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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.75 Curitiba oct./dic 2022  Epub 26-Dic-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.075.ao08 

Artigos

Reflexões sobre o Perfil dos Discentes Cotistas da UESB

Reflections on the Profile of UESB Quota Holders Students

MAISA OLIVEIRA MELO FERRAZa 
http://orcid.org/0000-0003-4672-1797

ENNIA DÉBORA PASSOS BRAGA PIRESb 
http://orcid.org/0000-0003-3924-4996

SOANE SANTOS SILVAc 
http://orcid.org/0000-0003-3807-1798

aUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitoria da Conquista, BA, Brasil. Mestra em Educação, e-mail:

bUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitoria da Conquista, BA, Brasil. Doutora em Educação, e-mail:

cSecretaria Municipal de Educação, Itapetinga, BA, Brasil. Mestra em Educação, e-mail:


Resumo

Resultante de uma pesquisa realizada na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) que teve como objeto de investigação o Programa de Ações Afirmativas, o artigo tem o propósito de apresentar e discutir o perfil dos discentes cotistas atendidos pelo programa. A pesquisa teve como orientação teórico-metodológica o materialismo histórico dialético. Estudos sobre a política pública educacional e ações afirmativas, dentre os quais, Hofling (2001), Gomes (2001), Fonseca (2009) e outros, ofereceram os subsídos teóricos para o estudo que envolveu discentes de quatro cursos da instituição. Os dados foram levantados por meio de questionários e entrevistas. A análise do perfil dos discentes cotistas participantes da pesquisa revelou, dentre os principais aspectos pesquisados, que a maioria foi constituída de jovens (79,8%), oriundos do próprio estado da Bahia (98,2%), cuja a representatividade feminina foi maior (55,4%). No quesito cor/raça, os declarados pardos representaram um percentual de 43,4%, seguidos de negros com 31,8%. Neste ponto, 2,3% dos discentes preferiram não se declarar, o que sugeriu a existência de um racismo velado. A maioria dos pesquisados possuiam, em seu grupo familiar, baixa escolaridade quanto à formação do ensino superior, revelando o aspecto “afirmativo” do Programa de Ações Afirmativas. Quanto à renda bruta familiar, mais de 83% possuiam renda de até meio salário mínimo a 2 (dois) salários mínimos, demonstrando que não possuem renda suficiente para se manter na Universidade e necessitam, assim, do apoio institucional. Se alterações estruturantes não ocorrerem, o acesso continuará sendo viabilizado, porém os segmentos historicamente excluídos permanecerão à margem.

Palavras-Chave Ações Afirmativas; Cotistas; Ensino Superior.

Abstract

Resulting from a research carried out at the Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) whose object of investigation was the Affirmative Actions Program, the article aims to present and discuss the profile of quota students assisted by the program. The research had as theoretical-methodological orientation the historical and dialectical materialism. Studies on public educational policy and affirmative action, among which Hofling (2001), Gomes (2001), Fonseca (2009) and others, provided theoretical support for the study that involved students from four courses at the institution. Data were collected through questionnaires and interviews. The analysis of the profile of the quota students participating in the research revealed that the majority were young people (79.8%), from the state of Bahia itself (98.2%), whose female representation was greater (55.4%). In terms of color/race, the declared pardos represented a percentage of 43.4%, followed by blacks with 31.8%. At this point, 2.3% of the students preferred not to declare themselves, which suggested the existence of veiled racism. Most of those surveyed had, in their family group, low education in terms of higher education, revealing the “affirmative” aspect of the Affirmative Action Program. As for gross family income, more than 83% had an income of up to half a minimum wage to 2 (two) minimum wages, demonstrating that they do not have enough income to maintain themselves at the University and thus need institutional support. If structuring changes do not occur, access will continue to be made possible, but the segments historically excluded will remain on the sidelines.

Keywords: Affirmative Action; Higher Education; Quota Holders.

Resumen

Fruto de una investigación realizada en la Universidad Estadual del Sudoeste de Bahia (UESB) cuyo objeto de investigación fue el Programa de Acciones Afirmativas, el artículo tiene como objetivo presentar y discutir el perfil de los alumnos cupos atendidos por el programa. La investigación tuvo como orientación teórico-metodológica el materialismo histórico dialéctico. Los estudios sobre políticas públicas educativas y acción afirmativa, entre los que destacan Hofling (2001), Gomes (2001), Fonseca (2009) y otros, dieron sustento teórico al estudio que involucró a estudiantes de cuatro cursos de la institución. Los datos fueron recolectados a través de cuestionarios y entrevistas. El análisis del perfil de los estudiantes de cuota participantes en la investigación reveló que la mayoría eran jóvenes (79,8%), del propio estado de Bahía (98,2%), cuya representación femenina era mayor (55,4%). En cuanto al color/raza, los pardos declarados representaron un porcentaje del 43,4%, seguidos de los negros con el 31,8%. En este punto, el 2,3% de los estudiantes prefirieron no declararse, lo que sugería la existencia de un racismo velado. La mayoría de los encuestados tenía, en su grupo familiar, baja escolaridad en términos de educación superior, revelando el aspecto “afirmativo” del Programa de Acciones Afirmativas. En cuanto a la renta familiar bruta, más del 83% tenían ingresos de hasta medio salario mínimo a 2 (dos) salarios mínimos, demostrando que no tienen ingresos suficientes para mantenerse en la Universidad y necesitan apoyo institucional. Si no se producen cambios en la estructuración, el acceso seguirá siendo posible, pero los segmentos históricamente excluidos permanecerán al margen.

Palabras clave: Acciones Afirmativas; Enseñanza Superior; Titulares de cuotas

Introdução

Este artigo traz um recorte de uma pesquisa de Mestrado intitulada “O Programa de Ações Afirmativas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) na perspectiva de discentes, docentes e gestores”, cujo objetivo geral buscou avaliar o alcance do Programa de Ações Afirmativas instituído pela UESB a partir da perspectiva de discentes, docentes e gestores. De forma específica, o estudo intentou conhecer a constituição das políticas de Ações Afirmativas para a educação superior brasileira; examinar o processo de implantação das Ações Afirmativas na UESB; caracterizar o perfil dos discentes cotistas; e, por fim, analisar a perspectiva dos gestores, docentes e discentes cotistas quanto aos mecanismos de acesso e às ações existentes desta Universidade, acerca das Ações Afirmativas. Este artigo restringirá em apresentar e analisar o perfil dos discentes cotistas atendidos pelo Programa de Ações Afirmativas da referida instituição.

Inicialmente será apresentado a metodologia utilizada na pesquisa e, posteriormente, será contextualizado a origem e definições sobre as Ações Afirmativas no Brasil, seguido de uma discussão que traça o itinerário das Ações Afirmativas na UESB. Na última seção, será exposto os resultados e discussão dos dados quanto ao perfil dos discentes cotistas.

Metodologia

Para a construção deste artigo utilizou o enfoque teórico marxista de modo a desvendar a realidade e perceber o real a partir dos movimentos contraditórios. Além disso, compreendendo o desenvolvimento histórico para a análise do real, possibilitou a compreensão da totalidade. Assim, a investigação foi desenvolvida tendo como orientação teórico metodológica o materialismo histórico dialético.

Paulo Netto (2011, p. 52) destaca-se que, para Marx, o método não é um conjunto de regras formais que se “aplicam” a um objeto que foi recortado para uma investigação determinada nem, menos ainda, um conjunto de regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme a sua vontade, para "enquadrar" o seu objeto de investigação. No caso do materialismo histórico dialético, o método está intimamente vinculado a uma postura, uma concepção de mundo, um modo de ser e agir. Sobre essa questão, Frigotto (1991, p. 77) esclarece

o método está vinculado a uma concepção de realidade, de mundo e de vida do seu conjunto. A questão da postura, neste sentido, antecede ao método. Este constitui-se numa espécie de mediação no processo de apreender, revelar e expor a estruturação, o desenvolvimento e transformação dos fenômenos sociais.

Para tanto, foi a partir das ideias de Marx que se originou um processo histórico real, ou seja, da expressão de um movimento social real. Neste contexto, o passado é indispensável para compreender o presente, porém é o presente que ilumina o desenvolvimento do passado, isto é, é a gênese (a origem) que se precisa conhecer, mas o conhecimento dessa origem não fornece o conhecimento do desenvolvimento, ou melhor, é o mais complexo que ilumina o menos complexo.

O enfoque materialista histórico-dialético possibilita o enriquecimento das reflexões sobre as políticas públicas educacionais, uma vez que o fenômeno investigado não é focalizado isoladamente, mas na conexão com os outros fenômenos que o cercam - questões legais, políticas, socioideológicas e sociais. Como lembra Frigotto (1991), o que fundamentalmente importa ao materialismo histórico-dialético é a produção de um conhecimento crítico que altere e transforme a realidade anterior, tanto no plano do conhecimento como no plano histórico social, de modo que a reflexão teórica sobre a realidade se dê em função de uma ação para transformar.

Para tanto, a fim de aprofundar sobre a Política de Ações Afirmativas, foi realizado um estudo bibliográfico para ampliação do teórico e conceitual sobre o objeto pesquisado, permitindo uma aproximação com as temáticas estudadas. Dentre os principais teóricos consultados, destacamos Mészáros (2005), Hofling (2001), Gomes (2001), dentre outros autores, além dos dados obtidos através dos Institutos de Pesquisas, a exemplo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). A partir deste marco teórico e, seguindo as orientações do materialismo histórico dialético, a investigação avançou buscando conhecer as particularidades do objeto estudado e suas relações com a totalidade da qual faz parte.

No intuito de se ter uma maior aproximação com a totalidade, estabeleceu-se, a seleção de 4 (quatro) cursos de graduação da UESB, campus de Vitória da Conquista, a fim de realizar a análise da perspectiva discente, no que diz respeito ao Programa de Ações Afirmativas. A escolha dos (quatro) cursos realizou-se diante o levantamento da concorrência do vestibular dos últimos 5 (cinco) anos (2014, 2015, 2016, 2017 e 2018) no campus de Vitória da Conquista, os dois cursos mais concorridos e os dois de menor concorrência foram, respectivamente, Medicina/Direito e Ciências Sociais/Geografia. Nesse sentido, os discentes que fizeram parte da pesquisa corresponderam aos com matrícula ativa destes 4 (quatro cursos), ingressantes de 2014 a 2018. Assim, considerando o período de ingresso a partir de 2014, totalizam 341 (trezentos e quarenta e um). Destes, por aceitação, 2 (dois) também foram entrevistados.

Com relação à seleção dos discentes, levou-se em consideração o fato de serem ingressantes pelo sistema de reserva de vagas e cotas adicionais dos cursos de maior e menor demanda de candidatos no vestibular da Universidade. Durante o ano, A UESB realiza um processo seletivo para ingressantes no 1º e 2º período dos cursos de graduação.

Cabe ressaltar que, mesmo a pesquisa tendo sido realizada no momento em que as aulas presenciais estavam suspensas em razão da pandemia do coronavírus (COVID-19), foi possível obter um retorno de 37,83% dos questionários encaminhados. Isso representou, em números absolutos, o total de 129 (cento e vinte e nove) discentes.

As Ações Afirmativas: origem e definições

O Estado brasileiro foi construído em meio a discrepâncias em que se forjou a existência de um segmento social que não era digno de participar da vida política. Assim, a sociedade fora genuinamente organizada por processos de desigualdades sociais oriundas não somente de uma herança de um passado escravista, patrimonialista, clientelista, mas sim, de um fenômeno mais complexo produto de fatores econômicos, políticos, culturais, filosóficos, ideológicos e legais.

E tais raízes histórica perpetuam em uma ideologia de superioridade de uma classe sobre a outra que é recorrente até os dias atuais e, por conseguinte, amplia as desigualdades sociais e raciais no Brasil. Neste processo de luta de classes inconciliáveis, os movimentos sociais fazem o embate constante em prol de um novo modelo de sociedade, que ora ganham, ora perdem, mesmo diante os vários embargos criados no decorrer da história, no intuito de favorecer a classe dominante na dupla exploração do capital.

A história da formação do Estado Brasileiro, caracterizado como um Estado de Classe, revela que a educação sempre foi reservada para atender a classe dominante, ao enfatizar a marginalidade e o descaso governamental com as populações historicamente excluídas.

Por conseguinte, a discussão sobre a origem das Ações Afirmativas é abordada de forma controversa por diferentes estudiosos do tema. No entanto, há um consenso conceitual, independente do contexto social do qual as políticas afirmativas na sua essência emergiram: estas constituem-se em mecanismos de redução de desigualdades historicamente construídas ou destinaram-se a prevenir que novas desigualdades se estabeleçam no tecido social, ao ter por base condições de gênero, raça, orientação sexual, participação política e religiosa.

No bojo desse contexto de desigualdades que revela a face mais marcante do Estado brasileiro, o predomínio do elitismo em todas as esferas sociais, que emergem as primeiras iniciativas quanto às cotas para o acesso ao ensino superior. Tais iniciativas se deram para atender aos interesses de “ruralistas”, de modo a garantir o acesso dos filhos e netos de fazendeiros às universidades com a Lei no 5.465, de 3 de julho de 1968, conhecida como a “Lei do Boi”, promulgada no auge da ditadura civil militar.

Segundo Fonseca (2009), esta lei instituía que os estabelecimentos de ensino médio agrícolas e superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservariam preferencialmente nas matrículas da primeira série, 30% e 50% de suas vagas, respectivamente, a candidatos agricultores ou filhos destes. Esta Lei foi revogada somente em 1985.

O Estado Brasileiro, desde sempre, teve um discurso e práticas excludentes para os segmentos subalternizados. Na conjuntura histórica e política da metade dos anos de 1980, referente ao processo de redemocratização da sociedade brasileira, reacenderam, de forma contundente, as reivindicações de demandas de diversos grupos e sujeitos coletivos, principalmente no campo educacional, como as dos grupos ambientalistas, feministas, pessoas com deficiência, indígenas, populares e também os grupos afro-brasileiros. Segundo Gohn (2012), em suas buscas constantes em prol de uma cidadania completa, estes últimos, nesse período, tiveram processos de lutas importantes.

Um dos marcos fundamentais das Ações Afirmativas no Brasil demandadas pelo movimento negro foi a “Marcha do Tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e a vida”, ocorrida em 20 de novembro de 1995. Ainda no mesmo ano, foi criado, por Decreto Presidencial, o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para a Valorização da População Negra - integrado por representantes de oito Ministérios e duas Secretarias Governamentais, bem como por oito representantes da sociedade civil oriundos/as do Movimento Negro -, que tinha a tarefa de inscrever definitivamente a questão do negro na agenda nacional (HEILBORN et al, 2011).

Outro importante marco que precedeu a adoção das cotas no Brasil foi a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, e a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001. Com esta conferência o Brasil reconheceu a existência do racismo, tornando signatário do compromisso de combate a todo tipo de discriminação racial.

As “Ações Afirmativas” nesta ocasião adquiriram relevância, visto se tratar de uma alternativa que, ao invés de punir o comportamento racista, enfrentava-o para promover a valorização da identidade de grupos étnico-raciais em desvantagem socioeconômica. Assim, as cotas universitárias surgiram como um tipo de “ação afirmativa” com vistas à valorização da identidade de grupos étnicos (negros e indígenas) e sociais, além da inserção desses grupos na sociedade.

No caso das cotas para o acesso ao ensino superior, as Ações Afirmativas são tidas enquanto políticas públicas educacionais, uma vez que pretendem garantir o direito à educação e a inclusão de grupos discriminados nas universidades. Assim, a educação, por ser um importante elemento da luta pela hegemonia e consenso em face de seu caráter pedagógico, constitui em si mesma uma política pública social.

Segundo Höfling (2001), as políticas educacionais são uma espécie de política social, como as de saúde, previdência, habitação, saneamento, dentre outras, por possuírem contornos complexos e que exigem grande esforço de análise, tendo em vista o perfil do Estado no qual se movimentam. Para a autora, a educação é, pois, “uma política pública de corte social, de responsabilidade do Estado - mas não pensada somente por seus organismos” (HOFLING, 2001, p. 31).

Dentre os vários autores que se debruçaram sobre o conceito de “ações afirmativas”, um dos pioneiros no Brasil foi Gomes, ao apresentar a seguinte definição:

[...] as ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física (GOMES, 2001, p. 89).

Diante desta perspectiva, as Ações Afirmativas, em sua constitucionalidade, giraram em torno do princípio de igualdade, na medida em que significou agir para combater as consequências da discriminação, tais como a falta de acesso a direitos básicos, como é o caso da educação superior pública. Logo, não se tratava de um privilégio, mas de um direito a ser conseguido, ao necessitar de um agir, e não simplesmente de uma repressão às condutas discriminatórias. Outro aspecto relevante, destacado por Gomes (2001), refere-se os segmentos sociais que atuavam nas Ações Afirmativas, ou seja, não se restringia a questões raciais, mas também de “gênero, idade, origem nacional e compleição física”. A ação afirmativa, por sua vez, poderia dirigir-se a qualquer grupo sub-representado, de modo que não se restringiu a área educacional.

No âmbito educacional, as Ações Afirmativas correspondem como uma política social resultante das lutas do movimento social negro. Considerou-a, com isso, como a principal protagonista das políticas de ação afirmativa no enfrentamento das desigualdades raciais contínuas existentes na história da formação da sociedade brasileira, bem como do engajamento de intelectuais e do contexto internacional. Ao mesmo tempo, considerou-se também uma política que, em meio a uma sociedade capitalista permeada por interesses, não combateu a lógica inserida do sistema em que o capital se impõe.

Discutir e implementar políticas que viabilizassem o acesso das populações historicamente excluídas ao ensino superior não foi fácil, nem tampouco simples. Afinal, não poderia ser diferente em um país imerso de desigualdades sociais e raciais desde o seu processo de formação, marcado pela dominação e controle da burguesia em todas as esferas de poder.

Ações Afirmativas na UESB

Semelhante ao contexto nacional, o Programa de Ações Afirmativas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia foi fruto das reivindicações tanto da comunidade interna quanto externa. As reivindicações individuais cotidianas de militantes do Movimento Negro, do movimento estudantil, sindicato docente, comunidades quilombolas, de cursinhos pré-vestibulares, dentre outros, sempre coadunavam com as cobranças quanto a implantação das cotas na Universidade. Além disso, faziam com que a UESB demonstrasse a preocupação em atender às demandas desta população. Diante das pressões dos movimentos sociais, foi regulamentada em 14 de julho de 2008, a Resolução do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE) nº 036/2008 do Programa de Ações Afirmativas, passando a Universidade a promover o acesso através das cotas adicionais (quilombola, indígena e pessoa com deficiência) e reserva de vagas (étnico-racial e social) a partir do vestibular de 2009.1.

A Resolução CONSEPE nº 36/2008, definiu as seguintes ações em seu artigo 1º: “sistema de reserva de vagas combinadas com quotas adicionais no concurso vestibular para os cursos de graduação da UESB (acesso); Assistência Estudantil (permanência) e Integração com a comunidade e fortalecimento de ações externas de Assuntos Comunitários”.

Em seu Artigo 3º, dispõe que os princípios do Programa de Ações Afirmativas da UESB são regidos por:

I. Afirmação do atendimento plural pelas instituições públicas estaduais de ensino superior que contemple a diversidade da sociedade brasileira;

II. Contribuição para a redução de desigualdades sociais e étnico-raciais, tendo em vista a vocação da UESB;

III. Melhoria da Qualificação Acadêmica;

IV. Respeito à Autonomia Universitária.

Com relação à permanência, em 17 de dezembro de 2008, entrou em vigor na UESB a Resolução CONSU nº 011/2008, que estabeleceu as regras do Programa de Assistência Estudantil. Para isso, foi institucionalizada, em 2009, a Gerência de Assistência e Assuntos Estudantis (GAE), vinculada à Pró-reitora de Extensão e Assuntos Comunitários (PROEX).

Assim sendo, a fim de atender ao Art 1º da Resolução CONSEPE nº 036/2008, a Universidade passou a trabalhar administrativamente por meio de dois setores: a Pró-reitoria de Graduação (PROGRAD) dedicou-se às demandas do acesso e reserva de vagas, enquanto a PROEX responsabilizou-se com as demandas relacionadas à Assistência Estudantil. Dessa forma, originalmente, um Programa de Ações Afirmativas, que deveria coadunar acesso e permanência, passou a ser gerido por duas pró-reitorias de forma desvinculada.

Após quase dez anos, a instituição constituiu um setor específico, em nível de Assessoria, para atender à Assistência Estudantil e às questões das Ações Afirmativas. Neste sentido, a então gerência intulada GAE, no ano de 2018, passou a se chamar Gerência de Acesso, Permanência e Ações Afirmativas (GEAPA).

Pode-se verificar que, após 10 anos de Ações Afirmativas na Universidade, ainda tem-se pensado institucionalmente em formas de estruturar uma política. Na página da internet da Assessoria Especial de Acesso, Permanência e Ações Afirmativas (AAPA), na aba “História”, há uma das matérias1 do setor em que sua assessora - a professora Selma Matos -, explica que “um grupo de apoio está sendo formado e instrumentalizado para encaminhar debates como esses e para contribuir na estruturação da política voltada para essas ações”.

Cabe destacar que, somente no ano de 2018, foram realizadas gestões políticas internas da administração da Universidade para a institucionalização de um setor específico ligado à reitoria, com o intuito de atender à política de Ações Afirmativas da UESB, quando foi criada a AAPA. E, especificamente, neste ano de 2022, a AAPA tornou-se Pró-reitoria de Ações Afirmativas, Permanência e Assitência Estudantil (Proapa), conforme Resolução CONSU nº 06/2022.

O itinerário do Programa de Ações Afirmativas da UESB revelou influências ideopolíticas embutidas na constituição de políticas de Ações Afirmativas, em que, no processo de correlação de forças, a promoção do acesso e permanência de segmentos historicamente excluídos do acesso ao ensino superior fica a critério de decisões políticas internas.

Isto posto, a seção seguinte apresenta o perfil de parte da comunidade acadêmica no que se refere ao Programa de Ações Afirmativas da UESB, a fim de avaliar o alcance que este tem proporcionado.

Resultados e Discussão - perfil dos discentes cotistas da UESB

A fim de conhecer o perfil dos discentes cotistas dos quatro analisados, foram levantados dados quanto aos seguintes aspectos: a) sexo; b) região/estado de origem; c) faixa etária; d) cor/raça; e) percepções relacionadas a discriminação e/ou preconceito étnico-racial e social; f) questões familiares; g) questões relacionadas as Ações Afirmativas - acesso e permanência.

Quando se verifica a distribuição de matriculados por sexo, semelhante ao apresentado pelos dados do INEP (BRASIL, 2019), observa-se que a maioria dos discentes foi do sexo feminino, representando o percentual de 55,4% (189 discentes), na medida em que os do sexo masculino representaram 44,6% (152 discentes), como mostra o gráfico 1.

Neste dado, é importante destacar a propensão da representação feminina no ensino superior em âmbito nacional, como lembrou Santos (2014), quando da realização de sua pesquisa no âmbito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), no período de 2006 a 2012, do mesmo modo que Figueredo (2015), ao traçar o perfil dos discentes das Universidades Públicas Estaduais da Bahia de 2010 a 2012. Ainda de acordo com o último Censo da Educação Superior 2018 (BRASIL, 2019), o sexo feminino predominou em ambas as modalidades de ensino, tanto presencial, quanto a distância.

Fonte: banco de dados/planilhas da AAPA fornecidos pela SGC, 2020.

Gráfico 1 Distribuição dos Matriculados por Sexo 

Diante de uma sociedade marcada pelas desigualdades, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2019) apontaram que, ao abordarem sobre a taxa de ocupação na força de trabalho, o nível de instrução correspondeu a uma das características que contribuíram para as diferenças da inserção na força de trabalho. Apesar de as mulheres serem maioria no ensino superior, os homens que se destacaram quando observados os dados do IBGE (2019) em relação à taxa de ocupação no mercado de trabalho.

Não sendo assim, o nível de escolaridade ainda é um fator suficiente para elevar as mulheres à força de trabalho, em proporção maior ou similar à dos homens. Por conseguinte, verificou-se a taxa de desocupação que, segundo o IBGE (2019), por grupos de idade de 2012 a 2018 no Brasil, a dos homens foi menor que a das mulheres. Ainda conforme o IBGE (2019), as desigualdades entre os sexos referem-se a fatores estruturais que se agravam em consequência de aspectos conjunturais, como em períodos de crise. Logo, os segmentos historicamente excluídos da sociedade, que já sofriam as marcas das desigualdades, encontram-se ainda mais sujeitos as discrepâncias da sociedade capitalista.

Ao se analisar a distribuição dos discentes cotistas dos cursos selecionados para esta pesquisa quanto à Região de origem, diante do retorno (129 respostas) dos questionários aplicados, a maioria é originária da região Nordeste (86,8%), representando um quantitativo de 112 discentes; ficando um percentual de 10,9% oriundos da região Sudeste, totalizando 14 discentes; seguidos de 2,3% da região Centro Oeste, representando um total de 3 discentes. Tais dados foram observados no gráfico 2:

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 2 Região do Brasil que nasceu 

Da região Nordeste, 98,2% (110 discentes) são oriundos da Bahia e 1,2% de Pernambuco (2 discentes). Dos discentes da região Sudeste, 64,3% (total de 9 discentes) são de São Paulo e 35,7% (total de 5 discentes) oriundos de Minas Gerais. Da região Centro-Oeste, 2 (dois) discentes são oriundos do Distrito Federal (66,7%) e 1 (um) discente do Mato Grosso (33,3%). Diante tais dados, pode-se inferir que, mesmo a Universidade tendo 50% das vagas reservadas para o ingresso via SiSU - que oportuniza o ingresso para estudos de todo o Brasil -, como salientado anteriormente, há predominância de discentes do Nordeste e especificamente, do Estado da Bahia.

No que diz respeito à faixa etária atual dos discentes cotistas que se encontravam com matrículas ativas nos 4 (quatro) cursos selecionados, a maioria pertencia à faixa etária de 21 a 23 anos (40,3%), ao representar um total de 52 discentes, seguido de 22,5% com faixa etária de 24 a 26 anos (total de 29 discentes), 11,6% com faixa etária de 18 a 20 anos (total de 15 discentes) e 25,6% (total de 33 discentes) estavam distribuídos nas mais variadas faixas etárias: 8,5% entre os 27 a 29 anos; 11,7% entre os 30 a 38 anos; 3,1% entre os 39 a 41 anos; 0,8% com faixas etárias de 45 a 47 anos, 51 a 53 anos e acima de 54 anos.

Diante dos dados, observou-se que a predominância no ensino superior, dentre os cursos selecionados, é de jovens com faixa etária de 18 a 292 anos (79,8%). No entanto, não se pode deixar de considerar a existência do público adulto, em especial, com faixa etária a partir dos 51 anos de idade, que encontram-se no ambiente universitário para concluir um curso de ensino superior. Quando considerado o fato de representarem um público com percentual elevado de pessoas sem instrução ou com o fundamental incompleto, os dados do IBGE (2019, p. 84-85) apontaram que ainda o completam, apesar do aumento da escolaridade dos brasileiros na última geração. No entanto, destacou-se que “não foi suficiente para nos aproximar do percentual de pessoas de 25 a 64 anos de idade que não haviam concluído o ensino médio alcançado pelos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)”.

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 3 Faixa Etária Atual dos Discentes 

Com relação ao público já de idade avançada no ensino superior, registrou-se que estão matriculados nos cursos de Direito e Geografia. Disto, pode-se inferir que estes, na faixa etária que deveriam estar no ensino superior, não tiveram possibilidade, talvez por questões de ordem familiar ou falta de possibilidade de conciliar estudo e trabalho, priorizarem o acesso à graduação.

Quando indagado aos discentes quanto à cor/raça, dentre as 129 (cento e vinte e nove) respostas, 43,4% (representando 56 discentes) autodeclararam-se pardos, 31,8% (total de 41 pretos, 20,2% (correspondente a 26 discentes) autodeclarados como brancos; Do total, 1,6% e 0,8% registraram os amarelos e indígenas, respectivamente (representando 2 e 1 discente). Cabe destacar que houve 3 (três) discentes que não desejaram declarar a cor/raça, que representaram 2,3%, como pode ser observado no gráfico 4.

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 4 Cor/Raça 

Diante o gráfico 4, apesar do pequeno percentual acima apresentado (2,3%) em relação aos que não desejaram declarar a cor/raça, pode-se destacar uma confirmação dos dados apresentados pelo INEP (BRASIL, 2019). Estes ressaltaram que a distribuição de matrículas por cor/raça nos cursos de graduação presenciais e a distância, segundo a unidade da Federação e a Categoria Administrativa das IES em 2018, apontaram também um percentual significativo de “não declarados”. Nesse sentido, o que pode levar a pessoa a não revelar e/ou se autoafirmar quanto à sua cor/raça pode estar relacionado à discriminação racial e/ou social existente na sociedade brasileira e que se manifesta também no ambiente universitário.

Sobre este aspecto, quando indagados sobre suas percepções acerca da discriminação racial ou social na UESB, 69,8% (90 discentes) declararam “sim”, enquanto 30,2% (39 estudantes) destacaram que “não” percebiam discriminação na Instituição, como ilustrado no gráfico 5.

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 5 Percepção quanto à existência de Discriminação Racial ou Social na UESB 

Quando questionados se já sofreram ou presenciaram algum preconceito e/ou discriminação por serem cotistas, 45 (quarenta e cinco) discentes (34,9%) destacaram que “sim”, enquanto 84 (oitenta e quatro) discentes (65,1%) declararam que “não” perceberam preconceito e/ou discriminação, conforme ilustrado no gráfico 6.

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 6 Presenciou preconceito e/ou discriminação por um estudante ser cotista 

Estas respostas tão distintas para o mesmo tema puderam indicar que os estudantes reconheceram a desigualdade racial, mas o preconceito estaria vinculado a uma questão histórica do Brasil. Como citado por Ávila (2012, p. 92), “o discurso de democracia racial pode estar incorporado nos estudantes pesquisados e os impede de perceber a desigualdade de tratamento e de condições de vida da população negra nos vários espaços da sociedade brasileira”. No entanto, se as respostas dadas pelos estudantes representassem uma amostra real estendida a todos os cursos da Universidade, poderia significar, como lembra Ávila (2012), que o reconhecimento sobre diversidade, igualdade, de oportunidades e o acesso às condições materiais para grupos sociais discriminados seria compartilhado pela comunidade acadêmica.

Com relação ao número de integrantes da família que cursaram o ensino superior, o gráfico 7 revelou um total de 41 (quarenta e um) discentes (31,8%) que destacaram que nenhum outro membro da família teve a oportunidade ao ensino superior; 27 (vinte e sete) discentes (20,9%) destacaram apenas 1 (um) integrante da família teve o ensino superior; 24 (vinte e quatro) discentes (18,6%) informaram que 2 (dois) membros familiares cursaram o ensino superior; 15,5%, representando 20 (vinte) discentes com 3 (três) integrantes da família com ensino superior; e, 13,2%, total de 17 (dezessete) discentes, com 4 (quatro) ou mais integrantes da família com ensino superior.

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 7 Número de Integrantes da Família que cursaram o Ensino Superior (ES) 

Diante de tais dados, cabe complementar que, dentre os 31,8% estudantes que responderam “não ter nenhum integrante da família que cursaram o ensino superior”, as famílias destes estudantes depositaram nestes a oportunidade de melhores condições, uma vez que tiveram a oportunidade de um integrante da família cursar o ensino superior. Dessa forma, não se pode deixar de considerar o reflexo positivo trazido pelas Ações Afirmativas para o acesso ao ensino superior que, apesar dos desfalques e contradições, proporcionou o movimento “afirmativo/propositivo” de inclusão social das camadas historicamente excluídas do sistema de ensino. Apesar disso, em uma sociedade capitalista, há a necessidade de que existam desigualdades para a manutenção do sistema, o que acaba voltando ao “afirmar” e “não afirmar” de modo simultâneo.

Os dados referentes à renda mensal bruta do núcleo familiar estão ilustrados no gráfico 8 e, como pode ser observado, 46 (quarenta e seis) discentes (representando 35,7%) possuem uma renda bruta mensal entre mais de 1 a 2 salários mínimos; 25 (vinte e cinco) discentes (19,4%) com renda de meio salário mínimo a 1 salário mínimo; 18 (dezoito) discentes (14%) com renda bruta total de 1 salário mínimo; 19 (dezenove) discentes (percentual de 14,7%) com renda total de até meio salário mínimo; 19 (dezenove) discentes (total de 14,7%) com renda bruta de mais de dois salários mínimos até 5 salários mínimos; e, um percentual de 1,6% (total de 2 discentes) com renda bruta familiar de mais de 5 a 10 salários mínimos.

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 8 Renda Mensal Bruta do Núcleo Familiar 

Percebeu-se, diante do gráfico, que a maioria dos discentes cotistas (mais de 83%) possui uma renda bruta familiar muito baixa (de meio a 2 salários mínimos). Nos arranjos familiares em que há mais pessoas que compõe o grupo familiar, variando de 3 a 4 membros, mais grave é a situação, uma vez que a renda per capita destas famílias torna-se muito pequena para custear tantos gastos existentes no núcleo familiar.

Considerando a renda dos núcleos familiares dos discentes cotistas pelos cursos analisados, faz-se necessário uma Política de Ações Afirmativas por parte da Universidade que promova ações para que os discentes possam permanecer e concluir seus cursos de graduação. Nesse sentido, ao indagar os discentes sobre o fato de a renda mensal (considerando o rendimento familiar) atender aos gastos de formação no curso de graduação em que se encontravam, o gráfico 9 destacou os seguintes dados: 47,3% (61 discentes) destacou que a renda atendia apenas “em parte” os gastos de formação; 34,1% (total de 44 discentes) afirmaram “não”, ou seja, a renda não era suficiente a atender aos gastos de custeio oriundos no curso de graduação; e apenas 18,6% (24 discentes) destacaram que a renda atendia “sim” aos gastos de formação no curso.

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 9 Renda Mensal Familiar (proporcional ou não) aos Custos com a Formação no Curso de Graduação 

Ainda de acordo com o gráfico 9, é importante sinalizar que, dentre os discentes (total de 44 estudantes, com percentual de 34,1%) que destacaram o fato de a renda não ser suficiente para custear a formação no curso de graduação, a maioria destes discentes, representando 27 (vinte e sete) discentes, percentual de 61,36%, está concentrada nos cursos de maior concorrência, ou seja, Direito e Medicina, o que confirma a reflexão anterior apresentada quanto aos arranjos familiares destes discentes dos cursos supracitados.

No que compete ao entendimento dos discentes quanto ao Programa de Ações Afirmativas, verificou-se qual era a opinião destes sobre as cotas no ensino superior para discentes indígenas, quilombolas, oriundos de escola pública, negros e pardos. Nessa perspectiva, houve os seguintes posicionamentos: 63 (sessenta e três) discentes (48,8%) consideraram como sendo uma medida reparadora para segmentos historicamente excluídos do acesso ao ensino superior, que promoveu a inclusão social e a redução das desigualdades sociais e raciais; 30 (trinta) discentes (23,3%) destacaram que as Ações Afirmativas e/ou cotas correspondiam a uma medida compensatória para os segmentos historicamente excluídos do acesso ao ensino superior, mas que não resolviam os problemas de desigualdades sociais e raciais existentes na sociedade brasileira; 20 (vinte) discentes (15,5%) consideraram ser uma política in/excludente, pois, ao mesmo tempo em que “afirma” - ao promover o acesso ao ensino superior de segmentos historicamente excluídos -, também “não afirma”, face à não garantia da permanência dos estudantes cotistas nos cursos de graduação; 8 (oito) deles (6,2%) afirmaram que a política foi insuficiente para a promoção da inclusão social, uma vez que deveria haver oportunidade iguais de acesso ao ensino superior para todos; e, 5 (cinco) discentes (3,9%) frisaram que deveriam ser uma política somente para estudantes pobres. Os 3 (três) demais discentes (2,3%) apresentaram outra opinião, como ilustra o gráfico a seguir.

Fonte: Dados obtidos a partir dos questionários aplicados junto aos discentes, 2020.

Gráfico 10 Opinião dos Discentes quanto as Ações Afirmativas / Cotas no Ensino Superior 

Diante os dados apresentados no gráfico 10, notou-se que a maioria dos discentes (48,8%) não fez uma reflexão para além do que estava posto com relação às Ações Afirmativas. Assim, consideraram-na como uma medida reparadora para os segmentos historicamente excluídos do acesso ao ensino superior, de modo a promover a inclusão social e a redução das desigualdades sociais e raciais. Porém, neste entendimento, deixaram de considerar as múltiplas determinações que estão embutidas no processo das Ações Afirmativas na educação, pois a sociedade brasileira é classista uma vez que necessita das desigualdades sociais, logo, os mecanismos instituídos, são para a manutenção da ordem do sistema capitalista.

Freire (2017, p. 92), ao dialogar com Nery (2008), corroborou que as políticas de Ações Afirmativas “surgem também como um recurso para estancar as tensões advindas da luta de classes, oferecendo, um “mínimo” para as maiorias, e diminuindo a possibilidade de mudanças mais profundas na estrutura na sociedade”. Logo, sempre haverá um ambiente de disputas, da pressão dos movimentos sociais sobre o Estado, e este, realiza as mediações das tensões para que continue a manutenção do status quo da sociedade.

Ainda cabe complementar, diante o gráfico 10, que 45% consideraram as Ações Afirmativas ainda como uma medida insuficiente para resolver as questões de desigualdades e consequente discriminação existentes na sociedade. Estas políticas, por sua vez, precisam ser estruturadas na Universidade, de modo a se ter uma alteração das práticas educacionais no que se refere ao currículo dos cursos, metodologias de ensino-aprendizagem, práticas pedagógicas voltadas para o combate do racismo e à discriminação, dentre outras. Caso contrário, ocorre o acesso dos grupos historicamente excluídos do ensino superior que, todavia, permanecem fragilizados dentro do próprio ambiente universitário, ao ser uma política in/excludente, como destacam Doebber (2011), Figueiredo (2008), Hamú (2014), Freire (2017) e Alphonse (2015).

Considerações finais

A análise do perfil dos discentes cotistas que participaram deste estudo revelou, dentre os principais aspectos pesquisados, que a maioria foi constituída de jovens (79,8%), oriundos do próprio estado da Bahia (98,2%), cuja a representatividade feminina foi maior (55,4%). No quesito cor/raça, os declarados pardos representaram um percentual de 43,4%, seguidos de negros com 31,8%. Neste ponto, foi interessante constatar a existência de 2,3% dos discentes que preferiram não se declarar, o que sugere a existência de um racismo velado. Como defende Mészáros (2005), o ensino, por si só, não pode ser critério para realizar uma modificação nos processos educacionais. De igual maneira, a existência de Ações Afirmativas não pode ser considerada como única opção de se resolver problemas de desigualdades e exclusão.

Nesse sentido, a maioria dos estudantes cotistas pesquisados possui, em seu grupo familiar, baixa escolaridade à formação do ensino superior, o que correspondeu ao percentual de 52,7%, cujo dado desdobrou-se nos seguintes aspectos: possuem apenas 1 membro familiar com ensino superior (20,9%) ou nenhum membro familiar com ensino superior (31,8%). Sobre este último grupo significa dizer que as oportunidades de melhores condições de vida foram vislumbradas a partir do ingresso do estudante na Universidade. Revelou-se, a partir deste dado, o aspecto “afirmativo” do Programa de Ações Afirmativas. Com relação à renda bruta familiar, mais de 83% possui renda de até meio salário mínimo a 2 (dois) salários mínimos, dado que revela que não possuem renda suficiente para se manter na Universidade e necessitam, assim, do apoio institucional.

Parte dos discentes cotistas (48,8%) consideraram as Ações Afirmativas como uma medida reparadora para os segmentos historicamente excluídos do acesso ao ensino superior, de modo a promover a inclusão social e a redução das desigualdades sociais e raciais. Este posicionamento revelou a ausência de uma visão crítica, de modo a refletir para além do que está posto. Foi encontrado também o percentual de 45% que consideraram as Ações Afirmativas ainda como uma medida insuficiente para resolver as questões de desigualdades e de discriminação existentes na sociedade.

Logo, se alterações estruturantes não ocorrerem, o acesso continuará sendo viabilizado, porém os segmentos historicamente excluídos permanecerão à margem, mesmo presentes no ambiente universitário. Desse modo, a política torna-se in/excludente.

Essa constatação encontrou ressonância com o que Ball (2006) destacou acerca das políticas públicas. Para o autor, estas foram “assentadas” sobre determinado modelo, mas que seus “efeitos” nas camadas sociais encontram-se ainda em um patamar abstrato, uma vez que não conseguem alcançar os interesses dos grupos beneficiados.

Em virtude do próprio movimento contraditório da lógica existente no sistema que a Universidade faz parte, as Ações Afirmativas no ensino superior apresentam-se como uma solução formal, sobretudo ao representar uma conquista para os movimentos sociais. No entanto, não correspondem a uma solução essencial. Em função disso que surge o constante movimento contraditório de “afirmar” e “não afirmar” como característica do Programa de Ações Afirmativas. Pois, não se pode conceber o acesso sem permanência, sendo necessário que outras ações inerentes a uma política de Ações Afirmativas possam ser desenvolvidas.

2Segundo o Estatuto da Juventude, Lei nº 12.852, de 05 de agosto de 2013, no art. 1º, § 1º, são consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade.

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Recebido: 29 de Julho de 2022; Aceito: 04 de Novembro de 2022

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