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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.72 Curitiba jan./mar 2022  Epub 19-Set-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.072.ao03 

Artigos

Alguns achados sobre Ética em Freire na obra “Educação como prática da liberdade”

Findings about Ethic in Freire’s work “Education as freedom practice”

Algunos hallazgos sobre Ética en Freire en el trabajo "La educación como práctica de libertad"

Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlosa 
http://orcid.org/0000-0002-5455-651X

Eduardo Jorge Lopes da Silvab 

aSecretaria de Educação e Cultura do Município de João Pessoa, Paraíba, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: daffyanna@gmail.com

bUniversidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil. Doutor em Educação, e-mail: eduardojorgels@gmail.com


Resumo

Ética é um tema necessário à vida social e aos seres humanos nas obras de Paulo Freire. Sendo assim, o presente artigo apresenta alguns achados sobre ética no livro “Educação como prática da liberdade”. O objetivo foi identificar enunciados sobre a ética, presente no discurso freireano, os quais foram analisados através da abordagem teórico-metodológica da “Análise Arqueológica do Discurso” de Foucault (2000). Ao efetivar a escavação na obra acima citada, foram identificados vários achados, cuja regularidade em meio à dispersão assinala a presença de diferentes modos de registrar a questão “ética” em Freire. Os significantes encontrados, associados ao objeto em questão foram: “integração”, “consciência”, “criticidade”, “sujeito” e “humanização”. Logo, o pensar ético freireano na obra supracitada denota sua importância como dispositivo para a formação da consciência crítica dos seres humanos, para que eles saiam da condição de sujeito-objeto, de mero expectador, manipulado, coisificado, enquadrado, para a condição de sujeito-humanizado, sujeito ético.

Palavras-chave: Ética; Discurso; Paulo Freire

Abstract

Ethic is a necessary theme for social life and human beings in Paulo Freire’s works. Therefore, this article presents some findings about ethic in the book “Education as freedom practice”. The objective was to identify statements about ethics, present in Freire's discourse, which were analyzed through the theoretical-methodological approach of Foucault's “Archaeological Discourse Analysis” (2000). When ca]rrying out the excavation in the aforementioned work, several findings were identified, whose regularity in the midst of dispersion indicates the presence of different ways of registering the “ethic” question in Freire. The key-signifiers found, associated with “ethic”, were five: “integration”, “awareness”, “criticality”, “subject” and “humanization”. Therefore, Freire's ethical thinking in the aforementioned work, denotes its importance as a device for the formation of the critical consciousness of human beings, so that they leave the condition of subject-object, of mere spectator, manipulated, objectified, framed, to the condition of humanized subject, ethical subject.

Keywords: Ethic; Discourse; Paulo Freire

Resumen

La ética es un tema necesario para la vida social y para los seres humanos en las obras de Paulo Freire. Por lo tanto, este artículo presenta algunos hallazgos sobre ética en el libro "La educación como práctica de la libertad". El objetivo era identificar enunciados sobre ética, presentes en el discurso de Freire, que fueron analizados a través del enfoque teórico-metodológico del "Análisis del Discurso Arqueológico" de Foucault (2000). Al realizar la excavación en el trabajo antes mencionado, se identificaron varios hallazgos, cuya regularidad en medio de la dispersión indica la presencia de diferentes formas de registrar la cuestión "ética" en Freire. Los significantes encontrados, asociados con el objeto en cuestión fueron: "integración", "conciencia", "criticidad", "sujeto" y "humanización". Por lo tanto, el pensamiento ético de Freire en el trabajo antes mencionado denota su importancia como un dispositivo para la formación de la conciencia crítica de los seres humanos, para que dejen la condición de sujeto-objeto, de mero espectador, manipulado, reificado, enmarcado, a la condición de sujeto humanizado, sujeto ético.

Palabras clave: Ética; Discurso; Paulo Freire

1. Introdução

A ética é um tema necessário à vida social. Quando as relações sociais não se baseiam na ética, a dignidade da pessoa humana é a todo momento afetada de diferentes formas: negação da própria vida, privação da liberdade de expressão, segregação ideológica, desrespeito às diferenças, violência física, exploração do trabalho e discriminação racial, religiosa e política. Enfim, a ausência de princípios éticos torna a vida familiar, escolar e religiosa, bem como o convívio no trabalho e no cotidiano, insuportáveis.

Sabe-se que a ética se assenta no reconhecimento do ser humano, de sua vida e de sua dignidade. Nesse sentido, ela é fundada no entendimento de que sua razão de ser encontra-se no fato da existência do ser humano enquanto tal. Em outros termos, a ética seria uma representação valorativa do reconhecimento da existência humana como algo real, irrefutável e necessário. Assim, a ética seria um tipo de consciência que possibilita o ser humano se ver enquanto tal.

Essa ideia é imprescindível para o estabelecimento da diferença entre a consciência ética e a consciência moral. Enquanto a ética refere-se ao gênero humano e a possibilidade do desenvolvimento de humanidade, a moral está intimamente relacionada ao campo do cumprimento das normas, mais precisamente ao conjunto de valores aceitos como legítimos por determinado grupo de seres humanos. Nesse sentido, a moral sempre é relativa, afeita ao modo como determinados grupos regulam a consciência e a conduta de seus membros, bem como ao funcionamento da rede de relações tecidas no contexto de suas formações sociais (CARLOS; CARLOS, 2015).

Esse entendimento de ética e de moral, além de revelar a diferença entre os dois conceitos, também serve como critério de verificação e avaliação dos tipos de valores acolhidos e compartilhados por determinados grupos e sociedades. O que aponta para a possibilidade de existirem valores morais não humanos, isto é, deveres estabelecidos, incompatíveis com os valores de natureza ética. Em função disso, pode-se dizer que um saber, uma experiência, uma prática, uma luta, um discurso, uma ideologia, uma teoria ou uma concepção de mundo caracteriza-se como ética quando ela tem como ponto de partida e chegada, como centro articulador, o valor supremo, absoluto e indiscutível do ser humano.

Em Santos (2002), por exemplo, a questão ética é colocada como uma espécie de critério do exercício da crítica e um princípio das lutas relativas à emancipação social dos povos. Nessas condições, parece-nos que esse autor apresenta uma via de entendimento sobre a questão ética que, a nosso ver, indicaria um modo parecido com as intervenções culturais e políticas da educação popular realizadas no seio das lutas dos movimentos sociais e populares1. Trata-se de uma concepção de ética assentada no cuidado com o governo dos homens e das coisas, como ressalta esse mesmo autor:

[...] a sociologia das emergências substitui a ideia de determinação pela ideia axiológica do cuidado. A axiologia do progresso é, assim, substituída pela axiologia do cuidado. Enquanto na sociologia das ausências a axiologia do cuidado é exercida em relação às alternativas disponíveis, na sociologia das emergências é exercida em relação às alternativas possíveis. Esta dimensão ética faz com que nem a sociologia das ausências nem a sociologia das emergências sejam sociologias convencionais [...] (SANTOS, 2002, p. 256-257).

Partindo da mesma compreensão de ética de Santos (2002), Enrique Dussel, filósofo argentino, influenciado por Ricoeur e Emmanuel Lévinas, formulou na perspectiva política latinoamericana a noção de Ética voltada para a Libertação. Em suas investigações, dentre os muitos teóricos2, ele recorre ao pensamento de Paulo Freire, tendo em vista fundamentar sua compreensão sobre ética. Dussel (2000), em sua obra “Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão”3, mostra a importância do educador Paulo Freire, para se pensar numa ética crítica e para o movimento de libertação na América Latina e na África. Considerando o pensamento pedagógico freireano, Dussel (2000, p. 437-443) apresenta dez pressupostos para fundamentar sua ordem argumentativa sobre ética, a saber: “A situação-limite: o ponto de partida”; “A conscientização - Consciência ingênua e Consciência crítica”; “Medo da libertação”; “A participação do educador crítico”; “A consciência ético-crítica”; “O sujeito histórico da transformação”; “Intersubjetividade comunitária: a razão ético-discursiva”; “A denúncia e o anúncio”. e por fim, “A práxis da libertação”. Porém, no presente artigo nos deteremos na análise dos sete primeiros.

Ao tratar sobre a “Situação limite: o ponto de partida”, expressa no pensamento freireano, Dussel (2000) afirma que esse pressuposto trata-se de um ponto de partida “material, analítico, econômico e político” (2000, p. 436). Para o filósofo, toda educação é resultado de condicionantes sociais, da realidade vivida pelos educandos, ou seja, o processo educativo vivenciado nos diversos espaços sociais é alimentado e retroalimentado pela concepção de sociedade, de mundo, visando constituir determinado tipo de subjetividade. Assim, conforme destaca Dussel (2000, p. 437) “[...] toda educação possível parte da realidade [...]. [...] São estruturas de dominação que constituem o educando como oprimido [...]”. Neste momento, observa-se que Dussel identifica no pensamento freireano o elemento da negatividade, a qual ele denominou de negatividade possível. A negatividade possível, se configura no momento em que Freire descreve dados concretos de uma realidade social excludente, que oprime e empobrece os seres humanos. Já a “conscientização”, que envolve a noção de “Consciência ingênua” e “Consciência crítica”, Dussel (2000) parte do entendimento de que conscientizar é o momento de trânsito, onde o educando transita do elemento da negatividade (consciência ingênua, cultura do silêncio, mistificação da realidade, consciência mágica), para a positividade (criticidade). Nesse movimento mutável, o educando vai realizando contínuas decisões, retornos e avaliações, conduzindo-o a tomada de consciência crítica sobre si mesmo, sobre o mundo que o cerca.

Quanto ao “Medo da liberdade”, o oprimido, a vítima, encontra-se “bloqueado”, “impedido” de abrir-se para a criticidade. O oprimido tem medo da liberdade. O medo paralisa, interdita, congela a consciência dos indivíduos, gerando a “impossibilidade ontológica” de os oprimidos serem sujeitos. A conquista da consciência crítica, conforme Dussel (2000, p. 438) assinala, “[...] esbarra numa perigosa situação de perder a felicidade, pois se toma um ‘refém’ perseguido no e pelo sistema opressor em nome de sua comunidade de vítimas [...]”.

A participação do educador crítico” é outro pressuposto identificado pelo filósofo latinoamericano. O educador, no entendimento de Freire, precisa pensar a sua prática, aprendendo como mundo do educando, o qual precisa ser inventor e reinventor constante de sua prática. No inventar e reinventar precisa considerar os saberes dos educandos, suas falas, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno da religiosidade, sexualidade, vida, morte, etc. Do exposto, Dussel (2000, p. 439) percebe, que Freire reconhece que “[...] é a vítima quem toma consciência crítica e que o educador lhes possibilita o descobrimento da sua condição de vítima. Isto é, a consciência não chega a vítima ‘de fora’, mas surge ‘de dentro’ da sua própria consciência despertada pelo educador [...]”. por sua vez, “A consciência ético-crítica” é quando o oprimido toma consciência das causas da opressão, sendo este o meio pelo qual o oprimido se reconhece como oprimido. É a tomada de consciência da realidade objetiva que produz, gera sua opressão, seja ela pela educação bancária (pedagogia da dominação), pela cultura do silêncio e pela dominação; seja pelo processo de domesticação e massificação. Por fim, o “Sujeito histórico da transformação” é o sétimo pressuposto identificado por Dussel, no pensamento pedagógico freireano. Aqui o oprimido é o sujeito da educação quando, pela consciência crítica, reflete sobre si mesmo e se vê na condição de opressão em que vive. Descobrindo-se como oprimido, no sistema, torna-se sujeito histórico, sendo sujeito pedagógico, o qual luta pela transformação social. Homens-sujeitos reconstrutores do mundo.

Pelo exposto, nota-se que tanto a noção de ética em Santos (2002) e Dussel (2000), relaciona-se com a questão da dignidade da pessoa humana. Por essas e outras razões, é indispensável estabelecer um diálogo entre a ética e a construção de experiências éticas concretas em todos os lugares e tempos sociais.

A partir desse olhar ético sobre o ser humano e sobre a vida como um todo, o professor passa a estabelecer relacionamentos intersubjetivos regados pela amorosidade, solidariedade, fraternidade, generosidade e altruísmo, visando abolir e minar, de uma vez por todas, modelos societários belicosos, segregadores, desumanos, preconceituosos e excludentes.

Em Freire o princípio ético está assentado na vida, pois sua ética “pedagógica libertadora” é construída a partir do oprimido, do ser negado, do ser excluído, do ser segregado, da negação de direitos a todos os que são vítimas de um sistema capitalista, de uma sociedade pautada no neoliberalismo, no sectarismo, no pragmatismo, assim como no fundamentalismo religioso. Todos esses “ismos” reforçam a desigualdade social e a discriminação de raça, de gênero, religiosa, impedindo o ser humano de ser mais, de se humanizar. Em “Pedagogia da Indignação” e “Pedagogia da Autonomia”, por exemplo, Freire afirma que:

[...] assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas [...] (2000, p. 66).

[...] o erro na verdade não é ter certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto do seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele. O meu ponto de vista é o dos ‘condenados da terra’ o do excluídos [...] (2006, p. 14).

Nota-se, na afirmativa de Freire, que a vida é como parâmetro essencial, seja no estabelecimento de relações mais humanizadoras, edificantes e construtivas, seja no processo de ensino-aprendizagem, em que o outro é reconhecido e valorizado em suas particularidades, singularidades e identidades. Dessa forma, o educador Paulo Freire convida e desafia o professor a assumir uma proposta pedagógica que tenha a autonomia do sujeito como um dos caminhos na busca pela liberdade, pela formação da criticidade e, consequentemente, pela constituição de subjetividades éticas, em que a dignidade humana seja parâmetro para as relações interpessoais.

Este artigo é recorte de uma tese de doutoramento4 e objetiva identificar os enunciados sobre a ética, presente em uma da obras de Paulo Freire, Educação como prática da liberdade”, por compreender que, no presente discurso, no agir ético freireano encontram-se elementos para uma ação pedagógica libertadora para todos os seres humanos, em todos os quadrantes da terra, como ressalta Souza (2007).

Nossas análises estão estruturadas a partir da relação entre três elementos básicos: a religião, a educação e a ética. Todavia, para compreender o caráter ético da proposta pedagógica de Freire, o território da pesquisa foi o discurso. E, para analisar o discurso ético recorremos às contribuições teórico-metodológicas da Análise Arqueológica do Discurso de Michel Foucault (2000), a qual apresentamos no próximo item do deste artigo.

2. Abordagem teórico-metodológica: a análise arqueológica do discurso (AAD)

Algumas perguntas contribuíram no processo de escavação do discurso ético da pedagogia freireana, a saber: o que afirma Paulo Freire sobre a especificidade da ética em seus escritos? E, quais são os constituintes do seu discurso sobre ética?

Para responder às perguntas, adotamos como abordagem teórico-metodológica a Análise Arqueológica do Discurso (AAD), proposta por Michel Foucault (2000). Justificamos essa escolha por meio de algumas razões. A primeira, mais geral, foi pelo fato de que o objeto de pesquisa se situa no âmbito do discurso. Por exclusão, isso significa que não temos a pretensão de investigar uma experiência concreta, um projeto específico, uma política pública particular em suas configurações históricas, empíricas e cotidianas, mas, o discurso em seu próprio âmbito.

A segunda, que fez-nos escolher Foucault e, mais precisamente, seu legado arqueológico, conforme ele mesmo afirmou (FOLCAULT, 2000), foi o fato de que a AAD aborda o discurso, de um lado, na esfera do próprio discurso, e, de outro, “como práticas que obedecem a regras, como um conjunto de sequências de signos na forma de enunciados, ou, ainda, como conjunto de enunciados que se apoiam em um mesmo sistema de formação” (FOUCAULT, 2000, p. 124), o que permite reconhecer no discurso modalidades particulares de existência. Nesse aspecto, observa-se uma diferença substancial entre o modo de conceber o discurso e analisá-lo e outras abordagens oriundas das áreas das Ciências Sociais e Humanas, como o entendimento forjado no domínio da Linguística, da Filosofia da Linguagem, da Semiótica e da Hermenêutica, conforme explicita minunciosamente Foucault (2000, p. 124),

[...] O discurso é constituído por um conjunto de sequências de signos, enquanto enunciados, isto é, enquanto lhes podemos atribuir modalidades particulares de existência [...]. [...] Sei que essas definições, em sua maioria, não correspondem ao uso corrente: os linguistas têm o hábito de dar à palavra discurso um sentido inteiramente diferente, lógicos e “analistas” usam de forma diferente do termo enunciado. Mas não pretendo, aqui, transferir para um domínio - que esperaria apenas essa luz - um jogo de conceitos, uma forma de análise, uma teoria que teriam sido formados em algum outro lugar; não pretendo utilizar um modelo aplicando-o, com a eficácia que lhe é própria, a conteúdos novos [...].

O exposto nos permite dizer, preliminarmente, que a investigação sobre a relação entre ética e educação buscará analisar e descrever os enunciados e as regras de produção da ordem do discurso freireano sobre o objeto em tela. Em conformidade com o que anunciam Alcântara e Carlos (2013), adotamos três procedimentos operatórios durante o processo de tratamento do discurso, a saber: mapeamento dos documentos, escavação da zona do discurso e análise e descrição dos enunciados.

No processo de mapeamento dos documentos/fonte, foram identificados, selecionados e organizados os escritos de Freire para a pesquisa. Durante a escavação da zona do discurso no livro Educação como prática da liberdade”, foram realizadas a leitura e a sistematização da obra para identificar séries enunciativas do discurso investigado. Na análise e descrição dos enunciados foram identificados os enunciados escavados, destacando sua regularidade e dispersão, com o objetivo de conferir visibilidade e descrevê-los em sua ordem de existência.

Conforme está posto, cabe destacar que, embora a AAD investigue objetos situados no campo da linguagem, ela não se ocupa com qualquer tipo de objeto presente nesse território, como significados, sentidos, representações e atos de fala ressaltados em outros domínios do conhecimento, situados no seio das áreas sociais e humanas. Seu foco são os discursos como enunciados. Logo, sob essa perspectiva, “não se analisam unidades linguísticas (frases, proposições, palavra etc.), pois sua intenção, seu objeto de estudo e pesquisa é de descobrir os enunciados presentes nessas unidades”, afirma Silva (2014, p. 152). Para isso, “[...] é preciso então rachar, abrir as palavras, as frases e as proposições para extrair delas os enunciados [...]” (DELEUZE, 2006, p. 61).

Foucault (2000, p. 135) enuncia que a AAD busca

[...] Definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas e as obsessões que ocultam ou se expressam dos discursos, mas sim, os próprios discursos, como práticas que obedecem a regras, como um conjunto de sequências de signos na forma de enunciados, o que lhes permite atribuir modalidades particulares de existência ou, ainda, como conjunto de enunciados que se apoiam em um mesmo sistema de formação [...].

Em síntese, foi empreendido o esforço de analisar a ordem discursiva sobre ética, na qual Paulo Freire teceu suas propostas pedagógicas. Entendemos que, com base na Análise Arqueológica do Discurso, foi possível descrever e reforçar aqueles enunciados, pelos quais o autor traz elementos do seu pensar/agir sobre ética, para os “esfarrapados do mundo” (FREIRE, 2002).

3. Ética em “educação como prática da liberdade”

Ao iniciarmos as escavações no livro Educação como prática da liberdade”, documento-fonte desencadeador do exercício de análise da investigação em tela, constatamos, no texto introdutório “Educação e Política: reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da liberdade”, escrito por Francisco C. Weffort, que a escolha do livro fora apropriada pelo fato de o referido autor considerar o livro em questão representação de um registro que indicava um espectro de alcance das ideias de Freire, o qual abarcaria o que se pensava e dizia sobre a educação da primeira metade do Século XX, como demonstrado nesta passagem:

[…] Assim, até a elaboração do presente livro - escrito, depois da queda do governo Goulart, nos intervalos das prisões e concluído no exílio - suas idéias alcançaram projeção em todo o Brasil, menos através de textos de estilo acadêmico que das conferências ao grande público e das polêmicas com os adversários do movimento de educação popular que criou e dirigiu nos últimos anos anteriores ao golpe de Estado de 1964 [...] (FREIRE, 1967, p. 02).

Nesse sentido, o referido escrito possibilitaria adentrar a ordem do discurso freireano a partir de um deslocamento no tempo tanto para o passado, com a análise de possíveis relações entre o que Freire escreveu em Educação como prática da liberdade” (1967) e o que se encontra registrado em outras obras do autor, como para o futuro próximo, distante das décadas de 1950 e 1960, com a análise do livro “Pedagogia do oprimido”. Isso é o que, de certa maneira, a afirmativa abaixo de Weffort sugere:

[…] Por isso podemos afirmar, sem desconhecer a importância dos textos anteriores do autor, que se propõe aqui pela primeira vez uma visão global de suas ideias pedagógicas. Não nos referimos à sua proposição definitiva e acabada, pois é do estilo desse pensamento unido à prática encontrar-se em constante reformulação e desenvolvimento. Mas o que, sobretudo, convém ter presente é que esse ensaio educacional - ainda quando reivindique, como toda teoria, validade geral - se acha impregnado das condições históricas que lhe deram origem. Constitui, em ampla medida, uma reflexão sobre a experiência do autor e de seu povo na última etapa da história brasileira [...] (FREIRE, 1967, p. 03).

Seguindo a perspectiva teórico-metodológica da AAD, iniciamos as escavações com o levantamento das possíveis séries de signos existentes sobre ética. Vale lembrar que a busca dos achados inicia pela superfície do terreno da linguagem, identificando, a partir dos significantes-chave, seus respectivos significados, suas relações com outros significantes e significados que aparecem no ato mesmo de analisar as formulações anunciadas, as frases e as orações construídas e o argumento desenvolvido ao longo das páginas do texto escrito por Freire.

O ponto de partida do levantamento e da análise da superfície do livro foi empreendido a partir do significante “ética”, que, embora tenha aparecido somente três vezes no texto (nas páginas 54 e 55), desencadeou o aparecimento de outros significantes e significados correlacionados, cuja riqueza semântica apontou uma série de achados relevantes5 para a análise e a futura descrição da ordem do discurso sobre a questão “ética” em Freire.

Nota-se, entretanto, que, embora o termo não apareça mais ao longo da argumentação, o que pode sugerir que seu emprego seja um acontecimento localizado tão somente nas referidas páginas, já ali Freire o associa a uma série de outros significantes e significados dispersos, cuja relevância ganha centralidade na articulação da ordem geral de sua produção e, em particular, no escrito em tela.

Assim, ao efetivar a escavação, encontramos cinco achados, cuja regularidade em meio à dispersão assinala a presença de diferentes modos de registrar a questão “ética” em Freire. Os significantes encontrados, associados à “ética”, no livroEducação como prática da liberdade”, foram cinco: integração, consciência, criticidade, sujeito e humanização. Vejamos como cada um deles codifica, de maneiras diferentes, a ideia de ética utilizada por Freire no escrito em análise.

3.1 O significante “integração” como um correlato de “ética”

Nos fragmentos analisados, o significante “integração” aparece como uma maneira de dizer “ética”, como uma espécie de senha ou codificação que sintetiza uma multiplicidade de sentidos. Seguindo esse achado, ao adentrar o corpo do livro em análise, constatamos que, diferentemente do termo “ética”, o significante “integração” tinha uma presença menos tímida, empiricamente falando, pois havia uma intensidade desse significante, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto das correlações semânticas que o termo acoplava. Isso abriu outras possibilidades de escavação, outras séries e correlações significativas. Dessa forma, podemos afirmar que a ordem geral do argumento freireano confere um grau de importância ao significante “integração”, pois funciona como um termo que articula o significante “ética” a uma variedade de significados.

O exame mais acurado do significado do termo “integração” apresentou, logo de início, que a ideia de integração assumida por Freire se configurava como uma espécie de manifestação do modo como o ser humano existe, isto é, como um “ente de relações”. Como um ser de relação, o ser humano diferencia-se dos demais seres vivos, cuja marca ontológica seria a de ser imerso na imediaticidade do real, ou seja, caracteriza-se como um ser adaptado, acomodado e ajustado ao mundo natural.

Nesse aspecto, o sentido atribuído ao modo de vida dos seres vivos, em geral, estaria associado ao termo “contato”, que expressaria a impossibilidade de se integrar ao mundo e de transformá-lo segundo suas necessidades individuais, sociais e históricas. Por essa razão, Freire (1967, p. 39, grifo nosso) assevera que

[...] as relações que o homem trava no mundo com o mundo (pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam uma ordem tal de características que as distinguem totalmente dos puros contatos, típicos da outra esfera animal. [...] É fundamental [...] partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é [...].

Então, ao considerar o ser humano como um ser de relação, integrar-se ao mundo vivido, ao cotidiano, à situação, à história ou ao contexto seria um modo humano de efetivar sua própria natureza - a de ser um “ente de relações”. “[...] Portanto, enquanto o animal é essencialmente um ser da acomodação e do ajustamento, o homem o é da integração [...]”, afirmara Freire (1967, p. 42).

Os significados do significante “integração” ganharam, ao longo da argumentação freireana, diferentes matizes e usos analíticos. Um exemplo foi quando Freire (1967, p. 68, grifo nosso) problematizou o período colonial da sociedade brasileira e disse:

[…] Faltou aos colonos que para cá se dirigiram, ânimo fundamental, que teria dado, possivelmente, outro sentido ao desenvolvimento de nossa colonização. Faltou-lhes integração com a colônia. Com a terra nova. Sua intenção preponderante era realmente a de explorá-la. A de ficar “sobre” ela. Não a de ficar nela e com ela. Integrados. Daí, dificilmente virem animosos de trabalhá-la, de cultivá-la [...].

Outro exemplo emblemático, sobre a relevância desse significante no modo como Freire argumentava, se encontra na análise e nas conclusões a que chegou sobre o papel histórico do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) na produção do conhecimento sobre a realidade brasileira. Disse Freire (1967, p. 99, grifo nosso):

[…] A força do pensamento do ISEB tem origem nessa identificação, nessa integração. Integração com a realidade nacional, agora valorizada, porque descoberta e porque descoberta, capaz de fecundar, de forma surpreendente, a criação do intelectual que se põe a serviço da cultura nacional. Dessa integração decorreram duas consequências importantes: a força de um pensamento criador próprio e o compromisso com o destino da realidade pensada e assumida. Não foi por acaso que o ISEB, não sendo uma universidade, falou e foi escutado por toda uma geração universitária e não sendo um organismo de classe, fazia conferências em sindicatos [...].

Como se pode ler, o significante “integração” foi utilizado para se fazer uma crítica à “ordem social e histórica” da “sociedade fechada”, que abrange um longo período da história brasileira, seja para: anunciar a perspectiva dinâmica do modo como o “homem brasileiro” deveria ser na “sociedade do trânsito”, alertar acerca das condições culturais e políticas de alienação do povo, ou problematizar o horizonte pedagógico das práticas educativas corresponsáveis pela formação de uma mentalidade ingênua, sectária e fanática, ou crítica e participativa, no seio da sociedade brasileira.

3.2 O significante “consciência” como um correlato de “ética”

Outro significante com o qual nos deparamos foi o significante “consciência” associado à ideia representativa de uma espécie de característica ontológica da vida humana.

A análise dos possíveis significados, postos em circulação por Freire e conectados ao significante “consciência”, na dispersão de “Educação como prática da liberdade”, nos permitiu encontrar vários usos para o termo. Um emprego, mais geral, foi constatado em expressões como: “tomada de consciência”, “ter consciência”, “aclaramento das consciências”, “consciência da temporalidade”, “consciência da finitude”, “consciência minimizada”, “elevação do pensamento” e “máximo de consciência”, por exemplo, que sugerem a ideia de discernimento e de reconhecimento de algo.

Ser consciente de algo, nesse sentido, seria reconhecer e discernir sua existência, seu modo próprio de existir e de ser, como, por exemplo, a condição de objeto a que o povo brasileiro se encontrou submetido, na “sociedade fechada”, ao longo de sua trajetória histórica, desde seu descobrimento. Nas palavras de Freire (1967, p. 35, grifo nosso): “[...] uma sociedade sem povo, comandada por uma ‘elite’ superposta a seu mundo, alienada, em que o homem simples, minimizado e sem consciência dessa minimização, era mais ‘coisa’ que homem mesmo, ou opção pelo Amanhã [...]”.

Comprometido com o movimento social em favor da mudança de uma “consciência minimizada” do “povo-objeto” à ordem ética de uma “consciência elevada”, própria de um “povo-sujeito”, Freire aponta que superar um estado de contatos, tendo em vista a integração, exigiria uma dupla mudança: na “sociedade fechada”, o que já vinha ocorrendo desde o final do Século XIX, com a chegada da família real ao Brasil, e na consciência do povo massificado, o que não ocorreria espontaneamente pelo acontecer das mudanças sociais e culturais. Sobre a necessária consciência histórica, lembra Freire (1967, p. 41):

[…] Na história de sua cultura terá sido o do tempo - o da dimensionalidade do tempo - um dos seus primeiros discernimentos. O "excesso” de tempo sob o qual vivia o homem das culturas iletradas prejudicava sua própria temporalidade, a que chega com o discernimento a que nos referimos e com a consciência dessa temporalidade, a de sua historicidade [...].

Ao “elevar a consciência”, tendo em vista o “discernimento” de sua temporalidade e historicidade, exigiria um trabalho de politização e conscientização das pessoas, de mudança de mentalidade e de atitude, que iniciava com a “tomada de consciência”, por meio da “autorreflexão” de sua existência, de seus dramas cotidianos, dos temas de sua época e desafios a serem enfrentados, necessária “[...] ao aprofundamento consequente de sua tomada de consciência e de que resultará sua inserção na História, não mais como espectadoras, mas como figurantes e autoras [...]” (FREIRE, 1967, p. 36). Nesse sentido, ressalta o presente autor:

[…] Um mundo novo se levanta diante deles, com matizes até então despercebidos. Ganham, pouco a pouco, a consciência de suas possibilidades, como resultado imediato de sua inserção no seu mundo e da captação das tarefas de seu tempo ou da visão nova dos velhos temas [...] (FREIRE, 1967, p. 63, grifo nosso).

Ao se posicionar sobre a necessidade da “consciência” como um componente ontológico da condição humana do povo-sujeito, Freire não levantou tão somente o problema da ausência ou da presença do “reconhecimento” e do “discernimento”, mas também o da existência efetiva de diferentes níveis de “consciência”, denominada, em seus escritos, de “consciência intransitiva”, “consciência ingênua” e “consciência crítica”. Esses significantes guardam, um a um, séries específicas de sentidos, isto é, à “consciência intransitiva”, ligam-se as noções de “impermeabilidade”, de “órbita vegetativa”, de “falta de compromisso”; ao significante “consciência ingênua’, vinculam-se as ideias de “simplicidade na interpretação dos problemas”, de “saudosismo do passado”, de “subestimação do homem comum”, de “gregarismo”, de “impermeabilidade à investigação”, de “explicações fabulosas”, de “fragilidade na argumentação”, de “emocionalidade”, de “polêmica”, de “sectarismo” e de “fanatismo”; à semântica da “consciência crítica”, junta-se uma série de significados, como “diálogo”, “atividade”, “participação”, “compromisso”, “profundidade na interpretação dos problemas”, “causalidade”, “análise”, “reflexão”, “argumentação fundamentada” e “abertura ao novo”.

Pode-se dizer que a “consciência das possibilidades”, a “inserção no mundo”, a “captação das tarefas de seu tempo” e a “visão nova dos velhos temas”, muito mais do que uma “tomada de consciência”, exigem a elevação gradativa da consciência por meio da “autorreflexão” de uma consciência para a outra, da consciência intransitiva e transitivo-ingênua do homem-objeto para a transitivo-crítica do homem-sujeito, cujo comprometimento requer, como acentua Freire (1967, p. 61).

3.3 O significante “criticidade” como um correlato de “ética”

Outro aspecto relevante encontrado no entremeio dos escritos de Freire diz respeito ao significante “criticidade”, um termo que articula uma série de signos e significados que são fundamentais para a ordem geral do escrito, aqui em análise. Ao escavar o terreno do livro em questão, a partir do significante “criticidade” e dos seus derivados “critico” e “crítica”, apareceu um considerado universo de frases, afirmações e significados vinculados, cujos sentidos apontam várias possibilidades de uso no contexto da argumentação sobre a questão “ética”.

Inicio assinalando uma regularidade na dispersão dos significantes e dos significados encontrados - a de que, nesse escrito, Freire (1967, p. 105) apresenta a “criticidade” ou consciência crítica como sendo “[...] ‘a representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica em suas correlações causais e circunstanciais’ [...]”. Esclarece ainda que:

[…] na captação, juntamente com o problema, com o fenômeno, capta também seus nexos causais. Apreende a causalidade. A compreensão resultante da captação será tão mais crítica quanto seja feita a apreensão da causalidade autêntica. E será tão mais mágica, na medida em que se faça com um mínimo de apreensão dessa causalidade. Enquanto para a consciência crítica a própria causalidade autêntica está sempre submetida à sua análise - o que é autêntico hoje pode não ser amanhã - para a consciência ingênua, o que lhe parece causalidade autêntica já não é, uma vez que lhe atribui caráter estático, de algo já feito e estabelecido [...]. (FREIRE, 1967, p. 105, grifo nosso).

Ora, considerando o pressuposto de que “[...] a compreensão resultante da captação será tão mais crítica quanto seja feita a apreensão da causalidade autêntica [...]” (1967, p. 105), Freire articula sua argumentação sobre a relação integração-criticidade e afirma que seria “[...] próprio da consciência crítica a sua integração com a realidade [...]” (1967, p. 105) ou, ainda, que a criticidade “[...] implica a apropriação crescente pelo homem de sua posição no contexto. Implica na sua inserção, na sua integração, na representação objetiva da realidade [...]” (1967, nota 23, p. 60). Em decorrência dessa compreensão, declara enfaticamente:

[…] Por isso, desde já, saliente-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época [...]. (FREIRE, 1967, p. 44).

Nesses termos, o significante “criticidade” tanto indica o nível desejado de integração quanto uma condição necessária à inserção consciente do homem em seus contextos societários, pois, sem criticidade “[...] não será possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade em transição, intensamente cambiante e contraditória [...]” (FREIRE, 1967, p. 56). Portanto, “[...] quanto menos criticidade em nós, tanto mais ingenuamente tratamos os problemas e discutimos superficialmente os assuntos [...]” (1967, p. 95-96). Nesse sentido, afirma, com certo sentimento de tristeza que:

[...] infelizmente, o que se sente, dia a dia, com mais força aqui, menos ali, em qualquer dos mundos em que o mundo se divide, é o homem simples esmagado, diminuído e acomodado, convertido em espectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. Mitos que, voltando-se contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade […]. (FREIRE, 1967, p. 44).

Devido a tal constatação, entende-se a defesa intransigente de Freire acerca da necessária “criticidade” histórica para a libertação do homem brasileiro de seu estado de ingenuidade. Instrumentalizado pela consciência crítica, a “[...] captação que faz dos dados objetivos de sua realidade, como dos laços que prendem um dado a outro [...]” (1967, p. 40) capacitaria o homem brasileiro a inserir-se em seu contexto de modo consciente, tanto no que diz respeito ao conhecimento das questões emergentes e dos desafios de seu tempo e lugar, quanto às escolhas que precisa fazer, às ações que necessita realizar ou, ainda, ao horizonte de luta e de participação que enfrenta cotidianamente ao longo de anos, como o momento histórico vivenciado pelo povo brasileiro nas primeiras décadas do Século XX, denominado por Freire de “sociedade em trânsito”. Sobre isso, afirma:

[…] Verifica-se, nessas fases, um teor altamente dramático a impregnar as mudanças de que se nutre a sociedade. Porque dramática, desafiadora, a fase de trânsito se faz então um tempo enfaticamente de opções. Essas, porém, só o são realmente na medida em que nasçam de um impulso livre, como resultado da captação crítica do desafio, para que sejam conhecimento transformado em ação. Deixarão de sê-lo à proporção em que expressem a expectativa de outros […]. (FREIRE, 1967, p. 45-46, grifo nosso).

Tal como foi dito sobre o significante “integração”, pode-se também dizer que a “criticidade” articula, a seu modo, um aspecto da questão ética, um modo profundamente definidor da humanidade do homem brasileiro. A criticidade e a integração são faces distintas, porém, conectadas ao modo como o ser humano vive, como ser de relação que é e que existe ao mesmo tempo em que vive. “[...] quanto mais crítico um grupo humano, tanto mais democrático e permeável, em regra. Tanto mais democrático, quanto mais ligado às condições de sua circunstância [...]” (Ibidem, p. 95). Restituir, portanto, ao ser humano brasileiro sua condição de ente de relação e de ser que existe é, para Freire, uma posição a favor de sua humanidade.

3.4 O significante “sujeito” como um correlato de “ética”

Assim como os termos “integração”, “consciência” e “criticidade”, o significante “sujeito” não só carrega consigo um sentido profundamente associado aos significados das palavras anteriores, como também põe em cena outros aspectos da ideia de “ética” em Freire, que, aos poucos, vamos escavando, desenlaçando semanticamente. Neste estágio da análise, é possível identificar que a questão “ética” em Freire, não diz respeito às coisas nem aos seres vivos em geral, mas, especificamente, aos seres humanos e, consequentemente, a tudo o que diga respeito ao desenvolvimento de sua humanidade no curso de sua existência e de sua história.

Como foi visto, um aspecto da humanidade do ser humano, existencial e historicamente situado, é sua dimensão ontológica de “integração” ao mundo vivido por ele. Integração criticamente consciente. Em outros termos, uma via de integração ao seu mundo, ao seu contexto, às suas circunstâncias e temporalidades ocorre por meio do reconhecimento e do discernimento crítico dos temas e dos desafios que o envolvem. Como escreveu Freire (1967, p. 44), “[...] sua humanização ou desumanização, sua afirmação como sujeito ou sua minimização [...] dependem, em grande parte, de sua captação ou não desses temas [...]”. Portanto, “[...] o homem integrado é o homem sujeito. A adaptação é, assim, um conceito passivo - a integração ou comunhão, ativo [...]”, afirma Freire (1967, nota de rodapé 4, p. 42). Se o ser-ativo é próprio do ser-homem, ser sujeito é uma condição constituinte da ordem ética da existência humana. Nesse sentido, argumenta Freire (1967, p. 51, grifo nosso), o homem-sujeito,

[...] não é mero espectador do processo, mas cada vez mais sujeito, na medida em que, crítico, capta suas contradições. Não é também seu proprietário. Reconhece, porém, que, se não pode deter nem antecipar, pode e deve, como sujeito, com outros sujeitos, ajudar e acelerar as transformações, na medida em que conhece para poder interferir […].

Com efeito, na ordem ética demonstrada por Freire, o homem integrado é aquele que “capta as contradições de seu tempo”, não “antecipa o futuro”. Enquanto “sujeito com outros sujeitos”, “conhece para intervir”. Nota-se que esses são traços profundamente diferentes dos que formam a mentalidade e a atitude do tipo de homem constituído no cenário da desordem da “sociedade fechada”: homem-coisa ou homem-massa, imerso em um mundo mágico, mítico e fabuloso. Homem que não se integra, adapta-se, ajusta-se, acomoda-se.

Por essa razão, os escritos de Freire indicam um profundo comprometimento com a “[...] busca desse homem-sujeito [...], [cuja] autorreflexão [...] levará ao aprofundamento consequente de sua tomada de consciência e de que resultará sua inserção na História [...]” (1967, p. 36). Em outras palavras, nosso autor aspirava a

[...] uma nova sociedade, que, sendo sujeito de si mesma, tivesse no homem e no povo sujeitos de sua História. Opção por uma sociedade parcialmente independente ou opção por uma sociedade que se “descolonizasse” cada vez mais. Que cada vez mais cortasse as correntes que a faziam e fazem permanecer como objeto de outras, que lhe são sujeitos [...]. (FREIRE, 1967, p. 35, grifo nosso).

Nota-se que o destaque feito por Freire (1967) - nesse e em outros pontos ao longo de seus escritos - sobre o indivíduo, o homem, o povo ou a sociedade como “sujeito”, acentua o entendimento de que a relação autêntica entre os seres humanos é a que se pauta na relação de sujeito com sujeito, e não de sujeito com objetos, ou seja, relações em que uns assumiram a condição de sujeito, e outros, de objeto, isto é, de “coisa”, de “massa” e de “expectador”, significados que sugerem uma relação de dominação, cuja natureza consiste em posicionar a sociedade e o povo à condição de “assujeitados”, “submissos”, “comandados”, “manipulados”, “mandados”, “guiados”, “coisificados”, “explorados”, “passivos”, “ajustados”, “enquadrados”, “colonizados”, etc.

A noção de “ética” atrelada à noção de “sujeito” nos faz pensar que, diferentemente das relações de dominação que os seres humanos estabelecem com as “coisas”, a relação ontológica entre seres humanos seria, de fato, marcada pelo crivo da relação “sujeito-sujeito”, e não, da relação “sujeito-objeto”, pois, como se sabe, é próprio das “coisas” serem utilizadas, manipuladas, controladas, guiadas, orientadas, conduzidas, exploradas, em suma, dominadas. Esse horizonte foi anunciado por Freire (1967, p. 104, grifo nosso), ao escrever:

[...] Partíamos de que a posição normal do homem [...] era a de não apenas estar no mundo, mas com ele. A de travar relações permanentes com esse mundo, de que decorre pelos atos de criação e recriação, o acrescentamento que ele faz ao mundo natural, que não fez, representado na realidade cultural. E de que, nessas relações com a realidade e na realidade, trava o homem uma relação específica - de sujeito para objeto - de que resulta o conhecimento, que expressa pela linguagem.

Entretanto, transferir esse tipo de relação sujeito-objeto para os homens seria um equívoco ético, característico do tipo de sociabilidade enraizada em sociedades fechadas, como a brasileira, anterior à fase de “trânsito”. Como dizia Freire (1967, p. 53, grifo nosso), em “uma nova sociedade”, “sujeito de si mesma”,

[...] a posição anterior de autodesvalia, de inferioridade, característica da alienação, que amortece o ânimo criador dessas sociedades e as impulsiona sempre às imitações, começa a ser substituída por outra, de autoconfiança. E os esquemas e as “receitas” antes simplesmente importados, passam a ser substituídos por projetos, planos, resultantes de estudos sérios e profundos da realidade. E a sociedade passa assim, aos poucos, a se conhecer a si mesma. Renuncia à velha postura de objeto e vai assumindo a de sujeito [...].

A renúncia da “velha postura de objeto”, das “velhas relações de dominação”, centradas na ontologia das “coisas”, requer, segundo o nosso autor, a instauração da visão crítica do homem-sujeito se capilarizando em todas as dimensões da existência individual e social da nova fase da sociedade em “trânsito”.

Assim, considerando o exposto, a “nova sociedade” e o “novo homem”, eticamente sujeito, exigem a renúncia de “receitas e prescrições” a serem seguidas; a importação de “temas e de tarefas” distantes da realidade nacional; renúncia de atitudes e práticas “assistencialistas”, “sectárias”, “fanáticas”, “emocionais”, “irracionais” e “colonizadoras”. Exige a negação da “irresponsabilidade”, dos “descompromissos”, do “ódio”, da “guerra santa”, do “latifúndio”, do “trabalho escravo”, da “polêmica”, da “monocultura das ideias”, do “mudismo”. Em suma, requer a renúncia de todas as formas de consciência intransitiva e ingênua e de seus modos efetivos de agir, de conceber o mundo e de se relacionar com as pessoas.

3.5 O significante “humanização” como um correlato de “ética”

Nota-se, no livro de Freire em questão, que a “humanização” é um termo que articula todos os significantes e significados tratados até aqui sobre a ideia de que o que é próprio do homem, como integrar-se no mundo, consciente e criticamente, e do ser-sujeito, não é fruto do acaso, não é resultado espontâneo e automático das circunstâncias, não é um presente ou doação, muito menos um acontecimento magicamente produzido por forças do além, mas um “[...] mundo transformado e humanizado pelo homem [...]” (1967, p. 126). Nesses termos, a “humanização” não seria, assinala Freire (1967, nota 23, p. 60), “[...] algo apenas resultante das modificações econômicas, por grandes e importantes que sejam. A criticidade, como a entendemos, há de resultar de trabalho pedagógico crítico, apoiado em condições históricas propícias [...]”.

O “integrar-se”, o desenvolvimento da “consciência crítica” e a elevação do indivíduo, do povo e da sociedade à condição de “sujeito” seriam produtos da atividade do próprio ser humano, “[...] cuja destinação não é de se coisificar, mas de se humanizar-se [...]” (FREIRE, 1967, p. 62). Humanizar-se, portanto, restituir ao homem ou construir nele sua humanidade, aparece como o princípio “ético” capaz de mover as pessoas e as instâncias conscientemente engajadas e criticamente comprometidas com o “[...] esforço de humanização e libertação do homem e da sociedade brasileira [...]” (FREIRE, 1967, p. 37).

Nesse entendimento, o significante “humanização” associa-se, necessariamente, ao reconhecimento de que a adesão consciente do povo brasileiro ao processo de afirmação de sua própria humanidade não seria nada fácil, devido à complexidade de um lastro histórico marcado pela desigualdade, por laços culturais e por práticas sociais de dominação que deixaram e “[...] deixam em cada homem a sombra da opressão que o esmaga [...]” (FREIRE, 1967, p. 37); lastro em que o opressor e o oprimido “aprendem a torturar” de maneira diferente.

Freire sabia que a humanização não seria uma simples consequência da instalação da sociedade urbana, industrial e democrática, mas fruto de um trabalho pedagógico, isto é, da conscientização, entendida como “[...] o desenvolvimento da tomada de consciência [...]” (1967, nota 23, p. 60), profunda busca do “[...] homem-sujeito que, necessariamente, implicaria uma sociedade também sujeito [...]” (FREIRE, 1967, p. 36).

Portanto, expulsar a sombra do “opressor” no oprimido, superar sua condição histórica de “homem-objeto”, rejeitar as “relações de dominação e exploração”, renunciar aos “fanatismos que separam os homens, embrutecem e geram ódios”, traços de uma fase histórica que distanciava o povo brasileiro de sua humanidade, exigia “uma ampla conscientização das massas brasileiras”, realizada por meio da aprendizagem de “uma postura de autorreflexão e de reflexão sobre seu tempo e seu espaço”, característica da “conscientização” que impulsiona o processo de “humanização”, que era “[...] uma das fundamentais tarefas de uma educação realmente liberadora e por isso respeitadora do homem como pessoa [...]” (FREIRE, 1967, p. 37).

Em suma, nota-se que o significante “humanização” apresenta-se como uma ideia-força na articulação de todos os outros significantes e significados vinculados à questão “ética” em Freire, cuja perspectiva impõe um tipo de ordem social e histórica centrada na vocação ontológica do homem de ser ele mesmo, de afirmar sua humanidade. Assim, toda mudança pretendida na ordem econômica, política, cultural e pedagógica só terá “[...] sentido na medida em que contribuir para a humanização do homem e se inscrever na direção da sua libertação [...]”, conclui Freire (1967, p. 130).

4. Algumas considerações finais

Nota-se, inicialmente, que o discurso sobre ética no livro “Educação como prática da liberdade” aparece conectado a um conjunto de significantes-chave encontrados. São eles: integração, consciência, criticidade, sujeito e humanização. Toda argumentação freireana defende que o existir humano, cuja integração é necessária, requer a presença da consciência como componente constituinte da relação do homem consigo, com o outro, com o seu contexto e com a sua história, e cuja criticidade seria o nível mais elevado, o patamar de consciência mais representativo da humanidade a ser atingido pelo ser humano em seu processo de humanização.

Em função desses achados preliminares, gradativamente, foram encontradas diversidades de outros achados (passagens, trechos, frases, orações, exemplos, argumentos, casos etc.), cuja regularidade, em meio à dispersão das fontes, foi laçando luzes e inteligibilidade discursiva aos dizeres freireanos sobre a questão ética e seus enlaçamentos com a problemática do trabalho social. Aos poucos, a ordem do discurso freireano foi sendo elucidada, e seu entendimento sobre ética foi aparecendo como princípio operatório fundado na concepção do ser humano como ontologicamente um ser humano.

A “ética”, sob o ponto de vista de Freire, configura-se em uma visão do homem não como “quase-coisa”, como “objeto” ou, ainda, como “máquina” de engrenagem do sistema social, fundado na lógica histórico-social das coisas. Em sua perspectiva, o homem não vale pelo que tem, mas pelo que é, ou seja, “o ser humano”. Com efeito, todos os achados apontam para isto: o ponto de vista ético freireano reconhece o ser humano precisamente como ser humano. Essa é a máxima ética freireana e a condição ontológica do existir humano, por mais que as situações histórico-sociais de opressão, de exploração e de dominação o alienem e tentem obscurecer esse fato.

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1Sobre a questão específica dos modos de entendimento da educação popular, ler Silva (2016).

2Os teóricos são: Immanuel Kant; Karl-Otto Apel; Jürgen Habermas; Karl Marx; Horkheirner, Adorno, Marcuse; Benjamín; Arthur Schopenhauer; Friedrich Nietzsche; Sigmund Freud; Emmanuel Lévinas; De Jean Piaget; Lawrence Kohlberg; Reuven Feuerstein; Lev S. Vygotsky; Karl Popper; Irnre Lakatos; Emst Bloch; Rosa Luxemburg, dentre outros.

3De acordo com Oliveira e Dias (2012, p. 97 e 101), a ética da libertação defendida por Henrique Dussel (2000), trata-se de uma ética do cotidiano, onde permite o (auto) conhecimento das vítimas do sistema-mundo (dominados: operários, índios, escravos, etc. e discriminados: mulheres, idosos, imigrantes, etc.), bem como o descobrimento de suas alteridades e autonomias, negadas pelo sistema-mundo vigente. A ética da libertação, portanto, é uma ética da transformação.

4A pesquisa objetivou mostrar que a noção de ética presente nos escritos pedagógicos de Paulo Freire apresenta-se como uma alternativa para o Ensino Religioso no Brasil, o qual se configurou também, na assertiva de tese.

5Cabe ressaltar que o que determina a relevância de um achado não é a sua frequência, mas o próprio aparecimento.

Recebido: 14 de Junho de 2021; Aceito: 14 de Outubro de 2021

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