Introdução
Toda pesquisa científica mobiliza, inquieta, gera expectativas. É um conjunto de aspectos e fatores a serem levantados, pensados, descartados e selecionados. O momento da delimitação dos aspectos teórico-metodológicos - uma de suas etapas - traz, para o pesquisador, a sensação de preparar as malas para uma longa viagem: algumas coisas ficam... Outras vão... Este é o momento de definir/escolher alguns caminhos.
O método, bem como os procedimentos eleitos, passa a orientar as diferentes etapas da pesquisa, o que, de certa forma, também direciona o seu próprio percurso. E no percurso de uma pesquisa de doutorado em Educação, defendida em 20191, em uma universidade pública federal do nordeste do Brasil, por meio da investigação no cotidiano de espaços privados/familiares, buscamos compreender, a partir do ato do brincar, como a interação de crianças (na faixa etária de quatro e cinco anos) com as tecnologias digitais móveis - smartphone e tablet - contribui para estruturar os processos de produção das culturas infantis contemporâneas. Nas trilhas que percorremos, inevitavelmente, surgiram alguns questionamentos: o que é pensar a infância e a criança? O que está em jogo quando escolhemos pesquisar a infância e não outra temática? Como fazer para não nos levar pelo comportamento adultocêntrico que intervém nos espaços infantis? Como ter o olhar pesquisador e buscar fazer parte de um grupo sem “invadir” sua cultura, mantendo uma aproximação sensível para identificar momentos significativos que possam ajudar a compreender sobre o universo da infância e suas culturas?
Para Quinteiro (2009), ver, ouvir, registrar e interpretar as representações sociais das crianças, buscando compreender como se constitui sua cultura e qual lugar social ocupam, trouxe ênfase aos cuidados metodológicos indispensáveis às pesquisas desenvolvidas com as temáticas que a elas são relacionadas. Enquanto pesquisadoras nessa área, consideramos que a emergência de se estudar as infâncias e as crianças carrega diferentes abordagens, não só no plano conceitual, como também no metodológico.
Do ponto de vista conceitual foi preciso demarcar a concepção de infâncias. Já do ponto de vista metodológico necessitamos definir os dispositivos utilizados para garantir a participação das crianças na pesquisa. Para este estudo, como principal fundamentação teórica adotamos os Estudos da Infância, realizados no campo da Sociologia da Infância (CORSARO, 2011; PINTO, 1997; QUINTEIRO, 2009; SARMENTO, 2003; 2004; 2007; 2008; SARMENTO; PINTO, 1997; SIROTA, 2011). Essa fundamentação teórica se conecta com o que entendemos ser a postura do pesquisador quando se propõe a analisar o contexto de crianças pequenas.
Frente a isso, este texto tem o objetivo de apresentar uma reflexão sobre as singularidades da pesquisa com crianças2 no espaço privado/familiar e as relações que estabelecemos com os/as interlocutores, uma vez que entendemos que os caminhos metodológicos são necessários para realizar os direcionamentos, assumir as incertezas, justificar os critérios, evidenciar os dilemas, compartilhar as dúvidas e problematizar as escolhas que fazemos ao longo de uma pesquisa.
As perspectivas da pesquisa com criança
No Brasil, podemos observar o esforço crescente de produção, com investimento teórico e desenvolvimento de estudos empíricos, para a construção de uma metodologia de Pesquisa com criança. Esta metodologia tem sido um campo em construção e está fundamentada na Sociologia da Infância, que chegou ao Brasil desde os anos de 1940, com Florestan Fernandes, passando pela publicação de José de Souza Martins, em 1993, a tradução dos trabalhos de Reginé Sirota, em 2011, além dos trabalhos de Jucirema Quinteiro (2000; 2009), entre outros. Os debates que visam qualificar as crianças como sujeitos sociais plenos, participantes ativos e referentes empíricos têm recebido contribuições de autores como Sarmento (2003; 2007; 2008), Sarmento e Pinto (1997), Corsaro (2005; 2009; 2011), Barbosa (2014a), Spreá e Garanhani (2014) além das pesquisas baseadas na Antropologia (COHN, 2009). Já no que se refere ao pensar do campo específico da Pesquisa com criança, temos acompanhado as colaborações de Lucia Rabello de Castro (2008), Solange Jobim e Souza (1994), Raquel Gonçalves Salgado (2005), Rita Ribes Pereira (2012a) e seu grupo de pesquisa (FREIRE, 2012; MACEDO, 2014; MENEZES, 2010; SANTOS, 2013), entre outros pesquisadores.
Os estudos destes autores nos levaram a compreender que o reconhecimento das crianças como protagonistas e coparticipantes no processo da pesquisa, levando em consideração as suas falas e suas representações de mundo e o lugar que elas ocupam enquanto atores/autores sociais capazes de falar por si e sobre si, como dado de pesquisa, era algo relativamente novo. Segundo Santos (2013), desenvolver Pesquisa com criança, tomando essa perspectiva, tem sido alvo de debates e também um desafio aos pesquisadores. No nosso entender, o desafio maior estava em reconhecer que “[…] o testemunho da criança envolve considerar sua capacidade em compreender e entender a realidade, bem como a possibilidade de construir o conhecimento não apenas sobre ela, mas junto com ela.” (SPINELLI, 2012, p. 120).
Para estar junto com as crianças também é preciso considerar a concepção de infância e criança que carregamos, pois tal concepção orienta as escolhas metodológicas com coerência assegurada em todos os procedimentos adotados. Dialogar com as crianças, levando em consideração as suas culturas, ou assumir a infância como temática de estudo, tornou o exercício de pesquisa singular em relação a outros contextos de pesquisa. Pereira (2012b) afirma que
[...] ainda que a interlocução com as crianças se torne mais facilmente visível no trabalho de campo, compreendemos que essa interlocução se faz presente ao longo de todo processo de pesquisa, antes e depois do trabalho de campo e mesmo na pesquisa de caráter eminentemente teórico que abdique de um trabalho dessa natureza. (p. 63).
O que podemos afirmar é que, ao realizar a pesquisa, fundamentadas nos Estudos da Infância, desenvolvemos diálogos com crianças concretas. Dessa forma, entendemos a criança como interlocutora da pesquisa, considerando-a como sujeito com o “qual interajo, que me ensina coisas, descobre-me seus mundos e outras visões dos meus e, além disso, enriquece-me.” (EZPELETA, 1986, p. 90). Isto é, um alguém concreto, com o qual estamos a nos relacionar em uma tarefa comum, e que, por isso mesmo, nos modifica de algum modo. O resgate do diálogo entre crianças e adultos no processo da pesquisa, mais do que um princípio metodológico, se configura
[…] em um princípio educativo, de modo que o adulto possa compreender a criança, deixando-se surpreender pela singularidade, e a criança possa ver no adulto outras formas de perceber e lidar com a vida contemporânea. (SALGADO; PEREIRA; JOBIM E SOUZA, 2005, p. 16).
Desse modo, a Pesquisa com criança permite pensar os lugares de alteridade experimentados por pesquisadores adultos e crianças no decorrer de todo o seu processo (PEREIRA, 2012a). Este lugar de alteridade é pensado por Salgado (2005, p. 24) a partir das posturas e dos princípios metodológicos que fazem do pesquisador, na condição de adulto, um outro por excelência na relação com a criança. Mas, nessa relação, a criança também se apresenta como o outro do adulto, cuja presença inquieta seu olhar e saberes. Neste sentido, a compreensão da criança não é movida pela pretensão de esgotá-la, mas se consolida como um ato que assume sentido nas relações estabelecidas entre crianças e adultos no próprio processo de pesquisa.
Além do estudo teórico que caracteriza a pesquisa científica, a opção pela realização de um trabalho de campo coloca o pesquisador face a face com a criança, surgindo, um tipo de acontecimento e uma relação de alteridade singular. De acordo com Pereira (2012a), em uma perspectiva de pesquisa que tem o viés eminentemente teórico, a relação que se estabelece com as crianças é mediada abstratamente pela ciência. No entanto, em uma pesquisa que desenvolva um trabalho de campo, cria-se uma realidade presencial de alteridade no interior do próprio processo de pesquisa. Nesse processo, se instaura um lugar social em que pesquisador e criança se colocam um em frente ao outro para construir um tipo específico de alteridade. A autora ressalta esse movimento, colocando que “à primeira vista, é a criança que aparece como um ‘outro’ a ser desvendado pelo pesquisador, mas também, para a criança o pesquisador - e seu interesse por ela - se torna uma incógnita e o pesquisador passa a ser o outro a lhe inquietar.” (PEREIRA, 2012a, p. 78).
Essa relação entre pesquisador e criança se constitui em um processo longo e complexo que envolve, além dos procedimentos adotados, também a formulação de um tema norteador, questões e inquietações, a delimitação de um campo, a elaboração de estratégias metodológicas, as possibilidades de análises e, principalmente, o exercício de pensar e escrever (PEREIRA, 2012b). Nesse lugar de alteridade, temos a clareza de um aspecto fundamental: somos adultos e identificados pelas crianças como um outro, e, por isso, muitas vezes, nossa aproximação com elas não é tão simples. Em algumas situações, essa aproximação ocorre por mediação de alguém que já as conhece, seja professor(a), pais e/ou responsáveis, tio(a), vizinho(a), amigo adulto, ou seja, por vezes, o acesso a elas se configura na indicação ou mediação dessa pessoa que é familiar àquelas crianças.
Temos consciência de que jamais veremos o mundo através dos olhos de outra pessoa, particularmente dos olhos de uma criança; pelo contrário, “veremos sempre o mundo através de uma multiplicidade de camadas de experiências, das crianças e nossas, e de uma multiplicidade de camadas de teoria” (GRAUE, WALSH, 2003, p. 56). Portanto, ainda que a interlocução com as crianças possa se apresentar mais facilmente visível durante a pesquisa de campo, compreendemos que essa interlocução se faz presente ao longo de todo o processo.
Essa relação de alteridade é constituída na vida social, transformando-se de acordo com os contextos que são experimentados pelos adultos e crianças. Tanto crianças quanto adultas ocupam, nas dinâmicas da vida, diferentes lugares sociais, que são definidos pelas relações de alteridades experimentadas:
a criança é filha para os seus pais, é aluna para os seus professores, é um cliente para o mercado, é objeto de estudo ou interlocutor para o cientista e etc. Do mesmo modo, os adultos se colocam em diálogo com as crianças a partir de um conjunto de demandas próprias ao lugar social que ocupam quando estão na condição de serem pais, professores, pesquisadores etc. Mesmo quando na vida esses papéis se aglutinam, é a experiência singular do contexto que demarca a relação de alteridade e produz sentidos (PEREIRA, 2012a, p. 71).
Entretanto, não podemos perder de vista que, na Pesquisa com criança, torna-se preciso entender seus significados e culturas, e, para tanto, não necessitamos ser como elas, e sim, “deixemos de lado nossa concepção e busquemos ver as experiências de outros com relação à sua própria concepção do ‘eu’” (GEERTZ, 2001, p. 91). Neste lugar social ugar social que ocupamos, enquanto adulto/pesquisador, não buscamos fazer um retorno ao que fomos um dia - ser criança -, mas procuramos, com as crianças, aprender como se estabelece um contato social diferente, e, sobretudo, entender como se aprende através da interação. Este envolvimento é o que Corsaro (2009) vem caracterizar por uma “pesquisa com” e não “sobre” criança, ressaltando que esta forma de pesquisar tem a vantagem de permitir que o pesquisador entenda o significado do fenômeno sob a ótica de seus significantes.
Sarmento e Pinto (1997) sugerem que as metodologias utilizadas devem ter por principal escopo a recolha das vozes das crianças e da expressão da sua ação. Spinelli (2012) completa, sugerindo aos pesquisadores que adotam a proposta da Pesquisa com criança, que o buscar não se limite apenas à dimensão do “ouvir” o que a criança tem a nos dizer enquanto interlocutores da investigação. Para além dos fatos para entender o fenômeno analisado, precisamos considerar todas as questões que envolvem o objeto de estudo - dialogando, problematizando, indagando junto com a criança sobre o contexto e as experiências nos quais se insere e vivencia -, de modo que tais questionamentos proporcionem ao pesquisador um conhecimento que consiga desvendar a realidade estudada.
Na mesma linha de argumentação, Fantin (2008) afirma que se conseguirmos nos aproximar do olhar das próprias crianças, poderemos entender outra dimensão que acontece no espaço-tempo próprio das interações reais e simbólicas que as crianças estabelecem com as produções culturais. Para tanto, a autora propõe que nos aproximemos das crianças, procurando saber o que elas pensam, sentem e dizem sobre as suas experiências, captando seus contextos e os significados das experiências que vivenciam.
Tendo como base essas concepções, a nossa postura em campo exigiu descentrar o olhar adulto para poder entender, através das crianças, os mundos sociais e culturais da infância. Além de demarcar o lugar social que ocupamos enquanto pesquisadoras, também delimitamos, na Pesquisa com criança, o lugar que ela ocupa na interação com o adulto em uma situação de investigação.
Uma relação de proximidade entre pesquisadoras e crianças
Como toda a opção em pesquisa, a escolha e a delimitação do campo não ocorrem de forma casual, nem se constituem em procedimentos meramente protocolares. Concordamos com Pereira (2012a), ao afirmar que mais do que a escolha de um lugar e de um grupo de interlocutores, trata-se da criação de um tipo de relação social e, portanto, de uma ética. Por isso, nos questionamos a todo tempo: quais seriam as crianças que constituiriam o grupo de interlocutores? Por que fizemos a opção dessas crianças e não de outras? Como chegaríamos ou como pretendíamos chegar a elas? Em que contexto se desenvolveria a pesquisa?
Para responder parte desses questionamentos, especialmente ao que se referiu à escolha das crianças que participaram da pesquisa, desde o início, entendemos que alguns critérios precisavam ser definidos. A ideia inicial foi trabalhar com um grupo de interlocutores, cujas famílias lhes proporcionavam a vivência na cultura digital, e que estavam fazendo uso espontâneo das tecnologias móveis - smartphone e tablet - como mais um elemento que compunha o seu cenário do brincar. Interagimos com crianças na faixa de idade de quatro e cinco anos, pois identificamos em estudos (TIC KIDS..., 2021), que apresentam resultados sobre o comportamento de crianças quando em interação com as tecnologias digitais móveis, uma carência de pesquisas com as crianças mais novas; a preferência, na maioria das vezes, era investigar as crianças a partir de seis anos. Como procurávamos analisar o brincar das crianças a partir do uso espontâneo com as tecnologias digitais móveis, foi necessário pensar em um grupo de interlocutores(as) cuja rotina permitisse a nossa presença. Por esse motivo, desenvolvemos a pesquisa em um espaço privado/familiar, ou seja, observamos e dialogamos com as crianças interlocutoras da pesquisa nos momentos em que as brincadeiras aconteciam e em seu ambiente doméstico.
Pensando também nas questões relacionadas às culturas infantis, nos fundamentamos no estudo do projeto de pesquisa de demanda universal3 de Oliveira (2018), que teve como objetivo compreender o lugar e os tempos das pesquisas brasileiras que envolvem a temática dessas culturas. Nesse estudo, a autora faz um levantamento bibliográfico a partir das Teses e Dissertações disponíveis no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), no período de 1990 a 2015. A partir da análise de 40 pesquisas, apresenta, como resultado parcial, que “a escola acaba por se constituir a territorialidade infantil por excelência, confirmando a invisibilidade das crianças em outros espaços públicos” (OLIVEIRA, 2018, p. 73). A autora afirma que os estudos que buscam analisar as culturas infantis o fazem por meio do brincar, porém é preciso também pensar as culturas infantis e sua manifestação, em outros ambientes, como, por exemplo, a presença e participação das crianças nos diferentes espaços que elas vivenciam.
Esses estudos apontaram pistas para algumas tendências de pesquisas nessa área - especialmente, quando articulamos com a questão do brincar na cultura digital - e que nos levaram a questionar: quando estamos pensando no brincar, nas culturas infantis, será que esses espaços indicados nas pesquisas, de fato, se constituem como únicos territórios das crianças? Que força imperativa é essa que leva os pesquisadores a priorizar o território escolar quando se estudam esses temas?
É curioso e interessante constatar - por meio desses estudos e, também, pelas pesquisas que se dedicam a pensar os usos que as crianças têm feito das tecnologias digitais conectadas à internet, a exemplo, TIC Kids Online Brasil4 (2021), e os trabalhos pontuais, como os de Freire (2012), Müller (2014) e Macedo (2014) - que o uso das tecnologias digitais na escola ainda está centrado no viés pedagógico - que, na maioria das vezes, está direcionado para fazer as tarefas escolares. Não podemos deixar de reconhecer que o potencial didático e pedagógico das tecnologias na educação é indispensável. Entretanto, ainda verificamos, através de pesquisas (MACEDO, 2015), que há um desencontro entre os usos que as crianças fazem com as tecnologias digitais na escola e os usos que fazem quando estão fora dela.
Frente a essa realidade, a nossa escolha pelo ambiente familiar considerou que se a cultura digital ganha materialidade nas diversas alternativas de acesso às tecnologias, existem, também, novos ambientes de pesquisa a serem explorados que não somente aqueles institucionalizados e produzidos para a infância. Portanto, propomos desenvolver a pesquisa nos espaços que, ao nosso entender, estão vinculados com os processos educativos das crianças, que é o brincar com as tecnologias digitais móveis no seu ambiente doméstico.
E, então, fizemos a escolha de dialogar com crianças com as quais tínhamos uma relação de proximidade prévia com a família, ou seja, que estavam na nossa rede pessoal de amizade, assim como com outras indicadas por essas crianças que na época da pesquisa eram seus pares - “grupos de crianças que passam seu tempo juntos quase todos os dias” (CORSARO, 2011, p. 127). A primeira criança convidada para ser interlocutora na pesquisa - Elsa5, com então cinco anos -, já fazia parte da nossa rede de amizade e muito antes do nosso desejo de realizar a pesquisa envolvendo crianças pequenas e tecnologias digitais, sempre conversávamos com seus pais, e ao encontrá-la em festas de aniversários, passeios, visitas a sua família, já reparávamos que, desde os dois, três anos, Elsa já interagia com dispositivos móveis em suas brincadeiras.
Na busca pelos outros interlocutores, investigando as redes sociais digitais de outros amigos, encontramos o perfil de uma amiga de trajetória acadêmica, colega do Grupo de Pesquisa que, desde o nascimento do seu filho mais novo, postava as suas brincadeiras, inclusive, mostrando que, mesmo ainda muito pequeno, já tinha um fascínio para explorar e interagir com os dispositivos móveis. Percebemos que o movimento da família e da criança nas redes sociais digitais evidenciava uma vivência na cultura digital, e então, entramos em contato com a mãe por meio de mensagem instantânea, explicando-lhe a nossa intenção com a pesquisa e expressando o nosso desejo em integrá-los como interlocutores no estudo. A resposta foi imediata e positiva: “Oi, que lindo! Interage muito! Ontem mesmo eu dizia isso… Que ele não sabe ler, mas, sabe buscar jogos no Google Play e instala eles sozinhos” (Mamãe de Capitão América, inbox Facebook, em 04/05/2017). Capitão América (então com quatro anos) passou a ser mais um interlocutor.
Pensando sobre o modo como concebemos o debate sobre a infância e a pesquisa, consideramos que a Pesquisa com crianças implica, sobretudo, em reconhecê-las como interlocutoras e participantes fundamentais na investigação. Essa concepção nos conduziu a buscar, junto com elas, uma alternativa para que as mesmas fossem identificadas. Explicamos às crianças que poderiam usar suas verdadeiras identidades, mas, ao mesmo tempo, sugerimos que adotassem nomes fictícios, na medida em que, levando em conta o fato de serem crianças, queríamos evitar a sua exposição. Ademais, como o estudo estava se desenvolvendo no local da residência das crianças, acreditávamos que identidades anônimas relativizariam esse espaço tão comum a elas e a nós.
Trouxemos como alternativa a escolha, por parte delas, de algum personagem infantil para representá-las. A ideia foi imediatamente aceita, no entanto, ficamos, ao longo dos meses, tentando combinar com os brincantes como se daria sua identificação dentro da proposta apresentada. Isso porque, por se tratar de crianças pequenas, que estão em contato com vastos conteúdos culturais, a cada semana elas queriam mudar de personagem.
Pesquisadora: Então agora você será Capitão América, né?
Capitão América: É!
Pesquisadora: Por que mesmo você quer ser Capitão América?
Mamãe: Porque você gosta do Capitão América, filho?
Capitão América: Porque ele tem um escudo!
Pesquisadora: Ah! Porque ele tem um escudo? E tem uma espada também?
Capitão América: Não!
Mamãe: É um escudo do quê?
Capitão América: É um escudo da verdade! Hehehe...
Pesquisadora: Hahaha!
Mamãe: Mas você me disse que gostava dele por outra coisa também! Você me disse que o Capitão América era o quê?
Capitão América: Um clássico! (Capitão América, 4 anos, transcrição da gravação em áudio, em 30/08/2017).
A pesquisa foi desenvolvida com o grupo de Elsa e o de Capitão América, mas vale explicar que como o grupo de pares de Capitão América se constituiu unicamente por adultos, isto é, o pai, a mãe e os avôs, ainda que tivéssemos a autorização destes para participar da pesquisa e com suas identidades reais, optamos por identificá-los da forma como a criança os nomeia no seu cotidiano.
Já o segundo grupo foi formado por uma criança de cinco anos, identificada por Elsa, e mais oito crianças com idades entre quatro e 11 anos: Tiana (11 anos), Jasmine (9 anos), Ariel (9 anos); Anna (7 anos); Steve (7 anos); Cat Noir (7 anos), Mulher-Gato (6 anos) e Hulk (4 anos).
Importante destacar que mesmo após as escolhas da forma como seriam identificadas, surgiram, em alguns momentos, questionamentos feitos pelas crianças sobre como outras pessoas saberiam que eram elas as interlocutoras da pesquisa, especialmente, a minha “professora” - no caso, a orientadora do doutorado.
Elsa: Como sua professora vai saber que eu sou eu?
Pesquisadora: Ela sabe quem é você! Vamos combinar assim, quando eu precisar escrever a pesquisa e dizer que fiz o estudo com uma criança de cinco anos, para mim e para minha orientadora saberemos o nome da criança, mas para as pessoas que vão ler o estudo vou colocar um nome de um personagem de desenho ou de um filme que você mais gosta, pode ser? (Elsa, 5 anos, transcrição da gravação em áudio, em 25/05/2017).
A todo tempo tínhamos que explicar/relembrar novamente a elas como se daria sua identificação, de modo que o acordo entre nós deixasse confortáveis todos os envolvidos na pesquisa, e, sobretudo, permitisse, como já destacamos, que os/as interlocutores se vissem neste estudo. Além desse combinado, em nosso primeiro encontro, acordamos com os pais um diálogo com elas, com a finalidade de explicar a proposta da pesquisa. Nessa conversa, que integrou os pais e/ou responsáveis e as crianças, pretendíamos apresentar os objetivos da pesquisa, pois entendíamos que nessa conversa “[…] entravam em negociação os diferentes papéis sociais que desempenham em relação à criança que está sendo convidada a participar da pesquisa.” (PEREIRA, 2012a, p. 80). O mais importante nessa conversa foi construir uma confiança recíproca, com a necessidade de “[…] estabelecer claramente, desde o início, que a pesquisa [visava] compreender a situação como ela se apresenta, e que as pessoas jamais [seriam] incomodadas ou prejudicadas nos seus afazeres e relações.” (MACEDO, 2006, p. 88).
Pesquisadora: Então, você deixa eu vir aqui duas vezes na semana, para gente brincar juntas? Se você não tiver a fim de brincar com o celular nós brincamos de outra coisa.
Elsa: Deixo sim! Mas eu acho duas vezes pouco, você poderia vir todos os dias…
Pesquisadora: Ah! Todos os dias? (Elsa, 5 anos, transcrição da gravação em áudio, em 25/05/2017).
A nossa proposta, desde o princípio, foi pensada com o objetivo de primeiro nos aproximarmos das crianças e, aos poucos, conquistarmos sua confiança. Porém, importa ressaltar que, quando chegamos a campo, ao iniciarmos a conversa, os grupos de crianças já nos esperavam ansiosas para que a pesquisa ou a brincadeira iniciasse.
Mamãe: Capitão América, lembra que eu disse que tenho uma amiga que está estudando com crianças de três, quatro e cinco anos? Será que dá para ser você? Você tem quatro anos?
Capitão América: Tenho!
Mamãe: E você brinca com celular?
Capitão América: Brinco!
Pesquisadora: Brinca?
Mamãe: Ah! Então pode ser Capitão América!
Pesquisadora: E você deixa a tia brincar contigo para poder colocar na minha pesquisa?
Capitão América: [Balançou a cabeça dizendo que sim!]
Mamãe: Você gosta de brincar com alguém? Gosta? Então, sabe o que ela vai fazer? Brincar com você! (Capitão América, 4 anos, transcrição da gravação em áudio, em 23/05/2017).
Embora a nossa postura tenha sido a de dialogar e explicar sobre a pesquisa para obtermos o assentimento das crianças, a fim de que se constituíssem como brincantes interlocutores na investigação, esse aceite não esteve presente somente neste momento da conversa ou apresentação do estudo, e sim durante todo o seu desenvolvimento. A exemplo, quando, as crianças solicitavam que a pesquisa não cessasse, para nós, essas atitudes eram sinalizações sobre o seu constante assentimento.
Elsa: Eu não queria que terminasse! Eu queria que você viesse para sempre!
Pesquisadora: Eu também! Mas… Sua tia tem que terminar isso!
Pesquisadora: Mas quando você sentir muita saudade, e quiser brincar comigo, fala com a mamãe ou você mesma, junto com Tiana, pode mandar uma mensagem para o meu Zap que venho brincar mais com vocês!
Elsa: Mulher-Gato e Tiana vão ficar tristes!
Pesquisadora: Eu também ficarei com muitas saudades! (Elsa, 5 anos, transcrição da gravação em áudio, em 24/10/2017).
Outro elemento a considerar é que, como a proposta do nosso estudo era integrar a criança e seus pares, importa sinalizar que a composição dos pares do segundo grupo de brincantes - formado, como dissemos acima, de amigos e vizinhos da criança de cinco anos - trouxe, em si mesma, uma especificidade, já que, tal como acontece nas brincadeiras cotidianas, a presença ou ausência desses nos nossos encontros variava em decorrência das suas agendas diárias. Cada vez que isso ocorria, isto é, novas crianças se integravam aos encontros ou brincadeiras, buscávamos deixá-las inteiradas sobre a pesquisa, a fim de obter seu assentimento para incluí-las como interlocutoras. E, para garantir as questões da ética na pesquisa, imediatamente, entrávamos em contato com as famílias para obtermos o consentimento dos adultos responsáveis, esclarecendo aos mesmos sobre os objetivos para realizar a pesquisa com suas crianças. Foi interessante observar, em muitos desses momentos, que as próprias crianças que já estavam participando da pesquisa se apressavam para explicar às outras como a dinâmica funcionava.
Tiana: Steve! Essa daqui é uma tia de coração minha e de Elsa. Ela está fazendo uma pesquisa de doutorado, por isso que está todo mundo com o celular jogando assim, entendeu?
Pesquisadora: Eu explicaria! Mas fiquem à vontade! Vocês podem explicar também!
Mulher-Gato: A pesquisa é brincando com o celular e tablet!
Pesquisadora: Hummm!!! E o que mais?
Elsa: Tudo que a gente faz aqui, na hora que estamos brincando, ela grava, filma e depois ela escreve! Por isso, se você quiser participar tem que deixar ela filmar!
Pesquisadora: Hahaha! (Tiana, 11 anos; Mulher-Gato, 6 anos; Elsa, 5 anos, transcrição da gravação de áudio em 29/08/2017).
Essas escolhas e os caminhos percorridos estiveram fundamentados naquilo que entendemos ser a ética da Pesquisa com criança. Segundo Pereira (2012a, p. 77), essa ética se constitui quando se firmam “os princípios em torno dos quais se pautará a relação de alteridade do pesquisador com seus interlocutores da pesquisa e da pesquisa com a realidade social”. Essa ética, de acordo com Macedo (2014), é construída quando nos revelamos ao outro, através das nossas questões, da nossa necessidade de compreender as infâncias contemporâneas, da forma como escolhemos nos relacionar com as crianças no contexto da pesquisa, e, inclusive, de como exercemos a autoria na escrita do texto.
Outros autores, entre eles Mortari (2007, apud BARBOSA, 2014b, p. 241) sugerem que pensemos a ética na Pesquisa com criança, considerando dois aspectos: por um lado, no fazer do pesquisador que precisa desenvolver uma atitude específica com esses sujeitos, ou seja, uma forma ética de estar com as crianças; e, por outro lado, o tratamento do material produzido ao fazer a experiência de alteridade, de estar com o outro. Pensando nesse primeiro aspecto, enfatizamos que a nossa postura ao desenvolver a Pesquisa com criança esteve pautada na ideia de que a criança, nesse processo, atuou como parceira na produção de significados, em uma relação em que “[...] criança e adulto se propõem a construir sentidos para a experiência de um, de outro e de ambos.” (CASTRO, 2008, p. 27). Quanto ao segundo aspecto, compreendemos que as crianças na pesquisa foram mobilizadas (ou não) a partir daquilo que provocamos e lhe demos a conhecer. Portanto, reafirmamos que “o processo de pesquisa, independente de se tratar de Pesquisa com crianças, é fundado pelo pesquisador. É ele quem instaura a pesquisa, quem define seu início e seu fim, quem recorta do vivido/pensado o que transforma em texto.” (PEREIRA, 2012a, p. 72)
Convém ressaltar que a postura e conduta ética de estar com a criança esteve presente em nossas atitudes durante todo o desenvolvimento da pesquisa. Graue e Walsh (2003) nos auxiliam nesse entendimento da necessidade de considerar tal postura ao afirmarem que “o comportamento ético está intimamente ligado à atitude - a atitude que cada um leva para o campo de investigação e para a sua interpretação pessoal dos fatos” (p. 76). Para esses autores, podemos pensar nessas atitudes considerando que,
quando tiver dúvidas sobre se determinada ação é ética ou não, um bom ponto de partida é colocar-se na posição do outro e imaginar como se sentiria se soubesse o que aquela pessoa tão simpática pretende realmente fazer. Se ficasse aborrecido e ofendido por ser tratado como uma simples amostra num estudo de que não queria fazer parte... Se sentisse traído, porque uma coisa que tinha contado confidencialmente tinha vindo a público num relatório... (GRAUE; WALSH, 2003, p. 75).
É dessa postura de se colocar no lugar do outro que refletimos sobre a ética na pesquisa, ou seja, uma conduta de responsabilidade no ato de pensar e agir com o outro. Por isso, trouxemos o debate sobre este tema, buscando superar o rastro da normatização e judicialização a que estão sujeitas as ciências biológicas, que, na maioria das vezes, estão subjugadas a protocolos que obrigam o pesquisador a adaptar sua pesquisa respondendo à pergunta “O que posso fazer?”, com normas pré-estabelecidas em relação ao evento da pesquisa. Defendemos, em concordância com Pereira (2015b), que a discussão ética na pesquisa, considerando o campo das Ciências Humanas e Sociais, precisa incorporar o questionamento “O que devo fazer?”, pergunta que coloca o lugar em que pesquisadores e pesquisados podem ocupar na construção ética da pesquisa.
Diante do exposto, compreendemos que a ética no contexto das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, e, no âmbito da Pesquisa com criança, apresenta uma construção de princípios e condutas que se constituem em presença com o outro, seja no plano teórico, seja na empiria, seja na forma como disponibilizamos os resultados produzidos. A própria intenção de realizar a pesquisa já indica o desejo do pesquisador de ir ao encontro do outro (PEREIRA; MACEDO, 2012). Portanto, entendemos que a formulação desse encontro e a sua socialização são atos de responsabilidade do pesquisador, o que, de certa forma, “[...] coloca como questão primeira de toda pesquisa o próprio sentido de pesquisar.” (PEREIRA, 2015, p. 287).
Isto é, precisamos, a todo tempo, investigar: quais discursos e realidades queremos referendar com a pesquisa que fazemos, para que se torne necessário o encontro com o outro, e, sobretudo, que lugares estamos reservando para ele(a), na produção dos discursos e das realidades. Dessa forma, concordamos com Pereira (2015), na sua ideia de que, na Pesquisa com criança, precisamos construir, junto com elas, sentidos partilhados para a época em que estamos imersos e para as questões que afetam o nosso existir.
Os encontros de brincadeiras e os dispositivos de pesquisa
Nessa busca de construir junto com as crianças os sentidos partilhados, precisamos deixar demarcado como aconteceram os nossos encontros de brincadeiras. Esses encontros se desenvolveram em dois cenários diferentes, ambos ambientes domésticos de famílias de classe média, residentes em Salvador, Bahia, Brasil: um condomínio fechado de casas e outro no condomínio de apartamentos. Entendemos que quando a criança mora em um local que é de condomínio de apartamentos, para qualquer outra pessoa adentrar ao espaço familiar e, sobretudo, outra criança, é necessário que o morador convide e/ou abra a porta para o outro. Neste tipo de morada, os contatos entre os grupos de pares vão acontecer, na maioria das vezes, nos espaços denominados como convívio social do condomínio, a exemplo: parquinhos, brinquedoteca, área da piscina, espaço de jogos etc. Esta foi a realidade que vivenciamos com Capitão América - que é um brincante residente em um condomínio fechado de apartamentos. Sua mãe, por ser professora de uma Instituição Federal, trabalha durante todo dia, e a criança tinha uma rotina de: pela manhã estar na escola, à tarde aos cuidados dos avós ou do pai, e a noite ou os finais de semanas eram destinados às atividades de lazer. Neste contexto, o grupo de pares se constituiu na interação e no brincar com adultos e, portanto, os avós, o pai e a mãe junto com a criança foram os interlocutores desse grupo.
Já Elsa é uma brincante que residia no condomínio fechado de casas, e nesta configuração identificamos outra dinâmica: como o condomínio tem um sistema forte de segurança, as portas das casas ficam abertas e as crianças circulavam entre as residências com maior tranquilidade. O movimento de estarem juntas era outro! Mesmo com as demais crianças tendo as suas próprias rotinas individuais, o acesso de uma na casa da outra é mais aberto: basta chegar na porta da casa, gritar o nome da criança que ali reside e, após obter a autorização, entrar e brincar. Nessa dinâmica, a cada encontro tínhamos novos(as) interlocutores(as) integrando o grupo de brincadeiras. Com isso, este grupo se configura com Elsa e as outras crianças que fazem parte da sua rotina diária, a exemplo a irmã e os amigos com os quais ela compartilhava os atos de brincadeiras no espaço do condomínio e em sua casa.
É preciso destacar que nestes grupos de interlocutores, ainda que se diferenciem as dimensões das suas interações entre os pares, percebemos as práticas sociais e culturais com os dispositivos móveis em ambos os grupos. Nessas práticas, o brincar se constitui como um espaço fundamental para a construção das culturas infantis, assim entendíamos que somente brincando poderíamos ter acesso à sua natureza interativa e coletiva.
Ao considerarmos que as crianças não são iguais, que se comportam e se expressam de maneiras peculiares, percebíamos a necessidade de desenvolver estratégias para ouvi-las, pois não poderíamos ficar limitadas apenas a métodos tradicionais. Por se tratar de crianças pequenas, entendíamos que poderíamos encontrar crianças falantes, outras mais tímidas, e, ainda, aquelas que gostam de manifestar suas opiniões de modos não verbais. Portanto, na perspectiva de compreender o objeto de estudo, valorizando as vozes das crianças e levando em conta os seus momentos de brincadeiras, foi que desenvolvemos, junto com a observação, “rodas de brincadeiras” utilizando o tablet e o smartphone. E foram as rodas de brincadeiras o principal dispositivo para a produção dos dados da pesquisa.
Essas rodas substituíram o método tradicional que é a entrevista, pois, no nosso entender, a “entrevista típica, sentada, é difícil de realizar com crianças, sobretudo, com crianças mais novas” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 139). Acreditamos que as crianças sabem e querem falar, mas, em alguns casos, a entrevista poderia dar certo nos primeiros minutos; depois disso, poderiam perder o interesse e elas logo buscariam algo para se distrair.
Com encontros que aconteceram duas vezes na semana, durante o período entre maio a novembro de 2017, variaram entre duas e três horas. Para a produção dos dados, buscamos gravar todos os momentos com um gravador de áudio e fazer a filmagem de alguns momentos das brincadeiras. Desse modo, integramos as rodas de brincadeiras com as crianças e brincamos juntos, tendo como direcionamento, sempre, as atividades lúdicas que elas propunham. Na maioria das vezes, eles sinalizavam o que e como queriam brincar:
Elsa: Ah! Não vou jogar Minecraft agora não!
Pesquisadora: Não? E vai brincar com o que agora?
Elsa: Aquele Surf!
Pesquisadora: Ah! O Subway Surf?
Elsa: Sim!
Elsa: Você quer jogar também, tia?
Pesquisadora: Quero! Vamos uma vez de cada! (Elsa, 5 anos, transcrição da gravação em áudio, em 22/08/2017).
Nas brincadeiras livres e espontâneas deixamos as crianças escolherem o que queriam brincar. A nossa relação de confiança com as crianças foi sendo construída a cada semana, por meio de conversas durante o brincar. Nos deparamos com momentos em que ora estavam empolgadas para brincar com os dispositivos, ora propunham outras brincadeiras que eram de seu interesse, a exemplo, sentamo-nos com elas no chão, corremos e brincamos de pega-pega, esconde-esconde, montamos bonecos (juntos exercitamos todas as imaginações com o Lego) e quebra-cabeça, jogamos Dama e Ludo, trocamos abraços e sorrisos, olhamos com naturalidade as transgressões como parte das brincadeiras e nos colocamos sempre disponíveis para brincar. Desse modo, foi possível ora interrogá-las, ora acompanhar a interação de uma criança com a outra e com a pesquisadora e ora vê-las concentradas em suas atividades lúdicas com o tablet e/ou smartphone.
Ao tomarmos como procedimento metodológico o brincar livre e espontâneo, consideramos a “experivivência social espontânea da manifestação da ludicidade entre as crianças sem a intervenção de adultos.” (LOPES, 2016, p. 22). Notamos que, à medida que avançávamos na pesquisa, elas já nos esperavam com o smartphone e o tablet nas mãos, mas em momento algum direcionamos as brincadeiras, ao contrário, deixamos elas livres para brincar com o que mais lhes interessavam.
Isso posto, nos primeiros encontros passamos a tarde dialogando e observando-as brincar, e depois, em uma perspectiva do método “reativo” de entrada no campo (CORSARO, 2011), em pouco tempo as crianças já nos convidavam para entrar e nos aproximar dos ambientes onde brincavam.
Pesquisadora: Ah! É para eu jogar também!
Capitão América: Claro! Você não está aqui para brincar? Então, tem que jogar também! Não pode só ficar olhando!
Pesquisadora: Sim… Sim! Já vou jogar! (Capitão América, 4 anos, transcrição da gravação em áudio, em 12/06/2017).
Concordamos com Corsaro (2011) que esta proposta do método reativo passa a ser oposta ao que ocorre, já que, na maioria das vezes, quando adultos pretendem se integrar aos ambientes de crianças, se aproximam para fazer perguntas, dar conselhos ou resolver brigas. Ao contrário disso, a nossa postura foi de fazer parte dos contextos vividos por elas, de modo que, depois de algum tempo, elas pudessem nos chamar para as suas atividades e, aos poucos, nos (re)conhecer como um adulto atípico (CORSARO, 2009).
A nossa relação de confiança com as crianças foi sendo construída a cada encontro, por meio de conversas durante o brincar. Nos deparamos com momentos em que ora estavam empolgadas para brincar com os dispositivos, ora propunham outras brincadeiras que eram de seu interesse; a exemplo, sentamo-nos com elas no chão, corremos e brincamos de pega-pega, esconde-esconde, montamos bonecos (juntos exercitamos todas as imaginações com o Lego) e quebra-cabeça, jogamos Dama e Ludo, trocamos abraços e sorrisos, olhamos com naturalidade as transgressões como parte das brincadeiras e nos colocamos sempre disponíveis para brincar. Isso fez com elas nos incluíssem como membros da família.
Elsa: Mamãe! As únicas pessoas que torcem para o Bahia daqui de casa são mamãe e a tia!
Mãe: Você viu isso? Você já está inclusa na família!
Pesquisadora: Está vendo! Estou podendo! Já sou da casa! (Elsa, 5 anos, transcrição da gravação em áudio, em 08/08/2017).
A partir desses acontecimentos, é importante destacar que a percepção das crianças sobre a pesquisadora, ora como “integrante da família” ora como uma “adulta criança”, nos mostrou como esta pesquisa, que teve como foco compreender como o brincar com os dispositivos móveis contribuem para estruturar os processos de produção das culturas infantis contemporâneas, pôde ser complexa.
Pesquisadora: Para mim foi muito bom você deixar eu vir brincar contigo todos esses meses...
Capitão América: Para mim também!
Pesquisadora: Ah! Você gostou?
Capitão América: Gostei! Você é uma adulta criança!
Pesquisadora: Oh, meu amorrr!!!! Que lindo!!! (Capitão América, 4 anos, transcrição da gravação em áudio, em 11/10/2017).
Entendemos que esses relatos emergiram porque buscamos experimentar junto com elas as suas diversas brincadeiras, ou seja, nos colocamos no lugar de ser aquela que procurava conhecer os usos que as crianças faziam, sem, no entanto, libertar-se por completo do lugar de “adulta’, que, de certa forma, na maioria das vezes tenta prescrever o que elas devem ou não fazer.
Além desse aspecto, é importante compreender a necessidade do tempo para estar em campo junto com as crianças, pois só dessa maneira teremos condições de entrar, cada vez mais, “no mundo dos bastidores, nos labirintos das relações, para a partir dessa experiência compreender em profundidade.” (MACEDO, 2006, p. 95). Nessa tentativa de compreensão em profundidade, para aproveitarmos cada encontro, de forma que pudéssemos responder as nossas questões de pesquisa, realizamos um roteiro para os encontros, em que a partir de cada pergunta, desenvolvemos outros subconjuntos de questionamentos e pontos a observar na medida em que a brincadeira acontecia.
Com as rodas de brincadeiras foi possível estabelecer uma relação dialógica com as crianças e, nessa relação, elas faziam perguntas, colocavam-se, ajudavam e juntos construímos o corpus da pesquisa. Além disso, nesses momentos que envolveram, igualmente, a observação participativa, buscamos assistir, ouvir, refletir e envolver-nos com a criança em atividades diversas.
As rodas de brincadeiras, conjugadas com as narrativas das crianças, se configuraram para a pesquisa como uma experiência em si mesma, construída e situada na relação de proximidade entre a pesquisadora e a criança. Portanto, as narrativas produzidas nesses momentos foram consideradas “um ato de significação e um modo de discurso, não meramente uma representação da realidade, pois ao mesmo tempo que a criança narra, ela vai construindo significados.” (SOLON; COSTA; ROSSETTI-FERREIRA, 2008, p. 210). E na Pesquisa com criança, “[…] os significados que procuramos são os significados das crianças, não os dos adultos.” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 13). Nesta direção, na proposta em que buscamos a interlocução com as crianças, o diálogo que estabelecemos com elas se constituiu como parte do processo de construção do conhecimento sobre elas, e exigiu que buscássemos dispositivos metodológicos que visassem abrir caminhos e possibilidades, sem perder de vista a intencionalidade do estudo.
Considerações finais
Nas singularidades de uma metodologia de pesquisa que busca os pressupostos da Pesquisa com criança, compreendemos que para realizar as observações prolongadas e intensivas com elas, é preciso ser aceito pelo grupo e adquirir o status de participante. E, para conquistar esta aceitação, torna-se fundamental que as crianças nos vejam como esse adulto atípico. Nesse lugar de adulto atípico, o pesquisador está sempre ocupando um lugar de participante, mas esta participação precisa ser ativa e direta no cotidiano do grupo observado: em que o pesquisador se aproxima, é envolvido e envolve-se com o grupo social.
Com isso, além do assentimento das crianças em ser interlocutoras na pesquisa, também é importante sermos aceitos como participantes de suas brincadeiras cotidianas, para lançarmos mão de estratégias específicas e previamente estabelecidas para cada imersão nas práticas das crianças. Na nossa compreensão, no espaço em que aconteceram as brincadeiras das crianças, com seus brinquedos analógicos ou digitais, existiram trocas verbais que poderiam ser potencializadas pela situação da pesquisa ou não. Desta forma, enquanto pesquisadoras, estivemos empenhadas na compreensão dos significados que emergiam das palavras, gestos, expressões corporais e entonações que acompanham o diálogo.
Portanto, concluímos que na Pesquisa com criança pequena, é preciso sempre considerar que ela se expressa para além da linguagem falada, se comunicando de forma tão ou mais complexa que por meio das palavras, e isso diz muito sobre cada uma delas. Isto é, a expressão/comunicação de tais crianças envolve todo o sistema simbólico integrado por outras múltiplas linguagens, o que vai favorecê-las no sentido de se apropriar da cultura e recriá-la. E, por fim, percebemos nos relatos das crianças que os retornos positivos só foram possíveis devido à nossa postura em nos colocar à disposição delas. Essa postura precisa ser entendida tendo como princípio o lugar de alteridade experimentado por pesquisadores adultos e crianças no decorrer de todo o seu processo de pesquisar. Portanto, para nós é importante que essa forma de pesquisar não seja vista como um modelo, mas como uma outra maneira de pensarmos o estudo em espaços privados/familiares, buscando construir novas metodologias de pesquisar nesses espaços.