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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.73 Curitiba abr./jun 2022  Epub 17-Dez-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.073.ao03 

Artigos

Freire e a libertação: a conquista da igualdade em tempos de opressão*

Freire and Liberation: Achieving Equality in Times of Oppression

Freire y liberación: lograr la igualdad en tiempos de opresión

Lindomar Wessler Bonetia 
http://orcid.org/0000-0003-1028-4046

aPontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. Doutor em Sociologia, e-mail: lindomar@boneti.com.


Resumo

Com base nos ensinamentos de Paulo Freire, analisa-se, neste artigo, a intercessão das palavras liberdade e igualdade e a relação destas com a opressão, com atenção ao contexto da pluralidade de significados, complexidades e abstrações que carregam esta relação. Observa-se, em grande parte das obras de Paulo Freire, uma inquietação em relação ao projeto de modernidade com o uso da palavra e a construção da opressão. Assim, serão analisados os descaminhos da modernidade com o uso da palavra, com base nos ensinamentos de Paulo Freire, inicialmente de uma forma geral, mas se direcionando para o caso específico brasileiro. Metodologicamente, percorre-se os caminhos da racionalidade moderna e os diferentes significados da palavra razão, da redenção humana aos caminhos da opressão. Ou seja, na epistemologia da racionalidade moderna, a palavra Razão se apresenta como sinônimo de verdade, uma verdade com origem na cientificidade. Em nome dos significados da palavra razão, construiu-se um projeto de humanidade. Mas também, ao longo da história, especialmente com o advento das relações capitalistas, a palavra razão foi tomando novos significados, abrindo-se novos caminhos para a opressão. Finalmente, com perspectiva conclusiva, analisa-se o que seria uma nova razão, aquela que leva à liberdade e à igualdade, baseando-se nos ensinamentos de Paulo Freire, pela via da palavra.

Palavras-chave: Paulo Freire; Liberdade; Igualdade; Autonomia; Opressão

Abstract

Based on Paulo Freire's teachings, this article analyzes the intercession of the words freedom and equality and their relationship with oppression, with attention to the context of the plurality of meanings, complexities and abstractions that carry this relationship. In a large part of Paulo Freire's works, there is a concern with the project of modernity with the use of the word and the construction of oppression. Thus, this article analyzes the deviations of modernity with the use of the word, from the teachings of Paulo Freire, initially in a general way, but focusing on the specific case of Brazil. Methodologically, it follows the paths of modern rationality and the different meanings of the word Reason, from human redemption to the paths of oppression. In other words, in the epistemology of modern rationality, the word Reason is presented as a synonym for truth, a truth originating from scientificity. In the name of the meanings of the word Reason, a project of humanity was built. But also, throughout history, especially with the advent of capitalist relations, the word Reason has taken on new meanings, opening up new paths to oppression. Finally, with a conclusive perspective, we analyze what would be a new Reason, one that leads to freedom and equality from the teachings of Paulo Freire, through the word.

Keywords: Paulo Freire; Freedom; Equality; Autonomy; Oppression

Resumen

Con base en las enseñanzas de Paulo Freire, este artículo analiza la intercesión de las palabras libertad e igualdad y su relación con la opresión, con atención al contexto de la pluralidad de significados, complejidades y abstracciones que conllevan esta relación. En gran parte de la obra de Paulo Freire hay una preocupación por el proyecto de modernidad con el uso de la palabra y la construcción de la opresión. Así, este artículo analiza las desviaciones de la modernidad con el uso de la palabra, de las enseñanzas de Paulo Freire, inicialmente de manera general, pero enfocándose en el caso específico de Brasil. Metodológicamente, sigue los caminos de la racionalidad moderna y los diferentes significados de la palabra Razón, desde la redención humana hasta los caminos de la opresión. En otras palabras, en la epistemología de la racionalidad moderna, la palabra Razón se presenta como sinónimo de verdad, una verdad procedente de la cientificidad. En nombre de los significados de la palabra Razón, se construyó un proyecto de humanidad. Pero también, a lo largo de la historia, especialmente con el advenimiento de las relaciones capitalistas, la palabra Razón ha adquirido nuevos significados, abriendo nuevos caminos a la opresión. Finalmente, con una perspectiva contundente, analizamos lo que sería una nueva Razón, aquella que conduce a la libertad y la igualdad desde las enseñanzas de Paulo Freire, a través de la palabra.

Palabras clave: Paulo Freire; Liberdad; Igualdad; Autonomía; Opresión

Introdução

Freire e a libertação: a conquista da igualdade em tempos de opressão. Trata-se de um título desafiante, especialmente no que se refere a analisar a intersecção das palavras liberdade e igualdade e a relação destas com a opressão. Pode-se dizer que são palavras que trazem uma pluralidade de significados, complexidades e abstrações, especialmente ao considerar a relação entre a individualidade e o conjunto social. Ou seja, não se pode considerar que a individualidade se apresenta desconectada do conjunto social, e, a partir deste preceito, a liberdade não pode ser associada à individualidade.

Historicamente, no decorrer da consolidação das relações capitalistas e da sociedade burguesa, o conceito de liberdade está associado ao da individualidade, ou seja, ao distanciamento da coletividade, ao pensar em si, possuir bens de luxo, ter dinheiro para gastar, “se safar”, “levar a melhor” etc., portanto o que pode ser entendido como a essência da individualidade. Como bem analisa Habermas (1984), a existência de uma nova esfera pública com origem nos preceitos da modernidade, composta de sujeitos privados com opinião própria, pode se contrapor à expressão da coletividade. Trata-se de uma ação entendida como sinônimo de liberdade. Assim pensa a sociedade burguesa.

Porém, para Paulo Freire, como será analisado ao longo deste artigo, o conceito da liberdade está associado à consciência do seu entorno, está associado à autonomia do ser, do ser social, do compreender o mundo social e político, de tomar decisões acerca do seu próprio pensar e, especialmente, ter a consciência de que o viver social implica outra pessoa. Isto significa dizer que para Freire a liberdade não está associada somente à expressão da individualidade, mas ao Ser social. Isto é, para que haja a individualidade é preciso se entender e agir como um Ser social. Assim, um Ser com “S” maiúsculo significa que, mesmo na condição de individualidade, o agir social se faz com consciência e não como um ato mecânico a partir das regras institucionais. Portanto, a liberdade está essencialmente ligada à igualdade pelo fato de que a individualidade, para se reconhecer um Ser social, implica olhar e reconhecer a outra pessoa como ela é também na sua individualidade.

Assim, a partir do título deste artigo e considerando a noção de individualidade expressa anteriormente, faz-se necessário pensar o que, para Paulo Freire, interliga a liberdade e a igualdade, ocasionando um distanciamento da opressão. Ao examinar as diferentes obras de Freire, especificamente A Importância do Ato de Ler em Três Artigos que Se Complementam (1989); Educação como Prática da Liberdade (1993); Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa (2018); Alfabetização, Leitura do Mundo, Leitura da Palavra (2011) e Pedagogia do Oprimido (1987), algo muito especial aparece fazendo esta intercessão: a Palavra. A palavra traduz o significado de ver o mundo e as outras pessoas. Assim, a palavra, para o mundo social, pode construir dois caminhos: o da consciência crítica do entorno do mundo e, portanto, da autonomia pessoal; e, como resultado, o da liberdade, o que se constitui como igualdade ou opressão, quando a palavra é utilizada de forma distanciada da tomada de consciência, sendo utilizada como treino de distanciamento do entorno social, do distanciamento da consciência crítica.

Ou seja, Paulo Freire expressa em todas as suas obras analisadas a relação existente entre a consciência e a liberdade. Porém, no livro Pedagogia do Oprimido (1987) isto se dá com maior ênfase, especialmente no capítulo 3, “A dialogicidade - essência da educação como prática da liberdade”, ressaltando que a palavra é a essência do diálogo e que o resultado desta intercessão é a consciência e a liberdade. “Não há palavra verdadeira que não seja a práxis. Daí, que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo” (FREIRE, 1987, p. 50). Ou seja, para Paulo Freire, a palavra, no contexto do diálogo, resulta na consciência e, consequentemente, esta na autonomia, o que resulta no caminho da liberdade.

Portanto, analisa-se ao longo deste artigo, com base no pensamento de Paulo Freire, a complexa relação da palavra com os caminhos da construção da liberdade ou da opressão. Observa-se, em grande parte das obras do autor, uma inquietação em relação ao projeto de modernidade em voga, especificamente para o caso brasileiro, assentado no produtivismo e na opressão com o uso da palavra. Assim, propõe-se contextualizar alguns descaminhos da modernidade com o uso da palavra de uma forma geral, mas direcionando-se para o caso específico brasileiro.

Metodologicamente, percorrem-se os caminhos da dialética, compreendendo o universo analisado como essencialmente contraditório e em constante transformações. É com este olhar que se analisam os caminhos da racionalidade moderna e os diferentes significados da palavra razão, adquiridos ao longo da história, e suas ingerências no contexto da redenção humana nos caminhos da opressão. Ou seja, na epistemologia da racionalidade moderna, a palavra razão se apresenta como sinônimo de verdade, uma verdade com origem na cientificidade, como bem analisa Franck Grandjean (1920). Em nome dos significados da palavra razão, construiu-se um projeto de humanidade assentado na modernidade. Mas também, ao longo da história, especialmente com o advento das relações capitalistas, a palavra razão foi tomando novos significados, designando os caminhos da opressão. Portanto, dialeticamente, o artigo busca construir uma relação entre a palavra razão enquanto fundamento epistemológico da modernidade e o advento da opressão em nome da razão, presente na sociedade capitalista contemporânea.

Finalmente, com perspectiva conclusiva, analisa-se o que seria uma nova razão, aquela que leva à liberdade e à igualdade a partir do pensamento de Paulo Freire por via da práxis intermediada pela palavra, o que faz do ser humano um agente de transformação do mundo.

O verdadeiro significado da palavra para Paulo Freire

Para Paulo Freire, a palavra não se traduz simplesmente pelas sílabas, pelas vogais, pelas consoantes etc., mas pelos seus significados, a partir do olhar e do apreender o mundo externo. Ou seja, o físico e o social são traduzidos por meio da palavra. É assim que se explica a sua intercessão com a igualdade, pois a palavra promove uma ligação entre as pessoas, com intercessão com o mundo físico, e assim se dá a socialização: a partir da designação do Ser da outra pessoa ou de grupos sociais. Uma ação discriminatória sobre o qualificativo pessoal, por exemplo, com o uso da palavra, constitui-se caminho da produção da opressão e, como consequência, da desigualdade.

Isto explica a razão por que nos tempos de opressão, especialmente em relação à política, a palavra é tida pelo segmento social dominador como perigosa, quando ensinada a partir do seu significado e do seu contexto social, levando assim à construção da consciência crítica do entorno. Para o segmento social e/ou político opressor, a verdadeira palavra é perigosa, isso porque ela pode levar à construção da liberdade do pensar e do agir, constituindo-se como um caminho para a autonomia e, assim, a igualdade, o que não interessa às elites econômicas contemporâneas, especialmente no Brasil. Portanto, quando a palavra se constitui como um caminho para uma contextualização e conscientização a partir do meio social em que se vive, ela leva à igualdade, à solidariedade, ao pensar em mais alguém além de si - além do “eu” -, constituindo-se então como um caminho de construção da igualdade, rompendo com a pura individualidade, o que significa um grande perigo para os opressores.

A palavra que o comando da opressão prega não é a que leva à consciência do entorno, da liberdade, da solidariedade e, portanto, da igualdade, mas é a palavra do ódio, do matar e do desmatar, da arma, do individualismo; em síntese, a palavra que prega a morte, tanto a física quanto a social. A estratégia do imperialismo, na perspectiva de justificar a sua ação opressora, há muito tempo se expressa por meio da palavra, da narrativa, como é o caso de associar a consciência crítica e/ou a igualdade ao “comunismo”, enfatizando em seu lugar outras palavras que lhe interessam, como o enriquecimento, o aceleramento econômico, o industrialismo etc. Isso significa que as palavras derivam de ideias, as quais podem levar à autonomia, à liberdade, à igualdade ou à opressão.

No livro A Importância do Ato de ler em Três Artigos que se complementam, no seu primeiro artigo, “A Importância do ato de ler”, Paulo Freire (1989) conta a sua própria história de vida e seu primeiro contato com a palavra e suas leituras. Ele diz, no caso da sua história pessoal com a palavra: “Primeiro, a ‘leitura’ do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da ‘palavramundo’” (p. 09). Prosseguindo, de uma maneira poética, o autor explicita concretamente as razões para afirmar em diferentes passagens de suas obras que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Segundo Freire,

os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros - o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, do sabiá... Ainda afirma que na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores - das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos […] (FREIRE, 1989, p. 8-9).

Porém, para o pedagogo, a leitura da palavra a partir da leitura do mudo vai para além do “escrevê-lo” para o “reescrevê-lo”, ou seja, de transformá-lo por meio de nossa prática consciente. Assim, a consciência da palavra não apenas descreve o ambiente, mas o transforma. No livro Educação como prática da liberdade, por exemplo, ele diz: “A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, vai ele dinamizando o seu mundo, vai dominando a realidade” (FREIRE, 1993 p. 43).

Portanto, para Paulo Freire (1989, p. 11)., “o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo”, afirmando sempre que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (p. 11). Isso significa dizer que a linguagem e realidade se prendem dinamicamente.

Essa é uma linda manifestação de Freire acerca da palavra, expressa com consciência, quando ele diz que a leitura do mundo precede a leitura da palavra, constitui caminho para a liberdade, liberdade associada à autonomia da pessoa. Porém, a palavra também exerce um peso ao contrário quando se constitui de um relato que não deriva da leitura do mundo com consciência, ela abre o caminho à opressão pelo fato de não construir autonomia.

A partir desse peso e significado da palavra observa-se, em grande parte de suas obras, uma inquietação em relação aos caminhos da modernidade com o uso da palavra, em especial os relacionados às particularidades da sociedade burguesa e a construção da opressão por via da palavra. Também no livro Educação como prática da liberdade, Freire, na condição de exilado no Chile, faz uma profunda reflexão sobre o momento político e social no Brasil e os caminhos que levaram àquele momento histórico, o regime militar. Ele analisa o modelo social dito como de modernidade, que se construiu no Brasil por meio do regime militar. E no todo ele vai contextualizando uma tal modernidade que se implanta com o uso da palavra que constrói a opressão, referindo-se a uma “tragédia do homem moderno”. Freire, especialmente no livro A Importância do Ato de Ler em Três Artigos que Se Complementam (1993), expressa com nitidez o seu incômodo em relação ao modelo de modernidade implementado naquele momento, o qual continua sendo na contemporaneidade assentado nas premissas iluministas da junção ciência + técnica + indústria como sinônimo da racionalidade, mas que se distancia da condição humana. Por exemplo, na página 43 do citado livro, ele afirma “que uma das grandes, se não a maior, tragédias do homem moderno está em ele ser hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica; e, por isso, ele vem renunciando cada vez, sem saber, à sua capacidade de decidir” (FREIRE, 1993, p. 43). Isto é, exemplifica-se aqui o peso do uso da palavra enquanto caminho da perda da autonomia pessoal e, portanto, da liberdade, o que significa a opressão. Isso para Paulo Freire seria o mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo educativo, tornando-a um fazer puro.

A racionalidade moderna e os descaminhos da autonomia e da liberdade a partir do pensamento de Paulo Freire

Ressaltam-se alguns descaminhos em relação à conquista da autonomia e da liberdade a partir do pensamento de Paulo Freire, em nome da racionalidade moderna, tais como as próprias raízes históricas do que se compreende como racional, a verticalização das relações humanas, a divisão social do trabalho e o advento e o uso da técnica, como será analisado a seguir.

Iniciando pela epistemologia da racionalidade moderna, uma palavra fez história como preceito das raízes da modernidade e como sinônimo de verdade, uma verdade com origem na cientificidade: a razão. Em nome dos significados da palavra razão, construiu-se um projeto de humanidade associado à sociedade moderna, especialmente no Ocidente, um pseudo “modelo civilizatório” dito racional, com intercessão entre a ciência, o Estado e o modelo econômico. Porém, em nome desta palavra também se construiu muita opressão e se cometeu muito matar e desmatar, isso porque o sentido de racionalidade, no âmbito de um processo histórico, assume diferentes contornos, especialmente com a consolidação das relações capitalistas. Como exemplo, privilegiou-se historicamente, em nome do ser racional e da razão, o ganho econômico em detrimento do bem-estar humano.

Desse modo, a palavra razão, gerada no contexto da construção de uma sociedade dita racional e especialmente no contexto do iluminismo, significando caminhos da redenção humana, mostrou-se contraditória ao longo da história. Por um lado, ela carrega o significado dos caminhos da redenção humana na superação da opressão praticada no período medieval, mas, por outro lado, o caminho para a opressão e o distanciamento da autonomia e da liberdade na modernidade. Na prática, ao longo da história, especialmente com a consolidação das relações capitalistas, a palavra razão vai agregando novas palavras e se congregando a elas a partir do significado racional, como é o caso da própria modernidade. Depois, agregado à modernidade, o significado do ser racional se direciona para o desenvolvimento econômico, industrialização e tantas outras. Em nome deste conjunto de palavras originadas da razão, o matar e o desmatar passaram a ser considerados um procedimento racional em nome da razão moderna.

Ao analisar a história do significado da palavra razão e a sua relação com a modernidade, conclui-se que a origem desta palavra, por si só, tende a se distanciar do que significa a redenção humana pelo fato de estar relacionada ao cálculo e à mensuração, distanciando-se assim das subjetividades e da socialização humanas. Assim, a neutralidade e a mensuração se constituíram em dois preceitos básicos do advento da ciência moderna, o que a partir de então passou a ser considerado como “racional” e a “verdade”. Como escreveu Franck Grandjean no livro La Raison et la Vie (1920, p. 30) “...la raison, le sens qui calcule”, ou seja, embora o advento da modernidade tenha como significado a redenção humana (era assim que entendiam os iluministas, por exemplo), nas raízes desta modernidade a mensuração e o cálculo passaram a ter o sentido de razão, distanciando-se do verdadeiro humanismo a partir da subjetividade e da socialização. Assim, a palavra razão, desde as raízes da modernidade, trazia consigo um sentido de verdade, ou seja, era entendida como portadora da verdade.

Porém, essa verdade, em decorrência do contexto, conservava uma estreita ligação com os conceitos matemáticos. Desse modo, o método matemático seria o portador da verdade graças ao seu sentido de objetividade e exatidão, o que levaria a uma indiscutível comprovação, como algo calculado e decidido com base em critérios racionais, um dos principais preceitos da ciência moderna. Esse preceito da mensuração, da objetividade e do cálculo designando a verdade passa pela história e chega aos tempos atuais, moldando, por exemplo, a ação institucional, ou seja, do Estado, sempre estatístico, matemático, sem ligação com as subjetividades e, portanto, incapaz de contemplar a totalidade da complexidade do viver humano.

Outro aspecto importante a ser considerado como fator que distancia a conquista da liberdade e da autonomia quando se constrói o caminho da opressão, segundo Paulo Freire, diz respeito à verticalização das relações humanas, que pode ser entendida como o preceito de superioridade ou de inferioridade presente no contexto das relações humanas, quer seja pela função social exercida, poder econômico, etnia, gênero etc. Trata-se de um desígnio muito próprio da sociedade primitiva, mas que vem sendo reproduzido historicamente pelas diferentes formações sociais.

O advento da racionalidade moderna trazia consigo a promessa da redenção humana na perspectiva da superação das complexidades no âmbito das relações sociais, mas não superou a premissa da verticalização das relações humanas. Ao contrário, o preceito da razão moderna acentuou ainda mais a verticalização das relações humanas, que se deu não apenas com o advento das relações capitalistas e a divisão do trabalho, mas especialmente a partir de convencionalismos sociais e ideológicos com o uso da palavra designando o Ser social, os dominantes x os dominados, os ricos x pobres, negros x brancos, patrões x empregados, atribuindo-se qualificativo ao Ser social a partir da função social que lhe é atribuída.

Porém, pode-se considerar que uma das mais significativas atribuições da modernidade, em nome da palavra razão moderna, que distancia a conquista da liberdade e da autonomia e abre caminhos para a opressão, segundo o pensamento de Paulo Freire, diz respeito à divisão social do trabalho. No período anterior às relações capitalistas, o artesão tinha o domínio do todo da produção, do ato de pensar ao ato de fazer. Porém, com a razão moderna, o que se diz científico, ou seja, o ato de pensar, foi expropriado do trabalhador. Essa expropriação em nome da palavra Razão ou da racionalidade moderna significa, para Freire, a desapropriação da autonomia e, portanto, da liberdade.

Ou seja, a evolução da sociedade capitalista implementou a divisão social do trabalho, da separação estanque das funções de cada ser humano, partindo das próprias unidades de produção: as fábricas. Esse projeto foi levado à frente com sucesso graças ao que se intitulou de gerência científica, em nome da palavra razão, a razão moderna, originada no âmbito da consolidação das relações capitalistas. A chamada gerência científica, o ato de administrar com eficiência, como escreve seu grande mestre, Frederick Taylor, na sua obra Princípios de Administração Científica (2019), implica a separação do ato de pensar a produção do fazer. O modelo fabril assentado no “taylorismo”, como passou a ser chamado, entre outros, como é o caso do “fordismo”, foi o que, em nome da razão científica, demarcou historicamente a divisão social do trabalho entre o ato de pensar e o de fazer.

Um dos princípios da gerência científica era justamente não deixar ao trabalhador nenhuma possibilidade de decisão em torno do exercício do trabalho, zero de autonomia, em nome da palavra razão científica. A partir do que já foi analisado neste artigo, para Paulo Freire, autonomia significa o caminho da liberdade pessoal. Portanto, o não pensar a produção se constitui como um caminho para a opressão com a expropriação dos frutos da produção, a verticalização de autoridade no que se refere à administração da produção e a apropriação dos seus frutos, em nome da razão moderna.

Igualmente, o advento da técnica, intimamente relacionado à divisão social do trabalho, em nome da razão moderna, constituindo-se como um dos fenômenos mais significativos das relações capitalistas de produção, atua fortemente na construção dos caminhos da opressão, segundo o pensamento de Paulo Freire.

Dois aspectos principais levam à constituição da técnica como um mecanismo de opressão em nome da palavra razão. O primeiro aspecto, a técnica, assim como a divisão social do trabalho, expropria o ato de pensar, pois traz o conhecimento a priori, elaborado no “bureau” da gerência da produção, como já analisado acima, expropriando do trabalhador o ato de pensar o exercício do trabalho. O segundo aspecto, o uso da técnica, é ainda mais grave, pois elimina a necessidade do trabalho humano, distanciando-o das relações de produção. Além disso, transforma-o em mera mercadoria de compra e venda, com valorização a partir da lógica do mercado, da oferta e da procura, como um produto qualquer. Com a consolidação das relações capitalistas, esse fator passou a ser “normal”, mas, pensando esta questão com mais profundidade, significa a destruição do humanismo no exercício do seu trabalho, em nome da palavra razão - a racionalidade moderna.

Por último, faz-se importante assinalar que a apropriação do Estado por segmentos dominantes da sociedade, nacionais ou internacionais, em nome da palavra razão moderna, interfere nos caminhos da construção da liberdade e da autonomia, mas agindo na construção da opressão. Nesse caso, a opressão se apresenta pelo descuido do Estado com a população em condições de pobreza e de vulnerabilidade social.

Trata-se de um momento histórico do avanço das relações capitalistas quando se agrega à palavra razão moderna a ação do Estado focada na industrialização, na produção econômica, no consumo, distanciando-se assim das questões humanas. Este conjunto de representação da razão moderna vai sendo apropriado pelo mundo político e produtivo para ter domínio sobre a ação do Estado, dito moderno, em contextos nacionais e internacionais. Neste caso, a conotação de “Estado moderno” não se faz apenas pela agregação de significativos de cientificidades, como se pensou quando do advento das raízes da modernidade com a junção da ciência e do Estado moderno, mas, nesse caso, significa também a junção do Estado com as relações capitalistas de produção.

Como já ficou bem explícito ao longo deste artigo, para Paulo Freire, a palavra forma as ideias. Essa foi a estratégia do capitalismo internacional, por exemplo, para expandir as relações capitalistas na América Latina, o enfraquecimento do Estado nacional em nome da palavra razão moderna. Os sociólogos franceses Pierre Dardot e Christian Laval (2020), no livro A Nova Razão do Mundo Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal, demarcam a década de 80 do século passado como a origem de uma nova política, denominada pelos autores de uma nova razão. Segundo os autores, havia uma herança de tradição democrática que leva à lógica da concorrência à morte, de onde nasce a imagem da fábrica do sujeito neoliberal constituindo-se de uma norma subjetiva. Nesta fase, destacam-se dois aspectos a serem analisados relacionados à palavra razão. Se na perspectiva da razão moderna, especialmente em relação à ciência, o racional e o preceito de verdade eram atrelados à objetividade e à mensuração, distanciando-se assim das subjetividades, com o advento do neoliberalismo se resgata a subjetividade unicamente nas relações capitalistas, envolvendo as individualidades, de onde vem outras palavras mágicas como o bom empreendedor, o sucesso nos negócios, o lucro etc. Como resultado desta estratégia do realce da subjetividade nas relações capitalistas, joga-se para o indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso pessoal e pela própria prevenção dos meios de vida, sem a ação do Estado. Trata-se da estratégia de minimização do Estado em nome da razão moderna, abrindo-se caminhos para a opressão.

Portanto, a palavra razão ganha importantes descendentes que se fazem presentes atualmente, tais como o lucro, a produtividade, a competição e a riqueza. E assim, em nome do que se diz ser o certo e o errado, com o uso da palavra, com foco na responsabilidade individual, cria-se o discurso de ódio e o uso da arma como estratégia, que se mistura com o da produtividade, o das metas, o do abandono familiar em nome das metas, tudo em nome do que se pensa ser racional.

Trata-se de um universo muito bem descrito pelo Papa Francisco no primeiro capítulo da Carta Encíclica Fratelli Tutti Sobre a Fraternidade e a Amizade Social (2020) ao se referir às sombras de um mundo fechado, sonhos desfeitos em pedaços, sem um projeto para todos, globalização e progresso sem um rumo comum, as pandemias e outros flagelos da história, sem dignidade humana nas fronteiras, a ilusão da comunicação, sujeições e autodepreciação da esperança. O Papa Francisco pergunta (2020, p. 17): “Que significados têm hoje palavras como “democracia” “liberdade”, “justiça”, “unidade”? Foram manipuladas e desfiguradas para serem utilizadas como instrumento de domínio...”

Portanto, o pensamento do Papa Francisco se afina aos princípios de Paulo Freire em relação ao significado da palavra. Qual é o significado da palavra liberdade senão aquele que se apresenta vinculado à autonomia e, portanto, é um caminho à igualdade, mas atrelado à dominação pelo consumo, pela individualidade e pela competição?

Neste sentido, é bom lembrar, como a escola é pressionada, sobretudo neste momento político, ao ensino da palavra morta, como diz Paulo Freire, simplesmente para o uso pelo mundo produtivo e consumista. No livro Alfabetização: Leitura do Mundo, Leitura da Palavra, Paulo Freire, ele destaca que “esta abordagem enfatiza o aprendizado mecânico de habilidades de leitura, na perspectiva de atender as necessidades econômicas e, com isto, sacrificando a análise crítica da ordem social e política, a qual, esta sim, produz o pensar e a emancipação” (FREIRE, 2011, p. 41).

Portanto, a partir de Paulo Freire, a palavra tem peso, por um lado, quando precedida da consciência crítica do mundo, sendo caminho para a autonomia e a liberdade, ou, por outro lado, quando distante da consciência crítica, delineia caminhos para a opressão. Assim, esta é a história da palavra razão: se a princípio delineava os caminhos da redenção humana no contexto da racionalidade moderna, historicamente passa a ser utilizada de forma a construir os caminhos que levam à opressão.

A palavra e os caminhos de uma nova razão que contemple a liberdade, a igualdade e a fraternidade a partir do pensamento de Paulo Freire

A verdadeira liberdade, na perspectiva de Paulo Freire, não significa contemplar apenas os interesses individuais, como se entende na perspectiva burguesa de ser. A liberdade está associada à conquista da autonomia a partir da reflexibilidade em torno do mundo social. Assim sendo a liberdade está essencialmente ligada aos caminhos da igualdade pelo fato de que a individualidade para se reconhecer um Ser social implica olhar e reconhecer a outra pessoa a partir do entendimento que o seu mundo existe em decorrência da existência da outra pessoa. Para Paulo Freire, a construção da liberdade e da igualdade nesta perspectiva não é uma utopia, desde que se dê atenção ao amplo significado das palavras.

Dom Elder Câmara, no livro Um Olhar sobre a Cidade (1977), de uma forma simples e poética expressa a dimensão do significado da palavra: “De fato, nunca ninguém acha que já tem demais ou manos que já tem bastante, é o caso de a gente comparar o ter com o ser” (1977, p. 96).

Assim, uma nova razão que contemple a liberdade e a igualdade e o distanciamento da opressão, para Paulo Freire, a partir do uso da palavra, implica a tomada de algumas construções sociais, como será analisado a seguir.

A palavra e uma sociedade “criticizadora” a partir da escola

Paulo Freire, no livro Educação como Prática da Liberdade, pleiteia uma educação de passagem da transitividade ingênua à transitividade crítica por meio da palavra. Segundo o autor, “a consciência crítica é a representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica, nas suas correlações causais e circunstanciais” (FREIRE, 1993, p. 86). Por outro lado, “a consciência ingênua, pelo contrário, se crê superior aos fatos, dominando-os de fora e por isto se julga livre para entendê-los conforme melhor lhe agradar (p. 105). Para Freire (p. 96), “a educação é um ato de amor, por isso um ato de coragem, sem temer o debate, a análise da realidade, não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”. Portanto, a criticidade é o caminho para a autonomia e a liberdade e contribui com a igualdade.

A intercessão da escola com o mundo social, que chegue na escola a palavra do mundo social

Para Paulo Freire, como já dito anteriormente, como a palavra não se traduz simplesmente pelas sílabas, pelas vogais, pelas consoantes etc., mas pelos seus significados, o olhar e o apreender o mundo externo, o físico e o social por meio da palavra, ela pode promover liga ou distanciamento entre as pessoas no espaço escolar. Assim, é justificável estudar a realidade social no interior da própria escola, as palavras que expressam essa realidade e seus significados. Por exemplo, a socialização no espaço escolar deve acontecer considerando-se as diferenças entre as condições sociais de quem frequenta a escola e seus familiares. Se for necessário discutir sobre a pobreza dos pais de um coleguinha, deve-se trazer o significado disso ao invés de simplesmente os diminuir. A mesma coisa se dá em relação à cor da pele, ao lugar onde mora etc.

Assim como trazer para dentro da escola a discussão de uma nova realidade social ou novo modelo familiar. Ter pai e mãe que moram juntos, é considerado algo “normal”. Porém, a realidade do mundo atual é outra em termos familiares, pois novos modelos familiares estão aparecendo. Ou, ainda, trazer para a escola o significado da palavra trabalho. A diferença do trabalho que envolve apenas o fazer e do trabalho que envolve o pensar. Assim como a relação entre ter trabalho e a condição de pobreza. Pode-se construir na escola uma nova noção da palavra trabalho. Normalmente essa palavra é escamoteada ideologicamente pela lógica capitalista, a simplificação do ganhar o pão... Ou, pior ainda, o significado da aceleração, cobrando das individualidades e da própria escola a aceleração por via do trabalho.

A escola poderia ousar promover rodas de conversa socializando para todas as pessoas que a frequentam as diferentes experiências e palavras que pessoas diferentes trazem do seu mundo social, também diferente. Assim, a escola promoveria um caminho da construção de uma nova razão para o mundo social a partir de dois aspectos: primeiramente a construção de uma horizontalização das relações sociais, iniciando na escola, revendo-se o olhar de superioridade a partir da condição social, da cor, do lugar onde mora etc. Em segundo lugar, na medida em que se discutisse na escola as diferentes palavras e saberes originados num mundo social diferente, de onde tem origem alunos e alunas que a frequentam, existiria um reconhecimento da veracidade de saberes diferentes e originais na escola e no mundo social a partir do significado da palavra.

Isso porque, na verdade, todas essas palavras advindas do mundo social são expressas no convívio do espaço escolar, mas entendidas como algo errado, distante da realidade da escola. Na medida em que se rediscute na escola o significado das palavras utilizadas na socialização do espaço escolar, constrói-se um novo olhar do todo do social e com isto os caminhos da igualdade a partir da desconstrução das relações verticalizadas o que se constitui como um caminho para a autonomia. Na medida em que se tem consciência do todo, tem-se autonomia de pensar e agir, o que significa liberdade.

Portanto, olhar para as diferenças e considerá-las iguais é um caminho para a autonomia e, portanto, para a liberdade e a igualdade; este é o papel que a escola poderia fazer. Como diz o Papa Francisco (2020, p. 129), “reconhecer todo ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos, não são meras utopias”. A escola poderia fazer isso na medida em que se promoveria a reflexibilidade a partir do significado da palavra, por exemplo, da palavra trabalho, doméstica, pobreza, negro, branco etc. O que também se relaciona com o que o Papa Francisco expressa (2020, p. 113): “pertencer a um povo é fazer parte de uma identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais. E isso não é algo automático, muito pelo contrário: é um processo lento e difícil, rumo a um projeto comum”.

Assim, uma nova razão a partir do pensamento de Paulo Freire se constitui de um vai e vem, de uma complexidade e não de uma objetividade positiva, como é entendida a partir do seu preceito clássico da razão moderna. O pensar e o repensar o real, a palavra, seria um ensinar a pensar e não apenas repetir.

A palavra e a implementação da pedagogia do diálogo na escola

Inicialmente, é importante ressaltar a negação de Freire no que se refere ao clássico entendimento de que a prática pedagógica se constitui entre dois pares, o sujeito e o objeto, o que ensina e o que recebe o saber. Mas, ao contrário, Paulo Freire ressalta a premissa dialógica na prática pedagógica. No livro Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa, ele se dedica ao argumento que “o ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar, é a ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma ao pensar” (Freire, 2018, p. 31). Também, no livro A Pedagogia do Oprimido, diz que a dialogicidade é a essência da educação como prática da liberdade e construção da autonomia, afirmando que “o diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo” (FREIRE, 1987, p. 60).

Portanto, este é o caminho para a construção de um novo modelo social, para a construção de uma nova razão, de uma nova verdade, uma verdade relacionada à igualdade, ao humanismo, ao se sentir irmãos e irmãs, ao dialogar como diz o Papa Francisco (2020, p. 143): “Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato, tudo isto se resume no verbo “dialogar”. Nisso, a palavra tem um papel fundamental a partir do pensamento de Paulo Freire.

Pela construção da relação de irmandade e horizontalidade entre o ser humano e o mundo natural

Em nome da palavra Razão moderna, estabeleceu-se uma verticalização entre o ser humano e o ser natural por meio do que se entende como racional, o ser humano, e o não racional, a natureza. Nesse caso, a natureza entendida como não racional passou a ser considerada objeto de dominação, exploração e destruição. Como diz Krenak (2020, p. 10), “é como se tivesse elegido uma casta, a humanidade, e todas que estão fora dela são a sub-humana”.

Ao contrário, é preciso adotar a lição história do nosso São Francisco de Assis, a irmandade com a natureza, a relação de horizontalidade entre o mundo natural e o humano. Buscar compreender a palavra, a partir dos ensinamentos de Paulo Freire, a linguagem da natureza, o que os pássaros têm a dizer com o seu lindo cantar, os pássaros falam, o que eles têm a dizer, a expressão da beleza das plantas, das flores... Como diz Leonardo Boff (2001, p. 53), “São Francisco de Assis [...] universalizou a filiação divina e a irmandade com todos os seres, o irmão sol, a irmã água e o irmão fogo [...]”.

Somente assim é possível construir uma nova razão por meio da palavra, de socialização, de pensar na outra pessoa, de pensar no mundo natural, somente assim se chega à autonomia, à liberdade e à igualdade. Isso porque sem a outra pessoa e sem o mundo natural as palavras individualizadas são soltas e sem significados, não construindo caminhos para a liberdade e para a igualdade.

Considerações finais

Como analisado ao longo deste artigo, em grande parte de suas obras Paulo Freire manifesta uma inquietação em relação à proximidade do projeto de modernidade e a construção da opressão com o uso da palavra. Assim, percorrendo-se os caminhos da racionalidade moderna aparecem diferentes significados da palavra razão, desde a redenção humana até os caminhos da opressão. Ou seja, na epistemologia da racionalidade moderna, a palavra razão se apresenta como sinônimo de verdade, uma verdade com origem na cientificidade. Em nome dos significados da palavra razão, construiu-se um projeto de humanidade. Mas também, ao longo da história, especialmente com o advento das relações capitalistas, a palavra razão foi tomando novos significados e abrindo novos caminhos em direção à opressão, contrários à construção da autonomia pessoal e da liberdade. Em nome da palavra racionalidade, oriunda da razão, na atualidade, mata-se e desmata-se, tudo na perspectiva do ganho econômico. Porém, para Freire, como já analisado ao longo deste artigo, o conceito da liberdade está associado à consciência do seu entorno, está associado à autonomia do ser, do ser social, do compreender o mundo social e político, de tomar decisões acerca do seu próprio pensar e, especialmente, o ter a consciência de que o viver social implica outra pessoa; ou seja, a liberdade não está associada à pura individualidade, mas ao Ser social, o que significa autonomia pessoal.

Por outro lado, é possível se construir uma nova razão que contemple a liberdade, a igualdade e a fraternidade a partir do pensamento de Paulo Freire, com foco na autonomia pessoal. Como indicados ao longo deste artigo, alguns caminhos se apresentam, como uma sociedade “criticadora”, que se baseia nos ensinamentos da escola; a intercessão da escola com o mundo social, na perspectiva de chegar na escola a palavra do mundo social; a construção da relação de irmandade e horizontalidade entre o ser humano e o mundo natural.

Para concluir essa reflexão, nada mais contributivo que as palavras de Paulo Freire contidas ao iniciar “As Primeiras Palavras” do seu livro Pedagogia do Oprimido: “Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e assim descobrindo-se com eles sofrem, mas sobretudo com eles lutam” (FREIRE, 1987, p. 4).

Referências

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* Conferência proferida no Seminário Avançado Interdisciplinar Centenário de Paulo Freire 24 anos de ausência Presente, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - abril a outubro de 2021.

Recebido: 02 de Março de 2022; Aceito: 04 de Abril de 2022

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