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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.72 Curitiba ene./mar 2022  Epub 19-Sep-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.072.ao09 

Artigos

Práxis reflexiva e compreensão do currículo: fundamentos da formação docente em um PIBID de História

Reflective praxis and curriculum understanding: foundations of teacher training in a PIBID of History

Praxis reflexiva y comprensión del currículo: fundamentos de la formación docente en un PIBID de Historia

Gustavo Adolfo d'Almeida Lôboa 
http://orcid.org/0000-0002-9579-5605

Kátia Regina Rodrigues Limab 
http://orcid.org/0000-0002-9132-9551

Alisson Slider do Nascimento de Paulac 
http://orcid.org/0000-0001-6356-3773

aUniversidade Estadual do Ceará (UECE), Limoeiro do Norte, CE, Brasil. Doutorando em Educação, e-mail: gustavo.lobo@uece.br

bUniversidade Regional do Cariri (URCA), Crato, CE, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: katia.lima@urca.br

cCentro Universitário INTA (UNINTA), Sobral, CE, Brasil. Doutor em Educação, e-mail: alisson.slider@yahoo.com


Resumo

O artigo tem o objetivo de expor ações desenvolvidas no âmbito do subprojeto do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) do curso de História da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos - FAFIDAM. Adota uma metodologia explicativa, na qual um dos autores participou como agente formador no processo em tela e descreve as condições específicas da realização das ações desenvolvidas no programa de iniciação à docência em um campus de uma universidade pública no interior do Ceará, a partir de discussões teóricas, da construção de uma prática formativa que enfoca a práxis reflexiva na formação de docentes para que estes tenham uma postura crítico-reflexiva sobre sua atividade de ensino e sobre o mundo em que estão inseridos. Toma também como referência central a compreensão sobre os aspectos explícitos e ocultos que compõem o currículo e como se portar no sentido de suplantar as limitações que este impõe a um ensino de história que objetive uma formação libertária. O texto conclui que há a necessidade do desenvolvimento de ações que enfatizem e possibilitem a postura crítico-reflexiva dos futuros professores e ações que venham a contribuir para a construção de um novo currículo para o ensino de história que contemple as especificidades sócio-culturais dos espaços educativos e do seu público alvo.

Palavras-chave: Formação de professores; Programa de iniciação à docência; Professor reflexivo

Abstract

The article aims to expose actions developed within the subproject of the Institutional Scholarship Program for Initiation to Teaching (PIBID) of History at the Faculty of Philosophy Dom Aureliano Matos - FAFIDAM. It adopts an explanatory methodology, in which one of the authors participated as a training agent in the process on screen and describes the specific conditions for carrying out the actions developed in the teaching initiation program on a campus of a public university in the interior of Ceará, based on discussions theoretical, the construction of a formative practice that focuses on reflective praxis in the training of teachers so that they have a critical-reflexive stance on their teaching activity and on the world in which they are inserted. It also takes as a central reference the understanding of the explicit and hidden aspects that make up the curriculum and how to behave in order to overcome the limitations that it imposes on a teaching of history that aims at a libertarian formation. The text concludes that there is a need to develop actions that emphasize and enable the critical-reflexive posture of future teachers and actions that will contribute to the construction of a new curriculum for the teaching of history that addresses the socio-cultural specificities of spaces educational activities and its target audience.

Keywords: Teacher training; Teaching initiation program; Reflective teacher

Resumen

El artículo tiene como objetivo exponer las acciones desarrolladas dentro del subproyecto del Programa Institucional de Becas de Iniciación a la Docencia (PIBID) del curso de Historia en la Facultad de Filosofía Dom Aureliano Matos - FAFIDAM. Adopta una metodología explicativa, en la que uno de los autores participó como agente formador del proceso en pantalla y describe las condiciones específicas para la realización de las acciones desarrolladas en el programa de iniciación docente en un campus de una universidad pública del interior de Ceará. , a partir de discusiones teóricas, la construcción de una práctica formativa que se enfoque en la praxis reflexiva en la formación de los docentes para que tengan una postura crítico-reflexiva sobre su actividad docente y sobre el mundo en el que se insertan. También toma como referencia central la comprensión de los aspectos explícitos y ocultos que configuran el currículum y cómo comportarse para superar las limitaciones que impone a una enseñanza de la historia que apunta a una formación libertaria. El texto concluye que es necesario desarrollar acciones que enfaticen y posibiliten la postura crítico-reflexiva de los futuros docentes y acciones que contribuyan a la construcción de un nuevo currículo para la enseñanza de la historia que aborde las especificidades socioculturales de los espacios educativos actividades y su público objetivo.

Palabras clave: Formación docente; Programa de iniciación a la docencia; Maestra reflexiva

Introdução

O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), criado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2007, implantado e gerido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), representa uma tentativa de solucionar, ou reduzir, alguns problemas detectados em cursos superiores de formação inicial de professores, pois a universidade brasileira apresenta, segundo Saviani (2009), uma luta entre modelos de formação, o modelo dos conteúdos culturais-cognitivos e o modelo pedagógico-didático,

De um lado está o modelo para o qual a formação de professores propriamente dita se esgota na cultura geral e no domínio específico dos conteúdos da área de conhecimento correspondente à disciplina que o professor irá lecionar. Considera-se que a formação pedagógico-didática virá em decorrência do domínio dos conteúdos do conhecimento logicamente organizado, sendo adquirida na própria prática docente ou mediante mecanismos do tipo “treinamento em serviço” [...]. A esse modelo se contrapõe aquele segundo o qual a formação de professores só se completa com o efetivo preparo pedagógico-didático. Em consequência, além da cultura geral e da formação específica na área de conhecimento correspondente, a instituição formadora deverá assegurar, de forma deliberada e sistemática por meio da organização curricular, a preparação pedagógico-didática, sem a qual não estará, em sentido próprio, formando professores(SAVIANI, 2009, p. 149, grifo nosso).

A escolha por um ou por outro modelo implica ou numa organização curricular que torna os cursos de licenciatura uma continuidade da velha modalidade do “3+1”, dando aos aspectos didático-pedagógicos da formação um caráter de complementaridade, descolado das atividades formativas específicas dos conteúdos da área, ou em uma estrutura formativa que se afasta do viés bacharelesco e reconhece na necessária relação entre a formação superior e a realidade do ensino na educação básica uma condição sine qua non para a formação de professores, postura essa que deve inserir-se no conjunto total da formação e não em um momento específico, complementar.

A dualidade, identificada por Saviani, reflete uma imobilidade de décadas das ideias e das ações da educação superior no sentido de dar às licenciaturas de cada área um caráter efetivo de formação de professores, uma vez que, desde 1939, o esquema 3+1, inicialmente adotado na formação do pedagogo, composto por três anos de bacharelado e mais um para a obtenção do título de licenciado e da permissão para o exercício do magistério (GUEDES; FERREIRA, 2002), tem sido, ainda, adotado como modelo de organização curricular nos cursos de licenciatura que, apesar de adequações e alterações exigidas pelas mudanças normativas e pelas propostas de modificação na estrutura curricular da educação Básica, mantêm, ainda aquela lógica desenvolvida no esquema 3+1, que dissocia as duas esferas da formação do professor - o domínio dos conteúdos da área específica do curso e o conhecimento e preparo pedagógico-didático.

Apesar da criação da Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação do Educador (CONARCFE) na década de 1980 e, posteriormente, em 1990, com o surgimento da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), que trouxeram à baila as discussões sobre a formação docente e as propostas oriundas dos debates, como o estabelecimento de uma base comum nacional para os cursos de formação de professores, e não obstante os inegáveis avanços ocorridos, como o progressivo aumento do número de disciplinas pertencentes ao rol dos saberes didático-pedagógicos e a ampliação da carga horária direcionada às atividades de estágio docente nos cursos de licenciatura, ainda se verifica uma permanência velada do velho modelo, pois esses avanços não representaram o fim da cisão entre aquelas esferas.

A opção pelo 3+1, ainda que de forma velada, se coaduna ao modelo dos conteúdos culturais-cognitivos para estabelecer uma formação de professores que é, em sua maior parte, desconectada da realidade educacional para a qual os professores estão a ser formados e, quando a fase do processo formativo que envolve a escola e a educação básica ocorre - quase sempre na etapa final da formação - se dá com algum estranhamento, inadequação e, por vezes, ocasiona afastamento dos licenciandos da docência ou até sua desistência do curso.

Os modelos de programas de cursos de licenciatura em História que privilegiam os conteúdos culturais-cognitivos (apesar de reconhecer que estes conteúdos possuem uma importância para a formação do historiador, sobretudo quanto à compreensão dos eventos e contextos históricos, aos procedimentos de pesquisa, a análise das fontes e a produção historiográfica), quando não articulam estes conteúdos diretamente à formação docente, tornam-se deficitários nos quesitos que tratam dos saberes didático-pedagógicos necessários à adequada formação do professor que conheça e respeite os saberes escolares como criações didáticas originais, configurações cognitivas e habitus originais produzidos e criados pela escola (CHERVEL, 1990), um professor que entenda a cultura escolar como uma construção histórica (JULIA, 2001), que compreenda o senso comum educacional (SAVIANI, 2011), seus pressupostos e seus limites, e que esteja apto a uma ação pedagógica transformadora e libertária.

A criação de programas e projetos que buscam acrescer à formação docente os aspectos identificados como frágeis no processo de formação inicial nas licenciaturas, ou potencializá-las, resulta do contexto surgido a partir dos anos 1990, quando as transformações do capitalismo voltaram a atenção e a ação dele, por meio de um conjunto de instituições internacionais (Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, Banco Mundial - BM, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE) para áreas de atuação do Estado, como a educação, com foco num desenvolvimento econômico que lhe trouxesse dividendos. Esse contexto nacional-global resultou na implantação de várias políticas públicas com ênfase na valorização dos profissionais do magistério da Educação Básica, com a criação de vários programas, tais como: o Programa de Consolidação das Licenciaturas (Prodocência), o PIBID, o programa Novos Talentos e o PARFOR - Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica (NEZ; BORDIGNON, 2016), essa nova política educacional brasileira impacta na formação inicial realizada na academia e demonstra que a estrutura do ensino superior, tardiamente implantado no Brasil, não superou a dicotomia apresentada por Saviani, que marca as origens da formação de professores.

Hoje, a formação em licenciatura encontra-se em constante processo de reestruturação, buscando afastar-se do modelo cultural-cognitivo e aproximar-se do pedagógico-didático, na busca por um equilíbrio entre eles, para, assim, adequar-se às demandas da formação de professores.

A construção da Política Nacional de Formação de Professores do MEC, em que se insere o PIBID, objetiva mitigar alguns problemas identificados na formação de professores nas licenciaturas, e que datam da criação deste modelo de curso nas universidades brasileiras, destacadamente o descolamento da formação específica de cada área em relação à formação para a docência, vista durante muito tempo como uma complementaridade, como uma formalidade para a regulamentação da profissão, além da separação entre os universos da educação básica e superior, que promoveu um afastamento da formação superior inicial em relação à realidade do ensino escolar básico.

Em razão do modelo predominante na academia, no que toca à formação de professores, ainda ser o dos conhecimentos culturais-cognitivos, procura-se, com esses programas e projetos oriundos dessa política, acrescentar contributos à formação inicial muito mais do que reorganizá-la, tornando-a adequada à sua real função. Contudo, há que se destacar que essas ações são limitadas, frágeis e por vezes pontuais, pois são iniciativas caracterizadas como programas de governo e não como programas de Estado, que atendem apenas uma parcela do público alvo, e que estão à mercê de interesses políticos voláteis, como bem ficou demonstrado nos momentos em que o PIBID, especificamente, esteve em via de sofrer alterações significativas em sua estrutura e em seu foco, como em 2016, com a Portaria n. 46 da CAPES, que além de romper a vigência do edital e reduzir os investimentos, tentava deslocar “a natureza do Programa da formação inicial de professores para atender à demanda por reforço escolar, tida como solução para melhoria nos índices de aprendizagem” (FORPIBID, 2016, p. 1); ou mesmo quando esteve sob ameaça de ser descontinuado, como em 2018 com a não prorrogação dos editais CAPES n. 61/2013 (PIBID) e n. 63/2013 (PIBID Diversidade). Nesses momentos, somente a mobilização e a ação organizada dos membros do programa, aliados ao Fórum Nacional de Coordenadores Institucionais do PIBID (FORPIBID), junto com entidades ligadas à educação, comunidades escolares e com apoio de alguns parlamentares sensíveis ao tema foi capaz de garantir a manutenção e continuidade dessa importante política de apoio à formação docente. A luta que perdura é a da transformação do PIBID em política de Estado, tal como ocorreu com o Programa de Educação Tutorial (PET).

A existência desse tipo de programa, apesar de contribuir positivamente ao processo de melhora da formação de professores no Brasil, é uma demonstração da incapacidade de realizar a transformação estrutural dos cursos de licenciatura na intenção de torná-los, por si só, capazes de uma plena formação para a docência, coisa que a influência do velho modelo 3+1 não proporciona.

Um exemplo da falta de real adequação à função de formação de professores no nível superior pode ser visto no processo de desativação dos cursos de bacharelado em várias áreas do conhecimento que possuem disciplinas na educação básica. Esse processo não ocorreu de forma organizada ou sistêmica, pois, a partir do exemplo ocorrido nos cursos da Universidade Estadual do Ceará (UECE) sediados no município de Fortaleza, vê-se claramente que, de um total de 11 cursos de graduação que possuíam as duas modalidades (bacharelado e licenciatura), 5 cursos extinguiram sua graduação em bacharelado, ficando apenas com a graduação em licenciatura (História, Matemática, Química, Ciências e Educação Física), outros 6 cursos permaneceram ofertando vagas para licenciatura e bacharelado (Geografia, Letras, Filosofia, Ciências Sociais, Física e Ciências Biológicas). Esse processo se deu de forma autônoma em cada curso, não resultou de um amplo processo institucional de discussão e adequação ou readequação dos cursos frente às demandas sociais, e desta forma gerou algumas ambiguidades. Cada curso optou por manter o bacharelado ou extingui-lo a partir de suas próprias percepções sobre a demanda e o mercado de trabalho. Contudo, a extinção dos bacharelados carreou aos cursos de licenciaturas restantes um grupo de professores que lecionavam mais especificamente as disciplinas do curso encerrado e que se somou aos professores que, mesmo atuando majoritariamente na licenciatura, não possuíam formação específica para tal e nem mesmo uma experiência relevante em relação à docência do saber na Educação Básica, conforme demonstrou Ribeiro (2019, p. 70-72) ao expor que 6% dos 72 professores que lecionam a disciplina de didática nos cursos de licenciatura da UECE, no interstício 2008 a 2015, e que tiveram o currículo Lattes por ela inventariados em sua pesquisa de doutoramento, são bacharéis e outros 6% não tiveram sua formação inicial identificada no currículo.

No caso específico dos cursos de História da UECE, e aqui nos referimos a todos os 4 cursos que a IES possui (campus Fortaleza, campus Limoeiro do Norte, campus Quixadá e campus Crateús), apesar destes optarem apenas pela graduação em licenciatura, ainda se percebe, através da análise da suas estruturas curriculares mais recentes (e isso se replica de forma correlata nos cursos sediados nos campi do interior do estado e no campus da capital), uma presença marcante de componentes típicos da formação bacharelesca, notabilizada no modelo de conteúdos culturais-cognitivos. Apesar daqueles avanços identificados anteriormente (aumento de disciplinas pedagógico-didáticas e de carga horária para atividades de estágio docente), há, até agora, uma lógica que trata os saberes específicos da área de formação de forma autônoma em relação aos saberes pedagógico-didáticos, como se cada um deles não se relacionasse com os demais na atuação docente dos professores que estão a ser formados para o ensino na Educação Básica.

Enfim, suplantar a dicotomia apontada por Saviani ainda é um desafio a ser vencido, e apesar de inegáveis avanços, representados pelo aumento do número de disciplinas da área pedagógica, há ainda uma forte cultura de formação bacharelesca nos colegiados dos referidos cursos, em função, sobretudo, da tradição que seus professores trazem da sua formação inicial (também de cunho bacharelesco), da pós-graduação e de sua própria prática educativa.

O PIBID e as implicações na licenciatura em História da FAFIDAM/UECE

Em 2012, quando o curso de Licenciatura em História da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), campus daUECE em Limoeiro do Norte, se inseriu no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) com a aprovação de seu primeiro subprojeto, elaborado e executado sob os cuidados da professora Dra. Lúcia Helena de Brito, a realidade daquele curso, no que se referia à formação de professores, era bem diversa da encontrada hoje. Passados mais de oito anos da entrada do curso em uma nova linha de condução do processo de formação de professores, o mesmo conta hoje com uma percepção mais cuidadosa sobre este processo formativo. O PIBID, além de outras iniciativas supervenientes, constituiu-se como pedra angular nessa transformação.

Quando o PIBID aportou no curso de História da FAFIDAM, como já explanado, essa mudança na perspectiva em relação à importância da experiência docente para a formação dos professores iniciava-se, ainda de forma tímida, com um remodelamento da condução das atividades de estágio supervisionado, que foram concentradas em escolas públicas do município de Limoeiro do Norte como forma de oportunizar aos professores que conduziam as disciplinas de estágio o acompanhamento in loco das atividades de regência, proporcionando uma troca maior de conhecimentos e possibilitando, a partir da socialização das experiências, um debate mais rico e emancipador sobre a atividade docente realizada. Convém ressaltar que no curso em questão, como em diversos outros da referida faculdade, as atividades de estágio eram desenvolvidas em escolas localizadas nas várias cidades atendidas por aquele campus da UECE, o que dificultava ou impossibilitava a presença e o acompanhamento efetivo das atividades dos estagiários pelos professores das disciplinas, ficando os alunos somente sob a orientação e acompanhamento (nas atividades de regência) dos professores das escolas nas quais realizavam seus estágios.

Apesar de incipiente, essa alteração proporcionou a evidência empírica de que as poucas horas em que os alunos de fato vivenciavam a experiência docente eram insuficientes para desenvolver plenamente as habilidades e os conhecimentos necessários à sua formação como professor crítico-reflexivo e questionador das próprias práticas e da estrutura da educação básica. Ficou visível, a partir das experiências, que é na vivência das situações reais e na discussão coletiva das dificuldades e das soluções encontradas, na socialização das ideias mediadas pelas leituras e pelos debates que o conhecimento de fato se produziria e, mais ainda, estabeleceria um padrão de crítica sobre as atividades realizadas que conduzia a um repensar sobre elas e uma nova postura nas ações vindouras.

É dentro desta perspectiva que o PIBID se instala no curso de História da FAFIDAM, proporcionando, inicialmente aos 14 alunos agraciados com a bolsa de Iniciação à Docência (ID), uma vivência no chão da escola, um processo de co-formação que agregou a um maior tempo em sala de aula, uma rica experiência de debate coletivo sobre as especificidades típicas da docência. Essa primeira etapa do PIBID de História da FAFIDAM foi mais restrita e durou quase um ano, de 14 de agosto de 2012 a 31 de julho de 2013, seu impacto foi percentualmente pequeno, pois o curso contava, no segundo semestre de 2012, com 186 alunos matriculados (UECE, 2012), dos quais 6 estavam concluindo e não podiam participar do programa (neste semestre não houve abertura de turma no vestibular para o curso de História da FAFIDAM), desta forma apenas 7,7% dos alunos do curso que eram elegíveis participaram da etapa inicial.

A etapa seguinte foi realizada em um período de 48 meses, de 14 de março de 2014 até 31 de março de 2018. Nessa segunda etapa, o subprojeto do PIBID de História da FAFIDAM, que era ainda o único entre os cursos 4 de licenciatura em História da UECE, teve um acréscimo significativo de bolsas de Iniciação à Docência, passando de 14 para 42. Esse aumento impactou fortemente no curso que possuía 214 alunos matriculados no primeiro semestre de 2014 (UECE, 2014), destes, 25 estavam impedidos de participar do programa, ou porque eram concludentes (6) ou porque estavam no primeiro semestre de curso (19); restavam, portanto, 189 estudantes elegíveis para concorrer à bolsa do PIBID, dentro desse perfil, as 42 bolsas de ID representavam 22,3 % dos alunos elegíveis do curso participando do programa e 19,6% do total de alunos do curso; esses 42 estudantes estavam distribuídos em 3 coordenações, cada uma sob os cuidados de um professor do colegiado de História, e cada coordenação contava com 2 professores Supervisores, ambos da educação pública, sendo um da Rede Estadual do Ensino Médio e outro da Rede Municipal de Educação Fundamental do município de Limoeiro do Norte, de forma a que cada grupo pudesse desenvolver ações formativas tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio.

Ao longo dos quase 9 semestres em que se desenvolveu essa segunda etapa do PIBID no curso de História da FAFIDAM, o percentual de alunos do curso impactados pelo programa variou em razão das alterações no número de alunos matriculados em cada semestre.

A partir do que se observa no número de alunos matriculados no curso de História da FAFIDAM entre 2014 e 2018, o percentual de alunos do curso participantes da segunda etapa do PIBID esteve, a partir do semestre 2014.2, sempre acima dos 20% e chegou, em 4 desses semestres (2015.2, 2016.2, 2017.1 e 2017.2), a ultrapassar a quarta parte do total de estudantes do curso o que representa um impacto significativo, sobretudo se entendermos que nessa fase o PIBID contava com alunos espalhados nos vários semestres (exceto o primeiro), o que mobilizou quase todos os alunos do curso e, na medida em que os bolsistas iam concluindo a graduação, novos processos seletivos eram lançados internamente para recompor o número de 42 bolsas.

Quadro 1 Impacto das bolsas ID no universo de alunos do curso de História/FAFIDAM  

Semestre letivo Total de alunos matriculados Percentual de alunos do curso de História da FAFIDAM no PIBID
2014.2 187 22,4%
2015.1 190 22,1%
2015.2 153 27,5%
2016.1 176 23,9%
2016.2 152 27,6%
2017.1 158 26,6%
2017.2 161 26,1%
2018.1 171 24,6%

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos relatórios anuais UECE (2014; 2015; 2016; 2017; 2018).

Ressalta-se que, no período 2012 a 2018, o curso oferecia também opções de 12 bolsas do Programa de Educação Tutorial - PET, desde 1993, além de bolsas de Iniciação Científica, bolsas de Monitoria Acadêmica e outras de variadas naturezas que são oferecidas pela instituição.

O edital seguinte, publicado apenas em 2018 para a vigência de 18 meses, e que regeu a etapa que perdurou de 1º de agosto de 2018 até 31 de janeiro de 2020, marcou a entrada no programa de outros cursos no Subprojeto de História da UECE (Cursos sediados em Fortaleza e em Quixadá, além do curso na modalidade à distância da UAB/UECE), nessa etapa o PIBID sofreu algumas alterações, como limitar a participação aos alunos que tivessem cursado até a metade da graduação (os alunos da metade final do curso poderiam participar de um outro programa de iniciação à docência, inserido no curso em 2018, a Residência Pedagógica); outra modificação foi que a distribuição de vagas limitou a uma Coordenação de Área por curso, com 30 bolsistas de ID e 3 professores Supervisores (distribuídos em ensino fundamental e médio de acordo com o critério do nível em que atuavam os professores aprovados na seleção para bolsa de supervisão), sendo, no caso do PIBID de História da FAFIDAM, 1 professor do ensino médio e 2 professores do ensino fundamental. Dessa forma, no Curso de História da FAFIDAM, do fim da etapa 2014-2018 para o início da etapa 2018-2020, houve o decréscimo de 12 bolsas de ID, o que representou uma significativa perda no impacto do programa no total de alunos do curso (de 24,6% em 2018.1, para 17,2% em 2018.2).

O PIBID de História da FAFIDAM: Uma didática que privilegiou a práxis reflexiva e a compreensão do currículo como aspectos importantes na formação docente

A práxis para a formação de professores crítico-reflexivos e comprometidos com a transformação social

O fato de que cada subprojeto que fez parte do projeto do PIBID da UECE, entre 2012 e 2018, possuía autonomia na estruturação e na realização de suas ações didático-pedagógicas, contribuiu para que fosse possível ao subprojeto de História da FAFIDAM estabelecer uma proposta que privilegiou não apenas a experiência docente, mas uma experiência pautada na reflexão crítica e na ação transformadora, desta forma as atividades foram desenvolvidas no sentido de colaborar na formação de um professor crítico-reflexivo, autônomo e transformador.

As atividades realizadas pelos bolsistas de Iniciação à Docência (ID) nas escolas eram bem variadas, iam desde tarefas de reconhecimento dos espaços, das atividades e dos momentos escolares em suas peculiaridades até a observação da praxe docente do professor supervisor, que os acompanhava nas diversas ações realizadas nas escolas em que atuavam e, posteriormente, a realização das intervenções pedagógicas, chamadas de regências. Mesmo reconhecendo a importância de todas elas no processo de condução da formação de professores, aqui a exposição está restrita às atividades diretamente ligadas à docência específica de História.

Após conhecer a escola, através do levantamento de informações para produção de um relatório sobre a mesma, os bolsistas ID realizavam a imersão em sala de aula. Optou-se por dividi-los em duplas e vinculá-los a uma turma específica, ao invés de fazê-los acompanhar o professor em diversas salas. O intuito era dar aos bolsistas a experiência de vivenciar mais amiúde o desenvolvimento e as dificuldades dos alunos no aprendizado da disciplina História, vendo não somente as metodologias e técnicas do professor, mas todo o desencadear das relações que se estabelecem em uma sala de aula, coisa que se tornaria muito difícil se os bolsistas tivessem que percorrer várias turmas.

A intenção era que os bolsistas ID acompanhassem os usos de métodos e técnicas pedagógicas pelo docente supervisor, mas também que tivessem a experiência total da sala de aula, que entendessem o processo de construção das relações entre aquele professor e seus alunos e dos alunos entre si; que compreendessem as dificuldades que os alunos apresentavam na compreensão de determinados assuntos, para, então, pensar coletivamente e propor outras formas de ação pedagógica; que se tornassem parte tão constante daquela aula que tivessem sua presença mais naturalizada possível pelos alunos e, assim, pudessem vivenciar aquele cotidiano como parte dele e não como um elemento externo e alheio. Enfim, a intenção era oportunizar a experiência docente em sua totalidade, não apenas a observação da atuação técnica do professor, mas conhecer os demais meandros da vida docente e da sala de aula.

Dentro da perspectiva apontada, era fundamental ao desenvolvimento do espírito crítico-reflexivo que as experiências vividas pelos bolsistas ID e seus Supervisores fossem socializadas e discutidas em grupo, sempre mediado pelo Coordenador de Área (CA), para que produzissem a necessária reflexão sobre a ação e o saber dela resultante, e para o planejamento de uma nova ação, quando necessário. O processo de construção do espírito crítico e autocrítico, necessários para a reflexão, era desenvolvido coletivamente com a intenção que estes se fizessem presentes na ação dos futuros professores quando da sua atuação docente, mesmo que individualmente, na construção de novos seres humanos, de uma nova cultura, uma nova humanidade. Citando Henry Giroux e Peter McLaren, Bell Hooks nos diz que

pensadores críticos que trabalham com pedagogia e tem um compromisso com os estudos culturais devem aliar ‘a teoria e a prática a fim de afirmar e demonstrar práticas pedagógicas engajadas na criação de uma nova linguagem, na ruptura das fronteiras disciplinares, na descentralização da autoridade e na reescrita das áreas limítrofes institucionais e discursivas onde a política se torna um pré-requisito para reafirmar a relação entre atividade, poder e luta’ (HOOKS, 2017, p.173).

A busca pela formação do professor reflexivo que se quer, se ampara na visão “da capacidade de pensamento e reflexão que caracteriza o ser humano como criativo e não como mero reprodutor de ideias e práticas que lhe são exteriores” (ALARCÃO, 2011, p. 44) e parte da percepção de que este profissional em formação necessita compreender que esse processo de formação para reflexão

[...] deve conduzi-lo à autonomia emancipadora da crítica. Para isso, começa-se afirmando que a epistemologia da prática limita o horizonte da autonomia, que só se torna possível com a emancipação da crítica. A reflexão crítica emana da participação num contexto social e político que ultrapasse o espaço restrito da sala de aula, pois se constitui num contexto de uma sociedade de classes (GHEDIN, 2012, p. 149).

Desta forma, oportunizar a experiência docente e fazer a reflexão sobre ela, apenas no âmbito escolar, não era suficiente, era necessário transpor os limites dos muros da escola, trazer o debate para o ambiente acadêmico e torná-lo público, aceitar, e desejar, receber as críticas e os contributos externos, entender a construção do processo reflexivo como uma atividade coletiva, já que é parte de uma experiência que pretende transformar a docência de História para que ela possa contribuir para a transformação da sociedade, não somente como um processo de formação individual dos alunos da escola, mas como possibilidade de estabelecimento de um outro paradigma para a atuação na educação básica, que suplante o da mera inserção dos alunos na sociedade, no mercado, na vida pública. Aceitar essas condições significava tornar a experiência docente uma atividade colaborativa, pois deveria ser coletivamente pensada, planejada e executada, mas, mais ainda, deveria ser coletivamente analisada, discutida, criticada e refletida.

A vivência em sala de aula e o reconhecimento das experiências e práticas de seu supervisor faria a participação dos bolsistas ID mais propícia à crítica e à autocrítica pretendidas na busca por atingir um conhecimento pedagógico mais específico. Não há como atingir um conhecimento pedagógico especializado sem partir do conhecimento pedagógico básico, como afirma Imbernón,

Sabemos que dificilmente o conhecimento pedagógico básico tem um caráter muito especializado, já que o conhecimento pedagógico especializado está estreitamente ligado à ação, fazendo com que uma parte de tal conhecimento seja prático (Elbaz, 1983; Connely e Cladinin, 1985), adquirido a partir da experiência que proporciona informação constante processada na atividade profissional. A formação inicial deve fornecer as bases para poder construir esse conhecimento pedagógico especializado. Como diz Elbaz (1983), a análise do conhecimento do professor “responde melhor ao propósito de começar a ver a atividade docente como exercício de um tipo especial de conhecimentos com os quais, ao realizar seu trabalho, os professores enfrentam todo tipo de tarefas e problemas” (IMBERNÓN, 2011, p. 60, grifos nossos).

Enfim, esse momento da formação docente, chamado por Imbernón como “período de iniciação à docência” (2011, p. 61), que em sua análise se daria após a formação inicial específica, com a intervenção do PIBID ocorreria já durante a formação inicial, oportunizando um aprofundamento em aspectos muito específicos do aprendizado pedagógico que, em muitos casos, só se daria nos anos iniciais de atividade profissional, como a importância e a necessidade de uma constante reflexão sobre sua atuação docente, tanto no aspecto técnico-metodológico quanto no aspecto político-filosófico.

O currículo como um espaço de luta e afirmação

As percepções sobre o currículo escolar sempre estiveram presentes nas atividades do PIBID de História da FAFIDAM, sobretudo em momentos específicos como no acompanhamento dos planejamentos anuais e mensais/bimestrais por parte dos professores supervisores, ou ainda na época da escolha do livro didático a ser utilizado em cada escola Estadual de Ensino Médio ou nas escolas da rede municipal de Ensino Fundamental. Durante aquele processo de escolha, foi realizada no âmbito da Coordenação do PIBID de História uma oficina de análise dos elementos constitutivos do livro didático, como forma de oferecer algum subsídio aos professores supervisores, e aos bolsistas ID, para uma escolha que levasse em conta uma variada gama de aspectos, desde a qualidade gráfica/iconográfica dos livros, passando pelas inclinações ideológicas que orientam o sentido de História do(s) autor(es) das obras até a perspectiva pedagógica da obra, com organização dos conteúdos, uso de recursos didáticos variados, proposições de materiais complementares, de ações e de exercícios ou atividades.

Além das atividades específicas explicitadas, algo constante nas reuniões semanais que ocorriam com os participantes de cada coordenação era a discussão sobre as dificuldades de se trabalhar um tema ou outro de História, proposto nos planejamentos e presentes nos livros didáticos, bem como a razão de se abordar determinados temas de história da forma como eles eram apresentados, ou ainda a ausência nos livros didáticos disponibilizados de assuntos que remetem à História local ou regional, e, mais ainda, as várias ausências visíveis nos textos, muitos deles ainda marcados por uma visão patriarcal, branca, heteronormativa, focada no centro-sul brasileiro, na qual grupos sociais inteiros são marginalizados ou, simplesmente, invisibilizados.

A própria constituição do corpo discente do curso de História da FAFIDAM já garantiria a representação, entre os bolsistas do subprojeto do PIBID, de mulheres, negros, LGBTQIA+ e indiodescendentes (com autoreconhecimento ou não), contudo, durante o processo de definição de critérios para seleção dos bolsistas se desenhou a montagem de grupo que contivesse a diversidade vista no alunado do curso, respeitando o que previa os Editais da CAPES e da IES.

A formação dos grupos que participaram das etapas do PIBID aqui relatadas era, portanto, bastante heterogênea e formava uma base para o debate e discussão sobre os problemas percebidos nos currículos da escolas em que realizaram suas atividades do programa, mas também, em menor proporção, os problemas no próprio currículo da formação inicial em que se encontravam.

Tratou-se das legislações nacionais que regulavam e regulam os diferentes níveis da educação básica (Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN e Base Nacional Comum Curricular - BNCC), e de como interferem na construção do ensino de História nas escolas, desde a distribuição da carga horária da disciplina, passando pelas competências e habilidades que se espera dos alunos ao interagir com os saberes propostos e chegando à ideia de educação em História que está implícita em cada instrumento normativo. Discutiu-se o livro didático como um produto mercantil e como uma possibilidade didática, mas que tem se tornado um fator que conduz a formação dos programas curriculares implantados e executados nas escolas e, mais ainda, como um instrumento que engessa, condiciona e direciona a atividade docente de muitos professores.

Dentre muitas conclusões que resultaram das discussões, algumas puderam ser claramente notadas como essenciais: a condução da disciplina pelo professor é, ou pode ser, determinada por fatores externos como os referenciais legais da educação, a adoção do livro didático como fio condutor da atuação do professor e as limitações contextuais; os temas invisíveis e que faltam no currículo tradicional só aparecem de forma esporádica, como tema transversais que, em razão do tempo e das imposições conjunturais (avaliações externas, ENEM, vestibulares), tornam-se difíceis de serem abordados continuamente, de forma adequada que possa gerar resultados efetivos na compreensão de mundo e na ação prática (ética) dos alunos.

Durante o desenrolar das intervenções do programa, diversas ações trataram de suscitar, nas atividades desenvolvidas nas escolas, discussões sobre convívio e respeito às diversas manifestações humanas excluídas do currículo tradicional (especialmente do currículo de História), na preparação para tais atuações, temáticas que tratavam da existência e da cultura da população indígena e afrobrasileira foram debatidas semanalmente nas reuniões de estudo do PIBID, a partir da leitura de textos científicos e de obras literárias, como forma de revelar os discursos latentes que normalizam e que se mantêm na constituição das desigualdades sociais que comprometem as condições de vida desses grupos em nosso país. Pari passu a estas ações, os bolsistas vivenciavam na Faculdade, juntamente aos demais estudantes, experiências nas quais as discussões sobre temas que se tornam cada vez mais presentes na academia, como exemplo pode-se citar duas edições do Encontro Transdisciplinar Gênero e Subjetividades (2015 e 2017), que em 2019 tornou-se Encontro Transdisciplinar Gênero, Raça e Subjetividades; esses encontros foram promovidos pelos cursos de História, Letras e Pedagogia, neles, questões ligadas às temáticas ocultas nos currículos tradicionais eram trazidas à discussão, o que favoreceu e empoderou as ações dos bolsistas do PIBID que participaram desses eventos promovidos pelos cursos da FAFIDAM. A importância desses eventos está na constatação de que

Apesar de o multiculturalismo estar atualmente em foco em nossa sociedade, especialmente na educação, não há, nem de longe, discussões práticas suficientes acerca de como o contexto da sala de aula pode ser transformado de modo a fazer do aprendizado uma experiência de inclusão. Para que o esforço de respeitar e honrar a realidade social e a experiência de grupos não brancos possa se refletir num processo pedagógico, nós, como professores - em todos os níveis, do ensino fundamental à universidade -, temos de reconhecer que nosso estilo de ensino tem de mudar (HOOKS, 2017, p. 51).

Dotados dos conhecimentos construídos coletivamente durante a participação nos eventos e nas reuniões semanais do PIBID, os bolsistas ID desenvolviam inserções nas quais apresentariam à turma da Educação Básica diferentes formas de ver e perceber assuntos sobre gênero e temas étnico-raciais, a partir da cultura de massa que é ofertada cotidianamente aos jovens, através da literatura, mediante casos veiculados em jornais revistas e televisão. A adoção dessas discussões, sobretudo na Educação Básica, exigiu um cuidado maior em razão da suscetibilidade do público escolar e uma adequação ao currículo de cada turma. O objetivo das inserções era o de proporcionar aos estudantes das escolas um olhar e um debate sobre tópicos que comumente são invisibilizados na formação escolar e, por essa razão, estão propensos à predominância do senso comum e do preconceito, ocasionando, muitas vezes, a intolerância e a violência contra indivíduos e minorias.

Para além das invisibilidades presentes no currículo tradicional está o currículo oculto que “[...] é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes” (SILVA, 2010, p. 78), esta particularidade do currículo está presente no currículo escolar, e até no currículo da educação superior, ela trata da imposição, aos estudantes, por meio das práticas e da organização da própria estrutura escolar pública, de uma postura de subserviência e submissão para que estes se adequem à obediência e subordinação que deles são esperadas no universo do trabalho e no convívio social com indivíduos de classes sociais dominantes, Silva (2010, p. 78) afirma ainda que “precisamos saber ‘o que’ se aprende no currículo oculto e através de quais ‘meios’.” A superação deste currículo oculto parte, inicialmente, da percepção dele por parte dos educadores, da tomada de consciência e da mudança das atitudes implícitas à prática educacional tradicionalmente posta, alterando-a para uma prática que seja inclusiva, participativa, empoderadora, que colabore na construção de personalidades críticas e contestadoras, desta forma contribuindo para o necessário movimento de transformação social.

Aqui fazemos um adendo para refletir que essas discussões que conduziram à crítica do modelo tradicional de sala de aula, no qual o currículo oculto é hegemônico, impactou demasiadamente nos professores supervisores (alguns dos quais já com muitos anos de docência) e provocou neles transformações profundas, conforme relatos expressados nas reuniões, sobre as suas compreensões acerca da condução do processo de ensino e aprendizado de História e na condução das interações com seus alunos.

Durante as atividades realizadas dentro do PIBID de História, no período referido, buscou-se levar os bolsista a entender que o aprendizado de História não é algo estático, nem tampouco improdutivo, que ele deve começar, ainda na educação fundamental, por um reconhecimento de sua própria história, da sua localidade, seu bairro, sua cidade, para, só então adentrar nas histórias de outros povos, civilizações e sociedades. O desenvolvimento dessa percepção implica um repensar sobre o currículo tradicional que é, como dito, centrado em outras realidades. Na busca por mitigar esse problema, foi estabelecido nas atividades a ser desenvolvida pelos bolsistas ID nas turmas da Educação Básica o uso da metodologia da educação patrimonial, com ações realizadas tanto no espaço da sala de aula quanto fora dele, com aulas de campo, visitações a espaços públicos e privados que contribuíssem para a compreensão e valorização da história no âmbito local e de suas próprias identidades através do patrimônio material e imaterial (HORTA; GRUMBERG; MONTEIRO, 1999) na busca por romper a tradição das “monoidentidades” (SILVA, 2015) que se impôs, através do nacionalismo moderno, à própria educação e à educação patrimonial e que está, ou estava, a ser superado, no Brasil, por políticas de reconhecimento e democratização cultural.

A dissolução das monoidentidades impõe um conjunto de novos desafios à escolarização. Não que a escola já não fosse um espaço de circulação desta diversidade cultural, mas, agora, as narrativas institucionais veiculadas parecem ter se tornado mais permeáveis a tais expressões culturais ou identitárias. Seguramente esta permeabilidade não é homogênea ou harmônica, cada cotidiano escolar convive com contradições e relações de poder em diversas escalas, porém temos observado modificações na tessitura dos processos e das políticas institucionalizadas (SILVA, 2015, p. 217).

Para tanto, foram desenvolvidas nas inserções pedagógicas dos bolsistas ID atividades variadas (GRUMBERG, 2007), realizadas em diversos espaços, como praças públicas, locais com monumentos, museus, prédios públicos de valor histórico, igrejas, casas, e vários outros lugares que possibilitaram aos alunos experienciar a história do seu lugar de forma vívida. Cuidou-se para que, nas visitações, a história das classes exploradas também fosse contemplada e não somente a história das classes privilegiadas, e o patrimônio oriundo dos grupos privilegiados, quando trabalhado, deveria ser adequadamente contextualizado, possibilitando aos alunos da educação básica a percepção de que a desigualdade entre as classes sociais, razão da luta de classes e motor da história, mas que apenas ocasionalmente aparece nos livros didáticos, está também presente na constituição de sua história, de sua identidade. Desta forma, a utilização da metodologia da educação patrimonial objetivou oportunizar aos estudantes do ensino básico a percepção desse fenômeno e de suas consequências na contemporaneidade, na sua própria vida.

As visitações eram precedidas por um estudo dos elementos constitutivos de cada patrimônio que pudessem ser geradores de indagações por parte dos alunos, e que pudessem ser tema de debates sobre aspectos importantes na construção de uma consciência histórica embasada numa percepção das influências do passado no presente (continuidades), mas consciente das possibilidades de determinações nas direções de suas próprias vidas (SCHMIDT; BARCA; MARTINS, 2010), os alunos produziam relatórios ou outros instrumentos de representação do patrimônio, a partir daí, das várias perspectivas sobre o objeto estudado se construía o saber coletivamente, inserindo as diversas percepções e criando uma síntese sobre o patrimônio e sua significação para a história do lugar e dos próprios alunos.

Enfim, o enfoque sobre os diversos aspectos que compõem o currículo pode possibilitar, quando há tempo suficiente e condições adequadas para estudá-los e compreendê-los a partir do contato com a realidade, uma série de inserções que trazem à prática docente, mudanças profundas que vão dos temas a serem trabalhados e a forma de abordá-los, até os modos de conduta, o modo como as relações se estabelecem em sala de aula, implicando um novo olhar sobre a história como conhecimento e o estabelecimento de uma postura crítica, contestadora e transformadora, em professores e alunos.

Considerações finais

A partir do exposto, vê-se a importância das ações realizadas no âmbito de Programas tal qual o PIBID, desde que as mesmas ocorram como um espaço de vivência, aprendizagem e formação, pautadas numa perspectiva crítico-reflexiva, que pretendam formar docentes que compreendam e exercitem tanto a reflexão sobre sua ação e seu papel social, quanto seu comprometimento com o conhecimento e a construção de um currículo escolar que aproxime a educação básica do objetivo de formação de um homem e de uma sociedade emancipada, mais justa, inclusiva e livre das amarras que condicionam à submissão, sujeição e dominação do homem pelo homem.

A busca por uma formação docente plenamente adequada ao desenvolvimento do professor libertário, ainda tão difícil de encontrar nos espaços de formação acadêmica inicial, pode ter nos programas de iniciação à docência um forte aliado. A formação desse professor tem espaço, também, nesses programas, em que se pode promover a discussão e o debate sobre o próprio processo formativo das licenciaturas, atenuando ou suplantando suas deficiências e propondo novas formas de inserção na docência dos acadêmicos em formação nas redes da Educação Básica.

O desenvolvimento desse tipo de programa, sobretudo quando dotado das condições adequadas à plena realização das suas propostas formativas, torna mais efetiva a necessária relação entre a Universidade e a Escola, trazendo à discussão acadêmica nas licenciaturas o debate sobre as condições em que se dá o ensino de História nos espaços do ensino fundamental e do ensino médio, suplantando as limitações que se impõem a uma prática docente de fato libertária, venham elas da ausência de conhecimento do professor sobre o exercício de sua profissão, as estruturas que o condicionam e os problemas delas decorrentes, ou da reprodução de um currículo que precisa ser superado, posto que se funda numa subordinação ao livro didático, no centro-sul-centrismo, em monoidentidades e em práticas de submissão e subserviência.

O fortalecimento da formação inicial do professor através do estabelecimento de programas como o PIBID, que tem na iniciação à docência seu cerne, é fundamental, portanto, para a construção de um ensino de História que priorize, além dos conhecimentos necessários à plena realização do homem, outros aspectos importantes para a superação da desigualdade social, tais como a reflexão crítica sobre a realidade, a valorização das múltiplas identidades, das culturas locais e do empoderamento necessário ao estabelecimento do ser humano liberto e da sociedade emancipada.

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Recebido: 15 de Abril de 2021; Aceito: 01 de Fevereiro de 2022

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