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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.21 no.71 Curitiba out./dez. 2021  Epub 26-Jan-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.21.071.ao06 

Artigos

Cognição como atividade humana criadora em vivências de estudantes de pedagogia

Cognition as a human creative activity in pedagogy students’ experiences

La cognición como actividad humana creativa en las experiencias de los estudiantes de pedagogía

Maria de Fátima Cardoso Gomesa 
http://orcid.org/0000-0002-6881-3193

Vanessa Ferraz Almeida Nevesb 
http://orcid.org/0000-0003-4094-3639

Luciana Prazeres Silvac 
http://orcid.org/0000-0002-1542-7731

aUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais, MG, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: mafacg@gmail.com

bUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais, MG, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: vfaneves@gmail.com

cUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais, MG, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: praz.silva@gmail.com


Resumo

Neste artigo discutimos diferentes trajetórias escolares por meio de Estudos de Casos de três estudantes de uma turma de Psicologia da Educação, do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais e seus familiares. As estudantes e seus familiares relataram vivências (perejivânia) tensas e dolorosas nessas trajetórias. Tais vivências nos impulsionaram a perguntar: Como pensar a cognição como uma atividade humana criadora? Como relacionar a cognição com as práticas sociais em que ela é gestada? No contexto das salas de aulas daquela universidade, os letramentos acadêmicos foram ressaltados nos discursos das estudantes e pudemos conhecer a força do afeto constituindo e sendo constituído pela cognição social situada, pela força das culturas e das linguagens em uso. Argumentamos que esses conceitos estão intimamente relacionados nas vivências relatadas, em alguns momentos um ou outro se torna mais saliente, porém estão sempre em diálogo, constituindo as pessoas. O diálogo entre teoria e empiria levou-nos à compreensão da indissociabilidade entre afeto, cognição, culturas e linguagens e, consequentemente, à proposição de uma síntese: a unidade de análise [afeto/cognição social situada/culturas/linguagens em uso] - ACCL - com base na Psicologia Histórico-cultural, que defende a unidade afeto/cognição, e na Etnografia em Educação, que argumenta que culturas e linguagens em uso são inseparáveis. A unidade ACCL permitiu-nos olhar para as pessoas, humanizando suas trajetórias escolares, bem como possibilitou-nos não as estigmatizar ou rotulá-las como deficientes.

Palavras-chave: Vivências; Cognição social situada; Psicologia histórico-cultural

Abstract

In this article, we discuss different schooling trajectories through Case Studies of three students from a Psychology of Education class of the Pedagogy Course at Federal University of Minas Gerais and their families. The students and their families reported tense and painful living experiences (perezhivania) in these trajectories. Such living experiences led us to ask: How to think of cognition as a creative human activity? How to relate cognition to the social practices in which it is generated? In the context of the classrooms of that university, academic literacies were highlighted in the students’ discourses and we were able to acknowledge the strength of affection constituting and being constituted by socially situated cognition, by cultures and by languages in use. We argue that these concepts are closely related in the reported living experiences, at times one or the other becomes more salient, but they are always in dialogue, constituting people. The dialogue between theory and the interviews led us to understand the inseparability between affect, cognition, cultures and languages and, consequently, to propose a synthesis: the unit of analysis [affection/social situated cognition/cultures/languages in use] - ACCL - based on Cultural-Historical Psychology, which proposes the affect/cognition unit, and Ethnography in Education, which argues that cultures and languages in use are inseparable. The ACCL unit allowed us to look at people, humanizing their schooling trajectories, as well as allowing us not to stigmatize them or label them as disabled.

Keywords: Experiences; Social situated cognition; Cultural-historical psychology

Resumen

En ese artículo nos proponemos discutir diferentes trayectorias escolares por medio del Estudio de Casos de tres estudiantes de un grupo de Psicología de Educación del curso de Pedagogía de la Universidad Federal de Minas Gerais y sus familiares. Las estudiantes presentaron vivencias tensas y dolorosas entres sus familiares con mayor o menor trayectoria escolar. Tales vivencias nos impulsaron a preguntar: ¿Cómo pensar la cognición como una actividad humana creadora? ¿Cómo relacionar la cognición con las prácticas sociales en que ella es gestada? El diálogo entre lo teórico y lo empírico nos llevó a la comprensión de la indisociabilidad entre [afecto, cognición social situada, culturas y lenguajes en uso] y, consecuentemente, a la proposición de una síntesis, de algo nuevo, la unidad de análisis (ACCL) con base en la Psicología Histórico-cultural que defiende la unidad afecto/cognición y en la Etnografía en educación que argumenta acerca de la indisociabilidad entre culturas y lenguajes en uso. En el contexto de las salas de aula de aquella universidad, las literacidades académicas resaltaron en sus discursos y pudimos conocer la fuerza del afecto constituyendo y siendo constituido por la cognición social situada, por las fuerzas de las culturas y de los lenguajes en uso. Pudimos percibir que un concepto no funciona sin el otro, en algunos momentos unos se torna más sobresaliente en las vivencias de las personas, sin embargo, están siempre en diálogo, constituyéndolas. La unidad ACCL nos permitió mirar a las personas, humanizando sus trayectorias escolares, así como nos posibilito no estigmatizarlas o rotularlas como deficientes.

Palabras clave: Vivencias; Cognición social situada; Psicología histórico-cultural

Introdução

Este artigo tem como objetivo discutir diferentes trajetórias escolares por meio de Estudos de Casos de três estudantes de uma turma de Psicologia da Educação, do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e seus familiares. As estudantes e seus familiares relataram vivências (perejivânia, em russo) tensas e dolorosas nessas trajetórias. Tais vivências nos impulsionaram a perguntar: Como pensar a cognição como uma atividade humana criadora? Como relacionar a cognição com as práticas sociais em que ela é gestada? O estudo das relações entre cultura, cognição e linguagem não é novo na pesquisa acadêmica, como atestam as produções de Luria (1990), Cole (1996) e Oliveira (1999), entre outros. Tais estudos avançaram no entendimento da cognição social e suas relações com a cultura e linguagem sem, contudo, investir na compreensão desses conceitos relacionando-os às vivências e emoções das pessoas, à unidade afeto/cognição (TOASSA, SOUZA, 2010, VIGOTSKI, 1932/2018).

Vivências [perejivânia - em russo] é um termo que apresenta múltiplas interpretações. Vigotski, desde seus primeiros trabalhos, recorre a esse conceito (ANDRADE, CAMPOS, 2019) e ao longo de sua obra ele sofre alterações: inicialmente muito ligado às emoções e, posteriormente, ao articulá-lo ao estudo da pedologia, elabora a necessidade de superação de dicotomias entre afeto/cognição, pessoa/meio, definindo-o como uma unidade (NEVES, KATZ, GOULART, GOMES, 2018; ROTH, JORNET, 2017). Em suas palavras,

vivência é uma unidade na qual se representa, de modo indivisível, por um lado, o meio, o que se vivencia - a vivência está sempre relacionada a algo que está fora da pessoa - e, por outro lado, como eu vivencio isso (VIGOTSKI, 1932/2018, p. 78).

É, então, por meio das vivências, que a linguagem em uso se faz presente permitindo-nos ultrapassar o uso restritivo da gramática e os significados estabelecidos nos dicionários. A visão do mundo que as pessoas produzem em suas vivências só é possível com a produção de sentidos e significados dos conceitos no contexto em que estão inseridas, sendo essa perspectiva essencial para uma compreensão dos diversos processos que envolvem os seres humanos (VIGOTSKI, 1931/1995). Processos esses que levam ao desenvolvimento de subjetividades que guardam íntimas relações com o desenvolvimento cognitivo dos membros dos grupos culturais.

Estamos propondo, então, estudos que ultrapassem a perspectiva da cognição como processos mentais, estritamente cognitivos, introduzindo discussões sobre as culturas, as emoções e linguagens, como práticas sociais construídas histórica e culturalmente. Nessa perspectiva,

a cognição de um conhecimento tem uma natureza situada porque existem partes relevantes para seu entendimento que se encontram no contexto de atividade deste conhecimento. Estas partes, no entanto, são subjacentes à cultura do conhecimento e ao sistema de valores que esta cultura emprega para usar o conhecimento em diferentes situações (BROWN, COLLINS, DUGUID’S, 1989 apud BARRENECHEA, 2000, p. 142).

Compreendemos, portanto, que as relações sociais constituem os seres humanos que delas participam. Sendo assim, a linguagem e a cultura estão intrinsicamente relacionadas com os processos de apropriação e entendimento das práticas sociais, formando uma unidade de análise que passamos a discutir.

[Afeto/cognição social situada/culturas/linguagens em uso] como uma unidade de análise

A unidade de análise [afeto/cognição social situada/culturas/linguagens em uso] (ACCL), foi elaborada com base no diálogo teórico-metodológico entre a Psicologia Histórico-cultural e a Etnografia em Educação como uma “síntese, a criação de algo novo na apropriação das duas abordagens” (GOMES, 2020, p. 85), pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural na Sala de Aula (GEPSA).

Essa síntese tem origem em uma pesquisa, realizada no período de 2014 a 2017, que se iniciou como bibliográfica e, posteriormente, envolveu pesquisa empírica. O trabalho empírico foi possibilitado pelo fato de a [primeira autora] estar lecionando a disciplina “Psicologia da Educação: desenvolvimento e aprendizagem”, no segundo semestre de 2014, no Curso de Pedagogia, da UFMG. Uma das unidades dessa disciplina é o estudo de diferentes teorias psicológicas e suas visões sobre cognição e inteligência. Os/as 32 estudantes da turma narraram e debateram as vivências escolares e não escolares dos seus familiares, o que possibilitou-nos selecionar três narrativas que consideramos representativas daquela turma e de muitas turmas das universidades públicas brasileiras.

Três estudantes da turma (Laura, Fernanda e Marcela1 ) apresentaram vivências tensas e dolorosas entre seus familiares com maior ou menor trajetória escolar. Tais vivências, como já mencionado, nos impulsionaram a perguntar: Como pensar a cognição como uma atividade humana criadora? Como relacionar a cognição com as práticas sociais em que ela é gestada? Para isto, recorremos aos estudos que vínhamos desenvolvendo acerca das relações entre linguagem, cultura e cognição social. Importante ressaltar que esses estudos foram ressignificados e ampliados ao analisarmos o material empírico das narrativas das vivências dos familiares relacionando-as às vivências de suas filhas na universidade e fora dela. Esse diálogo entre teoria e empiria levou-nos à compreensão da indissociabilidade entre afeto, cognição social situada, culturas, e linguagens em uso e, consequentemente, à proposição da unidade ACCL.

O que entendemos por unidade? Do ponto de vista de Vigotski, unidade se define pelo “resultado da análise, que diferentemente dos elementos, carrega todas as propriedades fundamentais características do conjunto e constitui uma parte viva e indivisível da totalidade” (VIGOTSKI, 1934/1993, p. 19). Há que se desenvolver, portanto, um método de investigação que “é ao mesmo tempo, premissa e produto, ferramenta e resultado da investigação e tem de se adequar ao objeto de estudo” (VIGOTSKI, 1931/1995, p. 47). Partindo desse princípio, o estudo do desenvolvimento cultural das formações psíquicas nos permite traçar o caminho da personalidade do ser humano, o que significa que a psicologia deve se humanizar e nos permitir dizer que há que se ver as pessoas que ensinam, que se desenvolvem, que aprendem e não as habilidades ensinadas, desenvolvidas e aprendidas. Há que situar o ser humano no centro. Isto representa pensar, por um lado, o meio que se vivencia, e, por outro, como a pessoa vivencia esse meio, mediado pelas linguagens em uso, culturas e pelos afetos.

Neste sentido, Agar (1994/2002) revela, ao criar o neologismo languaculture, o quão profundamente língua/linguagem e cultura se entrelaçam para definir quem somos e como nos relacionamos uns com os outros. Por isso, há que se quebrar o círculo em torno da língua, e conectá-la com a cultura, modificando nossa visão sobre o mundo. Agar parte do princípio de que é a linguagem que cria cultura, mas a cultura também cria linguagem, fazendo o caminho para a construção de múltiplas identidades que se modificam a qualquer tempo. Argumentamos, então, que a unidade ACCL possibilita compreender que, não apenas a linguagem e a cultura estão interligadas, mas que formam um todo com as emoções e os processos cognitivos. Estamos em busca da compreensão do ser humano em uma perspectiva holística de análise, o que nos leva a defender, junto com Vigotski (1934/1993), que “qualquer ideia carrega, transformada, a atitude afetiva do indivíduo até a realidade representada nessa ideia” (p. 25).

Metodologia - Como produzimos o material empírico?

Para construir o material empírico da pesquisa, em 2015 e 2016, recorremos a três entrevistas semiestruturadas com as estudantes, sendo duas individuais e uma coletiva, realizadas no campus da Universidade. Essas entrevistas foram conduzidas por três pesquisadoras e uma assistente de pesquisa de Iniciação Científica. Nos interessou conhecer, com as entrevistas individuais, realizadas em 03/3/2015 e 28/4/2016, sobre as trajetórias escolares de Marcela, Fernanda e Laura. Na entrevista coletiva, realizada em 25/10/2016, com base no que já sabíamos das entrevistas individuais, exploramos as vivências dessas estudantes no Curso de Pedagogia, a entrada em uma universidade pública, as relações de amizade na turma da qual faziam parte, as relações com seus pais e os sucessos na academia.

Realizamos duas entrevistas individuais com Sr. João (13/8/2015 e 22/11/2016), D. Eulália (17/8/2015 e 23/11/2016) e Karina (25/8/2015 e 24/11/2016), pai e mães das estudantes, em suas casas. Nessas entrevistas, exploramos as suas trajetórias escolares, as relações com o trabalho e a escola, bem como as relações com as trajetórias escolares de suas filhas. Nesse sentido, realizamos Estudos de Casos em que focalizamos um fenômeno contemporâneo da nossa sociedade - trajetórias escolares de duas gerações de três famílias - por meio de entrevistas em ambientes familiares aos entrevistados, o campus da Universidade e suas casas, com o objetivo de compreendê-lo de forma holística, discursiva e interpretativa (YIN, 2014), por meio da unidade de análise ACCL.

Adotamos, como procedimento analítico e interpretativo, a análise do discurso (AGAR, 1994/2002) sob uma perspectiva êmica. Isto implicou conhecermos mais sobre suas famílias, ou seja, “o nível de escolaridade dos pais; tipo de profissão e situação profissional dos pais (trabalho mais ou menos formalizado); tamanho e composição das famílias; condições de moradia” (NOGUEIRA, RESENDE, VIANA, 2015, p. 758), assim como as relações de poder entre pais, mães e filhas. Na seção a seguir, apresentaremos as análises dos discursos dos participantes.

Resultados: Contrastes em diálogo: trajetórias escolares de duas gerações de três família

“A teoria e a prática têm que andar juntos”

Sr. João, 53 anos, casado e pai de Laura, se autodeclarou pardo, provindo de classe média, residente em um bairro popular de Belo Horizonte. Ele tem dois filhos e três netos. Nasceu em uma pequena cidade do interior do estado de Minas Gerais e, com 13 anos, foi morar em Belo Horizonte para trabalhar.

Ainda em sua cidade natal, aprendeu a ler e escrever aos sete anos de idade e cursou o Ensino Fundamental até a 5ª série (atual 6º ano do Ensino Fundamental). Quando veio para Belo Horizonte, começou a trabalhar e voltou para a escola somente para fazer supletivo do primeiro grau, à noite, no Serviço Social da Indústria (SESI) com uma bolsa do Serviço Nacional de Empregos (SINE). Nesse sentido, a trajetória do Sr. João não se distingue da de tantos outros migrantes que se mudam para as capitais brasileiras em busca de melhores condições de vida (GONÇALVES, 2001).

Algum tempo depois, Sr. João conseguiu trabalho na FIAT2. Naquele momento, vivenciou situações que deixaram claro para ele a importância de se aliar teoria e prática social no trabalho. Em suas palavras: [...] assim/ porque a linguagem da escola/ é outra/ né/ quando eu estava na FIAT/ eu perdi uma oportunidade (de ser promovido)/ ele falou [chefe]/ vamos fazer uma prova ali/ ele (chefe)/ me deu uma prova escrita/ e quando eu fui ver/ eu não sabia nada/ que estava escrito ali/ eu sabia fazer tudo/ mas na prática eu sabia/ na teoria/ eu não sabia nada3 (Entrevista em 13/8/2015).

Aqui encontramos um ponto relevante (rich point, no original, AGAR, 1994/2002) causado pelas diferenças de languaculture entre o saber da prática e o saber da teoria: Sr. João sabia tudo e, ao mesmo tempo, não sabia nada. Mais ainda, foi o “não saber” que predominou nesta situação e ele não pode ser promovido em seu emprego, apesar de “saber fazer tudo”.

E, assim, mais uma vez, constatamos como é socialmente valorizado o saber da teoria em detrimento do saber da prática social, não somente dentro das escolas, mas também nas situações de trabalho. Embora seu chefe procurasse por “um cara/ que tem um pouco de teoria e prática” e, portanto, havia uma tentativa explícita de relacionar os diversos saberes, a escolha recaiu sobre uma pessoa com maior escolaridade, “mais estudado”. Refletindo sobre essa situação, Sr. João concluiu que “a teoria é uma coisa e a prática é outra”, mas que ambas têm que “andar junto”.

A narrativa de Sr. João revela que seus processos cognitivos estão intrinsecamente marcados pela afetividade, pela cognição social situada e pela languaculture. A decepção (expressa em seu rosto enquanto falava) e compreensão por não ser promovido relacionaram-se com o contexto no qual estava inserido (FIAT) e o impulsionaram, ao rememorar narrando o ocorrido, a produzir uma síntese em que pensamento teórico e empírico são fundamentais em nossa sociedade, criando culturas letradas em diferentes contextos e meios sociais. Essas reflexões apresentaram contradições ao dialogarmos com a trajetória de sua filha, Laura.

Laura, 29 anos, é casada e tem três filhos, com trajetória em escolas públicas, se autodeclarou negra, de classe média e pertencente a uma religião evangélica. Optou por cursar Pedagogia depois de ter vivenciado, no conselho tutelar, histórias de vida de crianças abandonadas, ou que não tinham acompanhamento dos pais. Também por ter sido “amiga” de uma escola4 e ao presenciar os problemas de aprendizagem de diversos/as estudantes, entendeu que esses/as precisavam de apoio de pedagogos e das escolas para continuarem seus estudos.

Laura afirma que “lutou muito” para entrar na universidade, pois não tinha o apoio da família. Seu pai dizia que ela já tinha profissão, que seria continuar o comércio do bar com ele e que não precisava entrar na universidade. Segundo Laura, um amigo de seu pai soube que ela estudava na UFMG, e disse que o pai havia feito um grande investimento em sua educação. Somente após esse comentário é que seu pai passou a valorizar os seus estudos nesta universidade.

Laura comenta sobre sua entrada na universidade: “Uma vez/ dentro da UFMG/ o início foi muito empolgante/ depois/ veio a depressão/ choque de culturas/ estudo em escola pública e universidade/ foi grande/ muito texto para ler/ entender/ e discutir dentro de sala/ pensei que não daria conta/ mas fui acolhida pela turma [...] (Entrevista em 03/3/2015). Nota-se que o choque cultural, como apontado por Nogueira, Resende, Viana (2015), é fator importante ao considerarmos o acesso e permanência de estudantes no ensino superior, em particular no que se refere àqueles/as provenientes das camadas populares. Isso torna-se particularmente importante, como no caso de Laura, quando não há apoio familiar para a continuidade dos estudos na universidade.

Mas, com o acolhimento da turma, Laura superou as dificuldades. Note-se que ela não diz que foi com o acolhimento dos/as professores/as. Há que se refletir sobre isto, não é? Essas dificuldades deveriam estar contextualizadas no espaço educacional, e não apenas vistas como um déficit da aluna. Nós, professores/as, também podemos e devemos acolher essas diferenças e transformar o ensino em oportunidades para todos, ensinando o que é preciso e reestruturando o tempo para incluir o ensino da leitura e escrita acadêmicas em nossas disciplinas.

Laura nos conta que foi se “apropriando do ler/ entender/ e escrever/ e depois discutir em sala/ e/ hoje/ transito com segurança dentro e fora da sala de aula”. As vivências coletivas permitiram à Laura a apropriação dos conteúdos escolares: do ato de ler, por meio dos contextos dos atos discursivos, e do ato de escrever, nos eventos de escrita de textos acadêmicos, com ajuda de seus colegas. Ou seja, em colaboração, relacionada à compreensão dos conteúdos escolares como também à desconstrução da concepção de grupos fechados dentro da universidade, passou a considerar a turma mais aberta e construiu relações de amizade que não esperava. Assim, ela comenta: “entrei em todos os grupos de trabalho/ são muito receptivos. [...] a turma é como uma grande casa de muitos quartos/ uma grande família/ nos momentos bons e ruins”. Percebe-se a força do grupo, das relações de amizade, de afeto e cooperação na turma como fatores muito importantes e decisivos para a inclusão e sucesso dos/as diferentes estudantes (MARINHO, 2010).

Dessa forma, Laura apropria-se dos letramentos acadêmicos referentes às ações de ler, escrever e discutir em sala de aula, transformando-as em conhecimento, evidenciando a importância de se considerar a dialética entre as apropriações do coletivo e do individual nos contextos discursivos de sala de aula (FIAD, 2015, CASTANHEIRA; STREET; CARVALHO, 2015; SILVA; CASTANHEIRA, 2019).

Não há aqui apenas a aquisição de habilidades individuais de ler, escrever e discutir, mas sim de atividades coletivas, em ações de colaboração propiciando zonas de desenvolvimento iminentes (VIGOTSKI, 1932/2018; PRESTES, 2012) fundamentais para o movimento individual de se apropriar dos conteúdos escolares. Percebe-se, na trajetória de Laura, o entrelaçamento dos afetos, da cognição, da cultura, da linguagem formando a unidade ACCL.

“Contextualização do conhecimento ou aprendizagem de uma técnica”

D. Eulália, mãe de Fernanda, se auto declarou branca, provinda de classe média, com 54 anos, mora em um bairro popular de Belo Horizonte, é casada e mãe de três filhos. D. Eulália não costumava usar computador; a tecnologia que domina e se sente familiarizada é a de sua máquina de costura na qual exerce sua profissão. D. Eulália fez curso de costura, mas considera que aprendeu mesmo com sua irmã através de suas explicações e observando a irmã costurando.

Atualmente, ela trabalha com máquinas industriais e, com a prática de muitos anos, diz que “aprendeu toda técnica que precisava” (notamos em sua fala, o orgulho que sente sobre o que faz) e que o seu ofício na costura é bastante especializado. Ela é faccionista, ou seja, fecha os cortes das peças de calças, vestidos, saias. Em média, ela costura sessenta cortes de peças de roupas por mês. Além desse trabalho, tem seus afazeres domésticos e os cuidados com o neto, o filho de Fernanda.

Segundo Matos (2008), especialmente na indústria do vestuário, predominantemente feminina, onde a exploração do trabalho e os salários mais reduzidos do que os dos homens ainda acontece em grande escala, uma das formas de precarização do trabalho e terceirização é a facção (pequena unidade produtiva) que gerou o ofício que D. Eulália exerce. Grande parte das facções não tem contrato formal de trabalho entre o proprietário da facção e um intermediário ou proprietário (no caso de fábricas menores) da empresa contratante. Por outro lado, as faccionistas podem fazer seu próprio horário, trabalhar em casa com suas máquinas de costura, o que lhes dá uma sensação de liberdade que na fábrica jamais teriam.

D. Eulália atribui uma grande importância aos estudos, pois foi por meio dele que pode ler a Bíblia e realizar os estudos de sua igreja que tanto desejava. Mesmo escrevendo pouco devido às frustrações que teve ao escrever durante sua vida e, foi ela quem ensinou Fernanda a ler. Nas palavras de Fernanda: “Minha mãe me alfabetizou através do método sintético [que foi o método pelo qual ela também foi alfabetizada]/ ensinando-me as letras/ em seguida/ as sílabas e assim por diante/ à medida que eu ia aprendendo/ ela me incentivava a ler a Bíblia/ [...] brincando de escolinha (Entrevista em 25/10/2016).

Segundo Vigotski (1932/2018), a brincadeira pode gerar zonas de desenvolvimento iminentes, pois as crianças brincando fazem coisas de que não capazes na realidade e, no uso da imaginação, encontra-se a possibilidade de gerar algo novo em seu desenvolvimento. Ao brincar de escolinha com sua mãe, foram construídos entre Fernanda e D. Eulália sentidos pessoais e significados sociais para os conteúdos escolares, permeados pelo afeto, bem como revelados os usos e funções da leitura e da escrita que constituíram a família de D. Eulália, assim como a de tantas outras famílias brasileiras (CASTANHEIRA, 2016), a formação religiosa como mediadora da constituição das subjetividades naquela família.

A prática cultural dessa família de se ensinar a ler e escrever para se obter conhecimentos religiosos, ou mesmo se usar a Bíblia como instrumento mediador para esse aprendizado, nos levou a repensar as relações entre o que se ensina e o que se vive. Implicou reconhecer que diferentes mundos sociais, diferentes culturas constituem diferentes sistemas de vivências que, por sua vez, nos permitem compreender a unidade pessoa-meio, “não por meio de técnicas, mas por meio da compreensão dos fenômenos da existência humana no seu processo de constituição histórico-cultural, das relações significantes que devem ser interpretadas com ajuda dos órgãos culturais” (JEREBTSOV, 2014, p. 19, grifo do autor). Ao conhecer um pouco de D. Eulália percebe-se um entrelaçamento entre sua vida, o letramento familiar e a vida de Fernanda.

Fernanda, com 30 anos, é casada, tem um filho, se autodeclarou negra, de classe média e praticante de uma religião evangélica; sua trajetória como estudante ocorreu em escolas públicas, assim como Laura. Seu avô materno era de família de protestantes e, por isso, ela herdou os costumes e as premissas do estudo formal. Fernanda ainda conta que seu avô era um homem muito letrado, que lia muito e sempre pedia para seus filhos que fizessem o mesmo. Ela afirma que aprendeu filosofia e sociologia dentro da igreja e não na escola de Ensino Fundamental, confirmando que a igreja tem grande importância em sua vida e na de sua família. Fernanda relata que sofreu preconceito em relação a sua religião ao longo da Educação Básica. Muitas vezes, os professores não acreditavam e questionavam os motivos de ela não participar de certas atividades da escola, como a festa junina, e seus atrasos como na feira de ciências realizada no sábado, dia da semana que os adventistas guardam para Deus, pois ele [Deus] vem em primeiro lugar, e as outras coisas em segundo plano. Já no Ensino Superior, não percebeu discriminação quanto à religião. Parece que os rituais escolares no Ensino Fundamental foram mais marcados pelas definições religiosas do que na universidade pública em que ela estudou. Se nosso estado é laico, como diz nossa Constituição de 1988, questionamos a existência de discriminação e preconceito religioso nas escolas de Ensino Fundamental, uma vez que constitui a subjetividade de vários/as estudantes e, portanto, marca suas trajetórias escolares (FREITAS, GOMES, ZIBETTI, 2016; MIRANDA, 2015).

Fernanda “prestou vestibular na federal/ por duas vezes/ e não passou”. Depois dessas duas tentativas, foi para o mercado de trabalho e, após alguns anos, quis voltar a estudar. Estudou autonomamente, via internet/youtube e com apostilas, definindo um método de estudar que a auxiliou a passar no vestibular em duas universidades públicas, em Pedagogia, optando pela UFMG. Segundo Fernanda, “em toda a Educação Básica costumava ser a melhor aluna da sala/ prestava atenção às aulas/ e tirava notas altas”. Começou, então, a refletir sobre o motivo pelo qual não havia passado no vestibular por duas vezes. “Se eu sempre fui a melhor aluna da sala/ durante toda a Educação Básica/ algo está errado/ muito errado/ sabia que não tinha sido eu/ não me foi ensinado/ questão/ era da escola/ não era minha/ mas/ não conseguia explicar direito isto” (Entrevista em 03/3/2015). O mal-estar estava posto, como explicá-lo? Segundo Fernanda, “as disciplinas dos primeiros períodos e em especial a de sociologia/ com o estudo de Bourdieu/ que relacionou com a vida que viveu/ pôde compreender o que se passou com ela quando não conseguiu entrar na UFMG” (Entrevista em 03/3/2015). As práticas de letramento são atividades humanas, evidenciando o entrelaçamento entre afeto, cognição social situada, culturas e linguagens em uso (a unidade ACCL). Tal entrelaçamento, no caso de Fernanda, implicou fazer relações entre o conteúdo da sociologia e sua vivência em não conseguir ingressar em uma universidade federal por duas vezes, desfazendo o mal-estar de se pensar que a “culpa” daqueles fracassos fosse individual.

Ao entrar na UFMG, sentiu aquele um lugar estranho a ela e que lhe causou um choque cultural, assim como em Laura. Em suas palavras: “precisei conhecer o espaço em que estudaria/visitei a FAE/ e/ a Mostra de Profissões para me familiarizar/ com esse ambiente cultural” (Entrevista em 28/4/2016). Entrar na universidade não era a prioridade de sua família, mas, sim, entrar no mercado de trabalho. Diz ainda que, a cada geração, a universidade fica mais perto das pessoas de sua família, considerando desde a geração de seus avós à de seu filho. Nesse sentido, ela e o marido planejam a entrada do filho na universidade.

O curso de Pedagogia proporcionou a Fernanda muitas mudanças de concepções. Começou a ver que “nem tudo é preto no branco”, fez muitas amizades, e conviveu com pontos de vista muito diferentes dentro da turma. Em suas palavras: O começo da vida acadêmica foi difícil/ entender as siglas/ os códigos das disciplinas/ mas foi superado/ os três primeiros períodos foram sensacionais/ principalmente/ com as disciplinas do DECAE (Departamento de Ciências Aplicadas à Educação) / que provocaram muita mudança pessoal para a vida inteira/ a gente mudou/ o discurso mudou (Entrevista em 25/10/2016).

Assim, o processo de apropriação dos conhecimentos escolares vai muito além dos conteúdos, das quatro paredes da sala de aula, pois ele é uma atividade humana, discursiva, autêntica, recheada de sentidos e significados. As narrativas de Fernanda e de Laura nos indicam que as relações de poder dentro das salas de aula, materializadas em práticas de letramento que desconsideram suas trajetórias, podem construir ou destruir aqueles/as que se encontram muitas vezes em desvantagem. Entretanto, esses/as mesmos/as estudantes encontram maneiras de se fortalecerem, constituindo relações de amizade, ajudando-se mutuamente, no dia a dia da sala de aula. Fernanda também aponta tensões e transformações nessas relações no final do curso, “a gente é muito companheiro e diverte junto/ nos últimos anos temos rido menos/ a turma está mais desanimada/ não nos encontramos todos os dias/ nossas ações são mais individualizadas”.

Fernanda e D. Eulália, com seus discursos, possibilitam-nos pensar sobre a contextualização do conhecimento, ou seja, sobre os letramentos como práticas sociais, como atividades humanas criadoras dentro e fora da escola, os afetos construídos na relação com as colegas e a construção de acolhimentos na turma.

Além disso, o letramento acadêmico, entendido como escrita, leitura e compreensão de textos acadêmicos, ou seja, o gênero discursivo próprio das práticas acadêmicas de uma universidade, que prima pela pesquisa, ensino e extensão, mostrou-se mais distante das vidas tanto de Laura e Sr. João quanto de Fernanda e D. Eulália do que das vidas de Marcela e Karina, como veremos a seguir.

“Trajetórias conturbadas e tranquilas”

Karina, 45 anos, se auto declarou branca, provinda de classe média alta, mora em um bairro de classe média de Belo Horizonte, é casada, tem dois filhos e é mãe de Marcela. Aprendeu a ler e escrever aos 7 anos de idade. Costuma ler coisas de sua área de trabalho e a Bíblia, além de um livro da saga Harry Potter, do qual gosta muito. Karina esclarece que: “eu tenho mania de desenho [...] escrever eu escrevo quase nada/ né/ os e-mails/coisas de trabalho/essas coisas de computador”. Segundo ela, o desenho “é uma linguagem/ é igual/ por exemplo o programa/ eu não sei inglês/ assim/ eu sou/ meu inglês é/ é:::fraco/ é:::/ mas o programa é muito interessante /isso/ o que eu aprendi nesse AutoCAD5/ que é o de projeto/ que eu era desenhista de prancheta/ uma excelente desenhista de prancheta” (Entrevista em 25/8/2015). Porém, por imposição das mudanças de cultura em seu trabalho, não bastava mais ser uma excelente desenhista de prancheta, havia que aprender a linguagem do computador. Em suas palavras: “era uma linguagem de programação/ não tinha nem Windows ainda/ e o programa era todo em inglês/ eu não sei inglês/ mas se você instalar a versão do Auto CAD/ em português pra mim/ eu não faço nada/ eu penso em inglês no programa/ é muito assim/ não sei por que” (Entrevista em 25/8/2015).

Mais uma vez, as linguagens em uso, culturas, afeto e cognição social situada se mostram intimamente relacionadas quando analisamos as falas de Karina. O que vem a ser saber ou não saber inglês, mas pensar em inglês, no contexto de projetista que faz uso do programa AutoCAD? Consideramos que este contexto situado faz de Karina uma pessoa letrada no programa AutoCAD e, portanto, em inglês, constituindo-a como profissional competente em sua área de atuação.

Assim como Laura e Fernanda mencionam um “choque cultural”, Karina se refere a uma “mudança de cultura” ao se apropriar da linguagem da computação, deixando em segundo plano a linguagem da prancheta. Tornam-se perceptíveis as languacultures em transformação nas vivências dessas pessoas. As linguagens em uso ultrapassam a gramática e os significados estabelecidos nos dicionários e estabelecem uma íntima ligação com as culturas dos meios vivenciados, provocando conhecimentos e sentimentos que constituíram o letramento em AutoCAD, e transformaram Karina em profissional projetista digital, porém sem diploma de curso superior.

Karina menciona a importância e, paradoxalmente, a pouca importância de ser ter um diploma: “Hoje/ o diploma de curso superior é como se fosse segundo grau... [...] hoje/ não é mais assim/ tem que ter uma especialização/ pois curso superior hoje/ é como se fosse uma obrigação”. E argumenta que “na área da engenharia tem que fazer estágio porque se/ não/ não adianta só ter diploma/ tem que ter experiência também” (Entrevista em 25/8/2015).

As falas de Karina trazem para nós reflexões já realizadas por Bourdieu e Boltanski (1998) acerca das relações entre diploma e cargo. Tais categorias carregam consigo as defasagens referentes ao estado e a história da relação entre o sistema de ensino e o sistema de produção. Segundo esses autores, “a característica pertinente ao sistema de ensino no que diz respeito à relação que mantém com o aparelho econômico [...]” reside, principalmente, “[...] no fato de que dota seus produtos, providos ou não de competência técnica, tecnicamente mensurável, de diplomas dotados de valor universal e relativamente intemporal” (p. 131, grifo do autor).

Ao refletirmos sobre o valor do diploma, sua origem em universidades públicas ou privadas, o tempo do diploma e o tempo da competência, saber outro idioma além do português, a remuneração de Karina ser menor do que a do engenheiro, mesmo tendo realizado o mesmo trabalho deste, implicou pensar que a educação pode gerar desigualdades, inclusive de renda, se traduzir a hierarquia da escolarização em hierarquia social (ALVES, ALMEIDA, 2007). Há que se valorizar o saber da prática e articulá-lo com o saber da teoria escolar, ou seja, a teoria precisa se revestir de prática e a prática de teoria, em um movimento dialético e transformador das práticas sociais e escolares. A trajetória de Karina se entrelaça com a trajetória de Marcela, sua filha.

Marcela tem 22 anos, solteira, com trajetória em três escolas particulares, branca, de classe média alta. Ela afirma não ter vínculo estreito com doutrina religiosa, diferentemente de Laura e Fernanda. Sua trajetória escolar “foi ao mesmo tempo conturbada e tranquila”. Ela relata o fato de muitas vezes, ser “invisível na sala de aula”, por achar mais cômodo ou pelo fato de o professor permitir essa conduta.

Marcela se contentava em ficar na média para ser aprovada no final do ano letivo, e algumas vezes ficou em recuperação. Quem a ajudava com os deveres era sua tia e depois, com a contratação de uma empregada doméstica, esta passou a ajudá-la com os deveres da escola, pois seus pais trabalhavam 40 horas por semana.

Segundo Marcela, para obter sucesso nas escolas onde estudou “sempre procurou ajuda de alguém/ e/ dentro de sala prestar atenção às aulas/ memorizar e aprender os conteúdos/ se está estudando sozinha/ faz anotações e relaciona esses conteúdos com a vida” (Entrevista em 03/3/2015). Essa fala nos remete ao papel da mediação semiótica como fundamental no desenvolvimento dos/as estudantes que sempre procuram atribuir sentidos para o que se ensina e se aprende, relacionando os conteúdos escolares às suas vivências socioculturais. Assim, as pessoas se apropriam, não dos objetos, mas das significações desses objetos, sendo esse um processo de apropriação mediado pela fala, pelo outro e pelas vivências culturais (VIGOTSKI, 1929/2000). A apropriação é, portanto, compreendida como um processo social de subjetivação. Dessa forma, estar em uma sala de aula significa muito mais do que aprender determinado conteúdo, pode significar a construção de identidades, de individuação, sem o estigma do déficit (LUCENA, ANDRADE-BOCCATO, TULESKI, 2018).

Ainda segundo Marcela, para pessoas de sua classe social, entrar na universidade é uma obrigação e, se tivesse passado em uma universidade particular, os pais pagariam para ela estudar. Na UFMG, vivenciou uma entrada tranquila, entretanto, sentiu dificuldades na apropriação da escrita acadêmica, assim como Fernanda e Laura - ouviu “de uma professora que não sabia escrever” - entretanto, afirma que “até o ensino médio a escrita nunca foi problema para ela/ aprendeu a escrever um texto com introdução desenvolvimento e conclusão” (Entrevista em 28/4/2016). Marinho (2010) argumenta que “queixas de professores universitários e dos próprios alunos de que esses têm dificuldade na leitura e na produção de textos acadêmicos nos alertam para a necessidade de transformar essas queixas em propostas de ensino e pesquisa” (p. 364). Nesse sentido, Coulon (2017) defende que a democratização do acesso às universidades precisa estar acompanhada de uma democratização de acesso ao saber. As diversas rupturas pelas quais os/as estudantes, incluindo as práticas de letramento, compõem um processo de passagem que necessita ser incorporado em uma pedagogia da afiliação que apoie a inserção e permanência desses/as estudantes nas universidades.

Marcela ainda afirma que “o curso de pedagogia/ me proporcionou/ a desconstrução de muitas certezas/ e/ mudou minha visão de mundo/ hoje/ tenho argumentos científicos para discutir em família/ base para argumentar a favor das cotas, por exemplo/ hoje/ eu alio ciência e experiência de vida/ reflito sobre as diferenças sociais/ as diferenças entre escolas públicas e particulares/ pois a turma (...)/ tem pessoas/ que estudaram nos dois tipos de escola/ e os contrastes são muito impactantes para ambos os grupos” (Entrevista em 25/10/2016). Por meio desse discurso, podemos refletir sobre o papel da classe social nas oportunidades escolares e no acesso à universidade, bem como o do curso de Pedagogia na construção de identidades de nossas estudantes. Marcela, assim como Fernanda e Laura, chama a atenção para o papel do coletivo da sua turma de Pedagogia, do afeto de seus colegas, na sua formação como pessoa, afirmando que “considera sua turma muito acolhedora”. Marcela, ao defender sua Dissertação de Mestrado, em princípio de 2020, demonstrou que, com a ajuda de suas orientadoras, criou possibilidades de superação das dificuldades de escrita desse gênero de discurso.

Considerações finais: humanizando as trajetórias escolares

Ao terminar a escrita desse artigo, gostaríamos de discutir as possibilidades de compreensão das trajetórias escolares dos participantes da pesquisa por meio da unidade de análise ACCL. Tal unidade nos permitiu analisar essas trajetórias do ponto de vista da totalidade indivisível que constituiu aquelas pessoas como incluídas, ou não, na sociedade e na universidade. Foi por meio dos letramentos acadêmicos que pudemos conhecer a força do afeto constituindo e sendo constituído pela cognição social situada, pela força das culturas e das linguagens em uso. Argumentamos que esses conceitos estão intimamente relacionados nas vivências relatadas, e, em alguns momentos um ou outro se torna mais saliente, porém estão sempre em diálogo, constituindo as pessoas e suas atividades criadoras. Essa compreensão implicou pensar e praticar torna visível a cognição como uma atividade humana criadora que está intimamente relacionada às práticas sociais em que ela é gestada - nas relações das salas de aulas e familiares. Dessa maneira, as três estudantes forjaram sínteses pessoais para suas trajetórias de escolarização. Tais sínteses entrelaçaram os letramentos acadêmicos, as relações na turma de Pedagogia e suas posições sociais no contexto mais amplo da família, da religião e do trabalho, possibilitando um trânsito seguro “dentro e fora da sala de aula”, como afirma Laura.

A unidade ACCL permitiu-nos olhar para as pessoas, humanizando suas trajetórias escolares, bem como possibilitou-nos não as estigmatizar ou rotulá-las como deficientes. E, assim, analisar as salas de aulas como totalidades considerando a dialética do coletivo e individual, do todo/partes, partes/todo, das relações sociais constituindo zonas de desenvolvimento iminentes para possibilitar a inclusão de diferentes pessoas nas universidades públicas.

Dessa forma, pode-se perceber a complexidade da compreensão do desenvolvimento do ser humano nos meios escolares e suas relações com os meios familiares. Essa complexidade passa pela compreensão holística do ser humano, que como vimos está intimamente relacionada aos processos cognitivos, afetivos, culturais e linguísticos, o que significa que a teoria precisa se revestir de prática e a prática de teoria, em um movimento dialético e transformador das práticas escolares e sociais mais amplas.

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1Todos os nomes dos participantes da pesquisa são fictícios. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). CAAE30408514.0.0000.5149.

2FIAT é uma das empresas da Fiat Chrysler Automobiles, um dos maiores fabricantes de automóveis do mundo, com sede mundial na cidade de Turim, norte da Itália.

3Fazemos transcrições por unidades de mensagem, ou seja, a menor unidade com significação para quem, quando, como, com qual objetivo, com qual consequência alguém falou ou fez algo (GUMPERZ, 2002). Essas unidades de mensagem estão marcadas por barras.

4 Programa criado pela Rede Globo de Televisão, em 1999, com forte apelo à ação voluntária em escolas públicas da Educação Básica (FERNANDES, 2010).

5AutoCAD é um software do tipo CAD — Computer Aided Design ou desenho auxiliado por computador. É um programa frequentemente utilizado por diversos profissionais, incluindo arquitetos e engenheiros.

Recebido: 22 de Março de 2021; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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