inserida nesse projeto de reconhecimento, que, inclusive, organiza um projeto traçado de antemão. No entanto, a organização curricular da professora para no prelúdio, sendo interrompida por uma demanda do próprio currículo na prática que aqui se mostra mais uma vez imprevisível e contingente. Não queremos dizer que, ao nos organizarmos como professoras e professores, necessariamente, precisamos escapar da construção de projetos educativos e dos currículos. Certamente fazemos e faremos suposições acerca de quem sejam nossas alunas e nossos alunos e dos objetivos que queremos alcançar com esses projetos e currículos, mas podemos afirmar que esses projetos são sempre rascunhos, estão na ordem do indecidível e da necessidade da abertura ao que pode acontecer com eles para que a educação esteja inscrita na vulnerabilidade ao outro. Isso porque se entende que a “experiência educativa é a experiência de ‘estar com o outro’, que só é possível na vulnerabilidade constitutiva da subjetividade” (MACEDO, 2018, p. 16).

Nessa virada curricular, a experiência que se desdobra aproxima a narrativa-experiência da docente com um comprometimento outro com a educação, passando a interessar, a partir de agora, “o conhecimento como ausência porque é essa essência que nos permite a experiência de estar com o outro” (MACEDO, 2017, p. 541). É a experiência de estar com o/a outro/a que permite que a construção de nossa subjetividade esteja sempre em contingência, inacabada, em formação, de maneira que todo endereçamento esteja fadado ao fracasso e que toda projeção a um eu não se efetue do modo desejado. No território curricular, isso pode acontecer das mais diversas maneiras. Na narrativa-experiência que estamos explorando isso se dá em torno da linguagem.

Essa sala de aula, a qual rememoro, formava-se por muitos outros, em que o trânsito (para alguns deles) com língua materna já apontava para uma outra complexidade: a de que, embora todos os alunos fossem falantes de língua portuguesa, a língua portuguesa não se constituía como primeira língua para alguns desses alunos.

As diferentes relações das alunas e dos alunos com a língua portuguesa aparecem como um desafio para a professora, que diz da relação com o/a outro/a, não somente das alunas e dos alunos entre si, mas da professora com essas alunas e esses alunos. A experiência educativa que se desencadeia a partir de agora na narrativa-experiência da docente altera, de maneira substancial, todo o seu planejamento ou, nas palavras dela, algo “me fez perceber que meu plano sairia do plano”. Essa relação com o outro diz não somente da constituição do sujeito, mas também dos currículos, os quais precisam ser reconstruídos a partir dessa relação. Conforme relatado pela professora, essa relação possibilitou “o encontro com outras práticas de linguagens, não colocadas no plano de curso nem mesmo na minha bagagem”. São as relações com o/a outro/a, não aquele/a outro/a projetado por nós, e nossa condição de vulnerabilidade nessa relação que permitem entender que essas relações consistem em placas tectônicas que constituem sempre novas paisagens para o território curricular, fazendo emergir o não previsível e os processos de subjetivação inventivos. A paisagem que se desenha na narrativa-experiência da docente é de uma relação outra com a linguagem. Assim, foi necessário, a partir da relação com o/a outro/a, com a realidade dessas alunas e desses alunos, problematizar o lugar da leitura e de escrita. Trata-se de algo que envolve o processo de subjetivação da professora:

Esse dizer me fez repensar que a teoria, necessária e que seria ali aludida, só faria sentido se antes reconhecêssemos o que fazia nós estarmos partilhando aquele espaço de tempo. Não se tratava só de ir formar novos professores, muitos deles já atuavam, mas sem essa formação em nível superior. Para mim, envolvida por diversas teorias que (re)definem nossas práticas em sala de aula, tratava-se de reconhecer o lugar que essa formação ocupava na vida daqueles alunos/comunidades.

A partir dessa relação de estar com as alunas e com os alunos, a professora, não somente envolvida, mas constituída por determinadas teorias, precisa tornar-se outra de si mesma. Parece que fixar-se nessas teorias e nesse modo de ser professora não era suficiente para dar continuidade àquele plano inicialmente proposto. Nesse sentido, é com o/a outro/a que se pode repensar e fazer emergir um outro modo de reconhecimento. Um reconhecimento que emerge desse estar com. Nesse sentido, corroboramos com Elisabeth Macedo (2018), quando essa entende que “mesmo que as propostas educacionais projetem o outro, sempre será possível existir de outra maneira, produzir-se em outros reconhecimentos que não aqueles projetados” (MACEDO, 2018, p. 16). Isso reverbera na potência dos currículos como lugar inventivo e na possibilidade de reconhecer que

[…] não importa quão cuidadosamente os objetivos sejam estabelecidos, os currículos planejados e implementados, não existe qualquer garantia de que as subjetividades e os conhecimentos sociais oferecidos às alunas serão apropriados de acordo com a intenção com que foram imaginadas. Pois não se trata apenas do fato de que as subjetividades são sempre problematicamente ocupadas, mas de que elas também têm que passar pela “emaranhada e confusa dinâmica do desejo, da fantasia e da transgressão” (O’SHEA, 1993, p. 504).

A narrativa-experiência da professora nos convida a dar lugar a essa falta de garantia de concretização efetiva do que foi planejado, porque a vida não cabe nos enquadramentos dos conhecimentos, ela escapa. O currículo é estabelecido nos jogos das identidades, que se organizam pelos encontros, pelos saberes sobre o/a outro/a que nos constituem antes mesmo do encontro e que nos enquadram, assim como enquadram o/a outro/a. Mas entre o que eu penso e o “que eu sei” que o/a outro/a é, está o/a outro/a, aquilo que ele ou ela pensa que é, que escapa e nos tira do lugar, mas que nos provoca a colocar o pensamento em movimento.

A mudança: um novo currículo a partir do/a outro/a

Dizer de mudanças no território curricular é tomá-lo como em constante relação de saber-poder e ação dos sujeitos. O saber, aquilo que, em cada momento histórico, somos capazes de dizer (seus enunciados) e de ver (suas evidências), não pode ser confundido com a Ciência (FOUCAULT, 2006). O território curricular é marcado por esse entendimento de saber, ou seja, é marcado por aquilo que somos capazes de dizer e ver. Como defende Foucault (2006), não há nada antes do saber, visto que é o saber que nos possibilita ver o que vemos e dizer o que dizemos. A mudança está implicada na potencialidade de colocar sob suspeita o que vemos e o que dizemos. É esse o processo que a professora coloca em circulação, quando se dispõe a se colocar como objeto de investigação. Então, pensar um novo currículo a partir do que o/a outro/a foi capaz de provocar é sempre pensar um novo “sujeito professor” e suas condições de possibilidade, que são sempre históricas, ancoradas em experiências singulares e nunca em toda experiência possível. Quando a professora se vê nessas relações com o que planejou e o que foi capaz de mudar, ela se transforma e se coloca, ela mesma, em lugar de visibilidade.

Os encontros dessa professora com a sala de aula, com as alunas e alunos, com suas falas, desejos e realidades fizeram-na vivenciar situações não pensadas, ao mesmo tempo que a colocavam diante de suas “verdades” sobre sala de aula, sobre planejamento, sobre currículo, sobre ela mesma como professora. Essa é a questão que nos interessa nessa discussão com o currículo, ou seja, como essa professora foi levada a experimentar a si mesma no enfrentamento com os jogos de verdade, dos saberes que a constituem como professora e de relações de força e como esses enfrentamentos foram importantes para colocar sob suspeita o currículo que acionava para pensar um/uma outro/a e uma outra de si mesma. Podemos sugerir que um novo currículo só foi possível na medida em que a professora assumiu o desafio de se colocar em questão, de interrogar o currículo, o que tinha planejado, de maneira que ela foi capaz de indagar sobre os efeitos e os sentidos estratégicos das verdades e dos saberes sobre si mesma, sobre os alunos e alunas, assim como as práticas que as verdades e os currículos vinculam. Ela consegue ouvir as alunas e alunos e consegue perceber que elas e eles apontavam para outro processo, um modo de dizer de si não pelo o que elas e eles não têm, mas por aquilo que trazem como constituição de si.

Cada história contada por eles de como se aproximaram das letras não envolvia, necessariamente, o processo de escolarização, o que havia em comum nessas histórias era o contato com a língua via o modo de enunciar falado, ou seja, com as práticas de oralidade que envolve a linguagem. Friso o dizer de um aluno, de quando dei retorno de uma atividade de escrita realizada por esses discentes, mesmo sabendo que não explicitarei o modo como foi dito. Tento recuperá-lo em razão da força desse dizer: “temos praticamente a mesma idade, professora, e quando a senhora estava terminando a sua graduação, eu estava aprendendo a ler e a escrever” (aluno indígena). Fala que me chamou atenção, porque vinha como espaço de negociação e de abertura desse retorno da atividade realizada, mas não encerrada.

A professora conclui essa narrativa-experiência identificando o momento em que se dá a mudança a partir do que o/a outro/a traz: “Essa fala veio como um clarão: o que estávamos fazendo ainda estava distante do que nós - de lugares distintos - trazíamos como bagagem”. Na primeira parte do artigo, a professora utilizava um jargão de guerra, dizendo de “munição”, o que nos conduziu a pensar o território curricular como um campo de batalha ou, como dito por Miguel Arroyo (2014), um território em disputa, em que a vitória pode ser entendida como a concretização do que “eu professor” propus. No entanto, podemos encontrar, nesse território, conforme defendido por Paraíso (2010), “bifurcações”, “escapes” e “linhas de fuga”. Assim, podemos fazer, por meio de encontros e composições, um caminho outro. Se, no início, antes do encontro com as alunas e alunos, a professora estava na sua trincheira pensando o campo de batalha e se munindo, em outro momento, quando ela vai ao encontro, disposta a se afetar pelo outro, aberta às novas possibilidades, ela aciona outra metáfora - a viagem - e nos diz que o que trazia na bagagem (não mais a munição) não eram os artefatos necessários para aquela viagem, demonstrando o quanto de estrangeiro ela tinha nesse encontro.

Não é de hoje que o currículo é entendido como processo, como objeto de negociação entre contextos culturais e sujeitos distintos, de maneira que muitas vezes o currículo é definido como um sistema que é capaz de criar ao seu redor um campo de ação que constitui saberes, professoras e professores, alunas e alunos (SACRISTÁN, 1998). Esse é um entendimento incorporado e acionado na prática da professora. No entanto, o fato narrado demonstra que outros sujeitos e outras relações de força atuam na sala de aula e interferem nesse currículo. A segurança que é buscada no planejamento é substituída pela insegurança do encontro, de um novo caminho. Esse processo constitui novos sujeitos, novos currículos e novas experiências. A reviravolta para um outro modo de fazer, para um novo currículo, só foi possível a partir da transformação do currículo em problema de investigação, da ação da problematização, segundo Foucault (2006), vinculada à história do pensamento.

O pensamento não é o que se presentifica em uma conduta e lhe dá um sentido; é, sobretudo, aquilo que permite tomar uma distância em relação a essa maneira de fazer ou de reagir, e tomá-la como objeto de pensamento e interroga-la sobre seu sentido, suas condições e seus fins. O pensamento é liberdade em relação àquilo que se faz, o movimento pelo qual dele nos separamos, constituímo-lo como objeto e pensamo-lo como problema (FOUCAULT, 2006, p. 231-232).

Um novo currículo passa por esse entendimento do pensamento como liberdade. A professora realizou um movimento de análise crítica do que estava proposto como currículo e do que tinha definido no planejamento para atingir esse currículo, uma análise crítica que a conduziu a pensar em diferentes soluções para aquilo que foi se constituindo como um “problema”. Nesse caminho, ela também busca acionar outras experiências, se não dela, de outras pessoas que pudessem contribuir em novas soluções perseguindo, novamente, a segurança para suas ações. Assim como fez quando fora convidada para assumir a disciplina e queria saber quem eram as alunas e alunos para se “preparar”, ela também volta a considerar a experiência da antiga professora quando conhece, de fato, as alunas e os alunos, atribuindo certa autoridade de avaliação advinda da experiência. Ela procura ajuda em quem reconhece com autoridade a partir da experiência, no caso, a professora que lidava com a turma há mais tempo e que a convidara para substituí-la.

De retorno ao hotel, fiz uma ligação para mesma colega que havia me avisado: “é diferente”. Conversamos por horas sobre esse processo de ensino e aprendizagem para o público que tinha ali e, ao desligar o telefone, resolvi que embora a disciplina fosse teórica, faríamos uma inversão de caminho. Partiríamos do empírico, ou seja, partiríamos das narrativas que embalaram a vivência desses alunos com a língua materna, o que hoje considero um ganho na disciplina, uma vez que essas narrativas trouxeram as marcas de práticas de oralidade que emergiam com tamanha força no letramento desses alunos.

Inserindo a narrativa-experiência dessa prática docente no campo curricular, podemos inferir que o planejamento da professora para as atividades que ela iria desenvolver está inscrito sob a inteligibilidade curricular, se pensarmos que o currículo é um

território povoado por buscas de ordenamentos (de pessoas e espaços), de organizações (de disciplinas e campos), de sequenciações (de conteúdos e níveis de aprendizagens), de estruturações (de tempos e pré-requisitos), de enquadramentos (de pessoas e horários), de divisões (de tempo, espaço, áreas, conteúdos, disciplinas, aprendizagens, tipos, espécies...) (PARAÍSO, 2010, p. 588).

Dessa maneira, um planejamento, de algum modo, assegura que essas buscas tenham sucesso. Mas um currículo é também um território de multiplicidades de “todos os tipos, de disseminação de saberes diversos, de encontros ‘variados’, de composições ‘caóticas’, de disseminações ‘perigosas’, de contágios ‘incontroláveis’, de acontecimentos ‘insuspeitados’” (PARAÍSO, 2010, p. 588). Como o imprevisível constitui o currículo, isso faz com que, muitas vezes, os planejamentos neles demandados sofram inflexões, percam seus sentidos inicialmente construídos e até mesmo precisem de uma outra construção, conforme o exemplo encontrado na narrativa-experiência da professora.

A cada encontro novas narrativas, todas orientadas pelo mesmo fio temático: o contato com a língua materna. Em se tratando dos indígenas, cânticos foram realizados, isso nas três línguas das comunidades ali presentes, eles eram as formas de imersão e de contato que aqueles grupos tiveram com sua língua de origem. Não era o lápis o instrumento para marcar o dizer, e sim o violão. Esse instrumento era o instrumento de reescritura das narrativas que entoavam/resgatavam a memória de uma comunidade. As cordas do violão, juntamente com a fala, reforçavam as linhas de um suposto caderno.

Trata-se de uma transformação que toma o imprevisível como potência, como força criativa e não como situação que imobiliza. Ela ressignifica sua experiência e, tomando-a como formativa, demonstra que a transformação passa pela sala de aula e por um projeto que parta das alunas e alunos, do que elas e eles trazem como saberes. A transformação de si passa pela transformação do/a outro/a, passa por novas imagens do/a outro/a, dando possibilidade de o/a outro/a se mostrar na sua outridade, de maneira que possamos “dar espaço para a vida, dar lugar a possibilidade, ao acaso” (AHMED, 2010, p. 20). Nossa crença é de que os territórios curriculares dizem das subjetividades. Quando a professora toma o desafio de olhar para sua prática, ela não limita esse olhar para si mesma como resultado da rede de ações e indivíduos, mas, sobretudo, como estabelecimento da relação consigo mesma como sujeito no exercício de suas ações.

É nessa relação consigo mesma que a transformação acontece como criação de algo novo, de currículos e sujeitos novos. O pensamento de Foucault (2014) nos convida a pensar esses processos educativos que envolvem a constituição dos sujeitos, quando o autor aborda a problemática do sujeito em duas direções. Por um lado, o sujeito no assujeitamento, ou seja, quando é subjetivado pelas forças do saber-poder. Por outro lado, a subjetivação, quando se coloca como problema de investigação, o sujeito em ação sobre si mesmo, abrindo novas possibilidades de existência a partir das condições de emergência (FOUCAULT, 2014). Não são duas perspectivas independentes, mas que dialogam e interferem mutuamente. Trazer para discussão novos currículos e novos sujeitos sob inspiração do pensamento foucaultiano é localizar esse debate nos três tipos de lutas do poder: contra as formas de dominação, contra os mecanismos de exploração e contra os processos de subjetivação e assujeitamento (FOUCAULT, 2014, p. 123). Para o autor, são os processos de subjetivação e assujeitamento que predominam na atualidade, de maneira que a questão que “se impõe hoje é recusar aquilo que nós somos” (FOUCAULT, 2014, p. 128), como resultado de formas históricas de subjetivação e assujeitamento.

Considerações finais

Os investimentos nos territórios curriculares buscam produzi-los cheios de ordenamentos, sequências, grades, delimitações, estabelecimento de fronteiras, a fim de que os efeitos que se pretendem sejam alcançados. No entanto, é no encontro com o/a outro/a que todos esses investimentos vacilam, que emergem possibilidades de deslocamento, de outras paisagens no território curricular, paisagens essas constituídas também por sujeitos outros de si mesmos.

A narrativa-experiência aqui acionada por nós para pensar o território curricular mostra que, entre os seus ordenamentos, o currículo demanda um tipo específico de professora e professor, aquela e aquele que busca se munir de ferramentas e garantir a realização de um plano e conduzir sua conduta de certo modo, mas, no encontro com o imprevisível do currículo, essa posição de sujeito professora esvanece. Esse imprevisível é possível porque um currículo se constitui com as vidas que vivem o currículo, fazendo-o tornar-se vivo também. Essas vidas mobilizam e são mobilizadas por esse currículo em movimento, trazendo para nós “uma perspectiva de currículo como uma trama, um emaranhado de laços, no qual as vidas se constituem por compartilharem experiências de deslocamento” (RANNIERY, 2018, p. 234).

Essas experiências de deslocamento não dizem apenas de novas paisagens curriculares - com a inserção de linguagens não autorizadas ou legitimadas pelos poderes que investem o currículo de hierarquizações e engessamentos, como vimos aqui - mas dizem também da constituição de sujeitos outros que se permitem ser atravessados/as e tocados/as nos encontros com o/a outro/a. Nesse sentido, nosso interesse na narrativa-experiência da professora, mesmo mobilizados para pensar o território curricular, diz mais sobre as vidas e os sujeitos, afinal todo currículo quer um tipo de sujeito, um currículo produz sujeitos. Assim, queremos afirmar a imprevisibilidade do currículo, as possibilidades que o encontro com o/a outro/a traz para produção de sujeitos outros de si mesmo. Aqui está a potência de um currículo, quando é possível os sujeitos problematizarem-se e se constituírem de modos outros. Outras paisagens curriculares serão mais possíveis e modos de vidas outros serão mais vivíveis e não mais o mesmo, o dado e o instituído que conformam o território curricular. A narrativa-experiência aqui explorada mostra que, “mesmo diante de restrições, é potente dispor de nossa perspicácia intelectual em torno de como os currículos carregam consigo um arquivo composto de transformações improváveis das condições de estar vivo” (RANNIERY, 2018, p. 215). Nossa aposta foi demonstrar que os currículos existem na potência dos sujeitos em seus processos de questionamento, de liberdade do pensamento e das problematizações do que sabemos e como agimos.

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Recebido: 30 de Novembro de 2019; Aceito: 20 de Fevereiro de 2020

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