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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.75 Curitiba oct./dic 2022  Epub 26-Dic-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.075.ao07 

Artigos

As experiências nas práticas curriculares de professoras: águas carregadas em peneiras do tempo

The experiences in the curricular practices of teachers: water loaded in the sieves of time

ANA PRISCILA DE LIMA ARAÚJO AZEVEDOa 
http://orcid.org/0000-0001-5245-5814

LUCINALVA ANDRADE ATAÍDE DE ALMEIDAb 
http://orcid.org/0000-0002-3577-1716

aUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Caruaru, PE, Brasil. Doutoranda em educação contemporânea, e-mail:

bUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE), Centro Acadêmico do Agreste, Caruaru, PE, Brasil. Doutora em Educação, e-mail:


Resumo

O artigo intitulado “As experiências nas práticas curriculares de professoras: águas carregadas em peneiras do tempo” se insere no campo de discussões sobre currículo e práticas curriculares, em que, partimos da indagação: como as vivências de professoras egressas de uma universidade pública no agreste pernambucano se configuram como memórias e são trazidas à tona por meio da construção de documentos pessoais e (auto)narrativos. Assim, tivemos como objetivo compreender como as práticas curriculares de docentes se constituem enquanto experiências que podem representar uma desestabilização às prescrições curriculares hegemonizadas. Tivemos o auxílio de estudos sobre memórias de professores (Moraes, 2015) bem como traçamos essa discussão em movimento com a noção de experiência, a partir dos estudos de Derrida, como uma travessia e não como algo que se possa portar. Desta forma no percurso teórico-metodológico fizemos uso da escrita (auto)biográfica usando como fontes de construção de dados, uma escrita (auto)referencial, a partir da construção de documentos pessoais. Assim, tivemos como resultado a possibilidade de apreender as experiências enquanto um movimento não estático e apenas ligado ao acúmulo temporal, mas que se constituem como traços do vivido, estes traços perpassam as práticas curriculares docentes e estão presentes não só nos modos de desenvolvimento da aula como também perpassam de maneira privilegiada os processos formativos das colaboradoras da pesquisa.

Palavras-chave: Experiências; Memórias; Rastro; Narrativas (auto)biográficas; Práticas curriculares.

Abstract

The article entitled "Experiences in the curricular practices of teachers: water loaded in the sieves of time" is part of the field of discussions about curriculum and curricular practices, in which, we start from the question: how the experiences of teachers who graduated from a public university in the agreste Pernambuco are configured as memories and are brought to light through the construction of personal documents and (self)narratives. Thus, we aimed to understand how the curricular practices of teachers are constituted as experiences that can represent a destabilization to the hegemonized curricular prescriptions. We had the help of studies on teachers' memories (Moraes, 2015) as well as we traced this discussion in motion with the notion of experience, based on Derrida's studies, as a crossing and not as something that can be carried. As a theoretical-methodological course, we made use of (auto)biographical writing, using as sources of data construction, a (self)referential writing, based on the construction of personal documents. As a result, we had the possibility of apprehending the experiences as a non-static movement and only linked to the temporal accumulation, but that are constituted as traces of the lived, these traces permeate the teaching curricular practices and are present not only in the ways of development of the class but also permeate in a privileged way the training processes of the research collaborators.

Keywords: Experiences; Memoirs; Trail; (auto)biographical narratives; Curricular practices

Resumen

El artículo titulado "Experiencias en las prácticas curriculares de los docentes: agua cargada en los tamices del tiempo" forma parte del campo de discusiones sobre el currículo y las prácticas curriculares, en el cual, partimos de la pregunta: ¿cómo las experiencias de los docentes egresados de una universidad pública en el agreste Pernambuco se configuran como memorias y se develan a través de la construcción de documentos personales y (auto)narrativas. Así, buscamos comprender cómo las prácticas curriculares de los docentes se constituyen como experiencias que pueden representar una desestabilización a las prescripciones curriculares hegemonizadas. Contamos con la ayuda de estudios sobre la memoria de los docentes (Moraes, 2015) así como rastreamos esta discusión en marcha con la noción de experiencia, basada en los estudios de Derrida, como un cruce y no como algo que se puede llevar. Como curso teórico-metodológico, hicimos uso de la escritura (auto)biográfica, utilizando como fuentes de construcción de datos, una escritura (auto)referencial, a partir de la construcción de documentos personales. Como resultado, tuvimos la posibilidad de aprehender las experiencias como un movimiento no estático y solo vinculado a la acumulación temporal, pero que se constituyen como huellas de lo vivido, estas huellas permean las prácticas curriculares docentes y están presentes no solo en el formas de desarrollo de la clase sino que también permean de manera privilegiada los procesos de formación de los colaboradores de la investigación.

Palabras clave: Experiencias; Memorias; Sendero; Narrativas (auto)biográficas; prácticas curriculares

Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. (Manoel de Barros)

Introdução: “Tenho um livro sobre águas e meninos...”

Iniciamos este artigo, usando como epígrafe um trecho do livro Exercícios de ser criança, de Manoel de Barros, observar-se-á que os títulos de cada seção serão também retirados da mesma obra como inspiração para a discussão que aqui propomos. “O menino que carregava água na peneira” nos leva a pensar sobre como carregamos nossas experiências, será que é possível carregá-las como algo a que podemos portar? Ou a carregamos como água na peneira, que deixa rastros por onde passa? Se esvaindo e nunca sendo propriamente nossa?

Diante destes questionamentos, apresentamos nestas linhas introdutórias, as experiências sobre as quais nos referimos, a saber: as práticas curriculares docentes de professoras egressas do curso de pedagogia de uma universidade pública no agreste pernambucano. A experiência a que nos referenciamos não se dá na linearidade de acontecimentos, na qual aparentemente temos o tempo. Todavia, ocorre na compreensão de que mais parece que é o tempo nos tem, e não nós a ele. Assim, usamos o referido texto para ilustrar nosso entendimento sobre como construímos nossas memórias e como estas são advindas de nossas experiências menos palpáveis.

Isto posto, enfatizamos que este artigo se insere no campo de discussões sobre práticas curriculares docentes, onde questionamos como as vivências destas professoras egressas se constituem como experiências que podem ser evidenciadas por meio de suas memórias na produção de documentos pessoais. Neste sentido, nos debruçamos sobre a produção contextual de cada uma das colaboradoras de nossa pesquisa por meio da produção de documentos pessoais das mesmas onde as experiências se movimentam em torno das práticas curriculares.

Se buscarmos palavras sinônimas à experiência, encontraremos sempre escrituras que se voltam à ideia de prática, conhecimento, habilidade, ou seja, “ser” experiente ou “ter” experiência, são ideias análogas a um saber-fazer, a uma posse sobre um processo de produção ou feitura de algo, que por conseguinte, nos confere um status profissional ou pessoal, por exemplo, num currículo vitae se pede “tempo de experiência”, no dia a dia uma mãe pode afirmar “ter experiência” com crianças dado seu cuidado com um infante.

Isso nos reforça a ideia de uma experiência portável, algo que está ligado ao tempo que, ao que parece, podemos acumular, contudo (e isto não quer dizer que não estamos considerando que há de fato, uma dimensão temporal na experiência) nos propomos pensar experiência para além da dimensão já cauterizada no tempo ou no acúmulo de fazeres que nos conferem uma determinada expertise.

Assim, nos assentamos no entendimento de experiência em Derrida para pensá-la a partir da noção de “rastro” (DERRIDA, 1991), o rastro seria assim como sinais, marcas, ou trace (como afirma o autor) e com isto, a experiência seria como um percurso em que traços vão sendo deixados, assim,

[...] rastro aparece (sem aparecer) não como um conceito, mas como esta “estrutura sob rasura” das coisas, e a experiência entre aspas, ou experiência do rastro, não é a experiência de algo, nem de nada, mas um certo rastro de experiência, que é, por sua vez, a estrutura de toda experiência possível. (HADDOCK-LOBO, 2013, p. 265).

A experiência não seria assim algo palpável, algo que se pudesse portar ou ter, não seria então algo pleno, visto que para o pensamento de Derrida, não se pode pensar em qualquer plenitude. Por mais que estejamos referenciando a prática das egressas, não implica uma visão de plenitude dessas práticas, não nos interessa aqui as práticas como acúmulo de fazeres, mas como um acontecimento, a experiência vivida nas práticas, impossíveis de mensuração ou catalogação.

O livro sobre águas e meninos- que nos tem servido não só de epígrafe, mas de mote para tessitura do texto- é aqui em nosso artigo uma escritura de uma impossibilidade de plenitude sobre a experiência, as águas (rastros de experiência, ou experiência como rastro nas práticas curriculares) são levadas por meninos (neste caso, as professoras egressas) em peneiras que deixam rastros em todo o percurso que se faz.

Diante do exposto, organizamos o artigo em seções que se entrelaçam, na tentativa se ser uma exploração dos rastros deixados pelas experiências das práticas curriculares, assim a seguir, trazemos um entremeio de questões que se colocam como importantes na tentativa de compreender como essas experiências vão sendo vivenciadas e deixando os traços no trajeto, dentre esses elementos, compreendemos que a memória do indivíduo pode ajudar a perceber esses rastros.

Para além disto, traçamos uma discussão sobre práticas curriculares numa perspectiva de enfrentamento entre a massificação curricular e a tecnicização do professor e a emergência contextual da sala de aula. Em seguida trabalhamos a forma como cientificamente, propusemos as colaboradoras deste trabalho, a escrita de suas memórias para traçarmos a busca dos rastros da experiência, adiante apresentamos esses traços evidenciados por meio das memórias e por fim, trazemos os vazios infinitos de nossos achados.

“[...] Gostei mais de um menino que carregava água na peneira”: memórias e experiências carregadas na peneira do tempo

Como carregar água em peneiras? Fisicamente impossível, poeticamente não! Como atravessar experiências, que apesar de nossas, não se dão num vazio individual mas, pelo contrário são contextuais e partilhadas? É mesmo na (im)possibilidade que se inscreve nossa discussão. Falamos até aqui das experiências como rastros que são deixados no percurso e esses rastros, compreendemos, podem estar latentes nas memórias dos indivíduos. Aqui memórias e experiências se entrelaçam no desafio, ainda eminente, de não cair na armadilha temporal que nos chama a ideia de que ambas são portáteis e estáticas. Aqui o tempo é a peneira, as experiências e memórias são a água, que por onde formos, levamos, levamos o tempo, e o tempo nos leva, haja vista não podermos medi-lo ou controlá-lo em nossas gregorianas tentativas.

É comum relacionarmos memórias e experiências, no sentido de que habitualmente tendemos a tratar ambas como um repositório de lembranças, práticas, atividades, fazeres que se acumulam na linearidade de determinados acontecimentos.

A experiência é por vezes trazida como a ideia em que se assentam as tradições, as prescrições, fazemos algo de determinada forma porque a experiência nos mostra que esse é o melhor caminho, porque sempre deu certo assim, ou não fazemos algo de determinada forma por que outra experiência nos mostra que não é assim que se deve fazer, e com isto vamos fazendo de nossas experiências apoios sólidos, matrizes ou repositórios que acessamos deliberadamente. Neste sentido, Cunha e Ritter afirmam que “a experiência, muitas vezes, pode ser mobilizada como um fundamento, sobretudo quando enaltecida como transcendental e incontestável, num realismo pretencioso de circunscrevê-la como evidência” (CUNHA E RITTER, 2021, p. 11)

O que propomos pensar neste movimento de escrita é, justamente uma inversão dos sentidos historicamente instituídos para estes dois significantes. O que não implica dizer, que não entendamos que estes sentidos serão sempre, possivelmente, ligados às noções mais corriqueiras que os determinam. Nós, por outra via, não pretendemos negá-los, mas propor que os pensemos por via da (im)possibilidade (im)possível de captura plena, seja das memórias, seja das experiências, neste sentido, Cunha e Ritter (2021) afirmam que,

Com tal referência já podemos defender a experiência como constituída pelo discurso, como algo (im)possível, dado a ser feita de traço na ausência de qualquer plenitude ou presença. Já podemos também reivindicar a não simplicidade da política curricular, nos valendo igualmente da noção de alteridade.(p.10)

Assim, apresentamos as memórias como uma fuga, ou seja, um fazer que tem o privilégio de misturar em si, o passado, o presente e que embora não tenha e nem anuncie o futuro, o observa de forma menos insegura. Isto significa dizer que, um indivíduo, ao narrar uma memória que compreendemos estar intrinsicamente ligada às experiências, carrega consigo o tempo e o tempo também o carrega, isto implica dizer que memórias e experiências se coadunam pois a primeira nasce da segunda e a segunda transcende e transborda a primeira. Então, a experiência seria, assim como a escrita para Derrida,

Uma substituição que se opera, pois, como um puro jogo de rastros e suplementos ou, se queremos ainda, na ordem do puro significante que nenhuma realidade, nenhuma referência absolutamente exterior, nenhum significado transcendente vêm bordejar, limitar, controlar (DERRIDA, 1991, p. 34-35).

Não seria ela uma representação do real ou pleno, mas rastros que não podem representar uma pureza do acontecimento, visto que é sempre uma substituição desta realidade. Desse modo, questionamos como compreender esses rastros, esse trace, essa experiência carregada como água em peneiras, e encontramos na escrita de si, ou no que compreendemos como uma narrativa (auto)biográfica uma possibilidade de perseguir esses rastros, ainda que na impossibilidade de fazê-lo como um retrato do real.

“[...] Quis montar alicerces de uma casa sobre orvalhos”: tentativas de controle curricular frente a urgência da sala de aula

Temos tratado até aqui, as formas de pensar experiência por meio do aporte teórico derridiano, nos interessa expressar ainda, conforme buscamos enunciar, que a experiência a que aqui nos aproximamos diz respeito às práticas curriculares docentes realizadas cotidiano da sala de aula, evidenciando a fluidez desse espaço-tempo.

Nesta fluidez cotidiana, tenta-se “montar alicerces de uma casa” esse alicerce geralmente se dá por meio das tentativas de fixação de um currículo único, prescritivo e massificador, esquece-se ou desconsidera-se porém, que os contextos são “orvalhos” e que assim, sempre residirá no campo da política curricular, a impossibilidade de um fechamento que se dê de uma vez por todas. Neste sentido, Frangella nos aponta que,

A hegemonização de uma determinada ideia é dada através de articulações que preenchem parcial e provisoriamente. Assim, esse movimento articulatório se marca pela precariedade e contingencialidade. O que há são fechamentos provisórios, em que um particular assume a função de universal, uma diferença tornada equivalente, um significante vazio que tenta uma sutura final impossível. (2020, p. 3-4)

Assim, observamos que temos vivenciado inúmeras tentativas de controle curricular, podendo exemplificar aqui a BNCC e a BNC-Formação, na esteira destas tentativas, temos um discurso hegemonizado que postula uma suposta qualidade da educação. Compreendemos que esta intenção por definir qualidade leva também a uma busca por definir um projeto curricular que tenta definir qual “o melhor currículo” (Lopes, 2012) e assim, a noção de uma normatividade em que se busca uma hegemonia, a partir do que a autora, antes referenciada, chama de uma identificação fixa para o termo qualidade e o que deveria, diante disto, ser o currículo.

Esta identificação do que é qualidade e em consequência do que é currículo, serve de base para elaboração de currículos pautados numa ideia instrumental do conhecimento, e que por sua vez, se apresentam como soluções para os “problemas da educação” e como solução única para se atingir a tão perseguida “qualidade” da mesma. As concepções instrumentais em que muitos discursos tentam definir o currículo numa perspectiva fixa, de uma identidade para o currículo e consequentemente para os sujeitos.

Estes não são os únicos discursos, mas podemos dizer que são os que vem ganhado maior força, por se tratarem de políticas que afirmam uma solução para os problemas educacionais, por meio da homogeneização curricular.

Entre outros elementos, consideramos que estas políticas, são problemáticas não apenas do ponto de vista da ideia de um “comum” no currículo, como na posterior tentativa de controle do professor. Nas políticas de currículo há uma dimensão de regulação das atividades de professores e estudantes, assim, depreendemos que há uma normatividade, e há também uma dimensão de um currículo político, ou seja, uma dimensão que aponta para o fato de que, todos nós, ao sermos sujeitos sociais, estamos o tempo todo envolvidos na produção curricular. Este pensamento refuta a ideia de que professores, estudantes e todos aqueles que fazem parte do conhecido “chão da escola” ocupam um lugar de não produção de política curricular.( LOPES, 2013).

É neste sentido que consideramos que as práticas curriculares podem se constituir enquanto uma experiência que pode desestabilizar o currículo, promovendo rachaduras no engessamento das prescrições. A tentativa homogeneizadora de fundamentar as “casas” não conseguem efetivo resultado, apesar de constantes esforços, porque não se pode “montar alicerces sobre orvalhos.”

Percurso teórico-metodológico: “[...] a mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo para mostrar aos irmãos”

Se não é possível, fisicamente, carregar águas em peneiras, o que dizer sobre “roubar um vento e sair correndo para mostrar aos irmãos”? Estaríamos mesmo, numa tentativa do (im)possível, metodologicamente falando, pois assim como carregar a água em peneiras e roubar o vento, evidenciar experiências estaria na mesma (im)possibilidade. Se não portamos as experiências, se não podemos carregá-las como peixes em bolsos, se não podemos construir alicerces sobre orvalhos, como então poderíamos de alguma maneira, roubar um vento e mostra-lo a outrem?

Diante destas indagações cabe pensar que, algo que roubamos, não nos é de pertencimento, logo neste movimento, o que fazemos é um delito, o delito de narrar as experiências, não são elas nossa propriedade mas, no seu usufruto, podemos, de alguma forma e, até certo ponto, buscar os rastros de sua construção.

Assim, neste exercício, buscamos entender de que forma poderíamos, não apenas roubar a experiência, bem como narrar as mesmas, ou seja, mostra-las aos irmãos, e nesta (im)possibilidade, tivemos o encontro com as narrativas (auto)biográficas, estas por sua vez, numa perspectiva que não aponta para criação de modelos heroicos da docência, mas que busca entender o movimento da constituição dos fazeres dos professores.

Neste sentido, trabalhar com narrativas (auto)biográficas tem se constituído como um desafio frente as pesquisas em educação, posto que, por vezes, esta abordagem teórico-metodológica tem sido confundida com um apelo à solidão de um indivíduo bem-sucedido em suas práticas curriculares, por exemplo, e assim tem servido, em alguns momentos, como uma possibilidade de criação de um modelo pedagógico comum a ser acolhido e seguido. Ao contrário desta defesa da solidão das narrativas, nos apoiamos em autores como Cunha e Ritter (2021), que apresentam que as narrativas podem ser pensadas como uma “abordagem não linear e não individualista das vidas dos professores e professoras, voltada às dimensões constitutivas do processo educativo” (p. 10).

Não fazemos uma crítica à narrativa no sentido de evidenciar práticas curriculares exitosas, mas à incitação muitas vezes de uma ideia que fomenta a individualização dos professores, como se sua história de vida não fosse constituída, também, pelas subjetividades contidas nas relações que são estabelecidas com o outo contextualmente. Neste sentido, ao lançarmos mão do aporte teórico-metodológico que se assenta nas narrativas (auto)biográficas “nosso mergulho na relação com o outro explicita nossa crença na educação como um processo de subjetivação que só pode ocorrer na relação com a alteridade.” (MILLER; MACEDO, 2018, p. 951)

A narrativa não é, ou não deveria ser, a busca por um modelo, se por um lado é importante que se evidencie as práticas exitosas dos professores, esta evidência não poderia ser feita na busca de uma experiência canônica, que é, por vezes, marcada por mazelas, tomadas como naturais e próprias da profissão docente, mas que são, em grande medida, inerentes e partícipes do processo educativo, por via dos discursos que conferem a educação o papel salvífico e ao currículo o sobrepeso pela busca de uma postulada igualdade e promoção de justiça social (LOPES, 2012), estes elementos vão se coadunando e acabam por ressaltar e sobressair a ideia de dom. Neste sentido, “a investigação via narrativas não significa, por isso, como é romântico pensar, a defesa da escola como espaço por excelência da mudança curricular ou da verdade da política”. (CUNHA E RITTER, 2021, p.4)

O professor é assim, rotulado como sendo um indivíduo capaz de sofrer todas as intempéries que os sistemas educativos venham a ocasionar e ainda assim conseguir construir uma fortaleza de consideradas boas práticas, para assim, servir de modelo a quem está ingressando na carreira docente, ou para aqueles que, não se considera desempenhar excelente papel.

Assim não estamos dizendo que é irrelevante conhecer as práticas curriculares dos professores, este seria um ponto contrário ao nosso entendimento de que os docentes podem estar abertos a formação pelos pares, que uma prática curricular exercida por um professor poderá ser inspiração para outro, mas isto não implica dizer que serão modelos, ou que esta experiência pode se dar, ou se deu, num apelo incontestável a solidão e ao individualismo. Ao contrário, se dará na história coletiva da escola (MORAIS, 2015), na interação entre os sujeitos envolvidos nesse processo, nos contextos que extrapolam a perspectiva geográfica e demonstram ser construídos por múltiplos sujeitos e elementos. Os contextos, aqui estão relacionados com a ideia de que não há fronteiras definidas e dadas no mundo, os contextos são assim, construções discursivas do e no mundo (LOPES, 2015).

Compreendemos assim que, trabalhar com narrativas (auto)biográficas é tentar criar uma não essência das coisas, não se busca uma realidade incontestável ou plena, encerrada em si mesma, quando nos propomos a trabalhar com este aporte teórico-metodológico para compreender as experiências dos indivíduos, não buscamos capturar uma fotografia do rastro que é, ou que são, estas experiências, visto que, este traço se dá num percorrer, como “carregar vento e sair correndo para mostrar aos irmãos”, algo que é sempre evocado, mas que não posso carregar na intimidade de meu portar e a qualquer momento entregá-la a outro como um objeto, pois a mesma não nos pertence como herança deixada ou imóveis construídos, ela é vento, nos passa e passamos por ela.

Não buscamos assim, por meio das narrativa (auto)biográficas, uma realidade escrita e com isto “chegamos ao ponto que nos interessa nesta discussão, qual seja, a possibilidade de pensar a dimensão da experiência como o que não pode ser decifrado, repetido, reproduzido, medido, comparado, transportado” (CUNHA E RITTER, 2021, p. 8), nos apoiamos neste entendimento, sem cauterizá-lo como único ou melhor, mas como parte de nosso entendimento sobre as experiências, entendimento que, conforme explicitado ao longo do texto, tem por inspiração a noção de experiência em Derrida.

Diante dos entendimentos construídos, e após a tentativa de evidenciar como entendemos as experiências, passamos a discorrer como foi feita a propositura aos colaboradores desta pesquisa, para que por meio de suas memórias nos possibilitassem perseguir os rastros de suas experiências, no traço de água que escorre pela peneira do tempo.

Inicialmente, ou nem tanto, cabe explicitar que este trabalho se inspira e nasce de anseios outrora vivenciados pelas autoras, quer seja, nasce de trabalhos anteriores que nos permitiram estas compreensões já citadas, mas que também nos incomodaram e incentivaram à busca de novos traços que nos mobilizassem ao emaranhado que são as memórias.

Diante do exposto, enfatizamos que esta pesquisa foi realizada a partir da contribuição de quatro mulheres, licenciadas em pedagogia numa Universidade Federal no agreste pernambucano, assim, as quatro são egressas do mesmo curso e da mesma universidade, porém em marcos temporais diferentes, duas delas atuam na docência em vínculos efetivos em municípios do agreste, acessados por meio de concurso público e duas não se inseriram no mercado de trabalho, conforme poderá ser observado no quadro abaixo.

Quadro 1 Perfil das colaboradoras da pesquisa 

Identificação1 Formação Atuação
Adélia Pedagogia/ Especialização em psicopedagogia institucional e clínica Atua na rede pública municipal de Altinho- PE
Alice Pedagogia / Especialização em ensino de língua portuguesa/ Mestrado Atua na rede pública municipal de Caruaru- PE
Helena Pedagogia Não iniciou na carreira docente
Hilda Pedagogia Não iniciou na carreira docente

Fonte: elaborado pelas autoras (2022).

Para chegarmos a este quadro, foram distribuídos questionários on line, que possibilitaram uma triagem inicial dos possíveis colaboradores de nossa pesquisa, após recebimento das respostas chegamos ao número de quatro egressas do curso de pedagogia do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco, campus com quinze anos de fundação e fruto das políticas de interiorização das universidades públicas em nosso país.

Enfatizamos que o número de quatro professoras egressas, sendo duas atuantes e duas ainda em processo que antecede a inserção profissional, não se deu de forma pré-estabelecida, foi por outro lado, uma representação esporádica e sem intencionalidade, visto que advém da proposição dos questionários e posterior aceitação ao convite de colaborar com a pesquisa. Nosso objetivo se delineou em torno de compreender como as vivências das práticas curriculares destas professoras se constituem enquanto experiências, no sentido em que aqui nos apoiamos a partir de Derrida.

Diante do quadro de professoras, as quais situamos no espaço-tempo da formação e atuação, passamos a demonstrar como foi solicitado a cada uma delas que narrassem as experiências por meio de suas memórias. Pedimos que elas escrevessem uma carta onde a remetente e a destinatária fossem elas mesmas, ou seja, cada uma delas deveria escrever uma carta do seu “eu presente” para o seu “eu passado” onde evidenciassem seus processos formativos, sejam eles na formação inicial ou continuada, e também na atuação docente.

Desta forma, buscamos entender como as práticas curriculares destas egressas, que aqui poderiam ser práticas curriculares relativas aos seus fazeres cotidianos em sala de aula, bem como às práticas desenvolvidas durante a formação, em seus fazeres nos estágios, por exemplo. Isto porque, as experiências que se escolhessem narrar por meio das memórias poderiam ser, tanto de sua formação quanto de sua atuação, num movimento em torno de um fazer que não se pode mensurar, ou seja, não estávamos interessados na captura do real, mas buscávamos entender como elas “carregavam o vento”, como elas tentavam demonstrar por meio de sua escritura (auto)referencial, algo não portátil como as experiências.

Assim, chegamos a escrita de quatro cartas que nos encaminham aos rastros deixados pela água (experiência) carregados na peneira do tempo, tempo este que não é linear ou estático. Além disso, compreendemos que estes escritos se desenvolvem na perspectiva de um exercício em que se constroem documentos pessoais, escritas (auto)referenciais que se colocam como elementos também formativos, que fogem da lógica propriamente da escrita de planejamentos ou diários de classe e que dão conta de um fazer difícil de nomear. Passamos a seguir a nos debruçar sobre estas escrituras feitas das narrativas (auto)biográficas.

“A mãe disse que era o mesmo que criar peixe nos bolsos”: a (im)possível (im)possibilidade da captura plena da experiência

Na (im)possível (im)possibilidade de se ter uma visão plena do que aqui nomeamos de experiência, no âmbito das práticas curriculares, nos coube o desafio e o exercício de pensar como movimentar a memória em torno da escrita de documentos pessoais. Por vezes, diante da emergência da sala de aula, os professores se detém apenas aos registros de planejamento ou avaliação, e são sufocados pela rotina que a escola oferece, há um deslocamento de todo esforço de registro para uma função que, importante e pedagógica, se torna meramente burocrática.

Se perde, dessa forma, a poética da sala de aula e do trabalho do professor, enquanto movimento de escuta e aprendizagem, isso não quer dizer que a reflexão inexiste, ela permanece, contudo perde-se a possibilidade de um registro, feito pelos professores, desses elementos que se constituem enquanto experiências, elas vão ficando guardadas nas memórias, por não caberem em relatos técnicos.

Essas memórias não perdem seu caráter fugitivo, elas são muitas vezes advindas de experiências que burlam as prescrições curriculares, mas difíceis de ser nomeadas, vão sendo carregadas como águas em peneiras, ventos ou peixes nos bolsos, vão sendo assim vividas e (re)vividas. De acordo com Moraes (2015) “Professores em seus escritos dão notícia desse senso prático, difícil de nomear, porque no fundo não está explícito na consciência ou no discurso, mas presente nos infinitos modos de conduzir a aula”. (p. 110), deste, emerge a compreensão de que narrar as experiências pode se apresentar também como um movimento que enfatiza fugas às prescrições curriculares.

Apesar da compreensão de que as experiências não podem ser portadas ou transferidas, entendemos que podem ser registradas, poeticamente, com o auxílio da escrita (auto)referencial, onde ao (auto)narrar-se, o indivíduo, sujeito da ação, individualmente e em relação com todos os aspectos que participam de suas experiências, trabalha objetivamente e subjetivamente nas escolhas que fará ao decidir o que é considerado como experiência e que emergirá de sua memória, assim dizemos que narrar experiências por meio de memórias não é o simples ato de rememorar, mas implica um movimento de reflexão sobre a ação.

Neste movimento, as colaboradoras de nossa pesquisa se envolveram no desafio de produzir documentos pessoais, documentos que fogem a lógica do prescrito, onde ficariam à vontade para trazer suas experiências sem amarras burocráticas, isto nos possibilitou conhecer os “peixes criados em seus bolsos”, nesta (im)possibilidade de nomear as experiências.

Inicialmente, em nossas análises, cabe destacar que não estamos nomeando a experiência do outro, ou como muitas vezes se pensa, não estamos dando voz às professoras, elas têm voz, não precisamos ou podemos conferir ao outro algo que lhe é inerente, o que propomos foi ouvir essa voz, sentir esse “vento” que perpassa suas práticas curriculares e que elas tentam mostrar.

Foi perceptível que a forma como a escrita dos documentos pessoais foi pedida, em estilo de carta, levou as nossas colaboradoras a um tipo de escrita ainda mais poética, como podemos perceber nos trechos da carta de Adélia e Hilda:

Com tua força e capacidade, sei que daí onde olha existe muito medo, insegurança, mas saiba que você vai alcançar o que sonha, lembra que cada um tem seu tempo, sua história, e você trilhará um caminho bonito, de autoconhecimento, de batalhas, de estudos, de transformação. Tuas inseguranças serão menores, ainda existem, mas é o que dá o frio na barriga. Aaah você vai se descobrir muito na profissão, ser professora para você será realização, você vai amar o que faz, ao ponto de não se ver distante da formação de indivíduos, com isso você se constrói também. (ADELIA, trecho da carta, 10/06/2022)

Querida “eu” estudante do passado, venho por meio dessa carta descrever o seu caminho formativo, o qual fez com que o hoje se configure de tal modo. Inicio enfatizando que o caminhar nas experiências formativas foi recheado de dúvidas e de aprendizagens perante as oportunidades que surgiram. (HILDA, trecho da carta, 16/06/2022)

Esta forma de escrita, evidencia que, diferente de diários e registros, a carta auto recebida tem a sutileza de demonstrar as sensações, os sentimentos de quem escreve, mas que embora seja íntima, demonstra também a relação que se faz com a profissão, a profissionalidade vai aflorando na ideia de uma relação entre si e o outro, ou seja, os seus saberes e fazeres vão se materializando por meio de sua prática (GONÇALVES, ALMEIDA E LEITE, 2018), a professora se compreende próxima e partícipe da formação do outro, não em termos burocráticos, mas num entendimento de que este processo a constrói enquanto profissional.

Em documentos burocráticos não seria possível ver a professora, senão um técnico que ao preencher espaços, não se preenche a si mesmo. Isto não implica dizer que, conforme já vimos defendendo, essas ações não façam parte do trabalho do professor, mas a escrita de documentos pessoais traz uma outra dimensão formativa.

Talvez não fosse possível ver como Hilda demonstra seu entendimento sobre a formação como um espaço privilegiado se significação da profissão, para ela, que ainda não atua na docência, a poética aparece na forma como compreende que sua formação foi permeada por questionamentos ante as oportunidades que surgiam nesse percurso, nos remetendo a ideia de que as “memórias expressam projetos de vida e de profissão, com seus desafios, esperanças e temores”. (MORAES, 2015, p. 111), percebemos assim uma experimentação de anseios, medos e questionamentos que se deram nas escolhas que ela precisou fazer durante seu percurso formativo.

Nas experiências narradas foi comum a aproximação com o campo da formação, não só para as egressas que ainda não atuam na docência, como para aquelas que já atuam, observemos o movimento que elas apresentam na narrativa de suas experiências formativas:

Posso dizer que a universidade te abrirá portas, caminhos, e esperava que você aproveitasse mais, é incrível como quando chegamos na sala de aula tudo se ressignifica, você se pergunta o por que não leu mais, se dedicou mais lá. Mas você fez um bom caminho. [...]Caminha, acredita mais em você e não tem medo, esse é o caminho, ele te levará a um lugar de satisfação e prazer pelo que faz. (ADÉLIA, trecho da carta, 10/06/2022)

[...] na especialização em Língua Portuguesa - LP e suas literaturas, nesta que tivemos a oportunidade de nos aproximarmos de profissionais que atuavam na área de LP, com os quais muito aprendemos e também ensinamos, pois acreditamos que viver e estudar perpassam por essa relação de ensino, mas também pela relação de aprendizagem e compartilhamento de saberes. As aprendizagens que tivemos no curso do mestrado, sem dúvida nos trouxe e nos trarão frutos que certamente se somam a todas as experiências em sala de aula com nossos estudantes e a todos aqueles que contribuíram para nos tornarmos profissionais de referência para a educação, para nossos estudantes e para a sociedade. (ALICE, trecho da carta, 22/06/2022)

Venho por meio dessa carta, descrever um pouco sobre as experiências formativas que foram muito significativas, trazendo assim à memória a trajetória percorrida. Experiências que também me fizeram aproximar cada vez mais da área da educação, através do contato com o espaço escolar, o PIBID por exemplo, contribuindo para o desenvolvimento das aprendizagens dos diferentes alunos em seu cotidiano escolar. Experiências que ficaram marcadas e que fizeram abrir um leque de possibilidades, enxergando outros espaços para além da sala de aula. (HELENA, trecho da carta, 20/06/2022)

Portanto, todas essas experiências e memórias do processo formativo são reflexos de que a docência se constrói e está em constante transformação, aspectos que se fazem presentes na prática docente e que auxiliam o meu “ser” de forma significativa, compreendendo a importância da relação teoria-prática para a formação docente. (HILDA, trecho da carta, 16/06/2022)

Visualizamos nos trechos das cartas, as quais colocamos seguidas para que o leitor possa, assim como nós, mergulhar nesta escrita de forma poética, como as colaboradoras de nossa pesquisa significam a experiência da formação, seja ela inicial ou continuada, por se tratar de duas professoras atuantes e duas que ainda não estão inseridas no campo de atuação, poderíamos pensar que a forma de ver essas experiências apresentaria alguma linearidade para os casos específicos, mas o que fica aparente é que a forma como elas contextualmente vão dando sentido à sua formação, seja ela por meio da ressignificação das aprendizagens da formação inicial e da redescoberta da profissão por via da formação continuada (ADÉLIA), seja pelo entendimento de que a formação é um caminho a ser trilhado em busca de uma finalidade (ALICE), seja pela possibilidade de aproximar-se do campo de atuação (HELENA), ou pela possibilidade de reflexão sobre e na prática que a formação inicial venha a favorecer.

Nesta linha, Adelia vai nos dando conta de uma expertise que é construída por meio da formação, ressaltando a formação continuada como elemento que também influencia seus fazeres cotidianos, como percebemos quando ela afirma que: “Tua especialização servirá para te encontrar em si e em teu trabalho, é aí que você começa a perder medos e começa a ser mais você. A busca por mais conhecimento, por mais metodologias, materiais, jogos, fará teu trabalho acontecer.” (ADÉLIA, Trecho da carta, 10/06/2022).

Assim, a experiência de Adélia nos remete ao olhar para a imbricação teórico-prática que pode emergir de formações não-tecniscistas, desta forma inferimos que mesmo já atuante, Adelia ainda reforça o papel de suas experiências formativas na construção de sua profissionalidade.

Neste sentido, reforçamos que o espaço da formação, embora não sendo o único, tem um destaque nas experiências das professoras egressas, elas significam muito de suas práticas a partir da formação, mas num movimento de circularidade e relação teórico-prático que se dá não como fórmulas ou receitas prontas do fazer, mas na significação e ressignificação de sentidos e práticas.

Esta visão é ainda, reforçada por Alice, quando em sua narrativa vai mobilizando diversos elementos desde a sua formação para docência no curso de magistério, onde a mesma traz o entendimento de como os processos de ensino aprendizagem contribuem para o fazer docente. Ela afirma que: “Convém da mesma forma lembrar que iniciamos o caminho da docência desde cedo e assim, fomos aprendendo com os bons docentes que tivemos no ensino normal médio, na universidade no curso de licenciatura em pedagogia” (ALICE, Trecho da carta, 22/06/2022).

Além dos elementos que Adélia e Alice enfatizam, Helena e Hilda evocam ainda outros processos da formação, como a iniciação à docência em programas geridos pela universidade e também em componentes curriculares que estão relacionados à pesquisa acadêmica, revelando assim o caráter múltiplo da formação, conforme podemos ver nos trechos a seguir:

Diante disso, seja por meio dos diversos componentes curriculares cursados ao longo da graduação no curso de Licenciatura em Pedagogia, como por exemplo a Pesquisa e Prática Pedagógica, os estágios, as eletivas e entre outros que foram de suma importância para a formação. (HELENA, trecho da carta, 20/06/2022)

Destaco dois momentos que foram essenciais durante a graduação para a construção cotidiana do meu “ser” docente, o PIBID - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência e o estágio obrigatório, pois representam momentos de aprendizagens efetivas que contribuíram muito com a minha prática docente, tendo em vista que durante semanas estive nas salas de aula auxiliando professores/as e estudantes no processo de ensino-aprendizagem que através de decisões coletivas deixaram marcas essenciais sobre os saberes e fazeres da docência que se tecem no cotidiano, tanto em escola pública como na privada (HILDA, trecho da carta, 16/06/2022).

Visualizamos que a experiência da formação inicial, mobiliza elementos de reflexão e provoca nas professoras movimentos de reflexão sobre e na prática. Para além disso, pode também evidenciar como elas se posicionam criticamente diante das dificuldades encontradas no processo, como Alice e Helena, explicitam em suas cartas,

Durante a graduação aspectos negativos emergiram, como o fato de tentar conciliar os estudos com a rotina e o conhecimento das defasagens da profissionalização docente no Brasil, mas também muitos positivos e em sua maioria, sendo eles o acesso ao conhecimento científico, construção de relações humanas com pessoas que se tornaram importantes e abertura em novos espaços de atuação durante os estágios obrigatórios e o não-obrigatórios. (HELENA, trecho da carta, 20/06/2022)

Com esta, sinalizo um pouco da minha trajetória até o presente momento, posto que para trilhar os caminhos até aqui, foram feitas muitas escolhas a começar por “lançar mão” de determinados empregos que não correspondia a área para dedicação aos estudos na graduação na compreensão de que estudar seria uma semente que germinaria, cresceria como uma frondosa árvore e proporcionaria bons frutos. (ALICE, trecho da carta, 22/06/2022)

Os trechos apresentados por Alice e Helena, reforçam a ideia de que na formação, há a possibilidade de refletir sobre questões educacionais, ainda que não haja atuação no campo profissional, neste sentido escritos (auto)narrativos como o de Helena que ainda não está inserida no campo profissional, reforçam o entendimento de que este tipo de escrito expressam “a capacidade de percepção dos estudantes sobre as questões educacionais”. (MORAES, 2015, p. 111).

As memórias das experiências relativas ao processo de formação não se restringem, contudo, à formação docente, seja ela inicial ou continuada, mas perpassa também os processos de escolarização básica, como enfatizam as Helena e Hilda,

Entre os aspectos marcantes para a formação, destaco aqueles que contribuíram positivamente, ampliando ainda mais a visão de mundo não apenas voltado para o ensino, bem como para a vida. Muitos foram os conhecimentos aprendidos durante a formação, pois pude conhecer diversos teóricos e suas teorias, pesquisas, diálogos tecidos em todo tempo, experiências e saberes compartilhados e diferentes momentos enriquecedores.

Ao recordar as imagens de pessoas que se tornaram importantes e que sem dúvida, marcaram o processo formativo, trago à memória os próprios professores que através do período de escolarização e da graduação foram de grande relevância e que deixaram suas marcas tão significativas, seja por meio da didática, do profissionalismo, das palavras sábias e tantas outras qualidades que sempre serão lembradas.

Portanto, as imagens e memórias tecidas do processo formativo, me faz refletir sobre o quanto são importantes para a prática docente. Cada uma delas carregadas de lembranças marcantes que fizeram parte da minha trajetória enquanto discente e que serão valiosas em relação a prática docente. (HELENA, trechos da carta, 20/06/2022)

Durante a infância o espaço escolar era o lugar que eu mais gostava de estar, porque era possível imaginar, criar, aprender e construir fios condutores. Os/as professores/as que se fizeram presentes na minha escolarização representam esperança e são possibilitadores de sonhos, como sujeitos que possuem a hora marcada de encontrar passarinhos e fazer com que os seus voos sejam seguros em cada ciclo da vida, ensinando e aprendendo cotidianamente. (HILDA, trechos da carta, 16/06/2022)

Os elementos experienciados na escolarização, aparecem em maior ou menor proporção, como movimentos de impulso à formação de Helena e Hilda, percebe-se que ambas enfatizam que o espaço escolar se configura como um espaço de liberdade, de criação e reflexão. A prática discente se apresenta como elemento privilegiado no que diz respeito ao fazer que as mesmas experimentarão ao atuar na docência, subjetivamente se objetivam elementos que, mesmo inerentes à prática do discente, se relacionam com a prática docente. O que fica perceptível ainda, quando Hilda, traz a tona a experiência de atuação nos estágios obrigatórios, conforme trecho abaixo,

Ao refletir sobre as experiências com os estágios bem como o PIBID, nos quais reverberaram de forma positiva no que diz respeito a prática docente, pois através das vivências construídas e compartilhadas, dos diversos momentos em que pude participar e contribuir dentro dos espaços escolares, tornaram-se importantes para o saber e fazer docente, aprendidos também na teoria e prática.

Sendo assim, por intermédio dessas experiências, muitas coisas puderam ser ressignificadas, aprendidas e valorizadas, tornando o processo formativo cada vez mais enriquecedor. Cada momento vivenciado foi bastante fundamental para o desenvolvimento da prática docente, aprendendo no chão da escola e para além dela, com os diferentes sujeitos que lutam e buscam fazer a diferença na educação (HILDA, 16/06/2022).

Aqui nos é cara a ideia de que a experiência acontece de forma independente da atuação ou não, embora não se considere, na maioria das vezes, que as atividades realizadas em estágios ou afins, são experiência, esta visão cartesiana vai de encontro a ideia de experiência como traço, como rastro que se dá no trajeto, este trajeto aconteceu para Hilda e nos demonstra a importância do imbricamento entre teoria e prática, aqui percebemos mais uma vez que a experiência pode ser vista por outros prismas além do que indica para o acúmulo de tempo.

Outro elemento que ficou perceptível nas narrativas foi o olhar (auto)referencial de Alice para sua prática em sala de aula, quando afirma que,

[...] ao longo dos anos, nas turmas que tive a oportunidade de lecionar, adotei práticas outras como as de possibilitar aos estudantes, atividades que tivessem como foco o lugar deles como é o caso dos estudantes das escolas do campo, que falando sobre o Dia da árvore em aula, solicitamos que construíssem atividades a partir da colheita de galhos e folhas ou montassem árvore de natal com recursos da natureza. Estudamos sobre a água a partir da contextualização da crise hídrica que atravessavam, posto ser uma região de seca, entre outros elementos da realidade dos estudantes que buscamos focar em nossas aulas para fazer com que eles conseguissem aprender (ALICE, trecho da carta, 22/06/2022).

Assim, as práticas as quais Alice se refere se relacionam com saberes e fazeres que foram construídos ao longo de uma trajetória formativa que envolve elementos como a formação inicial, continuada e até mesmo em sua escolarização básica, o que fica latente em todas as cartas escritas neste exercício, observa-se ainda não há referência a uma prescrição para que se agisse da forma que se agiu. É nesse senso prático, emergente, de decisão que se dá um processo político de produção e não apenas consumo curricular.

Os elementos que Adélia, Alice, Helena e Hilda elencam em suas narrativas, são reveladores do olhar que elas mesmas lançam sobre suas práticas, nos levando a considerar que o que é vivenciado no contexto da sala de aula nem sempre seguirá somente as prescrições curriculares, a contextualização do conhecimento vai além da ideia de trazer conteúdos próximos aos estudantes e se releva nas sutilezas da aula, em práticas que, embora consideradas irrisórias, provocam uma rasura no fazer prescritivo e engessado, e com isto vão deixando rastros das experiências, não como uma captura plena do acontecimento, mas do acontecer do acontecimento, do vislumbre de um “carregar peixes nos bolsos”.

Algumas considerações- “(...) os vazios são maiores e até infinitos”

Diante de nosso objetivo, que neste exercício de escrita, foi compreender como as práticas curriculares de docentes se constituem enquanto experiências que podem representar uma desestabilização às prescrições curriculares hegemonizadas, pudemos apreender que as experiências são sempre relações, relações com o outro, com o mundo e não menos importante, relações consigo mesmo. Poder-se-ia dizer que este último, talvez, fosse a maior possibilidade de se perseguir os rastros de uma experiência.

Por meio da narrativa (auto)biográfica, que aqui não se fez com intensão de construção de modelos ou histórias individualistas, buscamos a compreensão de como as práticas curriculares se constituem como experiências, como se constroem e são trazidas a tona por intermédio de memórias. Por meio das narrativas das colaboradoras da pesquisa foi possível perceber o movimento entre a prática das mesmas enquanto docentes e como estas se relacionam num imbricamento que nega a ideia de acúmulo de tempo na efetivação de experiências.

As práticas evidenciadas revelam o olhar sobre a formação, inicial ou continuada, bem como para escolarização básica, como momentos de construção de experiências que se movimentam na realização das práticas curriculares, ou seja, as experiências destes espaços-tempos são sempre evocadas quando se fala sobre as práticas.

Foi explicitado ainda, como as experiências, ao serem narradas, demonstram o olhar (auto)referencial das colaboradoras, ao narrar-se ela se posicionam, se compreendem e transbordam fazeres que nem sempre se pode sistematizar. Isto não implica dizer, como já vimos afirmando, que existe uma possibilidade de capturar a experiência e portá-la ou transportá-la.

Quando dizemos que não há possibilidade plena da experiência estamos dizendo que esse registro opera no movimento do vivido mas que a escrita nunca será plena, mas uma representação, esta representação nos demonstrou, entre outros elementos, a não temporalidade fixa das experiências, o movimento entre formação e atuação, além a possibilidade de ser ela, a experiência, uma possibilidade de desestabilização à prescrição e ao engessamento curricular que opera na intenção de tornar meramente técnica e homogeneizar a prática docente no chão da escola.

Os entendimentos aqui apresentados, reforçamos, não tem a expectativa de se tornarem verdades absolutas, mas operam como um vazio, e estes “vazios são maiores e até infinitos”.

1Os nomes aqui escolhidos não são a identidade das colaboradoras, com a finalidade de preservar suas identidades, as nomeamos com nomes de quatro poetisas brasileiras, justificamos esta escolha porque neste trabalho, temos optado por uma vivência sempre poética.

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Recebido: 29 de Julho de 2022; Aceito: 04 de Novembro de 2022

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