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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.75 Curitiba oct./dic 2022  Epub 26-Dic-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.075.ds07 

Dossiê

Números entre letras: o arquivo pessoal de Malba Tahan

Numbers between letters: Malba Tahan's personal archive

Números entre letras: archivo personal de Malba Tahan

ANDRÉ LUIZ PAULILOa 

aUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. Doutor em Educação, e-mail:


Resumo

Este artigo apresenta a organização do arquivo pessoal de Malba Tahan. Inicialmente, analisa as relações entre os critérios de arranjo dos documentos, a história da instituição de guarda e a biografia do titular. Depois, examina-se a concepção de Matemática de Malba Tahan e seu lugar para a história da educação Matemática. O resultado é uma reflexão sobre as implicações da organização deste arquivo para a pesquisa e a discussão da Educação matemática atualmente.

Palavras-chave: Malba Tahan; Educação Matemática; Arquivos Pessoais.

Abstract

This article presents the organization of Malba Tahan's personal archive. Initially, it analyzes the relationships between the criteria for arranging documents, the history of the institution of custody and the biography of the holder. Then, Malba Tahan's conception of mathematic and its place in the history of mathematics education are examined. The result is a reflection on the implications of organizing this archive for research and discussion of mathematics education today.

Keywords: Malba Tahan; Mathematics Education; Personal archives

Resumen

Este artículo presenta la organización del archivo personal de Malba Tahan. Inicialmente, analiza las relaciones entre los criterios de ordenación de los documentos, la historia de la institución de custodia y la biografía del titular. Luego, se examina la concepción de la matemática de Malba Tahan y su lugar en la historia de la educación matemática. El resultado es una reflexión sobre las implicaciones de la organización de este archivo para la investigación y discusión de la educación matemática en la actualidad.

Palabras clave: Malba Tahan; Educación Matemática; Archivos personales

Introdução

A decisão de “conservar muitos papéis, cartas, retratos, cartões, etc...” que Júlio César de Mello e Souza tomou em 1917, aos 22 anos de idade, e realizou por toda a vida, resultou na constituição de um importante arquivo pessoal. Foi conservado pela família e doado em 2010, hoje está sob a custódia do Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da Unicamp (CME/FE-UNICAMP). Abrange o período de 1908 até 1974, quando o titular faleceu, e é composto de correspondências, fotografias, manuscritos de obras originais, álbuns de recortes de jornal entre tantas outras miudezas como bilhetes, cartões de visita, anotações e fichas de catalogação. A quantidade e variedade da documentação tanto nos dá uma oportunidade de acompanhar as nuanças da trajetória de vida de um professor quanto de alcançar uma das invenções da sua trajetória: Malba Tahan, heterônimo de Júlio César de Mello e Souza.

Nascido em 1895, diplomou-se professor e engenheiro. Foi professor na Escola Normal, escola em que se formou, e docente da Escola de Belas Artes, onde chegou a catedrático (cf. PAULILO, 2015; 2018). Inventou Malba Tahan como heterônimo, um sábio árabe 10 anos mais velho que seu criador, para também ser um escritor. Assim, começou na imprensa publicando contos no jornal A Noite, sob a conivência de Irineu Marinho, e publicou seu primeiro livro em 1925, Contos de Malba Tahan (cf. PAULILO, 2015; 2018). Seu maior sucesso editorial foi publicado em 1938 com o título O homem que calculava. Nele, Malba Tahan escreve sobre as aventuras de um calculista persa singular chamado Beremiz Samir na Bagdá do século XIII. O romance se organiza por meio da resolução e explicação, feitas pelo protagonista, de diversos problemas matemáticos1.

Malba Tahan foi para quem Júlio César de Mello e Souza atribuiu a autoria de outros muitos livros de contos com motivos árabes e também obras de divulgação da Matemática. Ainda pouco estudada, a profícua produção de Malba Tahan já reúne algum acumulado. Moysés Gonçalves Siqueira Filho (2008) com um estudo sobre a criação de Malba Tahan como autor-personagem foi quem primeiro se debruçou sobre o arquivo pessoal de Júlio César de Mello e Souza, quando ainda era custodiado pelo Instituto Malba Tahan. Após a transferência do seu arquivo pessoal para o CME/FE-UNICAMP, foi possível somar ainda outras análises dessa documentação. Leandro Piazzon Corrêa (2020) ocupou-se do modo de Júlio César de Mello e Souza trabalhar quando estudou a publicação, nos anos 1960, das antologias do Bom Professor. Claudiana Morais (2017) procurou compreender a atuação de Júlio César a partir de um estudo da rede de contatos que a correspondência permite identificar e, atualmente, a partir deste material, investiga as estratégias de inserção intelectual de Malba Tahan.

Os mais recentes esforços para compreender a produção intelectual de Júlio César de Mello e Souza e as condições de realização e circulação da obra precederam da organização do seu arquivo pessoal. É sobre essa organização da documentação no CME/FE-UNICAMP que deterei minha atenção aqui, sublinhando dois aspectos. O primeiro deles diz respeito aos aspectos operacionais dessa organização. Assim, inicialmente, a reflexão se detém ao modo como o quadro de arranjo deste arquivo pessoal foi definido e a classificação da documentação realizada para discutir o enfoque e aspirações da iniciativa de arquivamento de Malba Tahan. O segundo aspecto que se pretende destacar aqui envolve a percepção do significado da decisão de preservar o arquivo pessoal de Malba Tahan. Nesta outra parte, portanto, interessou pensar as implicações da organização deste arquivo e da pesquisa nele para as atuais circunstâncias da discussão da Educação Matemática.

“Tempo e circunstância”

A organização de arquivos pessoais envolve decisões difíceis. Multifacetados e complexos, os arquivos pessoais são marcados pelas “visões idiossincráticas e singulares dos indivíduos” (HOBBS, 2001, p. 126-135) e espelham ações praticadas ao longo de uma vida. Muitos, como Frank Burke (1997, p. 157), percebem a liberdade que, em geral, os curadores de arquivos pessoais têm para organizá-los de modo a atender às demandas de pesquisa. Ao censurar esse tipo de liberdade, Camargo (2009) adverte que, no entanto, “arquivos pessoais são arquivos”. Nesse sentido, afirma que:

Como resultado natural e necessário do processo que lhes deu origem, os documentos de arquivo obedecem a uma lógica puramente instrumental, ligada às demandas imediatas do ente produtor. Dessa condição decorrem postulados que afetam de modo similar, arquivos de instituições e pessoas: a necessidade de preservar a integridade do fundo e o sistema de relações que os documentos mantêm entre si e com o todo; o respeito à proveniência; a primazia do contexto sobre o conteúdo (ou do valor probatório sobre o valor informativo) nas operações de arranjo e descrição; e a impermeabilidade do arquivo em face do seu uso secundário (CAMARGO, 2009, p. 28).

De acordo com Camargo, a manutenção da qualidade probatória dos documentos em relação às atividades de que se originam é tarefa que se impõe na organização de arquivos pessoais. Assim, o modelo organizativo adotado deve responder, na medida do possível, à particularidade de cada espólio (MARQUES, 2007), e não se subordinar aos rótulos universais de caracterização, mas sem deixar de ancorar os documentos ao contexto em que foram produzidos (CAMARGO, 2009, p. 36).

Tendo em vista os princípios da arquivística e as exigências de método apontadas por Camargo, o arquivo pessoal de Malba Tahan foi organizado mantendo-se reunidas as partes constitutivas da sua lógica de acumulação. Júlio César de Mello e Sousa organizou três séries de álbuns. A primeira, que ele denominou de arquivo. Uma segunda de recortes de jornais. Por fim, a série de cadernos de viagens. Também chegaram pastas constituídas por materiais e esquemas de palestras e de obras originais. Há fotografias e correspondências que foram reunidas conforme a ocasião ser estritamente pessoal, tratar de matéria publicada em periódicos ou servir para recordar viagens. Há originais e versões preliminares de algumas obras, esboços, estudos e material utilizado no preparo dessas obras, além de documentos identitários que chegaram acondicionados em pastas que, presume-se, ainda guardavam algumas marcas de uso dos materiais por Júlio César de Mello e Sousa.

Nos cadernos de viagem, por exemplo, as correspondências, fotografias, convites e bilhetes foram reunidos de maneira cronológica. A preocupação de Júlio César de Mello e Sousa, neste caso, não era manter reunida a correspondência ou preparar álbuns de fotografias, mas documentar a estadia em determinada localidade. Outro exemplo são as pastas contendo originais que chegaram com uma organização que mantinha reunido diferentes versões, alguma correspondência com o editor e os conteúdos pesquisados para sua elaboração. Júlio César de Mello e Sousa também cuidou de conservar uma série de cadernos com os esquemas que utilizava para suas palestras. A organização do arquivo Malba Tahan no CME/FE-UNICAMP procurou reconstituir essa lógica para conservar o contexto da sua acumulação.

A recomposição, que se deu por meio de um minucioso trabalho de verificação das marcas de organização originalmente indicadas nos documentos, resultou da busca pelos nexos internos entre os documentos do arquivo conforme a abordagem contextual defendida por Ana Maria de Almeida Camargo e Silvia Goulart (2007, p. 43):

Para tratar os arquivos pessoais como arquivos, é preciso vê-los, antes de tudo, como “conjuntos solidários e orgânicos”. Não dispõe de autonomia, como os de biblioteca, nem prescindem da relação que mantem com os documentos que o precedem ou sucedem no âmbito da atividade para a qual servem de instrumento. Nesse sentido, apontam para uma abordagem que, necessariamente busca recuperar a “conexão lógica e formal que liga um documento a outro mediante vínculo de necessidade”, ou seja, a teia de relações (originária, necessária e determinada) que os documentos de um mesmo grupo mantêm entre si.

A proposta baseia-se em uma compreensão assentada nas proposições de Bruno Delmas (2006), Paola Carucci (1989), Luciana Duranti (1996) e David Bearman (1992) de que os titulares de arquivos pessoais “não geram sistemas próprios de informação, nem obedecem a regulamentos, ‘mas os contextos em que criam e usam documentos são perfeitamente identificáveis’” (CAMARGO; GOULART, 2007, p. 44).

O emprego desta abordagem na organização do arquivo pessoal Malba Tahan resultou em um plano de classificação baseado em 13 unidades de arquivamento. Cada uma delas reúne as séries de cadernos, pastas ou itens que se pode identificar como proveniente do arranjo produzido pelo titular e representa o contexto de acumulação do material ou, melhor, o modo como os documentos foram criados e utilizados por Júlio César de Mello e Sousa. Assim, o quadro de arranjo ao qual se chegou foi o seguinte:

  1. Cadernos de Arquivos

  2. Álbuns de Recortes

  3. Cadernos de Viagem

  4. Cadernos de Anotação

  5. Cadernos de Conferência

  6. Cadernos de Aula, Palestra e Conferência

  7. Pastas de Obras

  8. Pasta de Estudos

  9. Pasta de textos da crítica, homenagens e biografias

  10. Iconografia

  11. Avulsos

  12. Objetos

  13. Instituto Malba Tahan

A utilização de algumas unidades coletivas e comuns de arranjo, como “Avulsos” e “Objetos”, mostra as dificuldades de classificação e o desafio metodológico de qualquer abordagem dos arquivos pessoais. Entretanto, depreende-se da organização então obtida o esforço de preservação dos nexos internos entre os documentos e das circunstâncias que impregnaram de sentido a documentação ao longo do seu processo de acumulação.

Considerando os princípios e procedimentos arquivísticos que definiram a organização do arquivo Malba Tahan, penso que a abordagem contextual assegurou a integridade do acervo e, assim, como reivindica Camargo (2009, p. 30), “a manutenção da qualidade probatória dos documentos em relação às atividades de que se originaram”. Além da abordagem, entretanto, a organização de um arquivo pessoal implica considerar o que levou a se atribuir valor permanente aos arquivos de uma determinada pessoa e o que isso significa. Por um lado, concorda-se que essa é uma prática voltada para pessoas que alcançaram alguma expressão ou proeminência segundo os valores vigentes. Por outro, discute-se as aspirações que acompanham esse tipo de atribuição. De ambos os lados, as questões entorno da memorialização ou monumentalização de uma determinada persona impõem-se.

Júlio César de Mello e Sousa foi escritor proeminente entre fins dos anos 1930 e 1950, quando publicou a principal parte da sua obra. Publicou manuais em parceria com Cecil Thiré, Nicanor Lemgruber, Euclides Roxo e Irene de Albuquerque2 e, sob o heterônimo Malba Tahan, literatura e uma série de títulos voltados para a divulgação da Matemática: Histórias e fantasias da Matemática (1939), Diabruras da Matemática (1943), O Escândalo da Geometria (1947) e Matemática Suave e Divertida (1951), por exemplo. O título mais conhecido e que atravessou gerações de leitores foi O homem que calculava, de 1938, que, na obra de Malba Tahan, me parece um ponto de encontro único entre o escritor de contos e o professor de Matemática. De fato, títulos como Mil histórias sem fim (1940), À Sombra do Arco Íris (1941) ou O bom caminho (1947) são contos e fábulas que não exploram problemas matemáticos, mas morais. Diferentemente, Matemática Divertida e Pitoresca (1941) ou o Dicionário Curioso e Recreativo da Matemática (1940), entre os outros já citados, tratam a Matemática por uma perspectiva lúdica e, por vezes, jocosa. No livro O homem que calculava ambos os universos se encontram de forma sui generis.

No arquivo propriamente, não encontramos mais que os originais da tradução para o inglês e parte da correspondência de Malba Tahan com os organizadores desse empreendimento. Já a obra À sombra do arco íris conta com um caderno de recortes de jornal inteiro que, então, foi reservado para acompanhar a repercussão que o livro obteve junto ao público e à crítica. Não há nada parecido sobre a publicação de O homem que calculava. No entanto, isso não significa que não tenha existido, apenas que não pertence ao arquivo. De todo modo, apesar das lacunas, no arquivo pessoal, predominam as obras do titular. Há originais de diferentes manuscritos, vestígios das inventivas para a organização desses textos tais como verbetes, recortes e fichas. O arquivo também conserva muitas correspondências com editores e leitores.

Entre as fotografias, são numerosas aquelas que retratam as aulas e as conferências, capturando o heterônimo de Júlio César de Mello e Souza atuando como professor. A série de “flagrantes” das palestras de Malba Tahan e o registro da atenção das crianças ou da plateia confirmam as representações que sua obra fazia da docência. Malba Tahan (1967, p. 79) considerava que “o êxito do professor depende da extensão e da qualidade da vida, do amor e da seriedade que ele empresta à realização da sua tarefa”. Conhecido por suas diatribes contra a indiferença, negligência ou incapacidade de comunicar no exercício da docência, Malba Tahan protagonizava registros de muita intensidade, como visto na Figura 1.

Fonte: CME/FE-Unicamp - MT 11. 01.0007-10.

Figura 1 Malba Tahan em sala de aula 

A expressividade, a interação e a movimentação na aula que as imagens da ação de Malba Tahan expressam também fazem parte da sua obra. A representação de um professor capaz e diligente, além de íntegro, associava à obra escrita uma presença animada pelos recursos didáticos que Júlio César de Mello e Souza mobilizava para ensinar. Os jogos, o caderno dirigido e o trato com o público, além da ideia de um ensino da Matemática livre do ‘algebrismo’ são referenciais que em conferências, publicações, entrevistas ou correspondências sugerem uma coerência de propósito no trabalho de Mello e Sousa conservado no seu arquivo pessoal.

No caso da fotografia trazida como exemplo merece destaque a reação das crianças. A imagem captura um momento de vivo interesse e risos da parte das crianças na reação aos gestos de Malba Tahan, em um oportuno flagrante do fotógrafo. Por meio da fotografia, observa-se a presença do material escolar, mesmo sem se tratar de uma sala com carteiras escolares, e como ele apresenta-se apenas acessório, periférico à “aula”. No salão, indica-o esta imagem que escapa ao registro posado, eram alternados o exercício escolar e a interação entre professor e estudantes. Trata-se de um vestígio significativo da perspectiva da proposta de atuação de Malba Tahan.

Por outro lado, os contos que publicou inspirados por motivos árabe-muçulmanos ou cristãos respeitavam os pressupostos da moralidade e ordem social que, nos anos 1930 e 1940, determinavam o ideal de brasileiro postulado pelo projeto de regeneração social próprio à intelectualidade da época (PAULILO, 2018). De fato, nesse outro conjunto, Júlio César de Mello e Souza ambientou a vida e as histórias de Malba Tahan a partir de um universo ficcional especialmente atento aos estereótipos relativos ao Oriente e a sua ordem moral. Malba Tahan valeu-se da elaboração de álbuns de imagens, coleção de reportagens e excertos recortados de livros para a composição dos personagens e das tramas de seus contos. A presença de cadernos de estudo do árabe no material conservado no seu arquivo pessoal testemunham, igualmente, o esforço que depreendeu para a construção do universo ficcional a partir do qual trabalhava.

O foco da iniciativa de arquivamento de Malba Tahan parece mesmo ser a sua obra. Entre originais, cadernos, correspondências e álbuns prevalecem as atividades de escritor e professor. Mas com quais aspirações? Embora especulativa, uma vez que é difícil atestar os propósitos do desejo de memória do qual resultou o arquivo pessoal de Malba Tahan, a pergunta permite explorar as possíveis repercussões da sua preservação e organização para as discussões acerca da Educação Matemática atualmente. Ante a importância dos contos e da produção literária na obra de Malba Tahan, é preciso reconhecer que se trata de uma escolha de qual frente explorar. Considerando o contexto do acervo, refletir sobre o sentido de conservá-lo no CME/FE-UNICAMP suscitou pensar a relação que mantém com esta universidade. Portanto, a opção de privilegiar as contribuições de Malba Tahan para o ensino da Matemática é acompanhada de uma hipótese de estudo que anuncio aqui para desenvolver na próxima seção.

A hipótese é a de que, no Brasil, Malba Tahan tornou-se referência instituinte de uma percepção do ensino da Matemática que se ocupa da aprendizagem e sua memória presta-se a reforçar perspectivas semelhantes no debate sobre a didática desta disciplina atualmente. Preservar seu acervo, nesse sentido, contribui para afiançar uma tradição de esforços para a popularização da Matemática que associa os trabalhos de Malba Tahan (1895-1974), de Yakov Perelman (1882-1942) e Martin Gardner (1914-2010). Se há mesmo alguma razão nessa proposição, é possível pôr em uma perspectiva que extrapola o caráter pessoal do arquivo de Malba Tahan e o interroga do ponto de vista daquilo que representa socialmente.

Uma memória por fazer

Júlio César de Mello e Souza não foi docente ou pesquisador da Unicamp. Entretanto, seu acervo chegou ao CME/FE-UNICAMP desta Universidade três décadas e meia depois de seu falecimento. Sérgio Lorenzato, docente da Faculdade de Educação da Unicamp, que havia sido seu aluno em uma turma da Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES), e Juraci Conceição de Faria, então pós-graduanda, viabilizaram as tratativas para transferência da documentação entre a Unicamp, a família e a Prefeitura de Queluz, cidade onde o acervo estava localizado, na sede do Instituto Malba Tahan. Lorenzato, cofundador do Centro de Estudos Memória e Pesquisa em Educação Matemática (CEMPEM) e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Matemática nos/dos Anos Iniciais (GEPEMAI), ensinou didática aplicada ao ensino da Matemática entre 1974 e 1994 na Unicamp. Entusiasmado com os cursos ministrados por Malba Tahan e, também, por Benedito Castrucci, Manoel Javio Bezerra e Osvaldo Sangiorgi especializou-se na área da Educação Matemática. Atuou, nessa área, com C. Gaulin e G. Noelting na Universidade Laval-Quebec e, atualmente, tem se dedicado à divulgação da Matemática, como fazia Malba Tahan.

Autor de uma obra profícua acerca da Educação Matemática, Lorenzato (1995, p. 100-101) reconhece que não só “Malba Tahan era dotado de excepcional didática e imaginação” como também que “as recomendações, sugestões e crenças divulgadas através de seus livros estavam presentes em sua prática docente”. Considera-o um precursor:

Atualmente, nas tendências da Educação Matemática, a Resolução de problemas, a Redescoberta, a Aprendizagem com significado, a História da (e na) Matemática, a Lógica, as Aplicações, entre outros temas, podem ser facilmente encontrados, mas eles já estavam nos livros e nas aulas de Malba Tahan, há mais de 40 anos. (LORENZATO, 1995, p. 101).

Aluno de Malba Tahan, Lorenzato (1995, p. 102) atuou na mesma área e, além de precursor, reconhece no pensamento do mestre um marco da história da Educação Matemática:

Muito do que temos hoje foi plantado por ele há 30, 40 ou 50 anos; muitas de suas ideias estão presentes em nossos atuais livros didáticos, em cursos de formação de professores e em pesquisas universitárias... e principalmente, nas esperanças e expectativas dos alunos de hoje.

A compreensão de Sérgio Lorenzato da obra de Júlio César de Mello e Souza, do seu sentido e significado educativo, faz da sua participação nas tratativas para transferência do acervo Malba Tahan para a Unicamp um elo entre as pesquisas acadêmicas em torno da Educação Matemática e o professor-autor. Lorenzato oferece uma pista segura da configuração conceitual que o legitimou como um acervo universitário. É nesse sentido que a preservação desse acervo me parece tanto afiançar os atuais esforços de grupos que estudam a popularização da Matemática quanto associar-se ao acumulado de pesquisas de centros dedicados ao estudo da Educação Matemática. Central, nessa perspectiva, são os testemunhos de que Malba Tahan “tornava suas aulas muito agradáveis e, aos que as assistiam, a Matemática se apresentava compreensível e fortemente admirável” (LORENZATO, 1995, p. 96). Segundo Lorenzato (1995, p. 97):

Malba Tahan ensinava Matemática com arte, conhecimento e sabedoria, propunha novas alternativas para melhorar o ensino-aprendizagem de Matemática e divulgava suas ideias numa época em que prevalecia fortemente o dogma de que ‘para ser um bom professor de Matemática basta conhecer Matemática’ e também campeavam, sem questionamentos, inúmeros mitos tais como ‘Matemática é difícil’ (...)

Em torno dessa concepção de ensino da Matemática, além de grupos, laboratórios e centros especializados, os eventos e a Sociedade de Educação Matemática também estimulam atividades de pesquisa e estudos para “melhorar o ensino-aprendizagem de Matemática”. Nesse sentido, não me parece um despropósito considerar que a guarda do arquivo Malba Tahan em uma universidade pública e a pesquisa no seu acervo associam-se ao esforço de estudar alternativas prático-teóricas para a Educação Matemática. Pode-se acrescentar a esse entendimento que tomar Malba Tahan como precursor dessas alternativas é uma forma de colocar a questão da inovação no ensino da Matemática e de sua popularização em perspectiva histórica. Ao menos é nessa direção que pretendo desenvolver aqui a problematização apresentada como hipótese na seção anterior.

Atualmente, a discussão dos historiadores da Memória reconhece que ela é mais que uma fonte de estudo. Ricoeur (2007) chama a atenção para o papel de matriz que a memória tem para a história, uma vez que afiança a relação representativa do presente com o passado. Desse modo, são três os aspectos que penso contribuírem para afiançar uma tradição de esforços para a popularização da Matemática, implicados na problematização das iniciativas em torno da preservação do arquivo pessoal de Malba Tahan. Primeiro aspecto: a guarda de si, a fabricação e a conservação do arquivo pessoal que resulta do sentimento tão bem identificado por Nora (1993, p. 13) “que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações (...)”. Segundo aspecto: a ordem imposta aos arquivos por meio do arranjo e da descrição, conforme adverte Cook (1997, p. 141) tanto não é uma recriação isenta de valores como envolve questionar quem se está memorializando na ação de organização de um acervo. Terceiro aspecto: a relação com o passado, que utiliza a história como legitimadora das ações e cimento da coesão de um grupo, promove, como ensina Hobsbawm (1997, p. 21), sistemas de valores e padrões de comportamento.

Assim, penso que a organização do arquivo pessoal de Malba Tahan não só opera um remanejamento efetivo da memória, como também contribui para a configuração conceitual da qual foi o resultado. Por um lado, então, a atribuição de valor permanente ao seu arquivo e, por outro, o sentido simbólico dele ser deixado para a utilização futura dos historiadores da Matemática afirma a obra de Júlio César de Mello e Souza como criação original que expressa uma experiência específica, decisiva. Conforme lembra Ana Maria Camargo (2009, p. 29) “só se costuma atribuir valor permanente aos arquivos de pessoas que alcançaram alguma expressão ou proeminência”, segundo os valores vigentes.

No caso de Malba Tahan, o sucesso editorial que foi a publicação de O homem que calculava e o reiterado e reconhecido trabalho de apresentação da Matemática como matéria de estudo fácil, útil e simples conferiu proeminência ao professor como escritor. Apesar de ter escrito muitos romances, títulos como Histórias e fantasias da Matemática (1939), Matemática Divertida e Pitoresca (1941), Diabruras da Matemática (1943) ou Matemática Suave e Divertida (1951) resultaram, principalmente, das preocupações de Malba Tahan com a melhoria do ensino da Matemática. Uma síntese dessas preocupações é encontrada no livro Didática da Matemática, de 1961, quando, no primeiro volume, censura a afirmação de Stendhal de que “a Matemática é a região árida onde impera o raciocínio triste” nos seguintes termos:

O aureolado historiador francês conservava, naturalmente, da matemática, a impressão denegrida, inamistosa e falsa, que essa ciência recalca no estudante quando é lecionada pelos métodos absurdos ou anti-humanos. Não se compreende que uma inteligência privilegiada possa ver nessa ciência, tão cheia de belezas sublimes e de verdades que assombram, esse ‘lamentável mundo de aridez e do raciocínio triste’”. (MALBA TAHAN, 1961, p. 57).

Para Malba Tahan (1961, p. 60), os métodos absurdos e anti-humanos advém da mentalidade algebrista do professor de Matemática que se afasta “por completo da realidade” e é inspirado pela “preocupação constante de torturar seus alunos com problemas absurdos, trabalhosos, ou com equações dificílimas, atulhadas de denominadores e com largo sortimento de radicais, equações que afinal não oferecem utilidade alguma”. Sendo o algebrismo o principal mal do ensino e obstáculo para a aprendizagem da Matemática, os modos como um professor pode ainda contribuir para esse mal também são denunciados. Assim, a boa didática, segundo Malba Tahan, censura o emprego do método expositivo ou de preleção, do método da aula ditada, do método da leitura em classe e do método da lição marcada em favor do método heurístico. Também chamado de método da redescoberta ou de interrogatório, é definido assim:

Depois de motivar a turma, isto é, depois de despertar o interesse dos alunos, o professor, por meio de hábeis perguntas, bem encaminhadas, intercalando-as com pequeninos problemas, faz com que os alunos descubram propriedades, formulem regras, enunciem teoremas, deduzam fórmulas e estabeleçam princípios.

O aluno é levado a uma verdade passando, sucessivamente, por todas as fases que deveria passar para descobrir essa verdade (MALBA TAHAN, 1961, p. 239).

No arquivo pessoal de Malba Tahan foi reunida uma série de materiais, estudos, roteiros e originais, voltados à difusão desse método de ensino-aprendizagem da Matemática. Não é difícil confirmar, na documentação, os indícios que ligam sua obra aos métodos ativos também reivindicados pelo movimento de renovação educacional nos anos 1920 e 1930. A passagem pela escola normal, o material de estudo e as referências utilizadas na produção intelectual resultaram em um conjunto suficiente deles. Entretanto, a correspondência não indica proximidade com o grupo de renovadores que dirigiu o Instituto de Educação do Distrito Federal nos anos 1930 e controlou a política educacional da capital federal até 1935.

Já a leitura da obra de Malba Tahan, atualmente, beneficia-se do reconhecimento de muitos educadores da abordagem educacional progressista que então adotou, mas não escapou do contexto em que se realizou. Uma das dificuldades do método, reconhecida pelo próprio Malba Tahan (1961, p. 246), era servir melhor para turmas homogêneas:

Uma turma com elementos fracos, dificulta o emprego normal do método heurístico. Os alunos de baixo nível, sem base, sentem-se incapazes de acompanhar o raciocínio, a marcha do problema e atingir os objetivos visados. Essa diferença traz sérias dificuldades para o professor.

Fatores como maturação e ambiente social eram percebidos por Malba Tahan pela perspectiva do normal ou da carência cultural como fatores que interferiam na aprendizagem. Mesmo defendendo os métodos progressistas, como era o heurístico e também o do caderno dirigido e a prática do laboratório, reconhecia que não era possível adotar quaisquer métodos sem indagar antes: “Os estudantes são normais? São cegos? São enfermos? São adultos defasados? Qual é o ambiente social em que vivem os alunos?” (MALBA TAHAN, 1961, p. 187). Vale-se da citação de um trabalho de Viana para servir de argumento:

Infelizmente, o ambiente social é, na maioria dos casos, profundamente deseducativo. Diz, Ponsard, e com verdade que a família e a escola têm um inimigo comum a combater: o ambiente público.

Muitas vezes a própria família não cumpre o seu dever, quer por ignorância, quer por ininteligência, ou ainda por simples incompreensão. Quando assim a escola fica isolada em face de indivíduos já estragados pela família e pelo meio social. Esse fato levou Dewey a ponderar: É inegável que as instituições e costumes maus atuam quase automaticamente para dar uma educação má, que o mais cuidadoso regime escolar não pode evitar. (Viana apud MALBA TAHAN, 1961, p. 187).

Ainda que assim, a compreensão que Lorenzato tem de Malba Tahan como precursor de uma perspectiva, digamos, holística da Educação Matemática vai ao encontro da memória gerada deliberadamente pelo titular do acervo. Há estudos, material reunido, verbetes e fichas que atestam a inventividade da pesquisa em torno de curiosidades, recreações e jogos matemáticos e, também, de textos entrecortados de citações recolhidas e rearranjos de questões, problemas e desafios com números. Em trabalho recente sobre o arquivo pessoal de Malba Tahan, Leandro Piazzon Corrêa (2020, p. 55) percebe no manuseio reiterado da produção intelectual um modo de trabalho. Artigos relacionados à Matemática publicados na coluna “A escola e a vida”, por exemplo, traziam “temas e citações que estão presentes na obra Didática da Matemática, volumes 1 e 2”. Lopes (2012, p. 3), cujo primeiro livro de Malba Tahan que o atraiu foi justamente este, afirma:

Muitas das ideias deste livro não eram exclusivas de Malba Tahan, mas sim de um grupo que escrevia apostilas de didática da matemática para o MEC no final dos anos 1950, os materiais didáticos do MEC sobre Matemática eram assinados pela professora Ceres Marques de Moraes, por Júlio César de Mello e Souza (o Malba Tahan) e por Manoel Jairo Bezerra.

Inversamente, a presença de versões manuscritas, datilografadas, impressas em periódicos e editadas em livro de um mesmo conto ou texto, a existência de cópias recortadas e coladas em conjuntos de documentação diversos e o padrão de dispersão das cópias sugerem um trabalho continuado de compilação da produção. Sem descartar outras análises acerca das práticas de entesouramento de documentação pessoal em acervo privado, pode-se notar o reaproveitamento do material já produzido em outras publicações (PAULILO, 2018, p. 181). A despeito da decisão de juventude de guardar “todo e qualquer documento” da sua história (MELLO e SOUZA, 1918), a composição do arquivo pessoal de Malba Tahan sugere tratar-se de um arquivo de trabalho, sobretudo voltado para o reaproveitamento da produção intelectual.

Como avaliou Chartier (2009b, p. 19) em relação aos arquivos literários, a presença desses acervos “torna mais complexa a delimitação da obra em si e a separação entre os textos literários reconhecidos enquanto tal e os milhões de traços [escritos] deixados por um indivíduo”. Foucault (2001, p. 270) torna o problema explícito o suficiente quando se pergunta onde parar ao promover a publicação das obras completas de Nietzsche. Naquilo que foi publicado?

Os rascunhos de suas obras? Evidentemente. Os projetos dos aforismos? Sim. Da mesma forma as rasuras, as notas nas cadernetas? Sim. Mas quando, no interior de uma caderneta repleta de aforismos encontra-se uma referência, a indicação de um encontro ou de um endereço, uma nota de lavanderia: obra, ou não? Mas por que não? E isso infinitamente.

A singularidade individual que a existência de arquivos literários afirma, conforme percebeu Chartier (2009b, p. 20), produz efeitos importantes sobre as práticas editoriais e a crítica literária. Voltando, entretanto, ao cerne da problematização considerada aqui, penso que o arquivo pessoal de Malba Tahan favorece o processo de memorialização de um determinado modo de fazer da Educação Matemática de duas formas. Primeiro, porque reúne traços de um regime de produção textual próprio e singular, fruto de convicções frente às quais se pode admitir alguma equivalência com a atualidade, que acabou preservado. Assim, é possível ainda manter uma relação útil com o passado, legitimadora e promotora de valores e padrões (HOBSBAWN, 1997). Depois, a preservação daquilo que Nora (1993, p. 14) chamou de “referências tangíveis de uma existência que só vive através delas” confere dignidade ao memorável (NORA, 1993; RIBEIRO, 1997; ROBIN, 2016). Fama, reputação, proeminência, prestígio circunscrevem atributos de quem mereceu ter seu espólio intelectual arquivado. De ambas as formas, o arquivamento supõe distinção de uma experiência.

Considerações finais

Malba Tahan foi professor reputado e escritor profícuo, sua data de nascimento, em 6 de maio, tornou-se efeméride marcando, no Brasil, o dia nacional da Matemática. É celebrado, portanto. Possui obra reeditada e deixou arquivo pessoal que denota uma singularidade digna de lembrança. O trabalho em torno da sua memória, que tem como protagonistas a família, ex-alunos e leitores, faz do acervo o estoque material daquilo que podemos ter necessidade de nos lembrar. Já a organização que o arquivo confere a esse material procura conservar os atributos probatórios da documentação que, como ensina Camargo (2009, p. 31), são “próprios da sua relação com o contexto de origem.” A pesquisa em arquivos pessoais também se dá, assim, nas frestas que há entre “as certezas da existência do passado tal como assegura o testemunho da memória” (CHARTIER, 2009a, p. 23) e o arranjo produzido pela instituição de guarda.

As recentes pesquisas no arquivo Malba Tahan vêm mostrando a inventividade de um trabalho intelectual diuturno e estudando tanto a variedade tipológica e temática da obra quanto as relações de amizade, as opções intelectuais e os engajamentos de Júlio César de Mello e Souza. Também têm identificado, entretanto, as disputas, as controvérsias e as estratégias de inserção intelectual acerca das quais o acervo conserva vestígios que singularizam a experiência de Malba Tahan. Como quaisquer outros arquivos pessoais, o acervo de Malba Tahan é fragmentário e heterogêneo. Para a compreensão das fontes de que dispõe, tanto é preciso interpretar quem as conservou quanto quem a recupera para o presente (BORDINI, 2003, p. 139).

Mas como o propósito aqui foi problematizar o efeito da organização do arquivo pessoal de Malba Tahan e a memorialização de um determinado modo de fazer da Educação Matemática, sublinho dois aspectos ainda.

Os vínculos que associam o acervo à Faculdade de Educação da Unicamp passam pelo CEMPEM, pela perspectiva de Educação Matemática com a qual se trabalha em cursos de formação docente e pelos investimentos de um grupo de pesquisa voltado para o ensino da Matemática na Unicamp. E, conforme adverte toda uma literatura que se ocupa das instituições de guarda de acervos, a trajetória dos arquivos impregna a documentação recolhida de sentido, já que as razões de ingresso em uma instituição de custódia, por vezes, são alheias às que presidiram a formação do próprio acervo (NUNES; CARVALHO, 1993; CAMARGO, 2009). Nesse sentido, parecem-me significativas as condições de acolhimento do acervo Malba Tahan na Faculdade de Educação da Unicamp, pois reitera vínculos e expressa uma configuração conceitual, em alguma medida, admitida institucionalmente. Assim, os esforços para a popularização da Matemática e a crítica a métodos obsoletos e desumanos prevalecem como representação daquilo que foi preservado no arquivo pessoal de Malba Tahan, a despeito de tudo mais.

Complementar a isto, a decisão de preservar o arquivo pessoal de Malba Tahan participa dos esforços de uma época, que é a nossa, na qual, “com o abalo dos saberes constituídos, cada disciplina se colocou o dever de verificar seus fundamentos pelo caminho retrospectivo de sua própria constituição” (NORA, 1993, p. 17). Dessa perspectiva, não me pareceu despropositado considerar o arquivo pessoal Malba Tahan um elemento importante da exploração do passado da Educação Matemática e da busca dos seus fundadores. Portanto, para aqueles que no interior dessa “disciplina” reclamam uma história própria, Malba Tahan deixou uma série de traços que permitem desde a crítica até a celebração do seu trabalho de arranjo, o enredamento de números e letras para afirmar o valor educativo da Matemática e, mais ainda, para partilhá-lo.

Antes de concluir, cumpre reconhecer que não é sem artifícios e subterfúgios já bastante conhecidos da crítica histórica que um empreendimento assim logra algum êxito. Trata-se, de fato, de um trabalho de fabricação que, para se realizar, vale-se tanto do regime de crenças que governa a fidelidade da memória (CHARTIER, 2009a; RICOEUR, 2007) quanto do sentimento de que não há memória espontânea (NORA, 1993). É necessário também reiterar que, por outro lado, reconhecer em iniciativas assim a relação representativa do presente com o passado não significa fazer a história cativa da memória, no sentido que lhe dá Meneses (1992), mas tão somente verificar que “o testemunho da memória é o fiador da existência de um passado que foi e não é mais” (CHARTIER, 2009a, p. 23).

A Educação Matemática é hoje uma das frentes de disputa em que tem sido mais difícil vencer a precariedade do ensino disponível para a maioria da população no país. O lugar que se pode reivindicar para Malba Tahan nessa disputa tem a ver com o compromisso político que, ao fim, é mobilizar a memória para fins de legitimação de uma dada configuração conceitual do ensino da Matemática. Sem dúvida, o acolhimento do seu arquivo pessoal pela universidade foi parte desse esforço e a pesquisa histórica nele tem, necessariamente, de enfrentar essa documentação ciente dos significados implícitos que a “contaminam”. De todo modo, apesar das exigências da crítica e dos desafios que se impõe nas operações de arranjo e descrição dos documentos, o caso é daqueles em que o trabalho com a memória está a serviço da liberdade das pessoas, como já reivindicava Le Goff (2003, p. 471).

1De modo complementar, ver informações biográficas também em Pereira Neto e Salles (2012) e Santos (2019).

2Cecil Thiré, Nicanor Lemgruber, Euclides Roxo e Irene de Albuquerque eram referências importantes da área da Matemática e do seu ensino quando escreveram com Júlio César de Mello e Souza. Thiré e Euclides Roxo foram professores catedráticos de Matemática no Colégio D. Pedro II e autores de diversas publicações nesta área. Lemgruber, engenheiro, foi professor de Matemática Comercial na Escola Amaro Cavalcanti e, depois, ensinou no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Irene de Albuquerque foi catedrática de Prática de Ensino do Instituto de Educação e professora de metodologia da Matemática dos cursos de aperfeiçoamento do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos.

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Recebido: 19 de Julho de 2022; Aceito: 09 de Novembro de 2022

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