Introdução
A reflexão crítica da filosofia social e o olhar desde o campo da educação nos aproximam das problematizações acerca das políticas públicas que implicam as temáticas tecnológicas, éticas e a formação intelectual, integral das vivências cotidianas e do mundo da ciência. São os sentidos que se apresentam nesse texto que se esforça para desenvolver um debate conceitual acerca de terminologias centrais sob as quais se movimenta na perspectiva da pensar relações, significados e impactos a partir de compreensões amplas no campo das políticas públicas, das relações de poder e das implicações tecnológicas. Desse modo, procuramos tematizar, com uma perspectiva crítico-filosófica, no primeiro momento, o horizonte de conceitos como políticas públicas, formação e tecnologia, distante, talvez, de preocupações pragmatistas ou de elaborações preocupadas com resultados imediatos, fórmulas e métodos que desenvolvam perspectivas utilitaristas e tecnicistas. Contudo, com consciência de que há relações de poder, micro e macrossociais, com forças para estabelecer diretrizes para a formação humana, para os direcionamentos do desenvolvimento tecnológico e definição das políticas públicas.
Os objetivos destas reflexões indicam pensar os temas, especialmente, a formação, desde o horizonte tecnológico ou para, além dele, como uma realidade inevitável, presente em praticamente todas as dimensões das sociedades; debater conceitos de políticas públicas e reconhecer que o Estado, enquanto organismo social é composto de diversos poderes de governo corresponsáveis nas definições, aplicações e conduções das políticas públicas. Mesmo que isso implique uma repactuação ampla do próprio conceito de Estado. Desse modo, um primeiro movimento do ensaio procura compreender o conceito de política pública, formação e tecnologia em coerência com a trilha crítico-reflexiva da filosofia social para superar a formulação dos modos e procedimentos de cunho teleológico e garimpar problematizações.
Nesse embalo, o segundo movimento procura elaborar reflexões a partir da concepção política da integralidade do Estado em diálogo com o que Rousseau sugere em Do Contrato Social. Para Rousseau, cidadãos e cidadãs são o Estado e, de algum modo, indicam governantes para regular e promover a harmonia na sociedade constituída dos coletivos que compreendem a necessidade de ceder, em parte, sua liberdade natural e somar em possibilidades de segurança. Esta parece também ser uma das perspectivas teóricas defendidas por Zygmunt Bauman (2017), que tematiza questões relacionadas com a condição humana e aprofunda teorizações na direção da dignidade humana de onde vê a necessidade de repensar o Estado sem destruí-lo; de instaurar um movimento que se ocupe do diálogo, da solidariedade e da incorporação das construções e das instituições sociais para fortalecer e assegurar a continuidade da vida com justiça social.
A questão da segurança e da liberdade como um movimento pendular em que o movimento não para e o pêndulo não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, é um ponto de impacto direto na questão da educação, especialmente com o alerta de Hannah Arendt ao atribuir às gerações com experiências já realizadas a tarefa de ensinar às novas os valores e os conhecimentos construídos, de modo que, mesmo com a iminência do aleatório onde se incluem os imperialismos, absolutismos e ditaduras, o passado desperte lições para construir vivências que pensem a condição humana e a encaminhem na perspectiva da intersubjetividade. Há, neste âmbito, uma compreensão tradicional de formação com potência para ser considerada neste mundo que compartilhamos. Os poderes instituídos do Estado, neste debate, são compreendidos como: o executivo, o legislativo e o judiciário. Cada um tem sua esfera de governança e, portanto, de corresponsabilidade nas direções, ações e realizações políticas. O Estado é o que é em função da ação dos três poderes de governo, uma espécie de diálogo possível e necessário entre as compreensões do Estado iluminista rousseauniano e do seu funcionamento concreto na atualidade.
Um terceiro movimento encontra a formação tecnológica como política pública do Estado contemporâneo e parte do ponto em que ela, a formação tecnológica, é terminologia polissêmica e, portanto, de sentido ambivalente que requer problematização no sentido de evitar embarques enganosos por caminhos que possam conduzir a novos guetos e, deles, para pós-modernos auschwitzs, com as pós-verdades, a pós-ética e a pós-vida.
O nó górdio da ação do Estado na perspectiva da educação integral e conhecimento para pensar a vida, é a formação tecnológica em substituição ou desconsideração à formação humana, condição necessária da existência e das relações sociais e vivências individuais. Compreendemos que é a condição humana a motivadora para implementação de políticas, para a ação do Estado e para o desenvolvimento das ciências onde se desenvolve a formação. Parece haver um sentido de direcionamento tecnológico sobre o humano, tanto no uso de ferramentas, equipamentos e técnicas digitais quanto de intensificação e necessidade de digitalização dos processos formativos como únicos meios e fins válidos para o crescimento individual e coletivo. Um sentido que teima em reinar na sociedade contemporânea indicando que não há vida, não há possibilidades e caminhos possíveis fora do mundo da técnica.
Há perigos, desse modo, nas compreensões e conceitualizações apressadas que, facilmente, podem se naturalizar e assumir veredas que desconsiderem o humano, hoje encontrado nos espaços invisíveis de manipulação pelas máquinas e maquinações e porque passa a não ser percebido como o final da ação, o objetivo de toda e qualquer atitude formadora e da instituição das políticas públicas. A técnica assume a primazia e a humanidade é recolocada, violentamente, em uma dimensão perigosa.
É nesta linha de pensamento que esta reflexão pensa a tecnologia como uma espécie de racionalidade necessária em campos multi-transdisciplinares para a amenizar penosidades e contribuir no aprimorar humano, mas também, envolve-se na crítica ética que reaviva as vivências, experiências, a vida e a dignidade humana, como telos de toda ciência e escopo da educação. Para isso considera a complexidade de cada indivíduo e existência de conexões entre todos e todas, portanto, da integralidade pessoal e social não somente dos humanos, mas do cosmos, como o ensaio permite pensar a partir de Francesco Bellino (1997).
O sentido sócio filosófico do presente estudo, procura, igualmente, problematizar os processos de naturalização ou normalização dos conceitos e sentidos que os termos assumem na história do pensamento e são incorporados, tornando-se senso comum desprovidos de reflexão, de questionamentos, das sabedorias necessárias a uma formação e compreensões mais integrais. Desenvolvemos, nesse contexto, com base na filosofia social, ancorados no pensamento crítico-hermenêutico de pensadores e pensadoras da contemporaneidade e em reflexões a partir de clássicos, um esforço de conceitualização crítica acerca da formação, da tecnologia e do Estado. Imergimos nessas análises, em metodologia hermenêutica, para aprofundar, ampliar e empreender no esclarecer e problematizar sentidos e, na dialética, com o intuito de identificar elementos e teses que implicam e impactam a temática, suas circunstâncias e consequências, não de modo isolado, mas na relação de vida, de justiça e de dignidade humana.
Pensar tecnologias para formação nos tempos em que a técnica, o mundo digital e o remoto se associam estreitamente com o consumismo, o solipsismo, o império das subjetividades, desafia as teorias, os indivíduos, as instituições, os governos, as tecnologias, os sistemas e a própria ação do Estado, juntamente com as instâncias democráticas, educacionais e a preocupação seminal com a vida no seu sentido mais amplo. A grandiosidade desta empresa não pode inibir reflexões e experiências que signifiquem vivências, crescimentos pessoais e coletivos. É nesta perspectiva que se desenha a compreensão conceitual de tecnologia, no âmbito deste ensaio e também no que concerne à formação enquanto possibilidade e necessidade de educação integral desde o horizonte ético. Cumpre, portanto, localizar bases que sustentam o presente estudo e pensar linhas gerais que iluminam seus sentidos e perspectivas.
Estado: instituição a serviço da vontade de todos e de todas
As acomodações conceituais, as replicações de sentidos e os esvaziamentos de significados originários ou incorporações de interpretações são próprios do senso comum acadêmico e popular, repletos de compreensões e incompreensões, usos e acepções em torno do que seja e para que ou para quem servem determinadas terminologias. É o caso das políticas públicas que, inclusive, precisam se perguntar em que bases e fontes teóricas sustentam as compreensões, as imanências, e aprofundam o costumeiro, a naturalização, as narrativas e gramáticas tendenciosas em reproduzir-se com ausentes problematizações, debates e revisões científicas. A presente reflexão suprime referências bibliográficas supondo-as de conhecimento amplo e dedica-se ao estudo do tema na ótica da problematização dos significados dos conceitos centrais do ensaio que, por vezes, não são vistos e revistos e privilegiam as fáceis incorporações aos cotidianos das comunicações, das linguagens e das afirmações peremptórias e justificadoras, com certo grau de consequências e imprevisibilidades.
Desse modo, Aristóteles (384-322aC) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escolhas para este momento, situam a perspectiva reflexiva deste ensaio, em diálogo com pensadores/as convocados/as - facilmente identificáveis - para iluminar essas linhas que nos fazem pensar em política e, imediatamente, compreendê-la como movimento democrática porque requer a mobilização de conceitos e sentidos construídos ao longo da história humana e ressignificados nos tempos em que a humanidade se encontra.
Essa proposição em afirmar-se porque política e seus sentidos e significados não brotam dos deuses, não advém do além, por revelação; são construções oriundas da historicidade humana, dos diálogos e debates realizados no âmbito do social, do coletivo, das cidades, das pólis gregas e da civita romana. Percebe-se que a terminologia é de origem helênica e apresenta-se mais objetiva ao se compreender a parcela cidadã da Grécia antiga, costumeiramente, em debates nas ágoras, espaços de frequências comuns, mas de envolvimento e participação elitistas.
Nessa lógica de pensamento, em analogia com os tempos gregos, para a sociedade aristocrática brasileira e o coletivo de cidadãos - homens ricos, caucasianos, poderosos e de cultura, letrados, sábios - a pólis constitui a base da política que expressa a natureza humana da convivência, das relações intrínsecas dos seres humanos normais ou, pode-se dizer: perfeitos e, ainda, aristos ou melhores. Um modus vivendi culturalizado ou em processo de naturalização que impacta, profunda e amplamente, na compreensão de como acontece a política.
Política, em outra concepção, é ação humana, da natureza humana. Os seres humanos, em sua convivência, necessitam da cidade, do coletivo, uns dos outros - nos tempos atuais é possível também pensar e dizer, umas das outras - para desenvolver suas existências. É no coletivo que se desenvolve o que os romanos compreenderam como civita, base da civilização, talvez, de civilidade e, mesmo, de civilizar.
Embora sejam imprescindíveis cuidados nos seus usos por tudo aquilo que historicamente representam, essas terminologias se identificam para expressar, com algum sentido, a importante regulação e o controle social para a consecução da harmonia entre indivíduos. Uma espécie de contrato social que se estabelece nas civilizações, nos grupos, nas comunidades, nas famílias e instituições, de diferentes modos e compreensões e constitui a história. Política é, então, por si só já a expressão da coletividade, a preocupação - ainda que filosófica e idealista - com o bem comum, com a cidade, com o bom para todos e todas. Políticas públicas, nesta concepção, são reforços de linguagem para expressar a mesma coisa, o mesmo sentido ao referir-se às coisas do povo - que para Rousseau é o Estado -, às preocupações e ações do publicus, do populus. Esta reflexão se aproxima da crítica de Camin (2021) ao indicar que pode estar aqui “una de las paradojas más desafiantes de nuestro tiempo: la contradicción entre el bien intencionado discurso sobre la justicia social que producen [...los] organismos internacionales y los Estados nacionales y la desdichada realidad de las libertades ciudadanas”.
Na perspectiva do olhar sobre a política e o que pode representar nesses tempos em que muitos retrocessos povoam o campo da educação, Saviani (2020, p. 13) contribui esclarecendo:
[...] a especificidade da formação social brasileira marcada pela resistência de sua classe dominante em incorporar os de baixo, no dizer de Florestan Fernandes, ou as classes subalternas, na expressão gramsciana, na vida política, tramando golpes sempre que pressente o risco da participação das massas nas decisões políticas. Daí o caráter espúrio de nossa democracia alternando a forma restrita, quando o jogo democrático é formalmente assegurado, com a forma excludente em que a denominação “democracia” aparece como eufemismo de ditadura.
Essa problematização permite compreender que políticas públicas só têm sentido se dirigirem-se para todos e para todas. Não há política pública com destino privado e, tampouco, que o Estado funcione em direção contrária ao atendimento àquilo que é do coletivo, da promoção do bem comum. Estaria, desse modo, a operar contra sua própria natureza. Esse debate também expõe a complexidade da dimensão e ação do Estado e das relações entre os poderes instituídos pois têm sentido único no assegurar a natureza pública: para todos e todas. Por isso, cada instituição da República deve - por natureza, por legislação, por moral e por ética - cuidar daquilo que é do coletivo e se corresponsabilizar no assegurar esse postulado.
A contribuição de Saviani (2020) a esse tema é fundamental. Retomando a discussão construída em 2012 no livro Escola e Democracia, no quarto capítulo intitulado: Onze teses sobre política e educação, discorre que: [...] educação e política são práticas distintas, mas inseparáveis entre si. Assim, embora não exista identidade entre educação e política (tese 1), toda prática educativa contém, inevitavelmente, uma dimensão política (tese 2), assim como toda prática política contém, inevitavelmente, uma dimensão educativa (tese 3), e complementa:
Só é possível compreender a dimensão política da educação na medida em que se explicita a especificidade da prática educativa (tese 4), do mesmo modo que só é possível compreender a dimensão educativa da política na medida em que se explicita a especificidade da prática política (tese 5). Ora, a especificidade da prática educativa define-se pelo caráter de uma relação que se trava dominantemente entre contrários não antagônicos (tese 6), o que significa que se trata de uma relação de hegemonia alicerçada na persuasão, no consenso, na compreensão. Por sua vez, a especificidade da prática política se define pelo caráter de uma relação que se trava entre contrários antagônicos (tese 7) sendo, pois, uma relação de dominação alicerçada em dissuasão, dissenso, repressão. Assim dispostas, as relações entre educação e política dão-se na forma de autonomia relativa e dependência recíproca (tese 8), realizando-se diferentemente conforme as variações históricas de sua manifestação, o que nos permite constatar que as sociedades de classe se caracterizam pelo primado da política, ocorrendo, em consequência, a subordinação real da educação à prática política (tese 9). (Saviani, 2020, p. 13-14).
A tradição da formação como processo ético de enfrentamento à naturalização e à simplificação
Acerca da noção de formação, para superar os processos de naturalização, na ambivalência que lhe constitui, podemos compreender que transita desde o hermético, fechado, sólido, com sentido de formatar, até a ação de formar, de dar uma forma na ação, ou seja, uma dinâmica que se altera, se modifica; é movimento, portanto. Pensar em formação é conceber atitudes, ações e atos, expressões e manifestações que encontram lastro em compreensões, em sentidos, em bases teóricas. Portanto, formação é conhecimento, é ciência e, enquanto tal, como ensinou Gramsci, a seu modo; Foucault e Adorno, desde suas bases teóricas, entre tantos outros - é poder. Saber é poder referiram Francis Bacon (2007) - ainda que concebesse o sentido primitivo de poder - e Michel Foucault (1979; 2014), já no campo da compreensão cultural, como micro e macro manifestação. Pode ser um poder individual, de uma comunidade científica ou de um campo da ciência. Mesmo que de tradição filosófica diferente, Paulo Freire (2021, p. 73) parece refletir nessa direção, ao indicar que “Formar é algo mais profundo que simplesmente treinar. Formar é uma necessidade precisamente para transformar a consciência que temos, aumentar a curiosidade intuitiva que nos caracteriza como seres humanos”. Entre outros alertas, Freire (2021, p. 73), nas perspectivas dos debates deste texto, ensina sobre o cuidado necessário para “formar pessoas de maneira que elas não se percam em meio às mudanças que a tecnologia vem criando”. Uma outra grande questão que se apresenta é sobre a emancipação, o empoderamento de cada indivíduo, de cada cidadão e cidadã ocupar o seu espaço de modo que não haja “transferência do nosso poder, o poder do ser humano, para a tecnologia” (FREIRE, 2021, p. 96) e, nessa mesma prerrogativa, que não seja apossado por estranhos poderes do Estado e de governos descomprometidos com a vida, com a dignidade humana.
Nesse horizonte se encontra a força da formação, pois é constituinte das atitudes, dos hábitos, dos indivíduos, à medida que compõe as fortalezas das compreensões, dos entendimentos, dos indivíduos e das comunidades de ciência e, também, dos indivíduos nos seus cotidianos, embora mais afeitos às ações do que às reflexões, o que pode ser caracterizado por senso comum. Compreende-se, nesta lógica, que os indivíduos agem conforme pensam e pensam a partir dos paradigmas constituintes de suas bases compreensivas. Nesse horizonte, a formação encontra as políticas públicas e as tecnologias como possibilidades para crescimento, aprendizado e construção de bases compreensivas, revisões, críticas e ressignificações, e de ampliação da ciência individual e coletiva das amplitudes, alcances e funcionamento do Estado, de suas delegações e sistemas.
Formação, nessa perspectiva, refere-se a instituir compreensões de mundo, de verdades, alternativas, caminhos, tanto individuais quanto coletivas. Abrir-se ao diálogo, à solidariedade como proposta de crescimento pessoal e, desde essa subjetividade, incorporar, compreender e considerar o entorno sempre em expansão. Por isso a formação está intimamente ligada com a perspectiva da educação. É uma direção, uma indicação de sentidos e de pontos que podem significar, representar, interesses, condições e possibilidades. Neste ponto, os sentidos de formar e de formação, dialogam em complementaridade e dizem da necessidade humana do ensinar e do aprender. Na compreensão de Hannah Arendt, é preciso que as gerações que já realizaram e continuam a desenvolver suas experiências, tenham o que ensinar para as novas. Formação, nessa linha de pensamento, também é tradição.
O risco das rupturas, geralmente, abruptas, interrompe processos de passagem, de apropriações que decorrem de reflexões, de críticas, de autoconsciência e aprendizado com as relações. Interessante considerar a filosofia preocupada com a condição humana de Arendt que sugere rupturas como interruptoras e opositoras dos processos, dos aprendizados, das construções, pois, não vinculam, não valorizam a formação, os caminhos educativos e, nisso, são violência. As sociedades, ao efetuarem suas caminhadas, instituem processualidades éticas constitutivas das historicidades e identidades, em maior ou menor grau. A formação com sentido arendtiano parece indicar a necessidade dos elementos internos e externos dos indivíduos e das comunidades como instituintes - na perspectiva teórica desenvolvida por Castoriadis - de si e das alteridades. Como internos ao indivíduo podemos exemplificar, a consciência, a autoconsciência, a reflexão e autorreflexão e os sistemas de compreensão e autocompreensão.
No que compreendemos como internos às comunidades, aparecem discussões, debates, diálogos, ações e atitudes de compromisso e consideração à coletividade, aos anseios e demandas dos coletivos. Nos processos externos ao indivíduo, encontramos o externo das comunidades que residem no mesmo âmbito, até determinada dimensão. Logo após, o externo ao indivíduo se identifica com o externo à comunidade: pesquisas, comunicações, estudos, leituras de livros e de mundos. Ambos horizontes e contextualidades operam, ainda que minimamente, no logos da dialogia, da pluralidade, da conexão e da complexidade, como ensina Edgar Morin.
Ao retomar o debate desde a formação, aprendemos que Bauman (2014) denomina de função de educador a essa atitude que pode ser espontânea, cotidianamente exercida pelas pessoas em suas relações - Fernando Savater denominaria de educação informal - preocupadas em manter certa segurança e alguma garantia da continuidade das existências, quanto pode ser intencional, planejada e ocupada em transmitir os conhecimentos já edificados pela ciência, pela humanidade, pelas comunidades e indivíduos em relação.
Desse modo se apresenta a possibilidade da continuidade da humanidade, a manutenção das perspectivas, dos valores e de algumas bases mais sólidas, nas quais, talvez, seja possível ancorar as existências e as sobrevivências e instaurar processos instituintes que ao considerar as historicidades, as culturas, as tradições, almejam a continuidade do crescer - e aí temos formação - e a amplitude das condições de realização, de ser. A partir dos conhecimentos e do desenvolvimento das capacidades de reflexão, do pensar - que também pode ser formado, está em constante formação na arquitetura aqui esboçada - abrem-se novos campos, novas possibilidades e perspectivas que permitem as metamorfoses, como compreende Ulrich Beck (2018) e as mudanças e transformações ou revoluções, em outras linhas de pensamento, como ensinam Antonio Gramsci, Pedro Demo e, inclusive, Zygmunt Bauman (2014). O que não pode é confundir e simplificar o conceito de formação com treinamento (Freire, 2004, p. 29), com tecnificação e instrumentalização para ações naturalizadas, irrefletidas. Neste debate reside uma distinção importante que pensamos em desenvolver no próximo item: a clareza conceitual entre técnica e tecnologia, embora devamos alertar para o distanciamento que o termo téchne tem assumido ao longo dos tempos desde sua gênese grega.
Técnica, tecnologia e formação: possibilidades de significados e sentidos
Uma primeira marcação que nos parece significativa considera a técnica como ocorrência eficiente no seu fazer. Não há, necessariamente, uma preocupação ética no campo técnico; um fazer com eficiência o que é para ser feito, parece ser o mote da técnica. Em outro campo, situa-se a tecnologia que, grosso modo seria uma técnica com sabedoria, com conhecimento mais omnilateral, integral, ocupada não somente com o fazer bem o que é para ser feito, mas, também, com a definição, com as escolhas, com as decisões do que é para ser feito, daquilo que deve ser realizado. A tecnologia comporta uma proximidade maior com a eficácia no sentido de não somente fazer e fazer certo o que é para ser feito, mas, para além do fazer bem o que está determinado, contribuir na definição do que é para ser feito, do que pode ser feito e do fazer bem feita a coisa certa a ser feita. Aparece aqui a dimensão ética e política da tecnologia que pode ser compreendida como formação.
Nessa lógica de pensamento, a tecnologia considera a dimensão da ética e de uma certa práxis porque há uma racionalidade, há um discurso, uma linguagem e, desse modo, se abre a possibilidade do diálogo. Tecnologia, assim, é ciência e, embora possa ser direcionada pelas ideologias hegemônicas materialmente detectáveis, identificáveis ou, ser mascarada, romantizada ou deturpada em suas intencionalidades, tem um estatuto que a coloca no horizonte da construção e no caminho da regulação. Essas perspectivas, no que tange à tecnologia, identificam um horizonte mais alargado para compreendê-la para além do comumente estabelecido de modo que se possa pensar em uma técnica com lógica, com estudo, com razão; o logos grego é compreensível nessa conceitualidade.
Tecnologia, nessa compreensão, não se reduz ao comum do mundo digital, dos média, da computação; supera, também, a técnica enquanto utilitarismo e instrumentalização das ações, da razão e das formações com os reduzidos objetivos de atender situações restritas, casos previstos e treinamentos para desenvolver eficiência nos diversos e variados setores em que instrumentos e aparelhos ligados a redes mundiais sustentam, acionam e controlam algoritmos funcionando como espíritos e almas de autômatos com natureza software e/ou hardware e intencionalidades escusas ao conjunto da humanidade. A tecnologia, em sua amplitude, assume uma esfera educadora com potencial de constituir política pública e ser ferramenta do Estado nesse campo de crescimento pessoal e coletivo.
A técnica, talvez, tanto enquanto seu específico conhecimento, quanto como atividade, treinamento, não alcança o sentido de tecnologia, como ensaiado neste texto. Tecnologia parece aproximar-se mais das capacidades de pensar a técnica, de regulá-la e conduzi-la; é uma espécie de razão, de racionalidade, de diálogo com a técnica e, a partir desse entendimento, refere-se às capacidades e potencialidades inovadoras, criativas, que empreendem na direção de pensar, repensar, construir e reconstruir lógicas de funcionamento das situações, condições e instrumentos.
O modo de construir, de funcionar e a própria concepção de um lápis, de um calçado, de um utensílio doméstico, de um algoritmo, de um software, por exemplo, pode ser compreendido como tecnologia, assim como a eleição, a gênese dessa necessidade e o indicativo de fazer a coisa certa.
Tecnologia, nessa linha de discussão, pode significar todas as construções e desenvolvimentos humanos com a finalidade ou resultantes de melhorias (Silva, 2021) e diminuição das penosidades das ações que envolvem os elementos constituintes básicos da sociedade e dos indivíduos, como: trabalho e salário, lazer, educação, segurança, habitação, vestuário, transporte, alimentação, ciência, em sentido bem ampliado. Nesse campo, a tecnologia tanto produz para atender as necessidades dos seres humanos, quanto para testar/experimentar e implementar ideias e teorias, desenvolver a ciência e favorecer as vivências e experiências e, pode, desse modo, aparecer como formadora, educadora, e presença do Estado democrático que se conecta a todos e todas.
Além disso, a tecnologia, na sua dimensão ético-política, incorpora o papel primordial de pensar a técnica e regulá-la a partir das definições, das escolhas, dos debates que a vontade de todos e todas, para usar um conceito próximo a Rousseau, definir. A tecnologia, nesse escopo, estaria, também, submetida, em sua autonomia, a um ideário republicano e democrático, condição com a qual Paulo Freire (2021, p. 39) também concorda ao afirmar que a questão “não é evitar o uso da tecnologia, mas entender e apropriadamente desenvolver uma política para o seu uso”.
Com esta concepção, Freire (2021, p. 39) acentua a contribuição da tecnologia como possibilidade para “aumentar e aperfeiçoar o entendimento das culturas, as leituras de mundo, a ampliação das críticas” e atenção de educadores/as acerca das culturas, sentimento e histórias dos/as estudantes. Então, o nó górdio, para Freire (2021, p. 39, grifos no original) está em “ter clareza sobre qual é a política que sustenta o uso da tecnologia”, ou seja, “estamos usando a tecnologia em favor de quem e em favor de quê, e contra quem, e contra o quê”.
Parece, assim, que a formação tecnológica não se restringe apenas ao estudo e desenvolvimento de mecanismos digitais, on line, computacionais, algorítmicos, autômatos ou, de alguma forma, máquinas hard e/ou soft. A formação tecnológica envolve uma complexidade que a concebe em sua dimensão digital e dos media; mas sensível aos modos, métodos, ideias, concepções, que não resultem somente em máquinas. A tecnologia, em ação educação pela decisão do Estado, precisar estar atenta para não facilitar transformações e procedimentos que acabem por subjugar ainda mais os indivíduos nas suas ações cotidianas e restringir o espírito humano a desenvolver técnicas, apenas. Pensar o conjunto de necessidades, possibilidades e viabilidades para a humanidade sugere a conexão do poder estatal e da formação com a tecnologia.
Tecnologias, nessa perspectiva teórica, são modificações criadas, desenvolvidas, aperfeiçoadas para aprendizados, por exemplo. Para facilitar as compreensões, para o domínio do funcionamento e da dinâmica dos modos de aprender, no campo da educação, especificamente. Podem ser ideias que inovem no campo prático sem o uso necessário de equipamentos, utensílios, instrumentos físicos - hardwares - exclusivamente. Aqui, a tecnologia supera a dimensão da máquina, das redes de computadores, da inteligência artificial e incorpora o conjunto das possibilidades humanas, o mundo das ideias - numa compreensão próxima de Platão, referindo a amplitude do conhecimento humano com a saída da caverna e a chegada à luz -, do abstrato, das compreensões, das conceitualidades que podem contribuir com o crescimento dos indivíduos e da humanidade.
No anúncio e na denúncia de Freire (2021) e Bauman (2014, 2016, 2017), enquanto indivíduos e sociedade e, também, no âmbito da educação, precisamos compreender o movimento, a velocidade com que a dinâmica da vida, do mundo, das relações, está a ocorrer. Nesse aspecto, a tecnologia pode, ao se interpretar Freire (2021, p. 72), contribuir para que seja possível “adquirir ou criar a habilidade de responder a diferentes desafios com a mesma velocidade com que as coisas mudam”. Tecnologia, desse modo, transcende a noção do desenvolvimento, apenas, de ferramentas mecânicas e se orienta para um conjunto de conhecimentos ocupados em aperfeiçoar o trabalho e qualificar os processos de aprendizagens, de existência/vivências e de construções. Essa questão envolve a aproximação dos cidadãos e cidadãs das decisões políticas, das conduções do Estado e implica atitudes dos poderes da República, os governos do Estado.
Compreende-se, portanto, que tecnologia é conjunto de conhecimentos mobilizados para resultar porque é téchne, modo de fazer, e logos, provido de pensamento, de razão, de intencionalidade, ainda que com resultados incertos, desconhecidos e aleatórios. Não se limita ao digital, ao computacional e, tampouco, ao on line, embora, as compreensões dominantes no senso comum imperioso dos dias atuais alimentem essa concepção.
Estado e governo: definição, articulação e implementação de políticas públicas e formação como compromisso dos três poderes da República
Um debate que se instala, ainda tímido, na sociedade brasileira, precisa ganhar fôlego e instalar-se com força democrática para assegurar a República, é a repactuação do Estado. Políticos influentes como Tarso Genro, ex-Ministro da Justiça e da Educação e ex-Governador do Rio Grande do Sul, assim como, o Ex-Governador gaúcho, Olívio Dutra, tem ecoado, entre outros/as pensadores/as, essa necessidade. Repensar o Estado sem destruí-lo se apresenta, no horizonte democrático-republicano, tarefa urgente de homens e mulheres que, neste momento, compartilham o mundo.
Essa demanda se aviva porque o Estado é a instituição histórica com condições de segurança, liberdade, formação e acesso a bens vitais aos indivíduos e às coletividades, como função histórica do ideário republicano onde cabem todos e todas, diferentes e iguais. Essa problemática também compõe os debates realizados por Zygmunt Bauman, especialmente em Estado de crise (Bauman, 2016), que ressalta a necessidade de realizar as demandas que se estabelecem a partir de horizontes ampliados, plurais e dialógicos. É o Estado em crise ou a crise do Estado que enfrentamos? Quando Bauman escreve sobre oclusão mental, um conceito enfrentado alhures na obra referida, pode também estar anunciando a incapacidade de visualização, por parte dos indivíduos e das gestões, do desmonte do Estado, da sua dilaceração para que o sistema financeiro consumista, de mercado, de centralização e, portanto, excludente, seletivo, opressor que o dilapida, passe a reorganizá-lo em bases neoliberal/ultraliberais e amplie controles à revelia da vontade de todos e todas.
Na reflexão de Camin (2021), “después de que el mercado se haya expandido por toda la capa física del planeta, se orienta hacia la búsqueda de nuevos horizontes [...] Y los encuentra en la colonización de la mente humana, cuya atención atrapa con una oferta infinita de contenidos e interfaces diseñados para enganchar con actualizaciones y recompensas virtuales”, parece ter se instalado um processo de aniquilação do Estado cidadão, liberal, iluminista - que ainda não cumpriu suas finalidades - retirando-o da guarda da cidadania para fragilizar os flancos e facilitar a entrada de corpos estranhos à democracia e à República. Quase que omissão dos poderes da República ou traição entre eles.
A crise do Estado ou o Estado de crise da atualidade, dificulta ver o algoz, os instrumentos em uso na maceração do indivíduo, das comunidades e precarização das políticas públicas de formação e de viabilização do acesso a todos e todas das conquistas científicas e tecnológicas e, também, fragmenta as compreensões dos processos de liquefação e volatilização que estão em curso intenso no mundo individualizado. Tampouco tem sido fácil compreender que poderes estão em atuação na hegemonização do controle do Estado, no aprofundamento dos cenários voláteis de ampliação e agravamento do império financeirista.
O mercado financeiro envereda para o boicote do Estado e a sua transformação em instrumento a seu serviço, como denuncia profundamente Florestan Fernandes (2009). Mas, primeiro, quer demonstrar a sua ineficácia, a sua inutilidade, invalidá-lo enquanto instituição social, retirando-o das ações e responsabilidades. Esse objetivo já está em implementação como estágio anterior ao controle absoluto pelas oligarquias econômico-financeiras de capital transnacional.
Exposto, nestas primeiras palavras, o itinerário da tematização, esta parte da reflexão compreende que governo é a ação dos três poderes do Estado, como pensados pelo Iluminismo: o executivo, o legislativo e o judiciário. Não há Estado moderno sem a interação, a harmonia e a independência destes poderes aqui compreendido como delegação da cidadania, de todos e de todas, onde se encontra o autêntico poder. A ação conjunta, porque acontece no horizonte de um mesmo Estado, e autônoma, porque implica a independência de cada uma dessas atuações, determina, regula, estabelece e organiza o funcionamento do Estado, como orienta a constituição de base filosófica moderna para o Estado.
Governo, desse modo, é responsabilidade conjunta, partilhada porque a ação do Estado se dá entre proposições, regulações e chancelas dos três poderes a partir das demandas coletivas. Essa condição explica ser o Estado uma instituição e nesse ponto parecem concordar Rousseau e Castoriadis. Não há, na democracia, poder que se sobreponha aos demais na estrutura do Estado, exceto as democráticas e republicanas demandas cidadãs. O pensamento liberal-iluminista que reestrutura o Estado coloca-o no dinamismo da modernidade e, parece, também, implantar princípios republicanos na sua arquitetura. Seja por Rousseau ou por Montesquieu, Voltaire, Diderot, Locke ou, mesmo, de Condorcet (2013), respeitadas as suas diferentes compreensões e propostas.
A crise do Estado é a estampa da crise generalizada que começa com o indivíduo pela sensação de liberdade que não seguiu acompanhada da autocrítica, da capacidade autorreflexiva e da aceitação ampla, em horizonte ético, do debate, do diálogo, e se alonga pelas instituições nas quais também existem indivíduos com caráter corroído, como caracteriza Richard Sennett (1999). A crise é generalizada porque atinge o cerne da condição humana na fronteira da ética, da ciência e das vivências. Esse parece ser o horizonte da crise que assola os indivíduos, os fragiliza e os corrói, desde o interior, na ânsia pela experiência da liberdade e atinge o Estado porque, como ensinou Rousseau, é o coletivo de cidadãos e cidadãs.
Em alguns momentos, liberdade significou, para a filosofia, a completa abnegação da racionalidade, da capacidade de discernimento humano. No momento em que a promiscuidade da consciência, da racionalidade, se alastra, devora a capacidade de autorreconhecimento dos indivíduos e estes passam a distanciar-se dos problemas visualizando-os apenas à distância e delegando os processos de solução. Parece que impera uma amenização na capacidade crítica das pessoas, um boicote, que as impede ou às dificulta de ver o lugar onde estão e de operar nele. Esta névoa torna-se mais densa à medida que interferências de ordem externa aos indivíduos atuam no fortalecimento das oclusões em processos desencadeados também por agentes de força como as mídias, as redes sociais, as tecnologias da informação, as ideologias, o hegemônico da cultura - que não é democrático - e um sistema que, diluído ou rarefeito na volatilidade enganosa das aparências e disfarces, alimenta-se ao promover e provocar as ignorâncias individuais, as incapacidades reflexivas e o desalento dos coletivos, as negações e abortar perspectiva de pesquisa, de formação, de educação.
Aqui reside um problema para a formação tecnológica: aprender a reconhecer o império da técnica como criatura do capitalismo (Camim, 2021) para controlá-la, bem como a seus efeitos nocivos para a autonomia, a emancipação, dos indivíduos, das instituições e dos coletivos.
Ao retomar o debate, reforça-se a ideia de que o governo do Estado não é exercido apenas pelo representante do executivo. O legislativo e o judiciário compõem, enquanto poderes autônomos, independentes, as parcelas de responsabilidade em todas as definições governamentais e em todos os rumos/conduções e decisões que emanam dessas representações. Deste modo, é inapropriado a qualquer dos poderes responsabilizar um ou os demais, excluindo-se dos compromissos pela situação, pelas escolhas.
Cada um dos três poderes da República, desde o iluminismo montesquiano (Charles-Louis de Secondat - 1689-1755 -, conhecido por Montesquieu que desenvolveu, no século XVIII, a Teoria da Separação dos Poderes relatada em O Espírito das Leis), é autônomo para exercer, em regime de democracia e independência, a sua parcela de poder para o qual foi constituído enquanto instituição. A gestão do Estado é obra dos três poderes e a eles recai a responsabilidade governamental sobre os seus rumos. Alegar não responsabilidade é omissão e, desse modo, já reconhecimento de erro, de falha, de ineficiência na gestão e descompromisso com o Estado, com a coletividade e desrespeito às vontades de todos e de todas.
Parece ser neste sentido que Sousa (2019), em texto on line adaptado pela autoria deste texto, explica que mesmo propondo a divisão entre os poderes, Montesquieu aponta que cada um dos poderes deveria se equilibrar entre a autonomia e a intervenção nos demais poderes. Pensa Sousa que, dessa forma, cada poder não poderia ser desrespeitado nas funções que deveria cumprir e, ao mesmo tempo, quando um deles se mostrasse excessivamente autoritário ou extrapolasse suas designações, os demais poderes exerceriam seu direito de intervir contra a situação desarmônica. Essas palavras remetem à ideia de que o Estado é o responsável pelas políticas públicas enquanto governança dos, denominados, três poderes. Assim, as políticas públicas têm condições de ser pensadas e demandadas tanto pela cidadania quanto propostas pelas instituições do Estado e por ele asseguradas enquanto governo do executivo, do legislativo e do judiciário, constituindo-se, desse modo, em ação de Estado e não de governos. A concepção de Estado educador aparece nesse debate. As políticas - que no sentido deste texto só podem ser públicas - para formação se encontram nessa redoma expostas aos descompromissos dos poderes, embora seja tarefa do executivo, é responsabilidade do Estado, de todos os poderes instituídos para governar.
Este debate se amplia e pede licença para mais um parêntese, pois não concebe o conceito de políticas públicas distante dos compromissos e envolvimentos éticos e políticos de todos os poderes constituintes do Estado. Aproveitamos, então, a perspectiva do diálogo para indicar a necessidade da compreensão ampliada de Estado como coletividade comprometida com todos e todas no esforço coletivo para a superação das crises e para o compromisso com a gestão porque concebemos o Estado como gestão de todos os poderes instituídos e instituintes, assim como pensa Cornelius Castoriadis. Ainda que brevemente, elencamos duas razões para pensar deste modo: 1) a política - pois os indivíduos vivem em uma sociedade e ela, necessariamente, precisa ser ampla, considerar e envolver, ainda que em medidas variadas, o coletivo; 2) a responsabilidade é de todos os poderes que no determinado momento, respondem pela governança do Estado. Esse parêntese vincula a concepção de Estado e governo com o compromisso da formação ampla, do Estado educador e garantidor do acesso aos bens e serviços a cada um/uma de seus integrantes.
Reacendemos a ideia da equidade como forma de justiça social porque a precarização do mundo econômico, social e político que reflete na capacidade do Estado e na demanda da sociedade por formação, projeta-se como o grande assombro dos incertos tempos vindouros; passa, necessariamente, pela crise ética, crise de compromissos, de consciência e, mesmo, de moral. A moral é compreendida, nesta reflexão, como o código de normas legais, explícito e objetivo, de conhecimento, praticamente, universal; o sentido de ética, buscado em Adolfo Sánchez Vásquez, se dirige à crítica aos costumes vigentes, hegemônicos e hegemonizados e à proposição de novas atitudes, compreensões e perspectivas mais satisfatórias para a vida em sociedade e a existência ocupada em atender demandas coletivas e individuais. Por crise compreende-se a diluição de valores, sentidos e compromissos com a coletividade e ausência de novas concepções que acolham as exigências da população que compartilha um determinado período da história humana e nele interfere e deixa suas marcas. Assim como o interregno sugerido por Gramsci e, a partir dele, por Bauman.
O Estado é ainda o porto seguro para as populações empobrecidas. O Estado republicano é a instituição com a legitimidade maior até o momento para prover os valores universais e assegurá-los às maiorias despossuídas, com condições de atuar na contra hegemonia da burguesia ocupada na defesa de seus interesses (Touraine, 2006, p. 29; Fernandes, 2009), quer seja, controle financeiro, técnico, cultural, econômico e legal das sociedades. A autonomia só é concebível em um contexto de Estado de Direito, portanto, não é admissível a autonomia que force o distanciamento com o coletivo, com o indivíduo, com as instituições (Touraine, 2006, p. 119-167) validadas como necessárias para a regulação social e potencialização da realização individual. Nessa linha de pensamento, a autonomia dos três poderes do Estado liberal/iluminista não pode ser absoluta, pois não é onipotência.
O Estado Democrático de Direito não pode colocar a autonomia dos poderes na condição do absoluto, porque aí a eleva ao assombro totalitário e, nessa condição, exclui as possibilidades de ajuste necessárias baseadas nas demandas cidadãs, na coletividade que o constitui, na ação instituinte. Enforca o diálogo e, com ele, a democracia e a concepção de República. A autonomia dos três poderes está submetida ao princípio maior da dignidade humana, da vida. Sempre que a vida estiver ameaçada o conceito de autonomia e equidade precisa ser advogado. Isto é previsão tácita do Estado Democrático de Direito ou, como escreveu Rousseau, da vontade de todos. É nesse âmbito que o debate sobre o Estado aparece nesse ensaio, como uma possibilidade de garantir a plenitude dos direitos de segurança e liberdade cidadã. E isso implica o sentido maior da vida.
A autonomia entre os poderes se dá na dimensão da consecução daquilo para o qual foi constituído o Estado sem a interferência limitadora de outros poderes ou autoridades que inibem as ações legitimamente demandas pelo coletivo, mesmo que a vitalidade das instituições seja constante tensionamento e, enquanto tal, exigente de permanente repensar, reinstituir. O sujeito instituinte, na compreensão de Castoriadis, se apresenta aqui. O Estado e a República são dinâmicos à medida que é possível operar na qualificação das instituições e nas suas atuações e, não haja um sentido definitivo, teleológico.
Tanto em chave ambivalente quanto em análise de base solidária - não excludentes - os critérios precisam ter constância no primor. Esta compreensão sugere a necessidade da formação, do processo educativo que opera na preparação das gerações com as tradições necessárias para a continuidade e qualificação da vida, da existência, porque pensa a condição humana, quanto na educação do próprio Estado, de seus poderes, atores e atrizes que o instituem. Os poderes - executivo, legislativo, judiciário - são instituições responsáveis pelo Estado sem supremacias, mas com independências de ação e de compromissos. Esta autonomia precisa ser reconstruída e validada socialmente no sentido da ação própria, pertinente, específica, de cada uma dessas partes do poder. A superação da crise exige a constante e urgente repactuação porque há responsabilidades específicas para cada um desses poderes.
É suposto, portanto, que haja, igualmente, corresponsabilidades pelas consequências das ações, decisões e/ou omissões, escolhas e projetos, de cada poder na perspectiva de que o poder legítimo é do povo. Necessário e urgente repensar as concepções e ações dos poderes instituídos com o objetivo da garantia de vida e dignidade a cada indivíduo como um componente do Estado. Compreender, como ação formadora para a realidade tecnológica, também no debate de Bauman, traz à tona que [...] ‘El capitalismo digital es la fase de la economía en la que el mercado es impulsado y dinamizado por plataformas digitales que generan nuevos ciclos de acumulación de capital” (Camin, 2021).
Uma formação tecnológica atenta a esse projeto hegemônico, redesenha a possibilidade da retomada dos controles e da essencialidade do Estado, destronando decisões e direções dadas pelo capital/mercado e classes aristocráticas que se apossam do espírito do Estado e ocupam também o espírito dos indivíduos no sentido de boicotar ações e reações e suprir o pensar/a reflexão e suas capacidades de compreensão e autocompreensão acerca dos contextos, situações, condições, possibilidades e perspectivas. Da mesma forma e com a mesma intensidade e volatilidade, a capacidade de cada cidadão e cidadã de reconhecer-se enquanto Estado.
Considerações Finais - Ação do Estado na definição das políticas públicas: uma compreensão crítica a partir da formação para o mundo tecnológico
As teses suscitadas neste ensaio indicam a necessidade de compreender o mundo compartilhado pelos indivíduos, nesse momento das experiências da humanidade, e sua constituição histórica pelo crivo de um paradigma plurivalente. Deste modo, identificar que aparências não são essências, necessariamente, e que o oposto também não se afirma, tanto no imaginário quanto no concreto, desperta para uma compreensível essencialidade da República: a dialogicidade.
Parece que a partir das ágoras ainda há possibilidades instituintes do espírito do Estado, não como absoluto em Hegel, mas como instituição pública para todos e todas. Nesse princípio se fundamentam e se asseguram as políticas públicas, inclusive a formação tecnológica que transcende o horizonte digital, técnico, on line, remoto, das máquinas hardwares e softwares para estabelecer que tecnologia também significa pensar de modo cada vez mais arrojado, rico em sentidos, com novos métodos, possibilidades e perspectivas porque se ocupa em pensar técnicas para qualificar as vivências, relações e ações.
Na perspectiva deste pensamento, se apresenta urgente a proteção das universidades e escolas “contra las nuevas formas de control digital” (Camin, 2021), pois, quando se pensa em formação tecnológica e se analisa a tecnologia pela sua manifestação digital, computacional e midiática apenas, surge a segurança tecnológica como uma consideração inflamada para ser tratada no âmbito das política para a educação e das necessárias atenções do Estado para não perder a sua condição de regulador republicano responsável pelo público e o indivíduo. A grande maioria absoluta dos dados científicos, por exemplo, é veiculada em plataformas de capital privado localizadas em nações enriquecidas monopolizadoras das informações, estreitamente conectadas e comprometidas com empresas transnacionais.
A considerar que a revolução tecnológica, midiática, digital e computacional não tem indícios de interrupção, a formação tecnológica é convocada a pensar a segurança de informações, tanto na veiculação, transmissão, quanto no seu armazenamento e manipulação como elementos essenciais na defesa e manutenção das soberanias, especialmente a científica, das nações, dos Estados, e a construir perspectivas para as pessoas todas de uma sociedade.
Parece ser nesta direção que as universidades e os/as pesquisadores/as intensifiquem o desenvolvimento de seus próprios ambientes virtuais de ensino, de formação e construção do conhecimento e de armazenamento de dados: todos e todas precisam estar inseridos na compreensão, manipulação, uso/apropriação e desenvolvimento das tecnologias nas diversas áreas de suas manifestações e interferências, sob a legitimidade do Estado e seus poderes constituintes. Justamente porque não parece difícil perceber que “El capitalismo a lo largo de su historia ha logrado captar innumerables aspectos de la realidad ajenos a la esfera comercial para convertirlos en mercancías. Los cercamientos de los bienes comunes o la creación de ‘mercancías ficticias’ son buenos ejemplos de ello” (Camin, 2021).
A tecnologia, nesta reflexão, é pensada como campo de acesso a todos e todas para que, entre outros tantos horizontes, possa ser conhecida e controlada e oportunize o crescimento pessoal, relacional e científico do coletivo humano e evite riscos como o fim da espécie humana, a destruição do planeta e a vulnerabilização da vida.
Para Carlos Rodrigues Brandão (2019), o grande problema é que nós, humanos, estamos vivendo uma luta que, no momento, não é nem entre socialismo e o capitalismo, mas entre modelos de capitalismo e perceber esse engodo tem se mostrado complexo em função, também, da volatilidade ou diluição dos demarcadores de alertas e da simplificação de valores como a solidariedade, a dignidade humana, a justiça social, o diálogo, a política e a educação enquanto potencialidades para trabalhar e aprimorar a condição humana. O Estado, seus governos e poderes são instituições, na condição democrático-republicana, para reorientar as condições de possibilidade da continuidade da vida. Perceber que a tecnologia, do modo como o sistema a concebe e a controla, no momento atual da história humana, é componente elementar na formação que, por princípio e fundamento, tem no humano o seu sentido maior.
Parece assim, que a formação tecnológica precisa aprender a educar com a tecnologia, não para a tecnologia, pelo menos não no sentido que o mercado tem indicado, de submissão, aceitação e supremacia dos sistemas em detrimento dos indivíduos, das vontades de todos e todas. A formação tecnológica de cunho universitário, no lastro desse debate, sugere não “poner acento en el núcleo central del problema que es el propio sistema capitalista” (Camin, 2021), mas no humano, da vida, da potencialidade da formação e dos ideais de diálogo e solidariedade. Esta situação pode deixar uma potente questão para bons debates, na proposta de Freire (2021, p. 95), e envolve, necessariamente, a dimensão do Estado, da educação/formação, da política, da ética e da autonomia: “Será possível que a tecnologia tenha que possuir tanto pode sobre nós, apesar de nós a termos criado?”