Introdução
O uso intensificado de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) em atividades diárias - tais como trabalho, estudo, lazer - tem provocado discussões de extrema relevância para o entendimento de questões ligadas ao interesse, cada vez maior, de crianças por esses equipamentos. É provável que a constante utilização de recursos digitais por adultos tenha despertado, na maioria delas, um envolvimento e um fascínio não observados, até então, em bebês e crianças pequenas de gerações anteriores. Percebe-se que, em certas situações, determinados adultos têm tirado proveito deste envolvimento - em nossa concepção de maneira abusiva e desnecessária - para acalmar ou distrair crianças, por exemplo, em circunstâncias que exijam delas paciência e/ou serenidade.
Assim, ressalta-se, mesmo que por observações informais, a facilidade, agilidade e mesmo plasticidade na aprendizagem e manuseio desses equipamentos por crianças pequenas. Mas será que estas características imperam de maneira semelhante em todas as crianças na faixa etária de quatro e cinco anos de idade? Será este uso adequado às crianças da Educação Infantil (EI)? Quais os benefícios e os prejuízos acarretados por essa utilização em seu desenvolvimento?
Sabe-se que essa utilização tem sido alvo de grande preocupação tanto de profissionais da área da saúde - que já listam problemas como: cefaléias, transtornos de sono, miopia, perda auditiva, insuficiência de vitamina D, problemas na coluna e no desenvolvimento dos ossos, dores de cabeça, Síndrome do Toque Fantasma (sensação de sentir o celular tocar sem que, de fato, tenha tocado), nomofobia (medo de ficar sem o aparelho celular), depressão, entre outros - quanto de profissionais da área da Educação, que se preocupam com os possíveis prejuízos no ensino e na aprendizagem e também no desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo e social de seus alunos. Mas, então, quais seriam as maneiras mais interessantes de incluir as TDIC nas escolas, em práticas que contribuíssem para determinadas habilidades que desejamos que se desenvolvam?
Oliveira, Mello e Franco (2020), fundamentadas na Teoria Histórico-Cultural, analisam as práticas de ensino com o uso de TDIC da seguinte maneira:
[...] entendemos que as tecnologias digitais por suas potencialidades de comunicação, interação, interatividade, hipertexto, simulação, convergência, mobilidade e ubiquidade, se inseridas em uma organização didática, podem contribuir com o desenvolvimento cognitivo dos alunos e a aprendizagem de conteúdos científicos (OLIVEIRA; MELLO; FRANCO, 2020, p. 76).
Como exemplo do potencial das TDIC na área da educação, podemos mencionar o seu uso durante a Pandemia da COVID 19, na qual a necessidade do distanciamento social obrigou as escolas a suspenderem as aulas e buscarem alternativas para a continuação do ensino de milhares de alunos de todos os segmentos educacionais, incluindo a EI. As dificuldades enfrentadas por todos os envolvidos deram visibilidade para o campo de uso das TDIC, permitiram problematizações quanto ao uso generalizado do termo nativo digital e percepções mais acuradas sobre os desafios da incorporação de recursos tecnológicos no trabalho pedagógico, que também compreendem o ensino e a aprendizagem das crianças pequenas da EI - apesar da pouca importância que se tem dado a este segmento no que tange à implementação de recursos digitais em seu currículo.
Esse desinteresse foi igualmente percebido no campo científico, em que constatamos - por meio de pesquisa bibliográfica1 - ausência de investigações referentes ao uso das tecnologias digitais por crianças da EI, evidenciando a necessidade de se desenvolver mais estudos. Embora, em nossa pesquisa bibliográfica, não tenhamos identificado nenhuma investigação referente ao assunto, no decorrer do estudo sobre a temática encontramos investigações mais próximas do nosso objeto de pesquisa - ainda que com aportes teóricos distintos da Teoria Histórico-Cultural. Estas pesquisas apresentam-nos resultados relevantes sobre o uso de TDIC em turmas da EI.
Magalhães, Ribeiro e Costa (2016), por exemplo, ao analisarem a inserção das tecnologias digitais em duas escolas de EI afirmam:
No caso da Educação Infantil, quando utilizamos recursos tecnológicos digitais, possibilitamos as crianças a ter contato com imagens, sons e movimentos muito mais próximos do real. E todos nós, técnicos em educação, sabemos que a aprendizagem da criança só se torna significativa se ela identifica isso em seu mundo, em seu contexto. Além de as tecnologias digitais possibilitarem um interesse e um envolvimento muito maior dos alunos nas aulas porque é um recurso no qual eles fazem parte, eles se identificam e se interessam (MAGALHÃES; RIBEIRO; COSTA, 2016, não p.).
As estudiosas problematizaram o uso que, comumente, é feito das TDIC: por não serem colocadas como “aliadas ao pedagógico, o seu uso acaba sendo feito de forma aleatória, sem objetivo a ser atingido” (MAGALHÃES; RIBEIRO; COSTA, 2016, não p.). Assim, concluíram que “o aluno aprende a manusear a tecnologia, mas não a vê como um instrumento para seu aprendizado. Isso se dá, inclusive, pela falta de preparo dos profissionais para lidarem com os novos recursos” (Idem, não p.).
Pasqualini e Tsuhako (2016) explicam que:
A capacidade de estabelecer finalidades para suas ações não surge espontânea ou naturalmente na criança, mas precisa ser conquistada por ela, sendo que essa conquista depende fundamentalmente das condições de educação que lhe são proporcionadas (PASQUALINI, 2016, p. 96).
Para a pesquisadora este é um processo que depende das intervenções e mediações do professor e por isso
É fundamental que o professor, ao propor determinada atividade pedagógica, construa com a criança finalidades para suas ações, finalidades essas que a criança não apenas compreenda mas sinta-se inclinada ou motivada a perseguir, isto é, que mobilizem a criança afetiva e cognitivamente (PASQUALINI, 2016, p. 96).
Para Oliveira, Mello e Franco (2020), novas aprendizagens proporcionadas pela escola - por meio de suas atividades práticas - propiciam a movimentação em direção ao desenvolvimento do homem. “Esse novo conhecimento forma o novo homem. Logo, as tecnologias digitais são o novo, que por meio das boas práticas forma o novo homem” (OLIVEIRA; MELLO; FRANCO, 2020, p. 80). Entretanto, Magalhães, Ribeiro e Costa (2016) chamam a atenção para o fato de que o uso das novas tecnologias não está viabilizando mudanças no ensino e na aprendizagem dos alunos e propõem a seguinte reflexão:
[...] para que as tecnologias digitais realmente mudem a educação elas precisam ser vistas como um material pedagógico da escola, assim como um livro didático, um jogo pedagógico. E principalmente, deve estar ligado à proposta pedagógica a fim de proporcionar o desenvolvimento do aluno. (MAGALHÃES; RIBEIRO; COSTA, 2016, não p).
Santos, Almeida e Zanotello (2018, p. 334) parecem compreender a inserção de TDIC nas escolas de maneira semelhante à destas autoras, afirmando que é preciso “tornar a sala de aula um ambiente equipado com recursos que estejam à disposição de alunos e professores para uso regular e em condições adequadas, conforme suas demandas e seus interesses, como ação natural e constante”. Em defesa da inserção de TDIC nas unidades de EI, Machado (2014, p. 26) assegura que o tablet “pode ser utilizado em diferentes situações didáticas, desde que contextualizado nas características da faixa etária, nas suas possibilidades cognitivas e na proposta didática da turma”.
Em nosso estudo, nos deparamos ainda com uma pesquisa que muito se aproxima da nossa; trata-se do trabalho de Silva, Souza e Fagionato-Ruffino (2019), que abordou a relação de crianças com a natureza, a partir de imagens obtidas por tablets, celulares e máquinas fotográficas. A proximidade se dá não só pela escolha do tablet como instrumento, mas por envolver o registro feito por crianças sobre suas experiências em um determinado ambiente.
Assim, imersas nestas discussões, desenvolvemos investigação com objetivo de examinar o uso de um tablet para (re)significações e (re)interpretações de crianças sobre suas experiências no contexto escolar. Algumas considerações sobre a abordagem Histórico-Cultural são necessárias.
Estudioso dos fundamentos marxistas, L. S. Vigotski, fundador do referido modelo, apontou no Materialismo Histórico Dialético - método elaborado por Marx - o diferencial que faltava à Psicologia. Facci (2004, p. 65) explica que “os fundamentos marxistas enfatizam que mudanças históricas na sociedade e na vida material produzem mudanças na consciência e no comportamento humano”.
As condições histórico-culturais são fundamentais para compreender e explicar a constituição e o desenvolvimento das funções psicológicas humanas - por sua vez, chave central para o desenvolvimento humano - categorizadas em dois tipos: funções elementares e funções superiores. As funções elementares são garantidas pela natureza, de caráter biológico. Quando nascemos, chegamos ao mundo com um conjunto de recursos biológicos, de capacidades inatas. Estas capacidades são: a atenção involuntária, a memória natural, a percepção, os reflexos, as sensações, as emoções, entre outras.
Já as funções psíquicas superiores são funções tipicamente humanas, constituídas a partir de processos interpsíquicos. Facci (2004, p. 66) realça que “são resultados da interação do indivíduo com o mundo, interação mediada pelos objetos construídos pelos seres humanos”. Essas funções são produto da vida social, embora sua base seja biológica. Deixaram de ser elementares porque passaram a ser dominadas pelo homem de maneira consciente e intencional; são: a atenção voluntária, a memória mediada, imaginação, linguagem, entre outras.
Pasqualini (2009, p. 34) ressalta que não existe “dicotomia entre as funções elementares e superiores, [...] [uma vez que] as formas inferiores não se aniquilam, mas continuam existindo como instância subordinada às funções superiores”. As relações entre funções elementares e superiores são explicadas por meio da “superação”, uma das categorias do método Histórico Dialético. Para entender melhor, retornemos ao conjunto biológico. Aquelas capacidades disponíveis neste conjunto - as funções elementares - no decorrer das relações entre os sujeitos e o meio, transformam-se e ampliam as condições anteriormente presentes no psiquismo, em um movimento ascendente, promovendo sua superação (BERNARDES, 2010, p. 306).
Para Vigotski, a relação entre os sujeitos e o meio é vital para o desenvolvimento psíquico. O meio não é mera circunstância deste desenvolvimento, mas sua fonte, dinâmica e mutável. Insere-se aí o manuseio de ferramentas tecnológicas, uma vez que estas não mantêm o mesmo significado para as crianças nas diversas fases de seu desenvolvimento. A cada fase vivenciada pela criança, uma nova reestruturação interna é sucedida, lapidando sua compreensão sobre o meio, sobre as pessoas e sobre os instrumentos da cultura na qual está inserida. Por isso, a compreensão que se tem sobre determinado instrumento tecnológico aos quatro e cinco anos de idade, não é a mesma que se terá aos sete, por exemplo. No entanto, frisamos que este processo pode acontecer de modos diferentes, dependendo: do acesso (ou não) a tais instrumentos, em que tipo de circunstâncias esse acesso e uso ocorrem e da qualidade das mediações que envolvem esses processos.
Em razão disso, Vigotski (2010) salienta que o desenvolvimento infantil precisa ser compreendido por parâmetros relativos, não por parâmetros absolutos e afirma que “o meio não pode ser analisado por nós como uma condição estática e exterior com relação ao desenvolvimento, mas deve ser compreendido como variável e dinâmico” (VIGOTSKI, 2010, p. 691). Assim, a relação da criança com o meio é um elemento significativo porque se a relação é diferente, o meio também exerce uma importância diferente sobre a criança (Idem, p. 691).
As tecnologias como instrumentos mediadores
A Teoria Histórico-Cultural explica, de acordo com Pasqualini (2016), que
No processo de humanização, a criança precisa se apropriar do patrimônio cultural humano-genérico, ou seja, daquilo que foi produzido historicamente pelo gênero humano, desde a linguagem oral até os equipamentos de tecnologia, dos objetos triviais do cotidiano às obras de arte, das brincadeiras e parlendas à ética, política e filosofia (PASQUALINI, 2016, p. 48-49).
Contudo, ainda que as tecnologias - incluídas as TDIC - façam parte da produção historicamente elaborada pelo homem e sendo a escola uma das responsáveis por integrar e transmitir os conhecimentos disponíveis na cultura, Costa, Duqueviz e Pedroza (2015, p. 607), assinalam que apesar de as novas tecnologias serem “utilizadas em larga escala na sociedade, seu emprego no ensino presencial ainda se dá de forma tímida”.
Como instrumentos mediadores dessa época, as TDIC interferem e transformam os modos como a sociedade se organiza, se comunica, se relaciona, se mobiliza, ensina, aprende e tantas outras práticas que vêm se alterando. Embora não possamos determinar o quanto a mediação digital esteja correlacionada com a aprendizagem, podemos conjecturar sobre repercussões nas funções psicológicas dos sujeitos, em especial as das crianças, que se transformam mediante o uso dos novos instrumentos/ferramentas surgidos nos diferentes contextos históricos, sociais e culturais.
Instigadas com essas questões, nos propusemos a examinar o uso de um tablet para (re)significações e (re)interpretações de crianças sobre suas experiências no contexto escolar. Propósito de análise exposto, apresentaremos a descrição do método.
Método
Trata-se de pesquisa empírica realizada com 19 crianças de quatro e cinco anos, pertencentes a uma turma de EI, da rede pública do município de Campinas-SP. Três tipos de procedimentos compuseram o método: observação, atividade com tablet e entrevista. A escolha do tablet, dentre uma variedade de instrumentos tecnológicos que poderiam ser usados, decorreu de seus recursos específicos e diversificados. Com este instrumento, é possível não apenas fotografar, como também ter acesso e visualização imediata das imagens, registrar os objetos por diversos ângulos sem limite quantitativo, armazenar as fotos (com a ajuda da pesquisadora) em pastas individuais criadas no dispositivo, avaliar o material produzido, além de fazer a seleção na própria tela do aparelho, na segunda etapa da pesquisa. O tamanho do tablet também nos pareceu ser um facilitador para o manejo com as duas mãos e para o enquadramento de áreas maiores a serem fotografadas. Estas são algumas das vantagens oferecidas pelo dispositivo que buscamos explorar ao longo da pesquisa e que não seriam viáveis com uma máquina fotográfica, por exemplo.
Para introduzir a atividade com o tablet, foi feita uma Roda de Conversa com a turma; nela buscamos obter informações sobre as relações das crianças com as tecnologias: se usam, quais usam, se gostam, como e para que usam, se os pais aprovam o manejo e se recebem algum tipo de orientação dos adultos etc. Em seguida, iniciamos a atividade com o tablet, em duas etapas.
Na primeira, a turma foi organizada pela pesquisadora em grupos de quatro ou cinco crianças que seguiram a orientação de produzir fotografias daquilo de que mais gostam no contexto escolar. Cada participante teve a oportunidade de produzir seu próprio material, dispondo do tablet pelo tempo que desejasse; acompanhados pela pesquisadora, puderam se deslocar pela escola para fotografarem. Foram feitas 11 sessões de fotos.
Já a segunda etapa constituiu-se em sete sessões de seleção das fotos produzidas. As crianças foram organizadas em trios e reunidas em uma mesa para visualizar as produções. Enquanto o tablet era manuseado por cada participante, a pesquisadora perguntava sobre os motivos das escolhas. As sessões de fotografia e de seleção foram vídeo-filmadas. As fotos produzidas não receberam qualquer tipo de edição e/ou tratamento, como cortes ou filtros. Os resultados buscam evidenciar elaborações das crianças acerca de suas experiências na EI a partir do uso de tablet.
Resultados e Discussões
O material empírico foi sistematizado em três eixos, instituídos a partir dos assuntos mais recorrentes entre as crianças: (i) (Re)descobrindo o tablet; (ii) (Re)conhecendo o contexto e (re)lembrando conteúdos e (iii) Entrelaçando e estreitando relações: memórias mobilizadas pela atividade com o tablet. Para a apresentação dos resultados neste artigo, selecionamos alguns episódios que nos permitem discutir o uso do tablet para (re)significações e (re)interpretações de crianças sobre suas experiências no contexto escolar.
Episódio 1
Luísa2 inicia a seleção das fotos, juntamente com Heloísa e Daniel, bastante animada.
Pesquisadora: A gente saiu fotografando muita coisa aí pela escola, não foi?
Luísa: É, a gente, a gente foi no parquinho, a gente foi no banheiro, a gente foi em umas salas, a gente foi em outras...
Heloísa: Banheiro? Eu nunca fui no banheiro não.
Pesquisadora: Foi mesmo, a gente foi... Teve gente que foi no banheiro mesmo.
Luísa: Aí a gente, aí a gente, aí a gente foi no parquinho dos babys, aí a gente... Tirou foto das mochilas ali...
Pesquisadora: E olha as suas fotos Lu... Olha as fotos que você tirou... (mostra as fotos armazenadas na pasta do tablet).
Luísa: Minhas.
Pesquisadora: Foram todas essas...
[...]
Heloísa: Essas que a Luísa tirou?
Luísa: É.
Pesquisadora: Foram as fotos de Luísa. Tu lembra, Lu?
Luísa: Sim. [...] Eu também tirei uma foto de plantinha! (aponta)
Pesquisadora: Foi. Aí... Olha! Foi tudo você que tirou, lembra?
Luísa: É. Olha, eu tirei foto do papai Noel, olha lá Heloísa. (aponta um pequeno ponto vermelho entre as folhas e em contraste com a parede verde de uma casa)
Pesquisadora: Foi, você tirou foto do papai Noel.
Luísa: É porque não apareceu muito porque tinha as árvores.
Daniel: Cadê o papai Noel?
Luísa: Aqui...
Pesquisadora: Aqui Dan, ó, bem escondidinho.
Heloísa: Como que a Luí... Onde que tava isso, Luísa?
Luísa: Olha, a gente foi na onde que, na onde que tem aquelas plantinhas roxinha.
Heloísa: Ah...
Luísa: Então a gente atravessou ali, aí tinha um papainoelzinho pendurado na casa, não é?
Pesquisadora: É, ele mesmo, lá mesmo.
Luísa: Aí você não viu, não é? (para Heloísa)
Heloísa: Eu não... Eu fui com a Luísa?
Luísa: Não!
Pesquisadora: Eu acho que você não chegou ir no grupo dela. Foi em outro grupo.
Heloísa fica pensativa; parece tentar se lembrar se foi fotografar com a colega ou não.
A desenvoltura demonstrada por Luísa na sessão parece contagiar seus colegas, em especial Daniel, que se manteve, quase sempre, distante nas sessões de fotos. Luísa interage, relaciona-se e exibe memória em pleno funcionamento, detalhando os diversos lugares por onde transitou para sua produção fotográfica; seus colegas parecem interessados, pedindo esclarecimentos.
A mobilização provocada por suas descrições desperta curiosidade e diálogo no grupo e coloca em movimento funções como: memória mediada, atenção voluntária, pensamento abstrato e linguagem. As fotografias ajudam Luísa a relembrar situações experienciadas nas sessões de produção das fotos. Extremamente comunicativa, chamando a atenção dos colegas para os detalhes, mobiliza a capacidade de pensarem sobre situações, objetos e experiências não imediatamente/facilmente perceptíveis.
Ao longo da atividade os participantes conversaram muito, principalmente nas sessões de seleção, que se tornaram um ponto de encontro para discussão sobre a experiência de sair pela escola fotografando objetos e ambientes de que mais gostam. Trocas de informações, palpites, apontamentos, questionamentos, manifestação de interesses e curiosidades foram constantes.
Nas sessões de escolha das fotos multiplicaram-se as percepções sobre o contexto; poder ver as coisas pelo ponto de vista do colega, foi uma experiência rica, distinta da cotidiana e mediada pelo tablet. Assim, descobriram particularidades dificilmente vistas no fluir da vida cotidiana. “São imagens que registram o cotidiano na perspectiva da criança e, ainda mais, considerando sutilezas pouco exploradas e conhecidas por todos” (GOBBI, 2010, não p.).
As crianças exploraram, analisaram, consideraram e reconsideraram as produções, apresentando o ambiente da EI sob seus olhos, sob suas condições e sob suas limitações, respeitando os colegas, os espaços, as pessoas que integram aquele contexto; partilharam suas memórias, suas vivências, suas histórias, entrelaçando-as com o presente. Dessa maneira, estreitaram as relações entre si e com o contexto onde vivem parte de suas infâncias.
Episódio 2
Heloísa seleciona suas fotos, junto com Luísa e Daniel.
Pesquisadora: Qual mais que você quer, Helô?
Heloísa: Eu... (olha para Luísa que tenta sugerir uma fotografia)
Pesquisadora: Lu... Deixa ela escolher, Lu!
Heloísa: Eu acho que vou querer... Hum... Essa.
Pesquisadora: Por que essa, Helô?
Heloísa: Porque eu gosto.
Luísa: Você come bastante lá no... Você come bastante lá no refeitório... (diz entre risos)
Heloísa: É e quando, quando eu vou sair com meu pai, todo mundo me ver na rua, eu vou de fantasia, da de bruxa, aí todo mundo vem e me chamam de gorda.
Luísa fica séria.
Pesquisadora: Ai não acredito! É mesmo? Ai, que povo sem educação, né? Fica chamando a gente de gorda só porque a gente gosta de comer, ó...
Heloísa: Hum.
[...]
Luísa: Não. É porque também a gente cresce e fica engordando.
Pesquisadora: Ah, é?
Luísa: É, a gente cresce e fica engordando.
Pesquisadora: Eita Meu Deus!
O desabafo de Heloísa faz o clima da conversa mudar e todos se calam. A pesquisadora procura mostrar que situações como essas não acontecem somente com Heloísa; Luísa completa, buscando reconfortar a colega, “[...] a gente cresce e fica engordando”.
Para Vigotski, a espontaneidade é uma característica marcante na fase pré-escolar devido à “indiferenciação” da criança quanto à vida interna e externa - o que a faz se manifestar “externamente tal como ela é ‘por dentro’” (PASQUALINI, 2009, p. 38). Por isso, não devemos considerar o comentário de Luísa como sendo malicioso, pois ela ainda não se preocupa em impor limites às suas falas; fala o que pensa, sem consciência de que aquilo que diz pode intensificar o sentimento ruim da colega; Heloísa também não faz esta diferenciação; provavelmente, em razão disso, menos de um minuto depois pareceu não estar mais chateada com o que os outros dizem a seu respeito. As meninas ainda não são capazes de julgar a si mesmas.
Episódio 3
Pesquisadora: Bi, por que você fotografou o balanço?
Bianca: Eu já fui aí. Eu já fui, em todos lugares.
Pesquisadora: Você já foi em todos os lugares, é?
Bianca: Menos... Algum não... No cinema...
Com Bianca algumas memórias se confundem. Bianca é uma criança de olhar triste; quase nunca sorri. É quieta e, segundo a professora, chora todos os dias quando a mãe a deixa na escola. A investigadora notou seu desconforto por não ter determinados objetos e não conhecer certos ambientes. Foi preciso bastante cautela no desencadeamento da atividade, principalmente ao lidar com estas situações delicadas. Logo no início de sua sessão de seleção, Bianca disse:
Episódio 4
Bianca: Sabia que... Que eu durmo com a minha vó e com a minha mãe?
E prossegue relatando que dormem em um único colchão, tocando em dificuldades da vida, comum em certos grupos sociais. Situações como esta possibilitam que as crianças falem sobre si, sobre suas privações e, embora estas realidades adversas nos causem dificuldades para enfrentá-las, importa que sejam ouvidas e acolhidas em meio às memórias dolorosas.
Desde a Roda de Conversa, as memórias foram relatadas pelos participantes, de maneira que as vivências foram sendo descortinadas.
Episódio 5
Pesquisadora: [Milena] você tem celular?
Milena: Tenho. Minha mãe comprou um novo pra mim.
[...]
Pesquisadora: Mas sua mãe deixa você usar direto?
Milena: Não, às vezes. Porque tem hora que tem que olhar minha irmã, tem hora que tenho que trocar a fralda dela, tem hora que eu tenho que fazer mamadeira pra ela, tem hora que eu tenho que dar mamadeira pra ela, aí tem tannnta coisa pra mim fazer, pra ajudar a minha mãe!
[...]
Milena: Eu gosto de assistir vídeo do JP. [...] O JP, ele é uma pessoa, não é desenho. Ele faz tanta coisa, e ele é rico! Então, ele e a irmã dele e o pai dele e a mãe dele, eles... Eles faz um vídeo no tube [YouTube].
Milena narra uma vida marcada por muitas demandas adultas, que, segundo diz, provocam restrições ao uso do celular. Utilizou o tablet de maneira autônoma, audaciosa e diligente. Segundo informou, acessa conteúdos distintos dos acessados por seus colegas: enquanto estes jogam, assistem desenhos e vídeos do YouTube, Milena prefere seguir as histórias da família rica de JP que contrastam com a sua realidade.
O transcorrer da atividade de fotografar também foi marcado por um (re)conhecimento do espaço que frequentam; as crianças interessaram-se em registrar elementos (objetos e contextos) que têm grande importância nas suas experiências, mas também detalhes que - conjecturamos - não eram o foco de sua percepção e/ou atenção corriqueiras. Indicaram como critérios para as fotos: apreciação do objeto e/ou contexto, o fato de serem pouco vistos ou pouco frequentados, qualidades estéticas e experiências importantes vividas.
O parquinho foi o campeão de “clicks”. A atividade com o tablet permitiu que fossem materializadas a apreciação e relação afetiva que a maioria das crianças mostrou ter com esse ambiente.
Episódio 6
Milena foca em um Gira-Gira e comenta:
Milena: Ele gira, é muito legal esse brinquedo! Ele gira rápido, parece que a gente tá... Voando [...] A gente faz assim, ó [levanta a cabeça para o alto] parece que a gente tá lá na árvore, de ponta cabeça; muito legal! [...] Todos os gira-gira daqui é assim, é legal. Que nem aquele ali de baixo... Eu gosto mais daquele balanço [aponta], tem hora que a gente briga por causa dele, que é legal; muito legal. Aí a gente gosta tanto.
A vivacidade com que Milena relata os usos que faz dos brinquedos é notável e fortalece os argumentos sobre a importância de se ouvir as crianças. A simples imagem do gira-gira, equipamento tão comum nos parques de milhares de escola, não nos permitiria entender o quanto as relações das crianças com o meio estão atravessadas por situações imaginárias e, conforme Vigotski, se modificarão na medida em que os anos passam. Nesse momento, vale ressaltar a importância que tem para Milena tratar-se de uma experiência coletiva, registrada no uso que faz da expressão “a gente”. Outras características da produção de Milena foram: propor que ultrapassássemos os limites da escola e questionar quanto ao que mais poderia ser fotografado, mostrando preocupação singular com as fotos de sua autoria.
Quando Milena parece se ver sem opções de registro, examina o que ainda não fotografou. Sem querer repetir imagens, observa o contexto de maneira minuciosa. Esse refinamento das/nas opções de Milena provoca mudanças em suas decisões futuras. Na sua última sessão de foto, interessa-se pelos detalhes e dedica atenção especial aos cartazes fixados nas paredes ao redor do parque. Primeiro, observou aspectos estéticos; depois os fotografou, enquadrando-os cuidadosamente, e só posteriormente os descreveu:
Episódio 7
Milena: É as “criancinha” tá brincando [aproxima-se do painel e observa as fotos] Olha, que legal, esse daqui é legal. [aponta uma foto de crianças em uma atividade] [...] Eles tão... Tá tudo bonitinho. Olha aqui na roda, ó...
Bruno: Oh Mi, agora tem como... Agora tem como fotografar ali, ó? (aponta para o parque e corre para lá)
Pesquisadora: Ó lá, o parque tá vazio. Quiser ir... E aí? (reforça a pesquisadora, por saber que as crianças tentavam ir naquele parque, mas, frequentemente, estava fechado ou cheio).
Milena continua a observar as paredes. No final do corredor, diz:
Milena: Tia, olha o castelo... (refere-se a um painel)
Pesquisadora: Quer fotografar o castelo? Por quê?
Milena: Não. Tá engraçado a bruxa. É a bruxa com a aranha.
Pesquisadora: Tá engraçado a bruxa com a aranha?
Bruno: Ei, Mi! (grita do parque)
Milena: É. Olha tia, a princesa...
Pesquisadora: Ah.
Bruno: Ei, Mi! Mi! Mi! (grita, de novo)
Milena está muito concentrada e não dá atenção a Bruno. Ele insiste e vem atrás. Ela nem olha para ele, que fica chateado.
Bruno: Tchau!
Milena não responde.
Pesquisadora: Mi, por que você tá fotografando aí?
Milena: Nada. Tá lindo! (olha o mural, encantada)
[...]
Suspende o tablet o mais alto que consegue e fotografa o topo do castelo, capturando cada detalhe. Depois caminha até outro mural.
Milena: Tá muito lindo, tia! Olha isso daqui! (refere-se a outro cartaz)
Pesquisadora: Por que você tá fotografando aí? Vai me contando.
Milena: Olha aí, tia. Isso daqui tá muito lindo! (dirige-se a outro cartaz e o fotografa)
[...]
Milena: Tá lindo!
[...]
Quando parece ter terminado, a pesquisadora pergunta:
Pesquisadora: E aí? Mais alguma coisa, Mi?
Milena: Tenho. Eu vou é aqui no parque. (segue observando as paredes, parecendo se certificar de que não tem mais nada ali para fotografar).
Milena se encontra tão envolvida com os murais que se esquece do parquinho - ambiente pelo qual tem grande apreço. Recusa-se a ceder às insistências dos colegas para irem brincar. Quando, por fim, entra no parquinho, Bruno e Adriano buscam sua atenção; Milena mantém o foco na atividade e fotografa de modo preciso e ordenado, dedicando-se aos ângulos e enquadramentos.
Esses aspectos - ângulo e enquadramento - quase sempre receberam bastante atenção das crianças. No geral, produziram-se poucas imagens desfocadas. Neste quesito, o que, eventualmente, atrapalhava o desempenho de alguns dos participantes eram o peso e o tamanho do dispositivo, conforme afirmou Luísa: “Tá pesado o tablet, tia”. Algumas crianças levaram mais tempo para encontrarem um jeito mais confortável de segurar o dispositivo, mesmo este tendo sido preparado pela pesquisadora, que o acoplou a uma capa apropriada para o manuseio.
Outro destaque é o fato das crianças não se limitarem a fotografar objetos que estivessem no seu campo de visão, como no episódio da caixa d’água e da antena fotografadas por Gisele.
Episódio 8
Gisele: Tem uma caixa de água ali, ó!
Pesquisadora: Por que você tá fotografando a caixa de água?
Gisele: Porque eu quero. Eu gosto.
Pesquisadora: Mas por que você gosta dela?
Gisele: Eu gosto, mas eu vou fotografar aquilo ali agora. (novamente aponta para o alto)
Pesquisadora: A antena? É a antena que você estava fotografando?
Gisele confirma.
Perceber e fotografar algo, supomos, não significativo na vida cotidiana tornou-se possível no contexto da proposta e do desejo de uso do equipamento disponível - o que nos permite afirmar que a atividade propiciou ampliação do campo de visão das crianças, deslocando o foco das percepções mais comuns e aprimorando seus conhecimentos sobre o que ali existe. Esses processos são muito interessantes e, pela lógica da Teoria Histórico-Cultural, repercutem nos modos de olhar, de pensar, de narrar.
Esse movimento de escolhas inusitadas, entretanto, não se explicita nas justificativas dadas para as fotos; corriqueiramente, foram evasivas, simples, pouco reflexivas: “porque é legal”, “porque sim”, “porque eu gosto”. Com Adriano era assim. Suas respostas davam a impressão de que seu envolvimento com a atividade era superficial e suas fotos aleatórias. Entretanto, essas impressões mostram-se bastante discutíveis, quando acompanhamos o episódio de escolha das fotos.
Episódio 9
Adriano: EPA, EPA! Cadê o negócio lá da caixa da água que eu tirei?
Pesquisadora: Da caixa da água? (procura junto com ele)
Adriano: Quem tirou daqui? [...] Cadê minha caixa da águaaa? (impaciente)
Pesquisadora: Calma... Aqui a caixa da água!
Adriano: Hum. (a seleciona)
Pesquisadora: Por que você escolheu a caixa da água?
Adriano: Porque sim!
Registros como os de Gisele e Adriano foram raros nas sessões fotográficas e por mais que tais produções possam parecer menos significativas, percebemos que estas fotos não só despertaram o interesse nestas crianças, como parecem ter bastante importância para elas - ainda que não saibamos por quê. No geral, as crianças produziram fotografias relacionadas às suas experiências, vivências, memórias e aprendizagens. No tocante a essas últimas, notamos um tema bastante recorrente: elementos da natureza. No início do trabalho de campo, sabíamos que a professora da turma estava desenvolvendo sua pesquisa de Mestrado sobre o ensino de botânica na EI. A professora já tinha realizado diversas atividades com essa temática. Nas sessões de fotos fomos percebendo a importância do trabalho pedagógico e como este afetou a relação das crianças com o contexto.
Episódio 10
Pesquisadora: E aí Lu, por que você quis fotografar aí?
Luísa: É porque a natureza é muito bonitinha.
Pesquisadora: E você sabe alguma coisa da natureza?
Luísa: Sei. Porque as borboletas gostam das florzinhas. Gosta muito e nasce outra árvore quando ela pega o melzinho...
Pesquisadora: Como é que é? Fala um pouquinho mais alto pra mim.
Luísa: É porque as borboletas pega o melzinho que tá dentro da florzinha e aí, aí, coloca... Aí cai do biquinho dela, aí nasce outra natureza.
Pesquisadora: Ah, e quem foi que te ensinou isso?
Luísa: A minha tia...
Pesquisadora: Que tia?
Luísa: A tia Helena (professora).
Os detalhes com que Luísa relata o surgimento da “natureza” evidenciam o quanto ela aprendeu e (re)significou o conteúdo. Embora sua explicação não seja correta, é significativa, pois elucida o processo de elaboração conceitual em movimento. A atividade de fotografar e o convite de contar as razões das escolhas viabilizaram a exteriorização de seus conhecimentos. Colocar em suas próprias palavras o que apreendeu a partir das palavras e atividades realizadas com a professora é muito relevante e é provável que não ocorresse sem que uma circunstância concreta - o uso do tablet - criasse condições favoráveis para tal.
Observamos, portanto, uma potencialização dos conteúdos trabalhados nas atividades pedagógicas em reflexões feitas pela maioria das crianças, já que em 31 casos o tema natureza esteve presente.
Episódio 11
Pesquisadora: Gi, me conta por que você tá fotografando isso aí...
Gisele: Porque a abelha, eu acho que a abelha tá cagando ali.
Pesquisadora: A abelha tá o quê?
Gisele: Cagando.
Pesquisadora: Ah, é?
Carol: Não, a abelha pe... A abelha pega um mel pra fazer.
Gisele: A abelha tá pegando mel porque é pra saúde.
Pesquisadora: É pra saúde?
Gisele: Pra gente comer; é porque é pra saúde... Pra... Porque tem uma coisa ali, ó. E a abelha tá chupando a flor, do que tem o mel lá dentro. [...] É pra saúde.
Gisele pode ter interpretado a figura de acordo com a posição da abelha no cartaz. Porém, o que disse também pode ter conexão com a informação científica sobre o transporte do néctar para o sistema digestório da abelha, onde há uma mistura de enzimas que convertem seu açúcar em glicose e frutose. Dessa maneira, ele se transforma em mel que é regurgitado pelas abelhas.
Entre as atividades conduzidas pela professora, ocorreu a ida a um centro de pesquisa (EMBRAPA3), no qual Gisele, Luísa e seus colegas, foram recebidos por pesquisadores que explicaram o ciclo de criação das abelhas e produção de mel. O estudo sobre botânica constituiu um caminho fértil para que as crianças começassem a perceber quanto a natureza está presente em suas vidas, quanto convivemos com ela e, principalmente, quanto é necessária para nosso bem estar. Nos encontros, as crianças manifestaram uma visão mais apurada em relação aos elementos naturais presentes nos ambientes, percebendo-os nos corredores, no caminho de ida para a escola, no retorno para casa...
A atividade com o tablet permitiu-nos acesso a esses conhecimentos e oportunizou às crianças relatarem seus saberes e entendimentos a respeito de suas experiências. Deixou visíveis os modos singulares pelos quais elaboraram as informações científicas que receberam e oportunizou que fossem retomadas, refinadas e (re)significadas.
Considerações finais
Finalizamos a nossa pesquisa evidenciando a importância de se desenvolver mais estudos acerca do uso de TDIC nas unidades de EI, dada a importância e a escassez de investigações sobre o tema. Construída em conjunto com crianças de quatro e cinco anos, esta investigação nos transporta - sob a tela de um tablet - a um contexto escolar descrito e caracterizado em meio a narrativas infantis cuidadosamente elaboradas, carregadas de significações, memórias e vivências sobre o meio.
Neste artigo, apresentamos episódios em que o tablet, enquanto instrumento mediador, potencializou as relações entre os pares e viabilizou um estudo aprofundado acerca de suas implicações no desenvolvimento de crianças pequenas pertencentes a uma sociedade que valoriza e utiliza, incessantemente, recursos digitais com tecnologias cada vez mais avançadas, envolventes e sedutoras.
Investigar quais e quanto tais ferramentas despertam o interesse de crianças e como afetam suas vidas é muito relevante. Aqui, em meio à experiência proporcionada por nossa intervenção, as memórias foram gradualmente reveladas, mas, ao mesmo tempo, foram gradualmente construídas pelo compartilhamento de histórias, conhecimentos, afetos. Por isso, concordamos com Assis e Mello (2013) quando afirmam que estudar o desenvolvimento infantil desassociado do meio social e cultural é recusar a condição de humano da criança.
Em consonância, Rocha (2013) destaca que a relação de cada criança com a sociedade e a cultura é construída num processo permanente de partilha, que pode ser identificado na relação estabelecida entre as crianças e a pesquisadora, a qual, durante a intervenção, procurou orientá-las na atividade, encorajando o uso do dispositivo, ensinando como fazê-lo, promovendo e mediando o diálogo, fonte rica de saberes sobre/pelas as crianças e suas realidades.
A aparente simplicidade da atividade é ilusória, porque por trás de cada ação, de cada operação, ocorreram sofisticados processos de: (i) perceber o contexto de uma maneira ampla; (ii) identificar elementos nele; (iii) comparar esses elementos (iv) eleger aquilo que considera importante para ser registrado e, por fim (v) examinar os registros e escolher, novamente, o que deve ser destacado em novas produções. A significativa colaboração das crianças que se mostraram abertas ao diálogo e à atividade proposta, contribuindo do início ao fim do estudo, compartilhando suas histórias, suas preferências e suas experiências na Educação Infantil e na vida foi decisiva. Elas, sem dúvida, cooperaram para compreensão do se e como os dispositivos digitais podem afetar o desenvolvimento humano em nosso tempo e sob nossas condições histórico-culturais.
Encerramos este trabalho realçando que o uso de tablet em atividade desenvolvida no interior de uma unidade de EI se mostrou extremamente fértil, especialmente por apresentar singularidades nos modos de uso, no reconhecimento do contexto, nas explicações proferidas pelas crianças sobre os conhecimentos apreendidos na escola e fora dela, nas relações florescidas, enriquecidas e estreitadas com os colegas e nas memórias originadas de histórias dignas de serem lembradas como parte de um período que merece ser vivenciado em sua plenitude.
Não estamos aqui supervalorizando a ferramenta tecnológica, não se trata disso. Apenas nos interessamos em dar continuidade às pesquisas já existentes, em fomentar a discussão acerca do tema, que consideramos de alta relevância para que se cumpra a promessa de igualdade de acesso dos conhecimentos disponíveis na cultura e, sobretudo, para que se assegure esse direito às crianças sem distinção de classes, etnias, gêneros ou quaisquer outros impeditivos que possam atentar contra esta que deveria ser uma prerrogativa de todos os governos, em todas as sociedades instituídas por todas as nações.