Introdução
Como traduzir em texto o que se passou quando estivemos junto às crianças em situação de pesquisa? Como trazer para o corpo de nossas teses, dissertações e artigos aquilo que, de forma intensa e duradoura ou mesmo eventual e fugaz, se deu no encontro com crianças, quando mobilizadas/os por certas problemáticas de pesquisa? Como reproduzir numa linguagem (a escrita) aquilo que, muitas vezes, se deu em outra (oral)? Em resumo: como narrar a narrativa? Essas são algumas das questões que vêm se impondo a nós como desafios a serem enfrentados quando nos propomos a estar com crianças, entrevistar crianças, conversar com elas e fazer disso uma prática investigativa.
Assim, e mais precisamente, o objetivo deste artigo é discutir um aspecto específico quanto a problemáticas de ordem metodológica (e que, acreditamos, são também de ordem teórica) ligadas aos modos pelos quais trazemos para o texto acadêmico aquilo que, dos encontros com as crianças no campo, emerge como fala, como dito, mas também silêncio, hesitação, gesto, movimento, sonoridade e tantas outras formas de comunicação, de expressão e de sentido. Trata-se, assim, de problematizar práticas de escrita precisas: aquelas de transcrição, de uma espécie de “tradução”, muitas vezes, do falado para o escrito - ou, como buscamos defender, da relevância de construirmos modos de transcriançar a escrita sobre e a partir dos encontros e das conversas que estabelecemos com crianças em contextos investigativos.
Para tanto, organizamos nossa discussão da seguinte forma: na primeira seção apresentamos o contexto geral da pesquisa da qual este texto se origina e, assim, indicamos elementos relativos aos objetivos da pesquisa, bem como, particularmente, da construção metodológica da investigação. Descrevemos, ainda que brevemente, alguns dos caminhos trilhados no trabalho que teve como intuito conversar com crianças sobre suas memórias de infância (neste caso, especialmente quando mobilizadas por fotografias que tinham como tema vivências em família). Em seguida, debatemos sobre os modos específicos e singulares de narrar das crianças e sobre como eles se impuseram, para nós, como desafios a serem enfrentados nos limites de uma “tradução”: tradução não no sentido de uma recuperação imediata e literal de um original a ser percorrido, mas como gesto criador, como prática inventiva e, como tal, isso nos permitiu pensar em uma escrita envolvida com modos de transcriançar os encontros com as crianças.
Sobre o contexto da pesquisa: ou por que falar de memória com crianças?
De início, indicamos que a pesquisa1 que dá origem a este texto teve como principal objetivo problematizar o conceito de memória com crianças a partir de suas experiências em família - valendo-se, para tanto, de diálogos tecidos com as crianças, especialmente, a partir de fotografias de sua própria infância. Assim, e mais propriamente, o estudo contou com a participação de nove crianças, com idades entre 6 e 11 anos. Ao longo de quatro encontros - ora realizados individualmente, ora em duplas quando se tratava de irmãos ou primos -, foram estabelecidos diálogos com crianças que, em seu conjunto, compunham um panorama familiar diverso e plural. Ou seja, que se viam inscritas em distintas configurações familiares, em sua diversidade e, justamente por isso, potência: crianças pertencentes a famílias nucleares, monoparentais femininas, homoparentais e reconstituídas por recasamento2 (valendo-nos das disposições e nomenclaturas assumidas nos termos dos dados censitários); e, para além delas, preocupamo-nos em contemplar ainda outras disposições que, tal como Claudia Fonseca (2005), entendemos igualmente como “familiares”, tais como: lares com a convivência de pessoas de parentescos diferentes entre si; adoção; circulação das crianças entre diferentes casas; e a presença e a inexistência de irmãos e primos na convivência domiciliar.
Por meio das redes de contato das pesquisadoras, as crianças foram selecionadas e convidadas a participar do estudo mediante o consentimento de seus familiares e, claro, delas mesmas. Elas não se conheciam entre si (com exceção de dois irmãos e de dois primos) e faziam parte de diferentes territórios sociais e econômicos da região metropolitana de Porto Alegre/RS. Embora a composição plural de um grupo de crianças nos termos de sua organização familiar tenha atuado como critério para selecionar e convidar as crianças para a participação na pesquisa, as variações encontradas (além das diferenças sociais, econômicas, culturais), em nenhum momento, funcionaram para o estabelecimento de algum tipo de quadro comparativo - quadro que sugerisse, por exemplo, que as memórias ou narrativas ocorrem (ou ocorreriam) devido a estes ou aqueles fatores familiares e, por isso, seriam melhores ou piores. Ainda que reconheçamos que o modo como as famílias e as crianças se relacionam possa impactar nas experiências compartilhadas, bem como na forma como as memórias são narradas e interpretadas, não cabia à pesquisa avaliar, confrontar, nivelar ou equiparar tais modos de ser família e de infância. Ao contrário, assumir a família em sua pluralidade constituiu-se como uma afirmação política da investigação.
Em relação a essas escolhas (do grupo de crianças e de suas configurações familiares), um apontamento fundamental, já que ele evidencia opções teórico-metodológicas importantes da pesquisa: o intuito de compor um grupo de crianças que expressasse a multiplicidade de formas de ser “família” levou-nos a problematizar as relações entre “familiaridade” e de “estranhamento” em relação ao contexto mais amplo do trabalho (e das crianças e famílias envolvidas). Ou seja, “estranhar o familiar” e “familiarizar-se com o estranho” (VELHO, 1980; SANTOS, 2012, p. 144) constituíram-se como ferramentas permanentes de trabalho, especialmente quando se pesquisa com crianças que, de algum modo, percorrem nossas relações sociais mais próximas. Embora exista um entendimento tradicional em pesquisa de que ao/à investigador/a são exigidos “[...] olhos imparciais sobre a realidade, evitando envolvimentos que possam obscurecer ou deformar seus julgamentos e conclusões”, tal como problematiza Gilberto Velho (1980, p. 36, grifos do original) sobre uma (ilusória) condição de “objetividade” da ciência, investigar com crianças escolhidas a partir das redes de contato das pesquisadoras emergiu não como limite e impossibilidade, mas, acima de tudo, como reconhecimento e afirmação de que não há contextos mais ou menos “neutros”, “isentos” de subjetividade; o que existem, sim, são dinâmicas e territórios desconhecidos em toda e qualquer relação - desde que se faça da alteridade (aqui entre adulto e criança) uma prerrogativa inegociável nas tramas de diálogo e de escuta.
Assim, a partir especialmente do trabalho de Núbia Santos (2012), que investigou com crianças a relação que elas estabeleciam com o dia de seu aniversário - o que exigiu da pesquisadora conversar com crianças com as quais mantinha certa intimidade -, sustentamos que, ainda que haja cenários e situações sociais cotidianas com as quais estejamos familiarizados/as, invariavelmente, existem e existirão pontos de vista, visões de mundo e perspectivas específicas que desconhecemos. “Estranhar o familiar” e “familiarizar-se com o estranho” exigem, pois, isto: assumir que não compreendemos, por inteiro, todas as lógicas de relações, mesmo estando eventualmente habituados/as com certa paisagem social. Particularmente no caso de relações entre adultos/as e crianças é comum que o olhar esteja implicado com crenças, valores e hábitos que pertencem aos tipos de experiências vividas (SANTOS, 2012) - e é esse olhar que merece ser tensionado.
Sobre os encontros realizados com as crianças: como referido, foram realizados quatro encontros com cada criança (ou dupla de crianças). Cada encontro respondia a uma dinâmica previamente delineada, ainda que contasse também com a escolha das crianças quanto aos elementos que sustentariam o debate. Metodologicamente, fizemos uso de foto-elicitação (MARCELLO; SOARES, 2021) no diálogo com as crianças, estabelecendo que especialmente as fotografias, uma vez entendidas como suportes de memória, emergiriam como elementos centrais nos encontros com cada uma delas (ou com as duplas). Assim, e resumidamente, indicamos que diferentes estratégias foram utilizadas nesses encontros: no primeiro encontro, o diálogo com as crianças foi estabelecido a partir de fotografias de infância de uma das pesquisadoras (no caso, aquela responsável pela condução dos encontros); no segundo encontro, a partir de fotografias das próprias crianças e selecionadas por elas mesmas (com eventual auxílio de seus familiares) de seus acervos pessoais; no terceiro, a partir de fotografias de obras vinculadas ao universo das artes visuais e que tinham como temática (direta ou indiretamente) as dinâmicas familiares, em seu caráter histórico e plural; e, no último encontro, a partir de fotografias feitas pelas crianças mediante empréstimo de uma máquina fotográfica analógica por cerca de 15-20 dias, tendo como motivação de registro também a temática “família”. A escolha pela câmera analógica foi definida justamente pela possibilidade de mobilizar, junto às crianças que participaram da pesquisa, uma outra forma de registro visual-fotográfico, para além daqueles com as quais elas estão familiarizadas (geralmente feitas por câmeras de celular). Acreditamos que toda a sistemática de seleção, captura, espera e surpresa (nem sempre agradável)3 favoreceria a construção de um outro tipo de experiência de e com imagem pelas crianças.
Outro importante aspecto a ser mencionado sobre os encontros é o fato de que eles transcorreram em contexto domiciliar, alguns ainda de modo presencial, mas a maior parte deles apenas de modo virtual devido às implicações do isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 em 2020-2021. Os encontros virtuais acabaram por permitir outro tipo de relação com as crianças e, com efeito, trouxeram alterações nos próprios encontros, tal como delineados preliminarmente. Estar em suas casas, mesmo que de forma restrita ao campo de visão exposto no quadro da tela de um computador ou de um celular, mostrou-se como um elemento singular da pesquisa: tanto pelos objetos da casa que frequentemente eram trazidos para complementar a conversa (para além das fotografias, portanto), tanto pelas interações dos familiares com as crianças, que, por vezes, ocorreriam durante a entrevista, nos mais diversos ângulos da câmera, com maiores ou menores intervenções. Cada criança e cada família vivenciam um universo particular e, de algum modo, ele foi tornado visível no momento restrito e limitado daquele instante em que cada encontro ocorreu; universo que, também ele, se via impactado pela própria dinâmica das conversas.
Ainda sobre o contexto da pesquisa, poder-se-ia perguntar, afinal, por que pesquisar sobre memórias com as crianças? Se a pesquisa realizada privilegiou a escuta e a escrita sobre as memórias das crianças, isso se deu justamente porque as reconhecemos como sujeitos ativos, produtores também de suas próprias memórias de infância na infância. Para Schubsky (2018), há uma distância expressiva entre o ato de narrar a infância enquanto memória de um adulto e aquele feito pelas próprias crianças, na condição de crianças. Segundo a autora, os modos de perceber, selecionar e enunciar o vivido são qualitativamente diferentes - e é daí que merecem se explorados.
Além disso, entendemos que produzir, junto às crianças, suas memórias de infância implica formas de expandir os sentidos dados ao lugar da criança hoje. Ou seja, inscrevê-la para além de “um ‘vir a ser’, uma centelha do futuro ou um ser a ser protegido no presente”. Para Schubsky (2018, p. 23), “por ser dotada de pouco passado, a criança não tem voz no que diz respeito a esse assunto [da memória]”; ao contrário, é somente vista de um plano futuro (como adulto) que sua memória encontraria sentido e acolhida: “nesse momento, então, lhe é permitido ter memória, voltar ao passado, como se esse fosse dado por um acúmulo de anos ao final do qual fosse garantido o direito de narrar. O resultado é que não vemos narrativas de memória produzidas por crianças” (SCHUBSKY, 2018, p. 23). Nessa perspectiva, também para a autora, talvez sejam as crianças e os idosos alguns dos sujeitos que acabam sendo os mais silenciados, já que, culturalmente, e apenas aparentemente, uns não acumularam memória suficiente e os outros, apesar de serem depositários de uma vasta gama de memória, não interessariam a uma sociedade presentificada (SCHUBSKY, 2018).
Por fim, um último destaque quanto ao contexto da pesquisa, em especial sobre um aspecto teórico-metodológico em sua especificidade: ao afirmar que nosso objetivo central foi o de discutir com as crianças memórias a partir de suas experiências em família (tal como evidenciadas em fotografias) é diferente de dizer que discutimos, com elas, sobre o conceito de família. Afirmamos, assim, que nossas escolhas tinham um vetor central de debate, um recorte de um universo certamente vasto; tal vetor, tal recorte, ao mesmo tempo que nos permitiam traçar contornos e limites, também eram insistentemente expandidos, vazavam em direção a outros temas (vetores, recortes) - e isso por uma só razão: porque neles se atravessava, todo o tempo, o movimento errático e flutuante do ato de rememorar.
As crianças como narradoras de suas memórias: ou sobre como narrar a narrativa
À medida que os encontros ocorriam, íamos continuamente transcrevendo literalmente as falas e elementos a elas correlatos que emergiam dali (silêncios, hesitações, repetições, expressões faciais, gestos corporais etc.) num diário de campo. A cada vez, no entanto, ao abrir o arquivo com essas transcrições víamos ali não apenas uma certa insuficiência (por certo, insolúvel) da própria escrita, mas, sobretudo, a perda de uma riqueza, de uma espécie de vigor que se fazia presente quando do momento dos encontros com as crianças. Íamos assim percebendo, já de início, um elemento decisivo em relação às dinâmicas de narração das memórias por parte das crianças: para elas, narrar era narrar com o corpo inteiro.
Ao falar sobre a forma como as crianças narram, Hartmann (2016) destaca o quanto as histórias de vida, para as crianças, são contadas por meio de uma narração que transborda a comunicação oral em direção a uma expressividade na qual todo o corpo se faz presente. Esse corpo, como forma de expressão, também ele, se organiza e se compõe de um conjunto de significações vividas e produzidas a partir de diversas situações que se dão durante a vida. Também sobre esse aspecto, Sayão (2008) afirma que os corpos, em sua possibilidade criar e ser o suporte de distintas experiências sensoriais, são os primeiros brinquedos das crianças. Entender essa relação se torna ainda mais importante quando se retoma que é por meio das brincadeiras que as crianças dão sentido ao mundo que as cerca, de modo ativo e criativo. Por essa razão, a autora aborda o conceito “corporalidade”: para relativizar a dimensão material do corpo e indicar, assim, as construções culturais que se produzem sobre e a partir dele.
Ao mesmo tempo, Buss-Simão et al. (2010, p. 154), baseados em James, Jenks e Prout (2000), afirmam que não se deveria reduzir as pesquisas sobre o corpo nem a determinações biológicas tão pouco a determinações culturais, já que ele merecia ser entendido, mais do que isso, como uma “unidade biopsicossocial”. Sob essa concepção, isso significaria compreender como se dá, com as crianças, um processo gradativo de “corporificação” (ibidem), em que seus corpos dialogam com regras e hábitos não apenas na forma de uma assimilação ou de reprodução, mas de modo resistente e ativo.
Apesar disso, nos depararmos insistentemente com a premissa segundo a qual o corpo das crianças seria um corpo incompleto, inacabado; um corpo que se daria concluído somente após transformações biológicas intensas (AGOSTINHO, 2018). Para Agostinho, o corpo da criança emerge, sim, como “grande informante” (ibidem, p. 349) e, nessa condição, como “homogêneo da língua”: em seus movimentos, expressões, gestos, o corpo da criança se inscreve no espaço e no tempo de formas simbolicamente singulares e, com isso, “expressa saberes, dúvidas, aceitação, contraposição, sentimentos, fragilidades, força, agilidade, incapacidade, fraqueza; enfim, seus pontos de vista, nos informando, dessa maneira, os modos de ser criança das meninas e dos meninos” (AGOSTINHO, 2018, p. 353). Ou seja, superando o “mito de vivacidade” (ibidem, p. 354), que parece exigir de todos os corpos infantis certa forma de se expressar (qual seja, necessariamente “viva”, dinâmica, desbravadora), a autora aposta na compreensão das sutilezas dos corpos infantis em sua característica de se situar num “espaço de limiar”; ou seja, em suas formas de estar entre interior e exterior, entre formas de percepção e de expressão, entre um eu e o coletivo. Na defesa de que as crianças são “atores sociais de corpo inteiro” (ibidem, p. 347), assume-se que elas são diferentes entre si, tanto quanto o são as formas pelas quais se expressam com seu corpo (AGOSTINHO, 2018).
Como se pode perceber, falamos de um tipo de narrativa na qual “corpo e oralidade”, “corpo e pensamento” se efetivam como dimensões inseparáveis (SANTOS; CARVALHO, 2023, p. 12) e, no limite, indiscerníveis. Nos termos de Machado (2010), trata-se, pois, de um corpo performer numa narrativa performer: corpos falantes, dançantes, pensantes e introspectivos; corpos que brincam, desenham, falam e se expressam de múltiplas formas; corpos que guardam sua potência na medida em que conjugam “infância”, “performance” e “campo imaginativo” na e para a produção de sentidos (MACHADO, 2010, p. 115). Para a autora, isso se dá porque, para as crianças, expressão e realidade não estabelecem uma correspondência direta, pois o “real” é efeito da interpretação de acontecimentos e situações. “Criança performer” (MACHADO, 2010, p. 115): no ato mesmo de imaginar, expressa seu modo de ser e estar do mundo.
Reconhecemos, portanto, os desafios de uma pesquisa com crianças no ato de dar sentido (na escrita) aos movimentos corporais das crianças, às suas expressões faciais, aos seus gestos. Em nosso caso, algumas das histórias ouvidas das crianças sobre suas memórias envolveram movimentos e relações entre elementos das cenas ali por elas narradas; outras revelaram emoções durante o ato de narrar, como os risos ou as contrariedades; outras pareciam exigir certa teatralidade ao interpretar outros atores e, com isso, vozes inventadas (mais graves, mais agudas). Em todas elas trata-se de um corpo que narra e, como tal, coloca em jogo uma miríade de gestualidades: as crianças participantes da pesquisa levantavam das cadeiras, movimentavam braços, mãos, pernas e cabeça porque precisavam não apenas contar, mas também mostrar o que estavam lembrando (ou, de outro modo, contar consistia em mostrar, inseparavelmente). Elas fizeram todos os tipos de “caretas” e vozes ao representar o que diziam os personagens envolvidos nas suas histórias (inclusive elas mesmas). Mais do que isso: as crianças, ao narrarem suas memórias, também as sentiam. Lembranças divertidas, tristes, assombrosas ou curiosas se tornavam rememorações divertidas, tristes, assombrosas e curiosas justamente porque essas emoções vividas se produziam, também, no próprio ato de narrar, enquanto narravam, porque narravam.
Além disso, os corpos das crianças não ficavam parados à espera das perguntas, dos diálogos, das interlocuções. Eles também eram corpos que ocupavam o espaço da pesquisa e interagiam, ao mesmo tempo, com os objetos ou pessoas que estavam ali próximas: brinquedos em miniatura com quem junto conversam, abajures que transformam o ambiente para reconstrução de uma cena lembrada, almofadas que os deixam mais confortáveis, ferramentas da vídeo-chamada que, acionadas pelas pequenas mãos, permitiam abrir ou fechar câmera, microfones ou mudar o plano de fundo da imagem, lanches servidos que adentraram as entrevistas, visitas que chegavam ou que iram embora do ambiente, conversas paralelas entre as pessoas da casa. Os corpos das crianças, enfim, escutavam, sentiam, brincavam, se movimentavam, lembravam - e tudo isso, sim, compunha o ato de narrar.
Mais uma vez: como considerar essas performances das crianças, tão características nos modos de contar suas histórias de vida? Como, e assumindo a responsabilidade ética de pesquisadoras, traduzir em texto acadêmico, memórias que eram lembradas de corpo inteiro, durante as entrevistas? Como compor uma escrita que desse conta das experiências das crianças, comunicadas por elas e assumidas ali, pela pesquisadora com quem interagiam nos encontros também com o seu corpo? Como “traduzir” as memórias das crianças, narradas performaticamente nos encontros, considerando o objetivo a que nos propomos nesta pesquisa?
Se nos valemos do termo “traduzir” para descrever esse movimento de operar sobre as narrativas das crianças é porque entendemos que, como pesquisadoras, nossa tarefa coincide, em alguma medida, com aquela do tradutor, tal como descrita por Walter Benjamin. Para o filósofo, a tarefa do tradutor é a de manter um vínculo estreito com o original, enquanto deixa que o mesmo se renove e alcance outros desdobramentos por meio das traduções - uma vez que “as palavras fixadas continuam a pós-madurar” (BENJAMIN, [1923] 2008, p. 55, grifos meus). Assim entendidas, as traduções se mostram, elas mesmas, não como superfícies fixas e inamovíveis de sentido, mas em permanente conflito com o original, como um processo violento, mas necessário para que ele (o original) garanta sua sobrevivência (GAGNEBIN, 1999). Ao mesmo tempo, ainda que investida em tensionamento, Benjamin ([1923] 2008) considera a tradução como um movimento amoroso na medida em que, empenhado com um compromisso com a palavra, encontra na liberdade da reprodução (tradução) seu verdadeiro sentido.
Em sua descrição mais absoluta e restrita, a tradução, tradicionalmente, está ligada à ideia de traduzir o que uma linguagem (verbal ou não verbal) significa, ou seja, reduzida ao âmbito do significado (GESSNER, 2016). Ainda sob essa perspectiva reside a ideia da tradução como uma espécie de inatingível; algo que linguagem alguma, em sua duplicação, conseguiria dar conta em essência. Tradução também pode implicar um sentido, no limite, oposto: algo sobre o qual se faz necessário operar dada a natureza enigmática de um original, que suporia os limites, aí sim, de um leitor: é para ele, em sua fragilidade, que é preciso traduzir.
No campo da literatura (mais precisamente nos estudos de tradução), é Haroldo de Campos um dos que, tratando a tradução não como conceito, não como recuperação de um texto primeiro, mas como processo, expande os sentidos tradicionais da tradução, reconhecendo que sua efetivação parte, justamente, de uma “discrepância entre o dito e o não dito”; dessa discrepância, em seu caráter irredutível, que pode emergir a tradução como criação. Em uma palavra, tradução como transcriação.
Ao operar com esse conceito no campo da educação, Sandra Corazza afirma que uma tradução na qualidade de transcriação ou “transpoetização” (CORAZZA, 2015, p. 111) não busca atingir a semelhança com o original, já que tanto as línguas como as originalidades se renovam e se transformam com o tempo (ibidem). No entanto, na tradução se conservam traços dos elementos originais, transformando-os de maneiras inusitadas (CORAZZA, 2013). Para a autora, ao se traduzir o intraduzível, entre linguagens verbais e não verbais, transcriar não pode ser menos do que uma questão de arte (CORAZZA, 2015).
De acordo com os pressupostos teórico-metodológicos da “transcriação”, tal como desenvolvidos por Corazza (2015, 2013) e que envolvem a teoria criadora e da poética do traduzir, é preciso escolher textos com potência para uma (re)escrita e uma (re)leitura: “[...] os textos escolhidos e trabalhados são considerados abertos e dispersos, polissêmicos e difusos, experimentais e ambíguos, carregando galáxias de sentidos, tramas de códigos e processos fragmentários” (CORAZA et al., 2015, p. 323).
Paralelamente, como conceito presente no campo da História Oral, “transcriação”, de igual maneira, convida à criação de formas de adaptar a fala do interlocutor de uma entrevista do oral para o texto escrito. Também aqui, ao tratar do tema, Caldas (1999) não se restringe em entender o conceito da transcriação como uma possibilidade de releitura de um “original”, mas o identifica como uma concepção que oscila entre memória, fala, transcrição, textualização e interpretação. Para o autor, uma das primeiras ações ao transcriar é a supressão das perguntas do entrevistador, “deixando falar e viver o outro”, criando de maneira a respeitar a dimensão de “sujeito da história” (CALDAS, 1999, s.p.). Neste processo, trata-se de iniciar a escrita a partir dos dados obtidos conversão da oralidade - a tradicional transcrição - para depois transformar esse primeiro texto em um largo processo de identificação “do não-dito, não-pretendido, não-vivido, não-pensado, não sentido, mas ouvido ou pretendido ser ouvido” (CALDAS, 1999, s.p.). No processo de transcriação, então, assume-se, sem constrangimentos, uma “ficcionalidade viva”, no lugar da formalidade científica (CALDAS, 1999).
Caldas (1999), baseado em Meihy, afirma que o tradutor, ao recriar a atmosfera da entrevista, transcriando as sensações provocadas, teatraliza o que foi dito, inclusive fazendo uso de “técnicas literárias”, para além de uma reprodução palavra por palavra, valorizando a narrativa como um elemento comunicativo que não apenas diz, mas também sugere. Este novo texto transcriado deixa de ser tratado como documento (de um passado, de uma sociedade, de um indivíduo, de uma classe, de uma cultura), e passa a representar um momento narrativo na qualidade de “intransitividade viva” (ibidem). O pesquisador, portanto, segundo Caldas (1999), não pode transformar seu texto em um dado científico definitivo, mas sim considerá-lo aberto às múltiplas interpretações. Dito de outra forma, trata-se de textos que, ao resultar de uma “poética da experiência”, se tornam tanto uma “poética da leitura” quanto uma “poética da interpretação” (CALDAS, 1999, grifos do original).
Provocadas e sensibilizadas ao movimento de buscar esse papel crítico e criativo ao traduzir/transcrever os encontros com as crianças em linguagem escrita, entendemos que as memórias de infância, narradas oral e corporalmente pelas crianças, se manifestavam, em grande medida, como “textos” potencialmente abertos, dispersos e polissêmicos e, portanto, férteis para serem investidos de um trabalho de elaboração nos termos do que vimos aqui discutindo - e que dizem respeito ao que chamamos de transcriançar.
Ainda que não diretamente inscritas numa metodologia de transcriação, Pereira, Milanez e Viegas (2019) se aproximam desse procedimento que envolve tradução-interpretação-criação ao se desafiarem a transcrever as situações de pesquisa com crianças em forma de crônicas. Aqui, portanto, o ato de escrever do/a pesquisador/a assume um lugar ativo, marcado, a um só tempo, por uma responsabilidade ética e estética. As autoras sustentam a escolha dessa modalidade de escrita a partir de Benjamin (1987), tanto por meio do conceito de “fisiognomia” - esta “arte de escrever a história através de imagens”, em que “espaço e tempo se efetivam como categorias indissociáveis” - e, com efeito, nas formas pelas quais, justamente por isso, aquele que narra a história efetiva-se como um “cronista do cotidiano” (PEREIRA; MILANEZ; VIEGAS, 2019, p. 215):
Mal o dia começava quando a vi pela primeira vez. Trocava o pijama estrelado com que passara a noite e listava, orgulhosa, os muitos desenhos do vestido que terminava de ajeitar enquanto a mãe penteava os seus cabelos: “tem bola, tem gato, tem cachorro, tem princesa!”. O pai, silencioso e ágil, escutava o telejornal num pequeno celular enquanto desmontava o quarto da família: um colchão de casal posto sobre uma pequena carroça. Foi tudo o que pude ver no breve instante em que passei. Ao retornar, poucos minutos depois, já não estavam lá. No dia seguinte, já saí de casa desejosa de reencontrá-la. E lá estava ela, no carrinho, arrulhando mais que passarinho, toda arrumada e com uma boneca na mão. O pai desfazia, mais uma vez, o quarto da família; a mãe ajeitava os lençóis numa sacola e guardava sob a carroça. Mais que isso não pude ver, embora tivesse diminuído o passo para expandir o instante. Minha rotina de acompanhar o filho que ia para a escola até o ponto do ônibus passou a marcar os meus encontros com ela, aquela vizinha tão pequena que tinha uma esquina inteira para ser sua casa - uma casa que, como num passe de mágica, se desfazia. [...] (PEREIRA; MILANEZ; VIEGAS, 2019, p. 211).
Para as autoras, as crônicas, como umas das formas de escrita em pesquisa com crianças, nos convidam a “reaprender a olhar e a dizer, sabendo serem muitas as formas de olhar e de dizer” (ibidem). Para a composição dessa forma específica de escrita, faz-se necessária a construção de um processo de pensar a todo o tempo numa teorização que emerge daquilo que foi visto e vivido, construída em forma e conteúdo a partir do encontro singular e único com as crianças: “Isso quer dizer que não há outra pessoa que possa ver o que vimos, pensar o que pensamos, dar sentidos de acordo com a verdade que assumimos” (PEREIRA; MILANEZ; VIEGAS, 2019, p. 197).
A partir das discussões realizadas nesta seção, na medida em que colocam em relevo dinâmicas de narração e de tradução, e para dar conta da singularidade que é narrar a memória das crianças, escolhemos algumas histórias das crianças para serem não apenas transcritas, literalmente, mas, sim, para serem transcriançadas. Entendemos que o gesto de transcriançar emerge como exercício teórico-metodológico que coloca em jogo modos particulares de urdir a palavra em contexto investigativo, notadamente porque, como referido, permite fazer ver e dizer a dinâmica mutuamente constitutiva entre narração (da criança) e tradução (do/a adulto/a). Se fizemos essa opção é porque entendemos ser fundamental reconhecer que existe uma multiplicidade de formas de operar com o que as crianças nos dizem, especialmente em um contexto em que se admite que não há neutralidade nem na produção, nem na análise dos dados e nem mesmo na forma como o campo emerge em nossas pesquisas como matéria viva.
Trancriançar, em ato
1
Medos: de aranha, de formiga venenosa e
do ESCURO!
Para evitar encarar o tal escuro,
é só fechar bem os olhos
(mas aperta mesmo)
e caminhar com os braços esticados,
usando as mãos para proteger:
das quedas, dos acidentes e dos monstros!
Um dia, porém, Rafael e Luiza4 viram um cabide com roupas que, no escuro,
parecia um monstro digno de se deixar louco de medo!
Enfiar-se debaixo das cobertas.
Fechar o olho.
E tentar dormir.
Agora que eles já não têm mais medo de escuro,
dá até pra encará-lo de olhos bem abertos.
Com o tempo,
o olhar se acostuma a enxergar o escuro.
Rafael e Luiza, encontro 1, 25min
2
Uma menina que brinca.
Pega a roupa da mãe.
Ela finge que tem seios e coloca um vestido esquisito.
Luiza é adolescente, às vezes adulta e fala com amigos imaginários.
E brincando inventa outras línguas
(naquele mundo é tudo imaginário, afinal!)
Selvi arti, uit naite, oh trends tein! Aobirt, nuitron and tronglaft tuir!
Um menino que brinca.
Eu brinco que sou outra pessoa, não sou eu.
Rafael vira pai. Uma prima vira mãe. Luiza, seus primos gêmeos, primos da prima e
mais outro primo: todos filhos. Temos uma família!
E ele sempre é um pai bem grosso!
Em sua defesa: são os filhos que decidem que tipo de pai Rafael será: muito legal,
querido, muito querido, normal, chato, super chato, mega chato ou bem brabo.
Em sua defesa: Luiza também não é uma filha fácil, quer fugir de casa, ir para festas e
está sempre reclamando que está sem dinheiro.
A gente dá dinheiro pra ti, e tu quer sempre mais!
Irmãos que brincam, juntos.
Na vida real, irmãos.
Nas brincadeiras, o que quiserem ser.
Rafael e Luiza, encontro 3, 53min
3
Praia:
Lugar de mergulhar no mar e quando levantar da água sentir seu rosto queimado por uma água viva, curado pelo vinagre que os salva-vidas passaram.
Ágata, encontro 1, 33min
Lugar de entrar em um mar ruim, com chuva, sem saber nadar, entrar com o nariz fechado e mesmo assim engolir água, quase se afogar e chamar a mãe para ajudar com a tosse.
Rafaella, encontro 1, 35min
Lugar de esperar a onda pequena para pular por cima e a onda grande pra fazer “jacaré”.
Ágata, encontro 1, 33min
Lugar de enterrar os pés e pernas na areia e desenhar uma cauda de sereia e encher de conchinhas.
Ágata, encontro 1, 33min
Lugar de ficar chateado quando não pode ir se divertir no mar ou quando precisa brincar em ondas fracas… porque brincar só na areia ou quando não deixam entrar embaixo de ondas grandes não tem graça.
Murillo, encontro 2, 20min
Lugar de ensinar o irmão mais novo a perder o medo do mar, assim como os pais fizeram quando também era pequeno
Murillo, encontro 2, 20min
4
Em dias de muito calor, é convidativo fazer brincadeiras com água. Existem muitas
formas de se brincar com água em família, em casa, como, por exemplo, com
mangueiras, enchendo de água alguns balões, ou pistolas ou até mesmo com uma
garrafa pet que não se usa mais. Todos esses objetos, nas mãos de crianças e de
adultos brincantes, se transformam em instrumentos para uma guerra molhada. Após escolhidas as ferramentas e os participantes da brincadeira, é preciso decidir pelo local, longe de qualquer canto da casa, móveis e materialidades que não possam, por ventura e acidentalmente, acabar sendo molhados também. Quem mora em uma casa térrea possivelmente tem mais opções, já que incluem os pátios, garagens e espaços ao ar livre para essa “molhaçada”. Quem mora em apartamento já pode acabar encontrando alguma dificuldade em achar um lugar ideal em que se permita tamanha “bagunça”.
Nossa sorte é que uma das moradias de Léo, mesmo sendo um apartamento, conta
com uma pequena cobertura aberta para rua. Nossa sorte maior ainda é que Leo
costuma passar os finais de semana ali, junto com o seu papai. A brincadeira com
água, portanto, está garantida: há ferramentas (mangueira e garrafas), há adultos
brincantes (o papai, a namorada do papai e o titio) e há um local em que se permite o molhar e o molhar-se (este terraço ligado ao apartamento).
Mas e se, por acaso, acabasse caindo água lá embaixo, molhando as pessoas que
passam na rua onde está o prédio do Léo?
Na brincadeira com água, como qualquer boa brincadeira que se preze, a gente
também pode incorporar mais um elemento: imaginar e fazer de conta.
Oh, não, parece que está chovendo!(uma voz que se surpreende)
Será que tem uma nuvem bem na minha cabeça?(uma voz que indaga)
Está chovendo! Ué, mas já parou a chuva?(uma voz espantada e curiosa)
Foi só impressão!(uma voz que tenta explicar o improvável)
Não foi! Olha, estou todo molhado!(uma voz indignada)
Na brincadeira de narrar memórias, afinal, também há estes elementos que a
garantem: ferramentas (fotografias ou outras tantas boas histórias), adultos brincantes (porque estão interessados em ouvir as histórias das crianças) e um local adequado (um espaço-tempo para que narrativas e memórias possam ser produzidas, de forma compartilhada).
Na brincadeira de narrar memórias, enfim, como qualquer boa brincadeira que se
preze, a gente também pode incorporar o elemento imaginar e fazer de conta.
Memórias que a gente (re)inventa!
Léo, encontro 3, 1h14min
***
Considerando os aspectos acima debatidos tanto sobre a singularidade das formas de narrar das crianças, como, igualmente, aqueles relativos à tradução como transcriação, podemos sistematizar desta forma aquilo que vimos produzindo como gesto de transcriançar os encontros com as crianças. Definiríamos, assim, os pressupostos do transcriançar, como estratégia teórico-metodológica de escrita: 1) a indissociabilidade entre ética e estética: ou seja, a mútua implicação entre respeitar, acolher e priorizar um prática específica e singular de narrar, em suas especificidades (o que incide numa atitude ética frente às crianças e junto a elas) e, de modo inseparável, na produção de uma escrita autoral, inventiva, que permita fazer ver o que não é visível, na busca de poetizar a escrita como extensão do espaço investigativo (valendo-se, por exemplo, de recursos gráficos, figuras de linguagem, recursos estilísticos - sem pretender-se necessariamente literário, mas entendendo que forma e conteúdo operam aqui de maneira indissociável); 2) o distanciamento de uma escrita que se volte para a recuperação literal e imediata do vivido e que assim aponte para imaginação como matéria viva da narrativa: ou seja, entendemos que é somente quando nos implicamos, como pesquisadores e pesquisadoras, na escrita, expandindo e ultrapassando uma ideia de “transposição”, de “transcrição” fiel e, com elas, de literalidade, que partimos em direção de um criar junto, criar com as crianças, a partir do que se passou no campo - não adultizando seus modos de falar, agir e se expressar, mas criançando os nossos; 3) rejeição a qualquer pretensão de “neutralidade” na escrita: transcriançar supõe, necessariamente, uma aposta subjetiva daquele/a que escreve, ou seja, implica não apenas assumir-se como autora/a que é da tessitura textual, como também autor/a na medida em que o que se passou no campo, da forma como se passou, contou necessariamente com a participação do/a pesquisador/a para produzir-se como tal. Isso incide em formas afirmativas de não romantizar o campo nem a pesquisa com crianças (como se fossem, as falas, as narrativas, fundamentalmente, essencialmente das crianças, mas asumindo-nos também como partícipes de sua construção); 4) transcriançar exige uma escrita performativa: ou seja, uma escrita que faça ver movimentos, sonoridades, corpos, dinâmicas, silêncios, hesitações, medos, surpresas, sustos, risadas (altas, discretas, esboçadas), choros (incontidos, reservados); 5) transcriançar demanda uma escrita cuja temporalidade não apela a um antes e depois (tempo da recuperação, do como foi, como era), mas a um presente inescapável, que só se efetiva em ato, no ato mesmo de escrever, de forma irrepetível.
Considerações finais
Buscamos, neste texto, apresentar os modos pelos quais vimos enfrentando a desafiadora tarefa de transformar em texto aquilo que se passa no espaço-tempo vivenciado junto às crianças quando em situação de pesquisa. Nosso objetivo foi trazer para o debate apenas uma das tantas possibilidades que emergem quando ensaiamos formas de fazer reverberar, de alguma maneira, as dinâmicas ativas e vivazes que permeiam as relações entre adultos/as e crianças no curso do diálogo, da troca, da conversa, naquele, solitário, de composição escrita (acadêmica).
Para tanto, num primeiro momento, apresentamos o contexto mais amplo da pesquisa da qual este texto nasce - e, mais do que isso, as próprias problemáticas emergem. Assim, foi no trabalho de realizar uma pesquisa com crianças sobre suas memórias que percebemos que, ao serem transformados em texto, os encontros estabelecidos com elas, tal como inicialmente descritos (transcritos), não traziam, de todo, a riqueza e potência das narrativas das crianças.
Em seguida, e como forma de criar novas perspectivas para o enfrentamento dessa questão, compomos uma seção na qual os conceitos de narrativa (da criança) e de tradução, em suas especificidades, se mostraram como fundamentais para a composição do que chamamos de transcriançar - ou seja, uma prática de escrita que se volta, não para uma reconstituição literal do que ocorreu alhures, mas para a (re)criação, pela palavra, das memórias contadas pelas crianças em suas particularidades sonoras, corporais, musicais, sentimentais etc.
Por fim, trouxemos alguns excertos que, entendemos, correspondem a práticas de transcriançar os encontros realizados nas situações de pesquisa com as crianças, na tentativa de mostrar, em ato, como eles seriam constituídos. Além disso, e a partir desses excertos, buscamos sistematizar alguns pressupostos básicos desse processo teórico-metodológico como forma de lhe dar volume e espessura, especialmente na medida em que implicado com estratégias singulares de composição e que respondem não a qualquer situação investigativa, mas particularmente àquelas que envolvem crianças. Ao organizar esses pressupostos, afirmamos que transcriançar se constitui, acima de tudo, como prática implicada com a (re)criação ético-estética do vivido, com a implicação do sujeito que narra e escreve e a com formas invariavelmente autorais de fazer ver e dizer aquilo que, como pesquisador/a, só ele/ela pode fazê-lo, tal como como um artesão na medida em que “[...] adere à narrativa a marca de quem narra, como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro” (BENJAMIN, 1980 [1936], p. 63).