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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.76 Curitiba ene./mar 2023  Epub 05-Abr-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.076.ds04 

Dossiê

A construção de uma lógica na pesquisa com bebêsa

Logic of inquiry building in a research with babies

Elenice de Brito Teixeira Silvab 
http://orcid.org/0000-0001-8145-6664

Vanessa Ferraz Almeida Nevesc 
http://orcid.org/0000-0003-4094-3639

bUniversidade do Estado da Bahia (UNEB), Salvador, BA, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: elenteixeira@yahoo.com.br

cUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: vfaneves@gmail.br


Resumo

Como a ontologia dos bebês como seres sociais potentes e vulneráveis impacta as decisões teórico-metodológicas na pesquisa? Como as questões epistemológicas circunscrevem a produção de uma lógica que apreenda as relações entre bebês e outras pessoas, as materialidades e contextos histórico-culturais? Estas questões são objetos de reflexão neste artigo, construído a partir da pesquisa sobre os processos de constituição da brincadeira em um grupo de bebês na Educação Infantil entre os anos de 2017 e 2018. A pesquisa buscou evidenciar a gênese cultural desta atividade no grupo, sua concretude nas práticas sociais coletivas e nas relações de alteridade construídas por meio do compartilhamento das fontes narrativas e simbólicas, das rotinas culturais e de cuidado na EMEI Tupi em Belo Horizonte, Minas Gerais. Com base nos fundamentos da Teoria Histórico-Cultural e da Etnografia em Educação, assim como nos diálogos com os Estudos da Infância e dos Bebês, buscamos conferir centralidade às ações e linguagens dos bebês dialeticamente situadas em relação aos acontecimentos sociais que possuem historicidade no grupo e na cultura mais ampla. Portanto, a natureza contextualizada da pesquisa e o cuidado ético de situar e considerar sempre as pessoas, materialidades, discursos, estruturas, métodos, como contextos para o que acontece, são duas premissas anunciadas entre os princípios orientadores da pesquisa com bebês que se desdobraram em implicações metodológicas.

Palavras-chave: Pesquisa com bebês; Educação Infantil; Teoria Histórico-Cultural; Etnografia em Educação

Abstract

How does the ontology of babies as potent and vulnerable social beings impact theoretical-methodological decisions in a research? How do epistemological questions circumscribe the production of a logic that apprehends the relationships between babies and other people, the materiality and cultural-historical contexts? These questions are objects of reflection in this article, built from the research on the processes of constitution of play in a group of babies in Early Childhood Education between 2017 and 2018. The research sought to highlight the cultural genesis of this activity in the group, its concreteness in collective social practices and in the relationships of otherness built through the sharing of narrative and symbolic sources, cultural and care routines at EMEI Tupi in Belo Horizonte, Minas Gerais. Based on the foundations of Cultural-Historical Theory and Ethnography in Education, as well as on the dialogues with Childhood and Baby Studies, we seek to give centrality to the actions and languages ​​of babies dialectically situated in relation to social events that have historicity in the group and in the wider culture. Therefore, the contextualized nature of research and the ethical care to always situate and consider people, materiality, discourses, structures, methods, as contexts for what happens, are two premises announced among the guiding principles of research with babies that unfolded in methodological implications.

Keywords: Research with babies; Early Childhood Education; Cultural-Historical Theory; Ethnography in Education

Resumen

¿Cómo impacta la ontología de los bebés como seres sociales potentes y vulnerables en las decisiones teórico-metodológicas en investigación? ¿Cómo las cuestiones epistemológicas circunscriben la producción de una lógica que aprehende las relaciones entre bebés y otras personas, las materialidades y los contextos histórico-culturales? Estos interrogantes son objeto de reflexión en este artículo, construido a partir de la investigación sobre los procesos de constitución del juego en un grupo de bebés de Educación Infantil entre los años 2017 y 2018. La investigación buscó resaltar la génesis cultural de esta actividad en el grupo, su concreción en las prácticas sociales colectivas y en las relaciones de alteridad construidas a partir del intercambio de fuentes narrativas y simbólicas, rutinas culturales y de cuidado en EMEI Tupi en Belo Horizonte, Minas Gerais. A partir de los fundamentos de la Teoría Histórico-Cultural y de la Etnografía en Educación, así como de los diálogos con los Estudios de la Infancia y del Bebé, buscamos dar centralidad a las acciones y lenguajes de los bebés situados dialécticamente en relación a los hechos sociales que tienen historicidad. en el grupo y en la cultura más amplia. Por lo tanto, el carácter contextualizado de la investigación y el cuidado ético de situar y considerar siempre a las personas, las materialidades, los discursos, las estructuras, los métodos, como contextos de lo que sucede, son dos premisas anunciadas entre los principios rectores de la investigación con bebés que se desdoblaron en implicaciones metodológicas.

Palabras clave: Investigación de bebés; Educación Infantil; Teoría Histórico-Cultural; Etnografía en la Educación

Primeiras aproximações com o grupo de bebês

O dia era 26 de março de 2018. Chegamos na EMEI Tupi, localizada em Belo Horizonte, Minas Gerais, no início da tarde. O grupo ainda dormia. Uma colega da equipe de pesquisa realiza a filmagem, enquanto uma de nós faz anotações no caderno de campo, toma notas sobre o espaço, os sujeitos, as rotinas, algumas informações sobre o grupo, como as datas de nascimento que constavam no mural da sala. Esse revezamento entre anotar ou portar a câmera era comum quando havia mais de uma pesquisadora da equipe em campo. Um dos aspectos positivos era conseguir captar um panorama geral do que acontecia na sala e, ao mesmo tempo, anotar detalhadamente, nas notas de campo, um evento selecionado.

Toda a turma se prepara para ir ao o lanche da tarde. Percebemos que havia uma rotina ritualizada de utilização de um elástico para envolver as crianças até o refeitório. As professoras atribuíam sentidos para esse artefato relacionados à ideia de transporte, especificamente ao trem que professoras e crianças nomeavam como piuí. As crianças pareciam compartilhar da ideia de que era preciso entrar no piuí e fazer parte dele para manter a rotina cultural de locomoção. A professora Verônica1 organizava o piuí para a partida enquanto cantava “eu vou, eu vou, papá agora eu vou”. Valéria (24m) demonstra resistência para entrar no “trem”. Ela protesta se desvencilhando do elástico e se desloca em direção ao canto da sala onde estávamos filmando. Nas duas vezes em que se afastou do grupo, Valéria foi direcionada por Fabiana, a profissional de apoio, a retornar. Em uma dessas vezes, ela pegou um pandeiro e retornou para as proximidades do elástico, olhou em nossa direção e perguntou para a minha colega da pesquisa: “qual nome dela?”. Ao saber do meu nome, ela estendeu o braço por baixo do elástico, segurou a minha mão e disse: “vem, vem”.

A ação e a palavra de Valéria significaram para nós, um convite para estar com as crianças durante todo o ano letivo, conhecer e nomear cada uma, entender a organização dos espaços e tempos, familiarizar-se com as regras institucionais e com o grupo de professoras. Os limites e possibilidades de participação, por exemplo, começam a ficar explícitos nesse convite de Valéria. Sentimos, naquela negociação entre entrar e não entrar no trem, no ato de convencer a menina a continuar com o grupo enquanto a professora tenta manter todos no trenzinho, um certo incômodo pela possibilidade de estar atrapalhando o andamento das atividades.

Embora o ano de 2018 seja o ponto de partida neste artigo, o objetivo de compreender o processo de constituição da brincadeira, foco de atenção na pesquisa, exigiu a análise das filmagens do banco de dados realizadas desde a inserção da equipe da pesquisa na turma por meio do Programa de pesquisa em Cultura, Educação e Infância - EnlaCEI. Trata-se de um Programa que acompanha, por meio de uma abordagem etnográfica, o mesmo grupo de doze bebês entre 07m e 10m de idade desde sua inserção na EMEI em 2017. A EMEI Tupi adota um nome para cada turma, geralmente escolhido pelas crianças e professoras. Turma do Abraço era a designação para o grupo de crianças que, em fevereiro de 2018, estava com idade entre 15 e 23 meses. Esse grupo era composto de 14 crianças, sendo 09 meninas e 05 meninos. Quanto ao pertencimento étnico-racial, metade das famílias declarou, na ficha de matrícula, que as crianças são pardas e, a outra metade, branca.

A EMEI Tupi está localizada na região da Pampulha, em um bairro que pode ser considerado de classe média pelas características estruturais e de serviços. Entretanto, muitas famílias atendidas vêm de bairros próximos e se enquadram no critério de vulnerabilidade social definido na distribuição de vagas. A partir dos dados das fichas de matrícula, identificamos que, das 14 famílias atendidas, 08 têm renda per capita inferior a R$400,00, o que é considerado situação de vulnerabilidade social. Nesse grupo, duas famílias são assistidas pelo Programa Bolsa Família e possuem renda de R$170,00 por pessoa, ou seja, em situação de pobreza. Também há, nesse agrupamento, 04 famílias com algum familiar em situação prisional. Dez, entre as 14 mães, tinham idade entre 25 e 35 anos, tinham, pelo menos, mais um filho e possuíam apenas o Ensino Fundamental. A maioria trabalhava em regime de 40 horas semanais no ano de 2017, quando iniciamos a pesquisa.

Ao longo dos três primeiros anos da produção do material empírico, as crianças foram atendidas em tempo integral, entre 7h e 17h, havendo um grupo de treze professoras e duas profissionais de apoio que foram responsáveis pelo cuidado e educação desse grupo. Dos duzentos dias letivos de cada ano, observamos 42% em 2017, 35% em 2018 e 45% em 2019. Produzimos 897 horas de filmagens, fotografias, notas de campo e entrevistas.

O grupo de pesquisa é composto por professoras e estudantes da graduação e da pós-graduação, sendo que o objetivo geral do estudo é compreender o processo de desenvolvimento cultural dos bebês em um contexto coletivo de cuidado e educação, com foco em diferentes dimensões do desenvolvimento, das ações e das práticas sociais que o circunscreve. Tal compreensão é orientada pelos fundamentos ontológicos e epistemológicos da Etnografia em Educação e da Teoria Histórico-Cultural. Em nosso entendimento, a linha teórico-metodológica que converge nas duas abordagens é a evidenciação dos processos de criação e significação; processos que não são sequências de acontecimentos no tempo linear e cronológico, mas organizados com base no fundamento da historicidade, no raciocínio do tipo abdutivo e nas perspectivas contrastivas - movimentos de ir e vir nos dados para buscar peculiaridades. Ou seja, nosso objetivo de estudar o processo de construção da brincadeira, por exemplo, envolveu a análise da origem cultural da brincadeira nas configurações de espaço-tempo-relações e materialidades do grupo que a possibilitam, assim como de suas transformações ao longo do tempo. Portanto, a longa permanência em campo é um princípio fundamental, assim como a construção de uma lógica de pesquisa (GREEN; DIXON; ZAHARLICK, 2005) com bebês em um contexto coletivo que pressupõe um conjunto de interações simultâneas historicamente situadas. Neste artigo, argumentamos que a construção de uma lógica na pesquisa com bebês é pertinente no exercício de compreender dimensões do desenvolvimento cultural humano historicamente situados em relação aos acontecimentos, narrativas e ações das pessoas em um grupo que compartilha práticas sociais na Educação Infantil. Desse diálogo, decorre nossa opção por uma abordagem teórico-metodológica histórica, analítica, interpretativa, holística, contrastiva e microgenética da brincadeira a partir de uma lógica de pesquisa dialético-abdutiva, como buscaremos discutir ao longo do artigo. Na seção seguinte, descreveremos os modos de nossa participação no grupo.

Modos de participação das pesquisadoras na Turma

Muitas questões já foram levantadas por etnógrafos da infância sobre pesquisas com crianças. A aceitação no grupo, o estatuto participante de um adulto “atípico” e “menos poderoso” e as estratégias para entrar nas culturas das crianças (CORSARO; MOLINARI, 2005) são pontos de vigilância do que significa participação na pesquisa. Outras questões dizem respeito à posição interna/externa em relação ao campo e às perspectivas ética e êmica, que são responsáveis por uma polifonia de vozes nos estudos etnográficos com crianças. Por essa razão, deve haver equilíbrio entre o dito, o mostrado e o criativo (JENKS, 2005; GRAUE; WALSHE, 2003). Além disso, há de se considerar diferentes bases do discurso do pesquisador e o problema geracional dos sujeitos; bem como o caráter central da linguagem verbal nas pesquisas e uma certa ignorância da idade de desenvolvimento em nome da centralidade do fazer das crianças e da experiência social que compartilham (CHRISTENSEN; JAMES, 2005).

Quando essas crianças são bebês que estão em constante transformação, inclusive do ponto de vista do crescimento e em processo de apropriação da linguagem, a tomada de consciência de nossa posição e nosso estar ali é um processo longo e diário. Desde aquele convite de Valéria para que entrássemos no trem em março de 2018, as questões sobre participação, distanciamento e neutralidade ficaram ecoando nas reflexões do nosso grupo de pesquisa acerca de atitudes e posicionamentos em relação aos bebês e professoras.

Comecemos por uma das dimensões da participação: a inserção no grupo. Embora ela tenha sido previamente negociada pela coordenação do EnlaCEI com a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e com a gestão da EMEI Tupi, cotidianamente nossa inserção é renegociada nas relações com as professoras, bebês e famílias. A necessidade da inserção prolongada exigiu estabelecer essa relação de confiança e de devolutiva constante junto ao grupo de professoras e coordenação.

A segunda dimensão decorre da própria noção de participação, pois está relacionada com o que outros pesquisadores de crianças chamam de aceitação pelo grupo (GRAUE; WALSH, 2003; CORSARO, 2011). Houve uma suposição inicial de que, com o tempo e com a aceitação no grupo, as crianças deixariam de notar nossa presença, de se aproximar e de nos convidar para alguma atividade, sobretudo como guardadoras e protetoras de brinquedos. A nossa presença e a da filmadora eram sempre percebidas pelos bebês, o que refuta a hipótese, em nossa pesquisa, de que a aceitação e a familiaridade levariam a um tipo de adaptação e “esquecimento” em relação aos outros presentes na sala de atividades. O fato de deixarmos de ser “estranhas” e de os bebês construírem sentidos sobre o que fazíamos ali e sobre a função daquele equipamento evidencia as transformações que ocorreram nas relações. Portanto, fazer parte e ser aceito no grupo são pontos importantes da pesquisa com bebês e outras crianças que se relacionam com a interação estabelecida entre pesquisadores e elas. Essa interação é mediada pelo significado de nosso papel, posição e função no grupo que as crianças e nós vamos negociando e construindo.

Isso nos fez pensar nas oportunidades de participação na pesquisa com bebês. Desde nossa inserção no grupo, somos as adultas com papéis logo percebidos e que, às vezes, eles e elas desejam como parceiras de suas atividades, nos interpelam para guardar brinquedos, para amarrar um sapato, prender o cabelo, limpar o nariz, embalar o sono. No Berçário, como a filmadora ficava fixa no tripé em um canto da sala, os bebês iam até nós mais que nós íamos a eles; isso facilitou participar de algumas rotinas, como alimentação e sono, por exemplo, em alguns momentos. No segundo ano, no entanto, as oportunidades de participação nas rotinas da turma se reduziram, tanto em função da necessidade de manter o foco no processo de registro, quanto da própria dinâmica com os bebês já andando e realizando diversas atividades com certa autonomia. Isso não significa, no entanto, que ignorávamos a necessidade de nossa intervenção nas situações de risco, na emergência do cuidado, na interação com os bebês e professoras quando nos perguntavam e se aproximavam.

A adjetivação da observação como participante na pesquisa que utiliza filmagens sempre exige uma série de explicações pela pressuposição do posicionamento focado na produção do material e no produto da observação. Enquanto participantes, nossa observação não se restringia a estar ali sem nos envolver, sem que experimentássemos sentimentos de estar naquele grupo, sem nos afetarmos pelo choro, pela iminência do risco, da mordida, pela dificuldade de determinado bebê para dormir, pelo cheiro e urgência de comunicar que algum bebê precisava ser trocado. Nossa observação não ocorreu sem que buscássemos meios de entender diariamente aquele lugar, sua dinâmica, as preferências das pessoas (bebês e professoras) e sem tentativas, de nossa parte, de descobrir o que é aceitável ali. Tudo isso já não nos torna meras observadoras, nos termos definidos por Spradley (1980), alguém que assiste e presencia sem sair da condição de espectador imediato da situação.

O grau de envolvimento exigia moderação entre estar ali e, ao mesmo tempo, ser de fora do grupo. Por outro lado, todo o percurso de registro era orientado pelo que estava acontecendo no grupo e que nos chamava a atenção e nos afetava, e não simplesmente pela questão de pesquisa. Assim, podemos dizer que as afecções orientavam nossas ações.

Muitas vezes, deixamos de filmar algo a pedido das professoras, como uma troca de fraldas na sala, ou de recusas inferidas nas ações das crianças. Em outras ocasiões, deixamos de filmar para apoiar as rotinas de alimentação em situação emergencial de reunião com as professoras ou de deslocamento dos bebês para áreas mais distantes, como o anfiteatro. Em muitas situações, direcionamos às professoras questões que não eram captadas por elas e que julgamos ser necessário, como quando alguém se machucava ou saía do refeitório, entre outras.

As observações na turma eram concentradas na rotina das crianças e, portanto, alternadas entre a sala de atividades, refeitório, solário/parque e outros espaços. O uso da filmadora foi sendo ajustado às possibilidades de deslocamento dos bebês de modo a acompanhar o desenvolvimento de eventos. No Berçário (2017), por exemplo, quando os bebês engatinhavam pela sala, o posicionamento do tripé à frente da sala direcionado ao fundo era mais constante. Na Turma do Abraço (2018), quando todos os bebês já se locomoviam e ocupavam diferentes espaços, o movimento da câmera pela sala e as aproximações para captar a fala verbal começaram a acontecer. Com o uso menos frequente do tripé para acompanhar determinado evento, algumas vezes, a qualidade da filmagem foi comprometida. Sem o uso do tripé, no começo das filmagens no Berçário, também observamos que os deslocamentos rápidos de posição prejudicavam as imagens.

Sempre começávamos a construção do material empírico da observação por meio da câmera focalizando todo o grupo. O início de uma sequência de ações de um bebê com outros ou com objetos direcionava o foco até a percepção de que alguém ou algo sinalizou o fim daquele evento. Geralmente, a pista contextual para o fim do evento era a saída do bebê da situação e o começo de uma nova sequência interacional. Com base em Corsaro (1985) e Castanheira et al. (2001), temos trabalhado uma concepção de evento como uma sequência de ações (com a presença, ou não, de outros bebês e adultos) em torno de um tema específico e/ou com um objetivo (mesmo que não esteja explícito). Um evento, nesse estudo, é um resultado dos processos interacionais entre os participantes e foi identificado analiticamente a posteriori ao reconhecermos seu começo, seu desenvolvimento e seu fim (SILVA; NEVES, 2018).

O registro em vídeo na pesquisa etnográfica e, sobretudo, por tratar-se de bebês e crianças pequenas que se comunicam por diferentes meios semióticos antes da fala verbal, é importante para a intenção da microanálise que nos propusemos fazer. Permitir retomar o que aconteceu e observar diversas vezes quase sempre levou a correções de dados que registramos em caderno de campo. As direções para a análise dos eventos de brincadeira, como quem faz o que, com quem, com quais consequências para a atividade no grupo, quem começou, sustentou e finalizou, qual a relação desse evento com outros no grupo, foram possíveis pela perspectiva de retomada que o vídeo permite.

A necessidade de manter contextualizada a evidência do processo de construção da brincadeira no grupo pode ser questionada como uma obsessão da pesquisa contemporânea de “ver por dentro”, como advertem Graue e Walsh (2003). Ao falarem de um certo panopticismo na pesquisa com crianças, esses autores alertam para o prolongamento do efeito da autopercepção do pesquisador por meio da durabilidade da falsa noção de estar em campo. Nosso argumento é que nenhuma tentativa ou instrumento utilizado é capaz de oferecer essa visão panóptica de um fenômeno ou objeto. Apesar do volume de dados, um dos desafios desse tipo de registro, o que é analisado é sempre um recorte de uma história com muitos fios e nuances. Por outro lado, pesquisas longitudinais, como essa em que este estudo está inserido, que acompanha um grupo e busca evidenciar determinados processos, não podem prescindir de formas de registros mais completos e duradouros que possam ser recuperados pela análise, inclusive por outros pesquisadores.

Nessa perspectiva, o material empírico foi construído por cinco pesquisadoras participantes do grupo de pesquisa por meio de notas de campo, videogravações, fotografias e conversas com professoras e famílias. Além das observações na turma semanalmente, participamos de reuniões de pais, eventos escolares, reuniões pedagógicas, encontros formativos com as professoras e conversas com algumas famílias. Essas famílias foram escolhidas a partir da análise dos eventos e da focalização de alguns bebês em função de sua participação na constituição de eventos na trajetória do grupo, como demonstraremos mais adiante com os eventos de brincadeira com os papeis sociais de mãe e filha.

As notas de campo eram produzidas diariamente para oferecer um panorama geral do cotidiano da filmagem, com descrição do que aconteceu, onde, quem participou e de categorias emergentes da observação. As notas facilitam a localização da filmagem no banco de dados e nosso argumento é o de que a transcrição dos vídeos apoia a busca por minúcias indiciais, linguagens verbais e não verbais dos bebês que ampliam nossa compreensão do evento em si, do campo interativo que possibilitou sua construção e da historicidade de um fenômeno na Turma, como por exemplo, a transformação da brincadeira ao longo do tempo.

A filmagem na pesquisa com bebês possui outro incômodo, qual seja, o de captar imagens visuais de pessoas que não assentiram sua veiculação. O acordo com as famílias dos bebês foi feito mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido desde o primeiro dia dos bebês na EMEI em 2017. O consentimento das famílias era de utilização do material apenas para fins da pesquisa e formação docente, com o nosso compromisso de suspensão da filmagem sempre que percebíamos que nossa presença pudesse gerar algum desconforto no grupo. A dimensão ética do cuidado passou, todos os dias, pela sensibilidade, negociação e diálogo. Nosso compromisso apoiou-se na premissa de um respeito incondicional aos bebês, famílias, professoras, profissionais de apoio e coordenação (SILVA, 2021). As professoras, por exemplo, em alguns momentos, solicitavam que mudássemos o foco da câmera. Evitamos o registro das atividades de higiene corporal, especificamente no banheiro e, nos poucos momentos em que foram feitos, evitamos focalizar os bebês na rotina de banho, trocas de fraldas e uso do sanitário.

Registramos, no ano de 2018, dois momentos em que alguns bebês estavam em espaços circunscritos do parque, como o trenzinho e atrás de uma parede, o que compreendemos ser uma recusa da filmagem. No primeiro momento, em 09 de abril, Maria (24m3d2) corria pelo parque atrás de Paulo (23m25d). Os dois sorriam e, em uma brincadeira de pegar, Maria se escondia atrás da parede. Maria se abaixou nesse cantinho da parede e Paulo ficou olhando. Ela entregava umas sementes da árvore para ele. Aproximamos a filmadora e notamos que ela olhou, se levantou e começou a correr. Ela repete o movimento de voltar ao cantinho e, novamente, sair correndo quando me aproximo. À primeira vista, pensamos se tratar de uma rotina de esconde-esconde. Passados alguns minutos, ouvimos que ela chamava pelo nome de Paulo quando ele se afastava: “Vem, Paulo, corre”. Esperamos que ela retornasse para esse espaço e compreendemos, enfim que, talvez, ela não quisesse ser observada por nós e deslocamos a filmagem para outros eventos nesse momento.

Já no dia 04 de maio deste mesmo ano, havia três bebês no trenzinho. Elas se olhavam e sorriam. Aproximamos a filmadora para captar o que estava acontecendo ali. Henrique (23m17d) dizia para Valéria (25m02d): “Bebe, filha”. Simone (24m) foi a primeira a me olhar. Ela sorriu, mas, em seguida, sinalizou com gesto de não com a cabeça. Perguntamos se ela não queria que ficássemos ali. Ela continuou olhando e, embora não tenha respondido verbalmente, imediatamente desligamos o equipamento e nos desculpamos pelo ocorrido. O olhar, o tom de voz, a expressão facial de Simone, o gesto de balançar a cabeça e o leve giro de ombro foram pistas que utilizamos para perceber que não se tratava de uma recusa do equipamento de filmagem como inconveniente, mas da presença como adultas na brincadeira.

Esses dois momentos não constituíram padrão das relações estabelecidas com a rotina de filmagem. Constantemente, éramos convidadas a participar das brincadeiras como guardiãs de brinquedo ou para consertar algo. Também havia pedidos para olhar e escrever no caderno de anotações do campo, aspectos que têm sido analisados por outras pesquisadoras da equipe (AUTORAS, 2021). Os movimentos para olhar o que fora captado e se ver na câmera, as escaladas nos tripés, os sorrisos, olhares e brincadeiras de esconder direcionados ao local onde estava nosso instrumento de pesquisa indicam uma investigação e experimentação dos bebês sobre as possibilidades desse artefato no Berçário. Os modos de apropriação de um instrumento de pesquisa como a filmadora no grupo revelam que a curiosidade dos bebês e crianças suplantou a inconveniência de serem observados, conforme figura 1.

Fonte: Banco de Dados da pesquisa (2017/2018).

Figura 1 Alguns registros da interação dos bebês com a filmadora (2017 - 2018) 

Por esses exercícios recursivos e contrastivos é que podemos dizer que houve uma maior apropriação do instrumento de registro como um artefato cultural, ou seja, de sua significação e função no grupo. O último quadro da figura 1 mostra que Valéria se posiciona no mesmo local em que costumávamos posicionar a filmadora e comunica à colega a intenção de brincar de tirar foto. Ela organiza a cena, orienta a posição da colega, se afasta e faz cliques com a boca. Percebemos que há inclusão de formas de tirar a fotografia não presentes em nossas ações, como a câmera muito próxima aos olhos, o que pode ser visto no quarto quadro, em que Simone (30m17d) tira foto de Maria (31m04d) na casinha do parque.

Há diversos eventos como esses que contam histórias da apropriação que as crianças fizeram da filmadora nas rotinas culturais: cantar e dançar em frente à filmadora, contar histórias, apontar acontecimentos, fazer poses, perguntar se é filme durante a brincadeira, esconder bonecas atrás do tripé, cantar cantiga de roda. Aconteceram, ainda, pedidos para que filmássemos determinada atividade (Fig. 2).

Fonte: Banco de Dados da pesquisa (2018).

Figura 2 O pedido de Simone para “filmar” a brincadeira 

Esses eventos trazem pistas de que os bebês/crianças não estão simplesmente imitando e reproduzindo nossas ações com a filmadora, mas se apropriando dos sentidos das ações em torno dessa prática, das palavras filmar, tirar fotos, das posições e papéis de quem filma e de quem é filmado. Eventos como esse evidenciam nossa atenção às intenções dos bebês e crianças nos dois anos da pesquisa e explicitam, que, enquanto artefato cultural, a filmadora, o caderno de campo e a prática do registro das imagens das crianças potencializaram outras interações e modos de participação dos bebês nas práticas sociais que envolve o campo semântico da pesquisa no grupo: filmar, filmadora, caderno, anotar, caneta.

Com esse modo de representação visual do evento, buscamos contextualizar onde, quando e quais pessoas participaram, o tempo de duração e a sequência de falas e ações dos participantes. As imagens são capturas das telas de vídeo e defendemos seu uso na pesquisa com bebês e outras crianças como modo de narrar os eventos cotidianos e evidenciar a natureza viva e dinâmica de suas relações. Compreendemos as polarizações em torno das ideias de proteção e participação, visibilidade e invisibilidade dos bebês e crianças na pesquisa, mas reiteramos que se trata de um material que busca, além da sustentação empírica e o compromisso com a transparência, a premissa teórico metodológica de que bebês são pessoas e comunicam por diferentes meios semióticos. Nesse sentido, a imagem não é mera ilustração do que interpretamos da vida dos bebês e, sim, um registro antropológico fundamental contra as formas históricas de invisibilização que requerem maiores cuidados éticos.

Aliás, contra tais formas de invisibilização dos bebês e crianças na pesquisa, nas transcrições de expressões verbais, há destaque em itálico. Ações e outras formas de expressão são comentadas entre parênteses e o grifo é feito com o intuito de evidenciar um momento em que um campo de sentido sobre a filmagem, como na interação entre Simone e Valéria no evento. Seu pedido para filmar o evento, aliás, mostra como o uso do equipamento de pesquisa possibilitou outras ações das crianças, mas não, necessariamente, interrompeu o que elas estavam desenvolvendo.

Apresentaremos, a seguir, o processo de construção da lógica de pesquisa com os bebês.

A construção da lógica de pesquisa

Os fundamentos ontológicos e epistemológicos da Teoria Histórico-cultural e da Etnografia em Educação nos orientaram na construção, análise, representação do objeto, material empírico e sínteses escritas da pesquisa. Entre esses fundamentos, destacamos a concepção de bebê e criança como seres sociais (VIGOSTKI, 2008) nas condições de participação nas práticas e rotinas institucionais de uma Escola de Educação Infantil, sem as quais não poderíamos chegar a uma dimensão singular da brincadeira no grupo. Esse fundamento da historicidade requer um entendimento da brincadeira constituída nas configurações das práticas locais que envolvem sua produção, espaço, tempo, materiais, pessoas e relações, ou seja, nas configurações de um todo dialético que chamamos de realidade ou de contexto social.

A abordagem histórico-cultural da brincadeira busca articular dialeticamente as relações individuais e sociais na sua construção. Há que se fazer, para isso, análises semânticas, ou seja, dos sentidos e significados construídos pela e nessa atividade humana. A Etnografia em Educação busca entender o que conta como uma prática cultural para os membros do grupo e como essa prática foi constituída entre e através dos eventos e padrões de atividade na vida cotidiana (GREEN; BLOOME, 1997). A partir dos princípios e fundamentos, chegamos à constatação de que tanto a abordagem histórico-cultural, quanto a Etnografia em Educação, colocam em relevo especial para a pesquisa com bebês e outras crianças a noção de que os significados são expressos em diferentes meios semióticos, como símbolos, artefatos, roupas, ações, gestos, palavras, choro, sorriso, olhar. Isso levanta a necessidade de descrição densa do que os participantes do grupo estão fazendo, como, com quem e com quais consequências.

Em função dessa característica representativa da natureza de uma prática social assumimos o compromisso de contar a história de algumas práticas de brincadeira do grupo e como essa prática se desenvolveu ao longo do tempo, a partir de uma lógica de investigação etnográfica. Assim, definimos como linha de análise retomar a história dos eventos de brincadeira no grupo, demonstrar suas transformações no tempo e como os bebês sustentam seus conteúdos culturais, criando formas de participação na relação com as professoras e outras adultas.

No que diz respeito ao método, a abordagem histórico-cultural, tal como desenhada por Vigotski (2000; 2008; 2010), adota o método genético da unidade ao estudar o desenvolvimento humano, ou seja, ao estudar os fenômenos interpsicológicos por meio de sua gênese social e seu processo histórico de transformações. A lógica de análise que apoia o estudo genético do fenômeno, então, é a lógica dialética que se contrapõe aos métodos que decompõem o objeto em elementos, em partes que se unem ao todo. Já a abordagem da Etnografia em Educação busca evidenciar processos, práticas e conhecimentos dos participantes de um grupo de forma holística e baseada nos discursos, para construir teorias de construção de um sistema social pelos participantes por meio da lógica abdutiva. De acordo com Agar (2006), o percurso abdutivo pressupõe que os dados sejam indicativos de que devemos pensar e criar um antecedente, ou seja, analisar de onde veio e como se relaciona com o que acontece.

Orientadas historicamente, então, por concepções de culturas como sistemas interligados de produção dos modos de vida no grupo e por uma lógica dialético-abdutiva, procedemos às análises microgrenéticas dos eventos. Segundo Góes (2000, p. 15), essa análise não é micro no sentido da duração e recortes dos eventos analisados, e sim pelo fato de ser “orientada pelas minúcias indiciais”. E é genética “no sentido de ser histórica, por focalizar o movimento durante processos e relacionar condições passadas e presentes”.

A figura a seguir é uma representação da lógica que construímos na pesquisa com os bebês.

Fonte: Elaboração das autoras (2021).

Figura 3 Lógica da pesquisa sobre a brincadeira no grupo de bebês 

A lógica evidencia ainda como as questões analíticas (em cinza) vão sendo transformadas pela produção e representação de dados da observação, pelo estudo e análise contrastiva entre material empírico, perspectivas teóricas e perspectivas orientadas pelo grupo e ações dos bebês e das professoras (traçados em azul), gerando sínteses analíticas.

Construir esse diálogo entre as duas abordagens por meio de um raciocínio do tipo dialético-abdutivo traz algumas implicações, entre elas: identificar os conhecimentos que bebês e outras crianças precisam ou construíram para participar de uma atividade; questionar impressões iniciais por meio de eventos observados; realizar processos iterativos e recursivos no material empírico para descobrir ações, práticas e eventos relacionados; estabelecer conexões entre estas ações, gestos, movimentos, falas verbais e os sentidos construídos pelas crianças em torno de um entendimento compartilhado de brincadeira; criar formas de representação dos eventos que evidenciem o processo de sua construção no fluxo das ações do grupo; identificar uma unidade de análise que apreenda a complexidade dos fluxos dos eventos com a vida cotidiana do grupo, com os modos de organização da Instituição e das ações dos bebês. Buscaremos demonstrar esses processos na seção seguinte por meio da análise do processo de constituição da brincadeira de mãe e filha no grupo.

A historicidade da brincadeira de mãe e filha no grupo

Era manhã de pouco sol de 12 de setembro de 2018 após o período mais frio do ano em Belo Horizonte. Os bebês da Turma do Abraço já começavam a se despedir dos casacos mais pesados sobre o corpo. O grupo está concentrado nas investigações com os artefatos que as professoras disponibilizaram após uma atividade de desenho. Já se aproximava do horário da fruta diária, quando elas se dividiam entre construir rotinas de cuidado com três bonecas, “lavar” potinhos vazios na pia e proteger um espaço com almofadas. Simone (28m08d) está brincando de dar dedeira para o neném com um frasco vazio de shampoo. Ela está sentada no chão, recostada em uma almofada, na parede. Maria (28m06d), que há cerca de 20 minutos cuidava do seu neném colocando para dormir no nicho do armário, leva sua almofada e se senta ao lado de Simone. Entregando-lhe o frasco vazio de shampoo e uma blusa de frio, Simone expressa seu interesse na presença de Maria. “Ele quer dedeira”, diz Maria, mexendo na blusa e tentando baixá-la. Simone observa e, voltando-se para a boneca que está no seu colo, pergunta: “Quer mamar, quer mamar?” Balançando a cabeça, de modo afirmativo, e olhando de volta para Maria, responde: “Ele quer mamar”.

Fonte: Banco de Dados da Pesquisa (2018). Elaboração das autoras (2021).

Figura 4 Maria e Simone brincam de amamentar o “neném” 

Até a data desse evento, não havíamos observado outros nos quais as crianças se atribuíssem um papel específico utilizando a linguagem verbal para nomeá-lo. Um conjunto de ações das crianças regulando as ações umas das outras e produzindo uma sequência interativa complexa, com enredo, pistas metacomunicativas, papéis sociais de outras pessoas fora do grupo, como o de mãe, indica uma série de conhecimentos que elas precisaram construir para participar do evento e, simultaneamente, outros foram construídos no instante mesmo do encontro das duas crianças. Algumas dimensões nesse evento se contrapõem à prevalência numérica com a brincadeira lado a lado entre crianças menores de 2 anos que outras pesquisas encontraram (por exemplo, LORDELO; CARVALHO, 2006): i) o atravessamento entre brincadeira, rotinas de cuidado e outras rotinas culturais; ii) os modos de participação das duas meninas sustentando a interação; iii) o compartilhamento das intenções como forma de manter a parceria; iv) a criação da situação imaginária de amamentar a boneca; v) a dinâmica complexa de distribuição e atribuição de papéis sociais entre as crianças; vi) a metacomunicação para orientar a participação da Outra. Essas observações preliminares levantaram a relevância desse evento e a busca pela compreensão das diferenças de posições das duas crianças em relação aos papéis atribuídos e pelos processos de constituição da brincadeira de mãe e filha na trajetória do grupo, focalizando as ações e linguagens de Maria por meio da descrição densa e da análise microgenética do evento “quer mamar neném”.

Os eventos que antecedem a brincadeira de “amamentar o neném” trazem vários contextos de ação no campo imaginário, a presença do artefato boneca, o uso do signo linguístico mãe mediando interações com a professora e a brincadeira de Maria ao telefone, além das transformações nos conteúdos da brincadeira pela [ação/imaginação] de Maria e Simone com os colegas e professora, como falar e cantar com a mãe ao telefone, brincar de esconder, dar mamadeira à boneca.

O panorama das rotinas de cuidado e rotinas culturais que antecederam o evento de brincar de amamentar a filha, naquela manhã, mostra como as palavras comer, papá, mãe e boneca ofereciam contextos para ações e ideias em torno da alimentação. No entanto, as ações das duas meninas com a boneca ampliam esses contextos ao trazerem a ideia de alimentar no peito, uma prática social que não faz parte daquele grupo na EMEI. Esse aspecto de nossa análise indica que não são apenas as condições do ambiente social que determinam a criação da situação imaginária. A atividade de brincar significa [agir/imaginar] para participar na construção de contextos interacionais na turma, conforme figura 5.

Fonte: Banco de Dados da Pesquisa (2018). Elaboração das autoras (2021).

Figura 5 Contextos da brincadeira de amamentar o neném 

No contexto do evento, a professora Silvana entrega uma boneca para Maria, que estava chorando. Maria sorri quando recebe e comemora com: “ê, ê, ê”. Enquanto quase todo grupo aguarda receber um brinquedo da professora, Maria vai para o nicho do armário com a sua boneca. Lá, ela cobre a boneca várias vezes com um pano. Simone está do outro lado da sala com outra boneca. Maria se aproxima do espaço circunscrito criado por Simone para cuidar do seu neném, dando-lhe mamadeira com um frasco vazio. A configuração espaço-temporal e as materialidades oferecidas apoiam a construção do evento de brincadeira, que é atividade humana constituída pela [ação/imaginação] dos bebês, alterando seu campo perceptivo de ação.

Por outro lado, a comunicação verbal entre Maria e Simone, naquele contexto, altera as condições de tempo, espaço, materiais, papéis e funções sociais. A configuração espaço-tempo e materiais do evento, até a chegada de Maria, sugeria uma prática de alimentação do bebê na mamadeira e se remetia a rotinas de cuidado que aconteciam com frequência no ano anterior no Berçário (alimentar os bebês na sala de atividades com uso da mamadeira). Tal configuração, com a chegada de Maria, sofre transformações que remetem a situações sociais de outros contextos, como a alimentação do bebê no peito.

A palavra mamar que Simone inclui muda o contexto e o conteúdo da brincadeira: alimentar com a mamadeira transforma-se, para Maria, em mamar no peito. Os artefatos presentes (frascos e bonecas) são ferramentas culturais e veiculam significados, representações e ideias que sugerem ações. Por outro lado, esses artefatos não determinam, em si, as ações de Maria e Simone. As relações entre crianças e contextos na brincadeira são ressignificadas na [ação/imaginação] de acordo com as intenções, sentidos e a orientação das próprias ações e as do Outro na tarefa de criação de um entendimento social recíproco.

A partir de então, diversos ajustes são observados. São movimentos e expressões, linguagens-em-uso por Simone e Maria para tornarem compreensíveis e alinhadas às ações e aos sentidos dessas ações, como o gesto de Maria, ao suspender a blusa e posicionar a boneca sobre o peito (a posição de amamentar com a cabeça do bebê ligeiramente inclinada em relação ao corpo). A imagem pública de alguém que amamenta o bebê é compartilhada naquele momento. As ações e as linguagens de Maria de amamentar o neném e orientar a colega, assim como a decisão de Simone de compartilhar a intenção e atenção ampliam o contexto do evento, como podemos ler no trecho da transcrição do vídeo:

Maria se senta ao lado de Simone e coloca a boneca sobre as pernas a fim de liberar as mãos e conseguir levantar a blusa para posicionar, cuidadosamente, a boneca no peito. Nesse momento, Maria fala olhando para Simone: Ele quer mamar, colocando a boneca sob o peito. Simone observa a postura corporal da colega e, começa a puxar sua blusa para baixo. Maria tenta ajudar, emitindo algumas instruções: “Abaixa, abaixa, abaixa a blusa”. Simone tenta e consegue, enfim, colocar sua boneca para amamentar também. Maria alterna suas ações entre a retirada da boneca do peito e ação de apertar o peito com o polegar e o indicador da mão. As duas se olham e sorriem. (Transcrição de vídeo, 12 de setembro de 2018, duração de 19m00seg).

São 19 minutos dedicados a criar e sustentar a situação imaginária. Na transcrição do evento, vimos que Simone está sentada dando mamadeira para a boneca; Maria se aproxima, observa e nomeia o que vê: “Ele quer dedeira”; Simone olha para a boneca e pergunta: “Quer mamar, neném?”. Maria senta ao lado, coloca a boneca no peito e dá uma pista metacomunicativa: “Ele quer mamar”. O signo linguístico dedeira é associado à ação de Simone, que, por sua vez, a nomeou como mamar. A palavra mamar, para Maria, ofereceu outra possibilidade de agir na brincadeira que não era a de dar dedeira, palavra que ela utilizava em outros eventos nos quais alimentava com uso de frascos e mamadeiras, como veremos mais adiante. Pelo contexto do evento, percebemos que a palavra mamar adquire um sentido quando associada ao gesto de Maria de levar a boneca ao peito. Isso demonstra como a compreensão das ações e linguagens dos bebês implica na descrição densa e minuciosa de eventos na pesquisa.

A criação de oportunidades de participação das duas meninas no evento exige compreensão e compartilhamento dos sentidos e significados das ações, artefatos e palavras que acontecem por meio da [ação/imaginação]. Como esse compartilhamento foi construído no grupo? Buscamos compreender as ações de Maria em outros eventos com o conteúdo cultural em torno de papeis, posições e do campo semântico que envolve relações entre mãe e filha.

As ações de Maria na constituição das brincadeiras no Grupo

A partir do evento em que Maria desenvolve o enredo de amamentar com Simone e tenta iniciar uma sequência com o sentido da palavra mãe, passamos a acompanhar os eventos que surgiram com esse tema, seguindo o curso das observações no ano de 2018. Presenciamos outros eventos (Figura 6) ordenados por meio de ações de Maria na relação com os contextos institucionais. Nos resumos da Figura, destacamos trechos nos quais Maria explicita verbalmente o papel de mãe ou atribui o papel de filha/filho.

Nos eventos da Figura 06, as rotinas de cuidado nas brincadeiras são extensivas, pelas ações das crianças e, especificamente de Maria, a papéis sociais relacionados ao círculo familiar, especificamente o de mãe. Desse papel, algumas funções são atualizadas nas ações: amamentar, alimentar, fazer comida, levar para tomar vacina, levar ao médico, aferir a febre, dar banho, trocar fralda, colocar para dormir, cobrir, levar para passear, dar bronca, cuidar do olho.

Fonte: Banco de Dados da Pesquisa (2018). Elaboração das autoras (2021).

Figura 6 Eventos com o tema mãe e filha na Turma do Abraço, 2018 

O primeiro evento (Quadro 2 da Figura 6), que seguiu ao de amamentar, no dia 18 de setembro, é uma conversa de Maria com a boneca a quem nomeia como filha, repreende e coloca no cantinho da parede. Depois de buscar a boneca no montante de outros brinquedos, Maria vai até o espelho, levanta a blusa, tenta colocar a boneca debaixo da blusa, olha a barriga por um tempo. A partir de então, há um encadeamento de ações de ninar a boneca pela sala, de dar mamadeira com frasco vazio e, por fim, a comunicação dela com a boneca/filha por meio do gesto imperativo com o dedo, o tom de voz grave, o posicionamento da boneca no “castigo” e a repreensão: Fica aí, filha!

Nos quadros 3, 4 e 10 (Figura 6 ), os temas do cuidado com o filho e a filha são mobilizados por Maria. O quadro 4, por exemplo, mostra a escolha da parceria e o uso de pistas metacomunicativas que permitem identificar a situação imaginária construída por Maria (30m17d), Paulo (29m24d) e Lúcia (28m14d) no trenzinho do parque. A situação imaginária começa quando os três tentam subir no trem e Paulo, ao não conseguir, começa a chorar. O choro é significado por Maria como pedido de consolo e ela o acalma limpando o olho e se referindo a ele como se fosse a mãe.

Argumentamos que há uma articulação, por meio da brincadeira das crianças, entre os cotidianos que vivenciam dentro e fora da instituição de Educação Infantil. Isso reforça a premissa de que a origem da brincadeira é cultural e a matriz do seu desenvolvimento são as relações humanas e práticas sociais concretas. Nos eventos analisados constatamos que os bebês conectam seus cotidianos e buscam meios para agir, incluindo a imaginação. Essa unidade [ação/imaginação] altera os significados e sentidos das ações e criam possibilidades de mudança em todos os níveis, nas próprias ações, na situação e nas relações entre as crianças.

Quando retomamos as filmagens do Berçário, percebemos que a atenção e o cuidado com o outro ajudam a sustentar a participação de Maria em várias interações com outros bebês ao longo do ano, conforme alguns exemplos na Figura 07 . Nos quadros 05 e 06, selecionamos eventos em que esses atos de cuidado são dirigidos à boneca, como colocar no carrinho de bebê e andar, cobrir com paninhos, colocar para dormir, alimentar. No Berçário, havia poucas bonecas entre os brinquedos. Objetos sonoros e bichos de pelúcia predominavam entre os disponíveis para a turma. As primeiras filmagens de eventos com boneca foram protagonizadas por Maria. Ela costumava explorar a boneca, levantar a roupa, colocar dedo no olho e boca nesses eventos, ao passo que também a beijava e embalava. Também no Berçário, registramos três eventos, que, a exemplo do quadro 6, revelam curiosidades e descobertas de Maria em relação à barriga. No evento apresentado, os bebês estavam explorando revistas. Maria (18m24d) destaca uma folha de uma das revistas e a coloca entre a blusa até que percebe o volume pelo espelho.

Fonte: Banco de Dados da Pesquisa (2018). Elaboração das autoras (2021).

Figura 7 Participação de Maria em situações de cuidado com o outro e com a boneca no Berçário - 2017 

Essas ações, dirigidas ao cuidado com o outro e com a boneca, foram observadas pelas professoras do Berçário nas conversas. Elas mencionam, entre outras coisas, que:

Ela (Maria) queria cuidar o tempo inteiro/enquanto mãe/ desde o berçário/ ela ajudava colocar os bebês pra dormir/ Mas/ para os colegas/ ela é uma colega. (Professora Telma, conversa em 07 de agosto de 2019).

Ela ia muito pra ajudar a colocar os colegas pra dormir/ sim/ Ela sempre gostou de brincar/ assim/ esse cuidado com os colegas/ com a boneca (...) era a brincadeira dela. (Professora Verônica, conversa em 07 de agosto de 2019).

O engajamento ativo de Maria na brincadeira traz suas vivências pessoais para o contexto relacional e isso possibilita criar conteúdos novos nas relações. Identificamos isso por meio de uma abordagem holística que buscou tornar visível a relação entre as ações de Maria e seu contexto social familiar. Maria entrou no Berçário da EMEI Tupi em 2017 com 09 meses 26 dias e já engatinhava. O processo de inserção foi acompanhado pela avó paterna, com quem morava naquele período, junto com suas duas irmãs: uma de 4 e outra de 8 anos. A avó de Maria, Angélica, nos contou, em entrevista concedida em dezembro de 2017, que Maria foi levada pela própria mãe para morar com ela aos 2 meses de idade. Em entrevista com a mãe Diana, em agosto de 2018, entendemos que Maria morou com a avó dos 02 aos 24 meses, idade em que voltou a morar com a mãe.

A família declarou uma renda de 200 reais por pessoa na ficha de matrícula e que quatro pessoas compartilhavam a casa alugada. A entrevista realizada com a mãe de Maria foi em sua casa, então, vimos que está localizada em um lote único com outras duas casas pequenas em fase de construção e acabamentos, onde mora parte da família: os avós, os pais de Maria e uma tia, mãe de um bebê de 10 meses. A casa tem 2 quartos divididos entre os pais e a tia de Maria.

O processo de inserção dos bebês nessa turma foi analisado por Oliveira (2018) que descreve os encontros de Maria (9m26d) nos primeiros meses na EMEI Tupi. São encontros nos quais ela observa e participa de atitudes de acolhimento de choro de outros bebês. As ações e a participação de Maria nessas situações de cuidado de si, do outro e das coisas (a boneca) no Berçário nos fazem pensar que o estabelecimento de uma esfera afetiva no grupo guarda relação com o reconhecimento do Outro como parceiro, como alguém para fazer coisas juntos. É o conjunto das ações e relações do grupo todo o tempo que cria possibilidades para as ações, caso contrário, estaríamos eliminando o crivo histórico de suas ações no e com o mundo.

A avó de Maria trouxe elementos importantes para pensar a história da produção de sentidos e significados do cuidado e de ações de mãe e filha na brincadeira. Na entrevista realizada no mesmo ano em que Maria estava no Berçário, Angélica relatou rotinas de cuidado com a boneca na constituição de temas desenvolvidos por Maria também em casa:

Pesquisadora: E brincar / ela brinca muito?

Angélica: Demais/tô te falando/que até uma hora da manhã ela fica trançando lá / ué!/(risos).

Pesquisadora: Quais são os brinquedos que ela gosta de brincar em casa?

Angélica: Boneca (ênfase) / ela adora boneca (ênfase) / vai lá no guarda-roupa minha filha / joga as roupas tudo no chão / pra caçar um pano / pra colocar na boneca / e fica / neném / neném / vai pra lá / vai pra cá / Tem uma bolsa lá / ela pega a bolsa / coloca a bolsa / enche a bolsa de paninho / algum brinquedinho pequeno / e fica rodando a casa toda / pega a mamadeira e coloca na boca da boneca / até comprei aquelas bonequinhas pra ela que o leitinho vira /ela fica brincando / Ela gosta de brincar de boneca. (Dados da Entrevista, 14 de dezembro de 2017, grifos da autora).

A narrativa da avó de Maria sobre sua atividade com a boneca corrobora nossa reflexão de que não é a exploração do objeto em si que move a brincadeira, mas as relações humanas. As ações de Maria com a boneca, como jogar as roupas do guarda-roupa para fora; procurar um pano; cobrir a boneca; pegar a bolsa; colocar a bolsa no ombro; encher a bolsa com algo e passear; pegar a mamadeira e colocar na boca da boneca, tudo isso é conteúdo das ações e relações dos bebês que, ao ser recuperado pela ação/imaginação dos bebês em um contexto coletivo possibilita ampliar vivências e a construção de sentidos de mãe e filha.

Considerações finais

Um fundamento ontológico justifica este estudo e uma epistemologia própria: os bebês são seres sociais e ao longo de suas vivências na coletividade produzem singularidades. Uma epistemologia fundada nessa ontologia justifica, a nosso ver, um campo de estudos dos bebês como modo de conhecer a produção de suas existências em contextos públicos de coletividade. Nesse movimento de afirmação de um campo, há intenção de problematizar os discursos sobre bebês nas diversas ciências. Mais que isso, conjuga o esforço de ratificar a necessidade de metodologias de pesquisa com e sobre os bebês que deem conta de articular o desenvolvimento humano e sua participação nas práticas sociais, dialeticamente.

A lógica de pesquisa com bebês que construímos possibilitou questionar nossas impressões iniciais de que bebês agem impulsionados tão somente pela percepção e exploração dos objetos imediatos. A lógica dialético-abdutiva possibilitou ainda tornar visível como as materialidades, relações e pessoas mudam os contextos de interação na turma por meio de um princípio criador do desenvolvimento cultural dos bebês que é brincadeira, atividade constituída pela unidade [ação-imaginação].

O método da unidade de análise em uma pesquisa com abordagem etnográfica com bebês, nesse sentido, possibilitou olhar a brincadeira como atividade concreta, integrada e dinâmica, e não como a preponderância da exploração, da imitação, da imaginação de acordo com as características do desenvolvimento dos bebês. Todas as transformações percebidas se voltam para o conhecimento de si e do cotidiano; para os desejos de compreender e criar; ou seja, são novos meios de compreender as rotinas culturais coletivas, as rotinas de cuidado e vivenciar o espaço-tempo da EMEI como categorias históricas, que existem para cada bebê e crianças de forma singular.

As rotinas de cuidado, especialmente as que se passam entre a mãe e o bebê, foram trazidas pela [ação/imaginação] de Maria para o contexto da turma e transformadas pela participação de outras crianças, materiais e professoras. Vimos que a situação social de moradia com a avó e a ausência da mãe, assim como contextos familiares construídos em torno da necessidade de cuidar de um primo bebê são acontecimentos sociais que afetam Maria. Há um compartilhamento de sentimentos e modos de pensar e compreender esses acontecimentos na brincadeira de mãe e filha. Esta constatação foi possível pela perspectiva holística de relacionar o conteúdo cultural da ação dos bebês com seus universos simbólicos mais amplos, além da abordagem contrastiva entre nossas percepções e as de pessoas do grupo social, como professoras e familiares de Maria.

Como os eventos evidenciam, há um papel dinâmico da [ação/imaginação] das duas bebês no processo de significação em cada ato de brincar mediado pelos sistemas simbólicos da cultura (linguagens, narrativas, brinquedos e outros materiais). Esse processo coloca os fatos e acontecimentos sociais, as intenções e necessidades das crianças em uma trama social que envolve o compartilhamento, a negociação e o esforço de interpretação; é nessa trama que todo o grupo constrói conhecimentos culturais que bebês e crianças utilizam para interpretar o que as outras fazem, como fazem, para que fazem.

A preferência de Maria pelos mesmos objetos, parcerias e conteúdos sociais são evidências de que a vida concreta e coletiva é tornada objeto da consciência. A [ação/imaginação] na brincadeira evidencia o que é percebido, pensando e os sentidos/motivos pessoais que são construídos nessa unidade. A necessidade de compartilhar esses sentidos sobre o cuidado mostram uma compreensão sobre o pertencimento a um grupo. Por essa razão, retomamos nossa defesa de que o cuidado como ética da alteridade que possibilita a constituição do Outro e do grupo de bebês e crianças em uma turma da Educação Infantil não é construído pelo simples agrupamento e compartilhamento do espaço e da rotina. Nossa pesquisa mostrou que o que move a constituição da brincadeira são as condições sociais da atividade dos bebês e crianças reunidas nas categorias tempo, espaço, rotinas culturais e rotinas de cuidado. Tais condições e conteúdos culturais instalam o drama entre desejos, intenções e necessidades sociais que possibilitam o reordenamento das ações e a emergência da imaginação. Enfim, criam a unidade [ação-imaginação] que constitui a brincadeira. Isso traz implicações para tanto para a Pedagogia da Educação Infantil3, quanto para a pesquisa com bebês, na medida em que evidencia que o desenvolvimento cultural dos bebês e crianças acontece em função das relações sociais. São essas relações que instauram a possibilidade de criação e compartilhamento de sentidos em um grupo, o que é fundamental para que a constituição humana se realize. Foi pelo exercício analítico de tornar visíveis esses processos de constituição da brincadeira de mãe e filha na Turma do Abraço que defendemos a dimensão ética, estética e política da pesquisa com bebês como ato de criação de formas de compreensão da produção das subjetividades humanas desde o nascimento.

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a O artigo faz referência à tese Atos de criação: As origens culturais da brincadeira dos bebês, defendida pela primeira autora em 2021.

1Todos os nomes das professoras, profissionais de apoio, crianças e seus familiares são fictícios. A definição foi feita pelo próprio Grupo de pesquisa, utilizando-se da adoção de pseudônimo que se inicia com a letra homônima ao nome equivalente, a fim de manter um padrão nas pesquisas do Grupo e facilitar a identificação no processo de busca de dados e análises.

2A idade dos bebês é registrada em meses (m) e dias (d) de acordo com o dia do evento analisado.

3Em artigo publicado em 2001, Eloísa Acires Candal Rocha já defendia a ideia de que a Pedagogia da Educação Infantil era um campo de conhecimento em construção com singularidades em relação à Pedagogia no seu sentido geral. A autora argumenta, neste texto, que a Pedagogia da Educação Infantil não tem como objeto a situação educativa, como organização, estruturas e práticas, mas “as próprias crianças, seus processos de constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, sua cultura, suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e emocionais” (Ibid. p. 28).

Recebido: 07 de Novembro de 2022; Aceito: 17 de Janeiro de 2023

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